a história do corpo humano

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  • Daniel E. Lieberman

    A histria do corpohumanoEvoluo, sade e doena

    Traduo:Maria Luiza X. de A. Borges

    Reviso tcnica:Denise Sasaki

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  • A meus pais

  • Sumrio

    Prefcio

    1. IntroduoA que os seres humanos esto adaptados?

    PARTE I Macacos antropoides e sereshumanos

    2. Macacos antropoides eretosComo nos tornamos bpedes

    3. Muita coisa depende do jantar

  • Como os australopitecos nos tornaramparcialmente independentes das frutas

    4. Os primeiros caadores-coletoresComo corpos quase modernos evoluramno gnero humano

    5. Energia na Idade do GeloComo desenvolvemos crebro grande ecorpo grande, gordo e cada vez maior

    6. Uma espcie muito cultivadaComo os seres humanos modernos colon-izaram o mundo com uma combinao decrebro e fora muscular

    PARTE II Agricultura e RevoluoIndustrial

    7. Progresso, desajuste e disevoluo

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  • As consequncias boas e ms de se terum corpo paleoltico num mundo ps-paleoltico

    8. Paraso perdido?Vantagens e desvantagens de termos nostornado agricultores

    9. Tempos modernos, corposmodernos

    O paradoxo da sade humana na eraindustrial

    PARTE III O presente, o futuro

    10. O crculo vicioso do excessoPor que energia demais pode nos deixardoentes

    11. Desuso

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  • Por que estamos perdendo capacidadespor no utiliz-las

    12. Os perigos ocultos da novidade edo conforto

    Por que inovaes corriqueiras podemnos fazer mal

    13. Sobrevivncia dos mais aptosPode a lgica evolutiva nos ajudar a cul-tivar um futuro melhor para o corpohumano?

    Notas

    Agradecimentos

    ndice remissivo

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  • Prefcio

    COMO A MAIOR PARTE DAS PESSOAS, sou fas-cinado pelo corpo humano, mas, ao contrrioda maioria, que relega de modo sensato esseinteresse s noites e aos fins de semana, fizdo corpo humano o foco de minha carreira.Na verdade, tenho a grande sorte de ser pro-fessor na Universidade Harvard, onde ensinoe estudo como e por que nosso corpo como. Meu trabalho e meus interesses permitem-me fazer de tudo. Alm de trabalhar comalunos, estudo fsseis, viajo para cantos in-teressantes do mundo para ver como as pess-oas usam o corpo e fao experimentos em

  • laboratrio para investigar como funcionamos corpos de pessoas e de animais.

    Como a maioria dos professores, gostomuito de falar, e gosto de perguntas. Mas, detodas as que em geral me fazem, a que eucostumava mais temer era: Que aparnciaos seres humanos tero no futuro? Eu de-testava essa pergunta! Sou professor de bio-logia evolutiva humana, o que significa queestudo o passado, no o que est frente.No sou um adivinho, e a questo me faziapensar em filmes baratos de fico cientficaque retratam o ser humano do futuro dis-tante com crebro enorme, corpo pequeninoe plido e roupas brilhantes. Minha respostaautomtica era sempre algo como: Os sereshumanos no esto evoluindo muito porcausa da cultura. uma variante da res-posta que muitos de meus colegas doquando lhes fazem a mesma pergunta.

    Mudei de ideia desde ento e agora con-sidero que o futuro do corpo humano uma

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  • das questes mais importantes sobre asquais podemos pensar. Vivemos em temposparadoxais para nossos corpos. Por um lado,esta provavelmente a era mais saudvel nahistria humana. Quem vive num pasdesenvolvido espera que todos os seus filhossobrevivam infncia, vivam at asenilidade, tornem-se pais e avs. Derrot-amos ou mitigamos muitas doenas quematavam pessoas em grandes quantidades:varola, sarampo, poliomielite e a peste. Aspessoas so mais altas, enfermidades que an-tigamente ameaavam a vida como apendi-cite, disenteria, uma perna quebrada ou an-emia podem ser facilmente remediadas. Semdvida ainda h muita desnutrio e doenaem alguns pases, mas esses males so comfrequncia resultado de governos ruins edesigualdade social, no de falta de comidaou de conhecimento mdico.

    Por outro lado, poderamos estar melhor,muito melhor. Uma onda de obesidade,

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  • doenas e incapacidades crnicas evitveisvarre o globo. Entre elas esto certos cn-ceres, diabetes tipo 2, osteoporose, doenascardacas, derrames cerebrais, doenasrenais, algumas alergias, demncia, de-presso, ansiedade e insnia. Bilhes depessoas sofrem de dores lombares, ps chat-os, fascite plantar, miopia, artrite, priso deventre, refluxo e sndrome do intestino ir-ritvel. Alguns desses problemas so antigos,mas muitos so novos ou tiveram um forteaumento recentemente em prevalncia e in-tensidade. Em certa medida, essas doenasesto se tornando mais comuns porque aspessoas vivem mais tempo, mas a maioriadelas est se manifestando em pessoas demeia-idade. Essa transio epidemiolgicacausa no s sofrimento, mas tambm umproblema econmico. medida que a ger-ao do baby boom se aposenta, suasdoenas crnicas pressionam o sistema desade e sufocam a economia. Alm disso, a

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  • imagem revelada pela bola de cristal pareceruim porque essas doenas entram em evid-ncia medida que o desenvolvimento se es-palha pelo planeta.

    Os desafios que enfrentamos no campo dasade geram uma intensa conversa de m-bito mundial entre pais, mdicos, pacientes,polticos, jornalistas, pesquisadores e outros.Grande parte do foco tem recado sobre aobesidade. Por que as pessoas esto ficandomais gordas? Como podemos perder peso emudar a alimentao? Como evitar que nos-sos filhos fiquem com excesso de peso?Como estimul-los a fazer exerccios? Emrazo da urgente necessidade de ajudar pess-oas que esto doentes, h tambm um in-tenso foco em inventar novos tratamentospara doenas no infecciosas cada vez maiscomuns. Como tratar e curar o cncer,doenas cardacas, diabetes, osteoporose eoutras com maior probabilidade de matar aspessoas que amamos e a ns mesmos?

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  • Enquanto mdicos, pacientes, pesquisad-ores e pais debatem e investigam estasquestes, suspeito que poucos deles voltemseus pensamentos para as antigas florestasda frica, onde nossos ancestrais divergiramdos macacos antropoides e ficaram de p.Eles raramente pensam sobre Lucy ou osneandertais e, quando consideram aevoluo, fazem-no em geral para reconhecero fato bvio de que fomos outrora homens dacaverna (seja l o que isso queira dizer), oque talvez signifique que nossos corpos noesto bem adaptados ao estilo de vida mod-erno. Um paciente que sofre um ataquecardaco precisa de cuidados mdicos imedi-atos, no de uma aula sobre evoluohumana.

    Se algum dia eu sofrer um ataquecardaco, tambm quero que meu mdico seconcentre no tratamento, no na evoluohumana. Este livro, no entanto, sustenta queo fracasso geral de nossa sociedade em

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  • pensar sobre a evoluo humana uma im-portante razo para nosso fracasso em evitardoenas evitveis. Nossos corpos tm umahistria uma histria evolutiva de ex-trema importncia. Para comear, a evoluoexplica por que nossos corpos so como so,e assim fornece pistas sobre como evitar ad-oecer. Por que somos to propensos a en-gordar? Por que de vez em quando engas-gamos com a comida? Por que temos arcosque se achatam nos ps? Por que nossas cos-tas doem? Uma razo para considerar ahistria evolutiva do corpo humano que elapode nos ajudar a compreender a que nossoscorpos esto e no esto adaptados. As res-postas para estas perguntas so difceis e im-previsveis, mas tm profundas implicaespara nossa compreenso do que promovesade e doena e da razo por que nossoscorpos por vezes adoecem naturalmente. Porfim, penso que a razo mais premente paraestudar a histria do corpo humano que ela

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  • no terminou. Ainda estamos evoluindo.Neste exato momento, entretanto, a formamais poderosa de evoluo no a evoluobiolgica do tipo descrito por Darwin, mas aevoluo cultural, em que desenvolvemos etransmitimos nossas ideias e nossos com-portamentos para nossos filhos, amigos eoutros. Alguns desses novos comportamen-tos, especialmente os alimentos quecomemos e as atividades que fazemos (ouno fazemos), nos deixam doentes.

    A evoluo humana divertida, interess-ante e reveladora, e grande parte deste livroexplora a extraordinria jornada que criounossos corpos. Tambm procuro realar oprogresso alcanado pela agricultura, pelaindustrializao, pela cincia mdica e poroutras profisses que tornaram esta era amelhor de todos os tempos at agora para oser humano. Mas no sou nenhum Panglosse, como nosso desafio fazer melhor, os lti-mos captulos concentram-se em como e por

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  • que adoecemos. Se Tolsti fosse o autordeste livro, talvez pudesse escrever que to-dos os corpos saudveis so iguais, mas cadacorpo doente doente sua prpriamaneira.

    Os temas essenciais deste livro evoluohumana, sade e doena so vastssimos ecomplexos. Fiz o possvel para tentar manterfatos, explicaes e argumentos simples eclaros sem banaliz-los ou evitar questesessenciais, especialmente no que diz respeitoa doenas graves como cncer de mama oudiabetes. Inclu tambm muitas referncias,inclusive a sites, onde possvel investigarmais. Fiz um esforo para encontrar oequilbrio certo entre extenso e profundid-ade. Por que nossos corpos so como so um tpico vasto demais para se cobrir, tal acomplexidade deles. Por isso concentrei-meem apenas alguns aspectos da evoluo, rela-cionados dieta e atividade fsica; paracada tpico que abordo, h dez que no

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  • abordo. A mesma advertncia aplica-se aoscaptulos finais, que focalizam apenas algu-mas doenas que escolhi como exemplaresde problemas maiores. Alm disso, aspesquisas nesses campos avanam com rap-idez. Inevitavelmente algo do que incluficar desatualizado. Peo desculpas.

    Por fim, conclu o livro de maneira temer-ria, com meus pensamentos sobre como ap-licar as lies da histria do corpo humano aseu futuro. Vou entregar o ouro agoramesmo e resumir o cerne do meu argu-mento. No evolumos para ser saudveis;fomos selecionados para ter o maior nmerode filhos possvel sob condies diversas, de-safiadoras. Em consequncia, nunca evolu-mos para fazer escolhas racionais com re-lao ao que comer ou como nos exercitarem condies de abundncia e conforto.Mais ainda, interaes entre os corpos queherdamos, os ambientes que criamos e as de-cises que por vezes tomamos puseram em

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  • movimento um insidioso circuito de retroali-mentao. Contramos doenas crnicasfazendo o que evolumos para fazer, mas sobcondies a que nossos corpos esto mal ad-aptados, e depois transmitimos essas mes-mas condies a nossos filhos, que tambmadoecem. Se desejamos deter esse crculo vi-cioso, precisamos descobrir como nos cutu-car, empurrar e por vezes obrigar, demaneira respeitosa e sensata, a comer ali-mentos saudveis e ser mais ativos fisica-mente. Isso, tambm, aquilo que evolumospara fazer.

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  • 1. IntroduoA que os seres humanos estoadaptados?

    Se iniciarmos uma disputa entreo passado e o presente, vamosdescobrir que perdemos ofuturo.

    WINSTON CHURCHILL

    VOC J OUVIU FALAR do Mystery Monkey, quedeu um espetculo parte na Conveno Na-cional Republicana de 2012 em Tampa, naFlrida? O macaco em questo, um maca-co-rhesus fugido, passara mais de trs anosvivendo nas ruas da cidade, procurandocomida em caambas e latas de lixo,

  • esquivando-se de carros e evitando habil-mente ser capturado por frustrados fun-cionrios do controle de animais selvagens.Tornou-se uma lenda local. Depois, quandohordas de polticos e jornalistas aportaramna cidade para a conveno, o Mystery Mon-key ganhou sbita fama internacional. Polti-cos logo viram na histria do macaco umaoportunidade para promover suas ideias.Libertrios e liberais saudaram a persistenteevaso da captura por parte do animal comosimblica do instinto de livrar-se de interfer-ncias injustas na liberdade das pessoas (edos macacos). Conservadores interpretaramos anos de esforos fracassados paracaptur-lo como simblicos de um governoincompetente, esbanjador. Jornalistas nopuderam resistir a contar a histria doMistery Monkey e seus pretensos captorescomo uma metfora do circo poltico que es-tava acontecendo em outro lugar da cidade.Em sua maioria, as pessoas simplesmente

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  • perguntaram a si mesmas o que fazia ummacaco solitrio na Flrida suburbana, queobviamente no era seu lugar.

    Como bilogo e antroplogo, vi o MisteryMonkey, e as reaes que inspirou, atravsde uma lente distinta como emblemticoda maneira evolutivamente ingnua e incoer-ente com que os seres humanos veem nossolugar na natureza. primeira vista, o macacosintetiza a maneira como alguns animaissobrevivem muito bem em condies para asquais no foram adaptados originalmente.Os macacos-rhesus evoluram no sul da sia,onde sua habilidade para procurar muitos al-imentos diferentes lhes permite habitar cam-pos, florestas e at regies montanhosas.Prosperam tambm em aldeias, vilas e cid-ades e so comumente usados em laboratri-os. Nesse aspecto, o talento do Mistery Mon-key para sobreviver de lixo em Tampa nosurpreende. No entanto, a convico geral deque uma cidade da Flrida no o lugar para

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  • um macaco em liberdade revela quo malaplicamos a mesma linha de raciocnio a nsmesmos. Quando considerada de uma per-spectiva evolutiva, a presena do macaco emTampa no era mais incongruente que apresena da vasta maioria dos seres hu-manos nas cidades, subrbios e outros ambi-entes modernos em que vive.

    Voc e eu existimos mais ou menos tolonge de nosso ambiente natural quanto oMistery Monkey. Mais de seiscentas geraesatrs, todo mundo em toda parte eracaador-coletor. At relativamente poucotempo atrs um piscar de olhos no tempoevolutivo nossos ancestrais viviam empequenos bandos de menos de cinquentapessoas. Eles se moviam regularmente de umacampamento para outro, e sobreviviam pro-curando plantas bem como caando e pes-cando. Mesmo depois que a agricultura foiinventada, h cerca de 10 mil anos, a maioriados agricultores ainda vivia em pequenas

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  • aldeias, labutava diariamente para produziralimento suficiente para si e nunca imaginouuma existncia agora comum em lugarescomo Tampa, na Flrida, onde as pessoasacham naturais coisas como carros, privadas,ares-condicionados, telefones celulares euma abundncia de comidas ricas em calori-as e altamente processadas.

    Lamento informar que o Mistery Monkeyfoi finalmente capturado em outubro de2012, mas que grau de preocupao dever-amos ter com o fato de que a vasta maioriade ns, seres humanos de hoje, continua ex-istindo, como o Mistery Monkey antes, emcondies a que nossos corpos no estavamoriginalmente adaptados? Sob vrios aspec-tos, a resposta pequeno, porque a vida noincio do sculo XXI bastante boa para oser humano comum e, em geral, nossa es-pcie est prosperando, em grande partegraas ao progresso social, mdico e tecnol-gico ao longo das ltimas geraes. H mais

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  • de 7 bilhes de pessoas, grande parte dasquais espera que seus filhos e netos vivam,como eles mesmos vivero, at a casa dossetenta anos ou mais. At pases compobreza generalizada alcanaram grandeprogresso: a expectativa de vida mdia na n-dia era de menos de cinquenta anos em 1970,mas hoje de mais de 65.1 Bilhes de pessoasvivero mais tempo, ficaro mais altas e des-frutaro de mais conforto do que reis e rain-has do passado.

    Contudo, ainda que as coisas estejamboas, poderiam estar muito melhores, etemos vrias razes para nos preocupar como futuro do corpo humano. Alm da ameaapotencial representada pela mudana climt-ica, tambm estamos nos confrontando comuma enorme exploso populacional e umatransio epidemiolgica. medida quemais pessoas esto vivendo mais e h menosgente morrendo jovem de doenas causadaspor infeces ou comida insuficiente, um

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  • nmero exponencialmente maior de pessoasde meia-idade e idosas est sofrendo dedoenas no infecciosas crnicas que cos-tumavam ser raras ou desconhecidas.2Mimada por um excesso de opes, a maioriados adultos em lugares desenvolvidos comoos Estados Unidos e o Reino Unido est forade forma e com excesso de peso, e a pre-valncia de obesidade na infncia vemaumentando de maneira alarmante nomundo todo, anunciando outros milhes depessoas fora de forma e obesas nas prximasdcadas. A falta de preparo fsico e o excessode peso, por sua vez, so acompanhados pordoenas cardacas, derrames cerebrais e vri-os cnceres, bem como uma multido de dis-pendiosas doenas crnicas como diabetestipo 2 e osteoporose. Os padres de deficin-cia esto mudando de maneira perturbadora medida que mais pessoas em todo o globosofrem de alergia, asma, miopia, insnia, pchato e outros. Em poucas palavras, a

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  • mortalidade mais baixa est sendo sub-stituda por maior morbidade (sade ruim).At certo ponto, essa mudana ocorre porquemenos pessoas morrem jovens de doenastransmissveis, mas no devemos confundirdoenas que esto se tornando mais comunsem pessoas idosas com doenas causadaspelo envelhecimento normal.3 A morbidade ea mortalidade em todas as idades so signi-ficativamente afetadas pelo estilo de vida.Homens e mulheres de 45 a 79 anos fisica-mente ativos, que comem frutas e legumesem abundncia, no fumam e consomem l-cool moderadamente tm em mdia dorisco de morrer que pessoas com hbitospouco saudveis.4

    Essa elevada incidncia de pessoas comdoenas crnicas pressagia no s uma escal-ada de sofrimento, mas tambm contasmdicas astronmicas. Nos Estados Unidos,mais de 8 mil dlares so gastos em assistn-cia mdica por pessoa a cada ano,

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  • perfazendo quase 18% do Produto InternoBruto (PIB) da nao.5 Grande porcentagemdesse dinheiro gasta no tratamento dedoenas evitveis, como diabetes tipo 2 edoenas cardacas. Outros pases gastammenos em assistncia mdica, mas os custosesto se elevando a taxas preocupantes me-dida que as doenas crnicas aumentam (aFrana, por exemplo, gasta hoje cerca de 12%de seu PIB com assistncia mdica). Com aChina, a ndia e outros pases em desenvolvi-mento ficando mais ricos, como vo lidarcom essas doenas e seus custos? Est claroque precisamos reduzir o custo da assistn-cia mdica e desenvolver tratamentos novose baratos para os bilhes de pessoas doentesagora e no futuro. No seria melhor evitaressas doenas, para incio de conversa? Mascomo?

    Isto nos leva de volta histria do MisteryMonkey. Se pessoas consideraram necessrioretirar o macaco dos subrbios de Tampa,

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  • que no era seu lugar, talvez devssemostambm devolver seus ex-vizinhos humanosa um estado da natureza biologicamentemais normal. Ainda que seres humanos,como macacos-rhesus, possam sobreviver ese multiplicar numa ampla variedade de am-bientes (inclusive subrbios e laboratrios),no gozaramos de melhor sade se comsse-mos alimentos que estamos adaptados a con-sumir e nos exercitssemos como faziamnossos ancestrais? A lgica de que a evoluoadaptou os seres humanos principalmentepara sobreviver e se reproduzir comocaadores-coletores, no como agricultores,operrios de fbrica ou trabalhadores decolarinho-branco, inspira um crescente mo-vimento de homens da caverna dos nossosdias. Adeptos dessa abordagem sadeafirmam que seramos mais saudveis e fel-izes se comssemos e nos exercitssemos demaneira mais parecida com a de nossos an-cestrais da Idade da Pedra. Voc pode

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  • comear adotando uma paleodieta. Comamuita carne (de gado alimentado com capim, claro), bem como castanhas, frutas, se-mentes e plantas folhosas, e evite todos os al-imentos processados com acar ecarboidratos simples. Se voc for realmentesrio, suplemente sua dieta com minhocas, enunca coma gros, laticnios nem coisa al-guma frita. Voc pode tambm incorporarmais atividades paleolticas sua rotinadiria. Caminhe ou corra dez quilmetrospor dia (descalo, claro), suba em algumasrvores, cace esquilos no parque, joguepedras, evite cadeiras e durma numa tbua, eno num colcho. Para ser justo, os de-fensores do estilo de vida primal no estoadvogando que voc largue seu emprego,mude-se para o deserto do Kalahari e aban-done as comodidades da vida moderna comobanheiro, carro e internet (essencial para vo-c postar em seu blog textos sobre suas ex-perincias na Idade da Pedra para outras

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  • pessoas de ideias semelhantes). Eles estosugerindo que voc repense o modo comousa seu corpo, especialmente o que come e amaneira como se exercita.

    Ser que tm razo? Se um estilo de vidamais paleoltico obviamente mais saudvel,por que um nmero maior de pessoas novive desse modo? Quais so as desvant-agens? Que alimentos e atividades dever-amos abandonar ou adotar? Embora sejabvio que os seres humanos no esto ad-aptados a se empanturrar de junk food e pas-sar o dia inteiro refestelados em cadeiras,nossos antepassados tambm no evolurampara comer plantas e animais domesticados,ler livros, tomar antibiticos, beber caf ecorrer descalos em ruas cheias de cacos devidro.

    Estas e outras indagaes suscitam aquesto fundamental que est no centrodeste livro: A que os seres humanos estoadaptados?

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  • uma questo extremamente interess-ante e difcil de responder, que requer mlti-plas abordagens, uma das quais explorar ahistria evolutiva do corpo humano. Como epor que nossos corpos evoluram para sercomo so? Que comidas passamos a comer?Que atividades evolumos para realizar? Porque temos crebro grande, nenhum pelo, psarqueados e outros traos distintivos? Comoveremos, as respostas so fascinantes, comfrequncia hipotticas, e por vezes opostasao que parece bvio. Antes de mais nada,porm, preciso considerar a questo maisprofunda e mais espinhosa do que significaadaptao. Na verdade, esse conceito no-toriamente difcil de definir e aplicar. Osimples fato de termos evoludo para comercertos alimentos ou fazer certas atividadesno significa que sejam bons para ns, ouque outros alimentos e atividades no sejammelhores. Assim, antes de enfrentar ahistria do corpo humano, consideremos

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  • como o conceito de adaptao se origina dateoria da seleo natural, o que o termo real-mente significa e como poderia ser relevantepara nossos corpos hoje.

    Como a seleo naturalfunciona

    Tal como o sexo, a evoluo suscita opiniesigualmente fortes de parte dos que aestudam profissionalmente e dos que a con-sideram to errada e perigosa que o assuntono deveria ser ensinado a crianas. No ent-anto, apesar de muita controvrsia e ig-norncia apaixonada, a ideia de que aevoluo ocorre no deveria dar margem adiscusso. Evoluo nada mais quemudana ao longo do tempo. At criacionis-tas intransigentes reconhecem que a Terra esuas espcies no foram sempre iguais.

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  • Quando Darwin publicou A origem das esp-cies em 1859, cientistas j haviam se dadoconta de que pores anteriores do soloocenico, repletas de conchas e fsseis mar-inhos, tinham de algum modo sido empurra-das para cima a fim de formar maciosmontanhosos. Descobertas de mamutes fs-seis e outras criaturas extintas atestavam queo mundo havia se alterado de maneira pro-funda. O que a teoria de Darwin teve de rad-ical foi sua explicao sensacionalmenteabrangente para o modo como a evoluoocorre por meio de seleo natural, sem a in-terferncia de nenhum agente.6

    Seleo natural um processo extraordin-ariamente simples que resultado de trsfenmenos comuns. O primeiro a vari-ao: todo organismo difere de outros mem-bros de sua espcie. Sua famlia, seus vizin-hos e outros seres humanos variam ampla-mente em peso, comprimento das pernas,forma do nariz, personalidade e assim por

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  • diante. O segundo fenmeno a hereditar-iedade gentica: algumas das variaespresentes em todas as populaes so herda-das porque pais transmitem seus genes aosfilhos. Sua altura muito mais herdada quesua personalidade, e que lngua voc fala notem absolutamente nenhuma base de her-ana gentica. O terceiro e ltimo fenmeno o sucesso reprodutivo diferencial: todos osorganismos, inclusive os humanos, diferemna quantidade de crias que produzem, asquais, por sua vez, sobrevivem para re-produzir. Muitas vezes, diferenas em su-cesso reprodutivo parecem pequenas e semconsequncias (meu irmo tem um filho amais que eu), mas podem ser enormes e sig-nificativas quando indivduos tm de lutarou competir para sobreviver e reproduzir. Acada inverno, cerca de 30% a 40% dos es-quilos nas proximidades da minha casa mor-rem, como ocorria com propores similaresde seres humanos durante grandes fomes e

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  • epidemias. A peste negra exterminou pelomenos um tero da populao da Europaentre 1348 e 1350.

    Se voc concorda que variao, hereditar-iedade e sucesso reprodutivo diferencialocorrem, tem de aceitar que a seleo naturalocorre, porque ela o resultado inevitveldesses fenmenos combinados. Quergostemos ou no, a seleo natural simples-mente acontece. Formalmente expressa, elaocorre sempre que indivduos com variaesherdveis diferem no nmero de crias sobre-viventes que tm comparado a outros indiv-duos na populao (em outras palavras,diferem em sua aptido relativa).7 A seleonatural acontece de maneira mais comum eforte quando organismos herdam variaesraras e perniciosas, como hemofilia (a inca-pacidade de formar cogulos sanguneos),que prejudicam a capacidade de um indiv-duo de sobreviver e se reproduzir. Traosdesse tipo tm menor probabilidade de ser

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  • transmitidos gerao seguinte, o que fazcom que sejam reduzidos ou eliminados dapopulao. Esse tipo de filtro chamadoseleo negativa e muitas vezes leva a umafalta de mudana dentro de uma populaoao longo do tempo, mantendo o status quo.Ocasionalmente, contudo, ocorre seleopositiva quando um organismo herda poracaso uma adaptao, um trao novo e her-dvel que o ajuda a sobreviver e se re-produzir melhor que seus competidores.Traos adaptativos, por sua prprianatureza, tendem a crescer em frequncia deuma gerao para outra, causando mudanaao longo do tempo.

    Adaptao parece ser um conceitosimples, cuja aplicao a seres humanos,Mystery Monkey e outros seres vivos deveriaser igualmente simples. Se uma espcieevoluiu estando portanto presumivelmenteadaptada a uma dieta ou hbitat particular, seus membros deveriam ser mais bem-

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  • sucedidos comendo esses alimentos evivendo nessas circunstncias. Temos poucadificuldade em aceitar que lees, por exem-plo, esto adaptados savana africana, no aflorestas temperadas, ilhas desertas oujardins zoolgicos. Pela mesma lgica, se oslees esto adaptados, e portanto maisajustados, ao Serengeti, no estariam osseres humanos adaptados, e portanto otima-mente ajustados, a viver como caadores-coletores? Por muitas razes, a resposta no necessariamente, e considerar como epor que assim tem profundas ramificaespara se pensar de que maneira a histriaevolutiva do corpo humano relevante paranosso presente e nosso futuro.

    O difcil conceito deadaptao

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  • Nosso corpo tem muitos milhares de ad-aptaes bvias. Nossas glndulas sudor-paras nos ajudam a permanecer frescos,nosso crebro nos ajuda a pensar e as enzi-mas do nosso intestino nos ajudam a digerir.Esses atributos so adaptaes porque socaractersticas teis, herdadas, que forammoldadas por seleo natural e promovemsobrevivncia e reproduo. Normalmentevemos essas adaptaes como naturais, e seuvalor adaptativo muitas vezes s se tornaevidente quando elas deixam de funcionar damaneira apropriada. Por exemplo, talvez vo-c considere a cera de ouvido um aborreci-mento intil, mas essas secrees so narealidade benficas porque ajudam a evitarinfeces do ouvido. No entanto, nem todasas caractersticas de nossos corpos so ad-aptaes (no consigo atribuir nenhuma util-idade s minhas covinhas, aos pelos de min-has narinas ou tendncia a bocejar), emuitas adaptaes funcionam de maneiras

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  • pouco plausveis ou imprevisveis. Recon-hecer aquilo a que estamos adaptados requerque identifiquemos as verdadeiras ad-aptaes e interpretemos sua relevncia.Isso, no entanto, mais fcil de ser dito doque feito.

    Um primeiro problema identificar quecaractersticas so adaptaes e por qu.Considere o genoma, que uma sequncia decerca de 3 bilhes de pares de molculas(conhecidas como pares de bases) que codi-ficam pouco mais de 20 mil genes. A cada in-stante de nossa vida, milhares das clulas denosso corpo esto replicando esses bilhesde pares de bases, com preciso quase per-feita. Seria lgico deduzir que esses bilhesde linhas de cdigo so adaptaes vitais,mas o que se verifica que quase um terode nosso genoma no tem nenhuma funoaparente, s existe porque foi acrescentadode alguma maneira, ou perdeu sua funo aolongo dos ons.8 Nosso fentipo (traos

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  • observveis, como a cor dos olhos ou otamanho do apndice) est tambm repletode caractersticas que talvez tivessem algumpapel til outrora, mas no tm mais, ou queso simplesmente subprodutos da maneiracomo nos desenvolvemos.9 Os dentes do siso(se que voc ainda os tem) existem porquevoc os herdou, e no afetam sua capacidadede sobreviver e se reproduzir mais do quemuitos outros traos que voc pode ter,como polegar com dupla articulao, lobo in-ferior da orelha preso pele da face, oumamilos, se voc homem. errneo, port-anto, supor que todas as caractersticas se-jam adaptaes. Alm disso, embora seja f-cil inventar histrias sobre o valor adaptativode cada caracterstica (um exemplo absurdo a ideia de que o nariz evoluiu parasustentar culos), a cincia cuidadosa exigeque se teste se caractersticas particularesso realmente adaptaes.10

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  • Ainda que as adaptaes no sejam to di-fundidas e fceis de identificar como vocpoderia supor, seu corpo no deixa por issode estar cheio delas. No entanto, o que tornauma adaptao realmente adaptativa (isto ,capaz de melhorar a capacidade de um indi-vduo de sobreviver e se reproduzir) dependemuitas vezes do contexto. Esta compreensofoi, de fato, uma das descobertas decisivas deDarwin, feita a partir de sua clebre viagemde volta ao mundo no Beagle. Ele deduziu(aps voltar para Londres) que variaes naforma do bico entre os tentilhes das ilhasGalpagos so adaptaes para comer difer-entes alimentos. Durante a estao chuvosa,bicos mais longos e mais finos ajudam tentil-hes a comer alimentos preferidos comofrutos de cactos e carrapatos, mas durante osperodos secos, bicos mais curtos e maisgrossos os ajudam a comer alimentos menosdesejveis como sementes, que so mais dur-as e menos nutritivas.11 Formas de bico, que

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  • so geneticamente herdveis e variam dentrode populaes, esto portanto sujeitas aseleo natural entre os tentilhes deGalpagos. Como os padres pluviomtricosflutuam sazonalmente e anualmente, tentil-hes com bicos mais longos tm relativa-mente menos crias durante perodos secos, eaqueles com bicos mais curtos tm relativa-mente menos crias durante perodos chu-vosos, fazendo a porcentagem de bicos cur-tos e longos mudar. Os mesmos processos seaplicam a outras espcies, inclusive seres hu-manos. Muitas variaes humanas como al-tura, forma do nariz e capacidade de digeriralimentos como leite so herdveis e sedesenvolveram entre certas populaes emrazo de circunstncias ambientais es-pecficas. Pele clara, por exemplo, no pro-tege contra queimaduras de sol, mas umaadaptao que ajuda clulas situadas abaixoda superfcie da pele a sintetizar suficientevitamina D em hbitats temperados, com

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  • baixos nveis de radiao ultravioleta dur-ante o inverno.12

    Se as adaptaes so dependentes do con-texto, que contextos tm maior importncia?Aqui as coisas podem ficar consideravel-mente difceis. Como as adaptaes so, pordefinio, traos que nos ajudam a ter maisfilhos que outros na nossa populao, ocorreque a seleo para adaptaes ser mais po-tente quando o nmero de descendentessobreviventes que temos est mais propensoa variar. Trocando em midos, adaptaes sedesenvolvem com mais fora quando a situ-ao est difcil. Por exemplo, nossos ances-trais de cerca de 6 milhes de anos atrs con-sumiam sobretudo frutas, mas isso no sig-nifica que seus dentes s estavam adaptadosa mastigar figos e uvas. Caso secas raras, masseveras, tornassem as frutas escassas, indiv-duos com molares maiores e mais grossosque os ajudassem a mastigar outros alimen-tos menos preferidos, como folhas rijas,

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  • caules e razes, teriam uma forte vantagemseletiva. Assim tambm, a tendncia quaseuniversal a ansiar por alimentos gordoscomo bolo e cheeseburger e armazenar cal-orias em excesso na forma de adiposidadeno tem valor adaptativo nas condiesatuais de contnua abundncia, mas deviaser extremamente vantajosa no passado,quando os alimentos eram mais escassos emenos calricos.

    As adaptaes tm tambm custos queequilibram seus benefcios. Toda vez quefazemos alguma coisa, no podemos fazeroutra. Alm disso, as condies mudam inev-itavelmente, assim como os custos e benef-cios relativos de variaes, dependendo docontexto. Entre os tentilhes de Galpagos,bicos grossos so menos eficientes paracomer cactos, bicos finos so menos efi-cientes para comer sementes duras e bicosintermedirios so menos eficientes paracomer ambos os tipos de comida. Entre seres

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  • humanos, ter pernas curtas vantajoso paraconservar calor em climas frios, mas des-vantajoso para caminhar ou correr longasdistncias com eficincia. Uma consequnciadestas e de outras solues de compromisso que a seleo natural raramente, ou nunca,alcana a perfeio, porque os ambientes es-to sempre mudando. Como ndices pluvi-omtricos, temperaturas, alimentos, pre-dadores, presas e outros fatores mudam evariam sazonalmente, anualmente e a inter-valos mais longos de tempo, o valor adaptat-ivo de cada caracterstica tambm muda. Asadaptaes de cada indivduo so portanto oproduto imperfeito de um srie interminvelde solues de compromisso em constantealterao. A seleo natural empurra con-stantemente os organismos para a exceln-cia, mas quase sempre impossvel alcan-la.

    A perfeio pode ser inatingvel, mas oscorpos funcionam notavelmente bem sob

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  • uma ampla variedade de circunstnciasgraas maneira como a evoluo acumulaadaptaes em corpos, mais ou menos comovoc provavelmente continua acumulandoutenslios de cozinha, livros e peas deroupa. Nosso corpo um amontoado de ad-aptaes que se acumularam ao longo demilhes de anos. Uma analogia para esseefeito de miscelnea um palimpsesto, umapgina de manuscrito antigo em que se es-creveu mais de uma vez e contm assim ml-tiplas camadas de texto que comeam a semisturar com o tempo medida que os maissuperficiais se apagam. Como um pal-impsesto, um corpo tem mltiplas ad-aptaes relacionadas que por vezes sechocam, mas outras vezes trabalham emcombinao para nos ajudar a funcionar comeficincia numa ampla gama de condies.Considere nossa dieta. Os dentes humanosso esplendidamente adaptados para mast-igar frutas porque evolumos a partir de

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  • macacos antropoides que comiam sobretudofrutas, mas so extremamente ineficientespara mastigar carne crua, em especial caadura. Mais tarde, desenvolvemos outras ad-aptaes como a capacidade de transform-ar pedras em ferramentas e cozinhar queagora nos permitem mastigar carne, coco,urtiga e praticamente qualquer coisa que noseja venenosa. Mltiplas adaptaes inter-ativas, no entanto, por vezes levam asolues conciliatrias. Como captulos pos-teriores vo explorar, os seres humanosdesenvolveram adaptaes para andar e cor-rer na posio ereta, mas essas coisas limit-aram nossa capacidade de saltar com rapideze escalar com grande agilidade.

    O ponto final e mais importante sobre ad-aptao realmente uma advertncia cru-cial: nenhum organismo est fundamental-mente adaptado para ser saudvel, longevo,feliz, ou para alcanar muitas outras metasque as pessoas se esforam para alcanar.

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  • Como um lembrete, adaptaes so caracter-sticas moldadas por seleo natural que pro-movem relativo sucesso reprodutivo(aptido). Portanto, as adaptaes sevoluem para promover sade, longevidadee felicidade na medida em que essas qualid-ades beneficiam a capacidade de um indiv-duo de ter mais filhos sobreviventes. Pararetornar a um tpico anterior, os seres hu-manos evoluram para ser propensos obe-sidade no porque gordura em excesso nostorna saudveis, mas porque ela aumenta afertilidade. De maneira semelhante, astendncias a ser preocupado, ansioso ou es-tressado causam muito sofrimento e infeli-cidade, mas so antigas adaptaes paraevitar o perigo ou lidar com ele. E evolumosno somente para cooperar, inovar, comuni-car e cultivar, como tambm para trapacear,furtar, mentir e assassinar. A concluso que muitas adaptaes humanas no

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  • evoluram necessariamente para promoverbem-estar fsico ou mental.

    No fim das contas, tentar responder questo A que os seres humanos esto ad-aptados? , paradoxalmente, ao mesmotempo simples e quixotesco. Por um lado, aresposta mais fundamental que os sereshumanos esto adaptados para ter o maiornmero possvel de filhos, netos e bisnetos!Por outro, a maneira como nossos corposconseguem de fato transmitir-se geraoseguinte tudo menos simples. Em razo denossa histria evolutiva complexa, no es-tamos adaptados a nenhuma dieta, hbitat,ambiente social ou regime de exerccio ni-cos. De uma perspectiva evolutiva, sadetima algo que no existe. Em consequn-cia, os seres humanos tal como nossoamigo Mistery Monkey no s sobrevivem,mas por vezes tambm prosperam em con-dies novas para as quais no evoluram(como os subrbios da Flrida).

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  • Se a evoluo no fornece nenhumanorma fcil de seguir para otimizar a sadeou evitar a doena, por que algum in-teressado em seu bem-estar deveria refletirsobre o que aconteceu na evoluo humana?De que maneira macacos antropoides,neandertais ou agricultores do incio doNeoltico so relevantes para nosso corpo?Posso pensar em duas respostas muito im-portantes, uma envolvendo o passado evol-utivo, outra envolvendo o presente e o futuroevolutivos.

    Por que o passado evolutivohumano tem importncia

    Todo mundo e todo corpo tm uma histria.Seu corpo na verdade tem vrias histrias.Uma a histria de sua vida, sua biografia:quem so seus pais e como eles se

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  • conheceram, onde voc cresceu e como seucorpo foi moldado pelas vicissitudes da vida.A outra histria evolutiva: a longa cadeiade eventos que transformou o corpo de seusancestrais de gerao em gerao ao longo demilhes de anos, e que tornou seu corpodiferente do corpo de um Homo erectus, umpeixe ou uma drosfila.13 Vale a pena con-hecer ambas as histrias, e elas compartil-ham certos elementos: personagens (inclus-ive supostos heris e vilos), cenrios, casu-alidades, triunfos e adversidades.14 pos-svel tambm abordar ambas as histriasusando o mtodo cientfico, formulando-ascomo hipteses cujos fatos e suposies po-dem ser questionados e rejeitados.

    A histria evolutiva do corpo humano uma narrativa interessante. Uma de suaslies mais valiosas que no somos uma es-pcie inevitvel: tivessem as circunstnciassido diferentes, mesmo ligeiramente, ser-amos criaturas muito diferentes (muito

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  • provavelmente no existiramos). Paramuitas pessoas, porm, a principal razopara contar (e pr prova) a histria docorpo humano lanar luz sobre por quesomos da maneira que somos. Por que temoscrebro grande, pernas compridas, umbigovisvel e outras peculiaridades? Por que an-damos s sobre duas pernas e usamos lin-guagem para nos comunicar? Por que co-operamos tanto e cozemos nossa comida?Uma razo relacionada, urgente e prticapara considerar como o corpo humanoevoluiu ajudar a avaliar a que estamos ouno adaptados, e, assim, por que ficamosdoentes. Por sua vez, avaliar por que ad-oecemos essencial para prevenir e tratardoenas.

    Para reconhecer essa lgica, considere oexemplo do diabetes tipo 2, uma doenaquase inteiramente evitvel cuja incidnciaest crescendo no mundo todo. Ela surgequando clulas no corpo inteiro cessam de

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  • responder insulina, um hormnio quetransporta acar para fora da corrente san-gunea e o armazena como gordura. Quandoa incapacidade de responder insulina se in-stala, o corpo comea a agir como um sis-tema de aquecimento quebrado, que noconsegue distribuir o calor da fornalha peloresto da casa, deixando a fornalha super-aquecida enquanto a casa congela. Com odiabetes, os nveis de acar no sangue con-tinuam se elevando, o que por sua vez estim-ula o pncreas a produzir cada vez mais in-sulina, em vo. Aps vrios anos, o pncreasfatigado no consegue produzir insulina sufi-ciente, e os nveis de acar no sangue ficampermanentemente altos. Muito acar nosangue txico causa problemas terrveisde sade e por fim a morte. Felizmente, acincia mdica tornou-se competente em re-conhecer e tratar cedo os sintomas do dia-betes, permitindo a milhes de diabticossobreviver por dcadas.

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  • primeira vista, a histria evolutiva docorpo humano parece irrelevante para otratamento de pacientes com diabetes tipo 2.Como eles precisam de tratamento urgente,dispendioso, hoje milhares de cientistasestudam os mecanismos causais da doena,pesquisando como a obesidade torna certasclulas resistentes insulina, como clulasprodutoras de insulina sobrecarregadas nopncreas param de funcionar e como certosgenes predispem algumas pessoas, mas nooutras, para a doena. Esse tipo de pesquisa essencial para um tratamento melhor. Masque tal prevenir a doena em primeiro lugar?Para prevenir uma doena ou qualquer outroproblema complexo, precisamos ter conheci-mento no apenas de seus mecanismos cau-sais mais prximos, mas tambm de suasrazes subjacentes mais profundas. Por queocorre? No caso do diabetes tipo 2, por queos seres humanos so to suscetveis a essadoena? Por que nossos corpos por vezes

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  • lidam mal com estilos de vida modernos demaneiras que conduzem ao diabetes tipo 2?Por que algumas pessoas correm mais risco?Por que no somos melhores para estimularpessoas a comer alimentos mais saudveis eser fisicamente mais ativas para evitar adoena?

    Esforos para responder a estas e outrasperguntas nos impelem a considerar ahistria evolutiva do corpo humano. Nin-gum jamais expressou esse imperativo mel-hor que o pioneiro geneticista TheodosiusDobzhansky, que escreveu esta frase famosa:Nada em biologia faz sentido exceto luz daevoluo.15 Por qu? Porque a vida , damaneira mais essencial, o processo pelo qualcoisas vivas usam energia para fazer outrascoisas vivas. Por isso, se voc quiser saberpor que parece, funciona e adoece demaneira diferente de seus avs, seu vizinhoou o Mistery Monkey, precisa conhecer ahistria biolgica a longa cadeia de

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  • processos pela qual voc, seu vizinho e omacaco vieram a ser diferentes. Os detalhesimportantes dessa histria, ademais, re-montam a muitas e muitas geraes. As vri-as adaptaes de nosso corpo foram sele-cionadas para ajudar nossos ancestrais asobreviver e reproduzir num nmero incal-culvel de encarnaes distantes, nosomente como caadores-coletores, mastambm como peixes, macacos, macacos an-tropoides, australopitecos e mais recente-mente como agricultores. Essas adaptaesexplicam e determinam o modo como nossocorpo funciona normalmente em termos decomo digerimos, pensamos, reproduzimos,dormimos, andamos, corremos etc. Assim,considerar a longa histria evolutiva donosso corpo ajuda a explicar por que ns eoutros ficamos doentes ou feridos quandonos comportamos de maneiras a que es-tamos mal ou insuficientemente adaptados.

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  • Retornando ao problema de por que sereshumanos desenvolvem diabetes tipo 2: a res-posta no reside apenas nos mecanismos ce-lulares e genticos que precipitam a doena.Aprofundando, o diabetes um problemacrescente porque os corpos humanos, comoos dos primatas cativos, foram adaptadosoriginalmente a condies muito distintasque nos tornam inadequadamente adaptadospara lidar com dietas modernas e inatividadefsica.16 Milhes de anos de evoluo favore-ceram ancestrais que ansiavam por comidasmuito calricas, inclusive carboidratossimples como acar, que costumava serraro, e que armazenavam calorias em ex-cesso como gordura. Alm disso, poucos ounenhum de nossos ancestrais distantes tin-ham a oportunidade de ficar diabticossendo fisicamente inativos e ingerindogrande quantidade de refrigerantes e doces.Evidentemente, nossos ancestrais no exper-imentaram forte seleo para se adaptar s

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  • causas de outras doenas e deficincias re-centes como arteriosclerose, osteoporose emiopia. O motivo fundamental para o fato detantos seres humanos terem hoje doenasanteriormente raras que muitas das carac-tersticas do corpo eram adaptativas no am-biente para o qual evolumos, mas tornaram-se mal adaptativas nos ambientes modernosque criamos. Esta ideia, conhecida comohiptese do desajuste, o cerne de umcampo emergente da medicina que aplicabiologia evolutiva a sade e doena.17

    A hiptese do desajuste o foco da se-gunda parte deste livro, mas descobrir quaisdoenas so ou no causadas por desajustesevolutivos exige mais do que uma consider-ao superficial da evoluo humana. Algu-mas aplicaes simplistas da hiptese do de-sajuste propem que, como os seres hu-manos evoluram para ser caadores-coletores, estamos otimamente adaptados aum modo de vida caador-coletor. Esse tipo

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  • de pensamento pode levar a prescries in-gnuas baseadas no que se observou queboxmanes do Kalahari, ou os inutes doAlasca, comem e fazem. Um problema queos prprios caadores-coletores nem sempreso saudveis, e so extremamente variveis,em boa parte porque habitam uma grandeamplitude de ambientes, inclusive desertos,florestas pluviais, matas e a tundra rtica.No existe um modo de vida caador-coletoressencial, ideal. Mais importante, como dis-cutido acima, o fato de que a seleo natur-al no adaptou necessariamente caadores-coletores (ou qualquer criatura) para seremsaudveis, mas para ter tantos bebs quantopossvel, que depois sobrevivessem para pro-criar tambm. Cabe ainda repetir que ocorpo humano (inclusive os dos caadores-coletores) uma compilao de adaptaessemelhantes a um palimpsesto, acumuladase modificadas ao longo de incontveis ger-aes. Antes de se tornar caadores-

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  • coletores, nossos ancestrais foram bpedessemelhantes a macacos antropoides, e antesdisso foram pequenos macacos, pequenosmamferos, e assim por diante. Desde ento,algumas populaes desenvolveram novasadaptaes para ser agricultores. Em con-sequncia, no houve nenhum ambientenico para o qual o corpo humano tenha sedesenvolvido, e ao qual, portanto, esteja ad-aptado. Assim, para responder pergunta Aque estamos adaptados? precisamos consid-erar no apenas caadores-coletores realist-icamente, mas tambm olhar para a longacadeia de eventos que conduziu evoluoda caa e da coleta, bem como o que aconte-ceu desde que comeamos a cultivar nossoalimento. Como uma analogia, tentar com-preender a que o corpo humano estadaptado concentrando-nos apenas emcaadores-coletores como tentar com-preender o resultado de um jogo de futebol

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  • depois de ter assistido apenas segundametade do segundo tempo.

    A concluso que, se desejamos com-preender a que os seres humanos esto (eno esto) adaptados, teremos muito a gan-har a partir da considerao, com algumaprofundidade, da histria de como e por queo corpo humano evoluiu. Como ocorre comtoda histria de famlia, o esforo paraaprender a histria evolutiva de nossa es-pcie recompensador, mas ela confusa,desordenada e cheia de lacunas. Comparado tentativa de descobrir a rvore genealgicados ancestrais humanos, acompanhar os per-sonagens de Guerra e paz parece brincadeirade criana. No entanto, mais de um sculo deintensa pesquisa produziu uma compreensocoerente e geralmente aceita de como nossalinhagem evoluiu de macacos antropoides nafloresta africana at os seres humanos mod-ernos que habitam a maior parte do globo.Deixando de lado os detalhes precisos da

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  • rvore genealgica (na essncia, quem gerouquem), a histria do ser humano pode ser re-duzida a cinco grandes transformaes. Nen-huma delas era inevitvel, mas cada uma al-terou os corpos de nossos ancestrais demaneiras diferentes, acrescentando novasadaptaes e removendo outras.

    TRANSIO UM: Os ancestrais humanos mais remo-tos divergiram dos macacos antropoides eevoluram para ser bpedes eretos.

    TRANSIO DOIS: Os descendentes desses primeirosancestrais, os australopitecos, desenvolveram ad-aptaes para procurar e comer uma ampla var-iedade de alimentos, em vez de se restringir afrutas.

    TRANSIO TRS: Cerca de 2 milhes de anos atrs,os primeiros membros do gnero humano desen-volveram corpo quase (embora no completa-mente) moderno e crebro ligeiramente maiorque lhes permitiram se tornar os primeiroscaadores-coletores.

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  • TRANSIO QUATRO: medida que floresceram e seespalharam por grande parte do Velho Mundo, oscaadores-coletores humanos arcaicos desen-volveram crebro maior e corpo mais volumoso,de crescimento mais lento.

    TRANSIO CINCO: Seres humanos modernos desen-volveram capacidades especiais para a lin-guagem, a cultura e a cooperao que per-mitiram que nos dispersssemos rapidamentepelo globo e fssemos a nica espcie sobre-vivente de seres humanos no planeta.

    Por que a evoluo tem importnciapara o presente, e para o futurotambm

    Voc pensa que evoluo apenas o estudodo passado? Eu pensava assim, e o mesmofaz meu dicionrio, que a define como oprocesso pelo qual se pensa que diferentes ti-pos de organismos vivos se desenvolveram ese diversificaram a partir de formas anteri-ores durante a histria da Terra. Sinto-me

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  • insatisfeito com esta definio porqueevoluo (que prefiro definir como mudanaao longo do tempo) tambm um processodinmico que ainda est ocorrendo. Ao con-trrio do que certas pessoas supem, o corpohumano no parou de evoluir depois que oPaleoltico terminou. A seleo natural con-tinua a progredir de modo incansvel e con-tinuar enquanto pessoas herdarem vari-aes que influenciam, ainda que de leve, onmero de seus filhos que sobrevivero e de-pois procriaro. Em consequncia, nossoscorpos no so de todo iguais aos de nossosancestrais algumas centenas de geraes at-rs. Assim, nossos descendentes daqui a al-gumas centenas de geraes tambm serodiferentes de ns.

    Alm disso, a evoluo no apenas biol-gica. A maneira como genes e corpos mudamatravs do tempo incrivelmente import-ante, mas outra dinmica decisiva a enfrent-ar a evoluo cultural, hoje a mais notvel

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  • fora de mudana no planeta e que esttransformando nossos corpos de maneiraradical. Cultura essencialmente o que aspessoas aprendem, e portanto a culturaevolui. Uma diferena determinante entreevoluo cultural e biolgica, no entanto, que a cultura no muda apenas por meio doacaso, mas tambm por meio de inteno, e afonte dessa mudana pode ser qualquerpessoa, no apenas nossos pais. A evoluoda cultura pode portanto ser espantosa tantoem rapidez quanto em grau. A evoluo cul-tural humana comeou milhes de anos at-rs, mas acelerou enormemente depois quesurgiram os seres humanos modernos, porvolta de 200 mil anos atrs, e agora alcanouvelocidades vertiginosas. Voltando os olhospara as ltimas centenas de geraes, vemosque duas transformaes culturais foram deimportncia vital para o corpo humano eprecisam ser acrescentadas lista de trans-formaes evolutivas j citadas:

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  • TRANSIO SEIS: A Revoluo Agrcola, quandopessoas comearam a cultivar seu alimento emvez de caar e coletar.

    TRANSIO SETE: A Revoluo Industrial, que teveincio quando comeamos a usar mquinas parasubstituir trabalho humano.

    Embora estas duas ltimas transform-aes no tenham gerado novas espcies, difcil exagerar sua importncia para ahistria do corpo humano, porque elas alter-aram radicalmente o que comemos e o modocomo trabalhamos, dormimos, regulamos atemperatura do corpo, interagimos e at de-fecamos. Ainda que estas e outras mudanasno ambiente tenham estimulado algumaseleo natural, elas interagiram com os cor-pos que herdamos sobretudo de maneirasque ainda temos de compreender. Algumasdessas interaes foram benficas, em espe-cial por nos permitir ter mais filhos. Outras,contudo, foram deletrias, incluindo uma

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  • grande quantidade de doenas de desajustecausadas por contgio, desnutrio e in-atividade fsica. Ao longo das ltimas ger-aes, aprendemos a derrotar ou refrearmuitas dessas doenas, mas outras no in-fecciosas, crnicas muitas ligadas obesid-ade , esto agora crescendo rapidamenteem prevalncia e intensidade. Por qualquerpadro, a evoluo do corpo humano estlonge de haver terminado, graas rpidamudana cultural.

    Eu sustentaria portanto que, quando ap-licada a seres humanos, a brilhante de-clarao de Dobzhansky de que nada embiologia faz sentido exceto luz da evoluoaplica-se no apenas evoluo por seleonatural, mas tambm evoluo cultural.Para dar um passo adiante, como a evoluocultural agora a fora dominante demudana evolutiva em ao no corpo hu-mano, podemos compreender melhor porque mais pessoas esto contraindo doenas

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  • de desajuste no infecciosas crnicas e comoprevenir essas doenas considerando inter-aes entre evoluo cultural e nossos corposherdados, ainda em evoluo. Essas inter-aes por vezes pem em movimento umalamentvel dinmica que funciona tipica-mente da seguinte maneira: primeiro, ap-resentamos doenas de desajuste no infec-ciosas causadas pelo fato de nossos corposestarem mal ou inadequadamente adaptadosaos novos ambientes que criamos por meioda cultura. Depois, por vrias razes, somospor vezes incapazes de prevenir essasdoenas de desajuste. Em alguns casos, nocompreendemos as causas delas bem o sufi-ciente para isso. Muitas vezes, esforos depreveno fracassam porque difcil ou im-possvel mudar os fatores do novo ambienteresponsveis pelo desajuste. Ocasional-mente, at promovemos doenas de de-sajuste ao tratar seus sintomas de maneirato eficaz que perpetuamos suas causas de

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  • forma inadvertida. Em todos os casos, no en-tanto, ao no tratar das novas causas ambi-entais de doenas de desajuste, deixamosque se instale um crculo vicioso que permite doena continuar prevalente ou por vezestornar-se mais comum ou severa. Esse cir-cuito de retroalimentao no uma formade evoluo biolgica porque no transmiti-mos doenas de desajuste diretamente aosnossos filhos. Ele , isto sim, uma forma deevoluo cultural, porque transmitimos osambientes e comportamentos que oscausam.

    Mas estou me antecipando a mim mesmoe histria do corpo humano. Antes depensarmos sobre como a evoluo biolgicae a evoluo cultural interagem, precisamosconsiderar a longa trajetria da histria evol-utiva, como desenvolvemos a capacidadepara a cultura e a que o corpo humano estrealmente adaptado. Essa explorao requerque atrasemos o relgio cerca de 6 milhes

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  • de anos e retornemos a uma floresta em al-gum lugar da frica

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  • PARTE I

    Macacosantropoidese seres humanos

  • 2. Macacos antrop-oides eretos

    Como nos tornamos bpedes

    Tuas mos so mais rpidas queas minhas para bater, Mas min-has pernas so mais compridaspara correr.

    SHAKESPEARE, Sonho de uma noite de vero

    A FLORESTA, como de costume, estaria silen-ciosa no fossem os sons suaves do farfalhardas folhas, o zumbir dos insetos e algunschilreios de aves. De repente, inicia-se umpandemnio quando trs chimpanzs ir-rompem atravs das copas das rvores muito

  • acima do solo, saltando espetacularmente degalho em galho, o pelo eriado, soltando gri-tos estridentes, furiosos, enquantoperseguem um grupo de macacos colobos atoda a velocidade. Em menos de um minuto,um experiente chimpanz mais velho d ummagnfico salto, agarra um aterrorizadomacaco que vem na sua direo e espatifaseus miolos contra uma rvore. A caa ter-mina to depressa quanto comeou. En-quanto o vitorioso rasga sua presa em ped-aos e comea a consumir a carne, outroschimpanzs guincham de excitao. Se al-gum ser humano estivesse olhando,provavelmente ficaria chocado. Observarchimpanzs caando pode ser perturbador,no apenas por causa da violncia, masporque preferimos pensar neles como nossosprimos gentis, inteligentes. Por vezes elesparecem espelhos de nossos melhores eus,mas quando esto caando refletem as maisnegras tendncias da humanidade em sua

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  • nsia por carne, sua capacidade de violnciae at seu uso letal de trabalho de equipe eestratgia.

    A cena reala tambm contrastes funda-mentais entre corpos humanos e de chim-panzs. Alm das diferenas anatmicas b-vias como o pelo, o focinho e o andar dequatro, as espetaculares habilidades doschimpanzs para caar sublinham como, doponto de vista atltico, seres humanos sopatticos em muitos aspectos. Os seres hu-manos quase sempre caam com armasporque nenhuma pessoa viva poderia seigualar a um chimpanz em velocidade, forae agilidade, especialmente nas rvores.Apesar de meu desejo de ser como Tarzan,subo em rvores de maneira desajeitada, emesmo os que tm prtica nessa atividadeprecisam subir e descer com cautela. A habil-idade de escalar um tronco num instantecomo se ele fosse uma escada, saltar entregalhos precrios e voar pelos ares na

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  • tentativa de agarrar um macaco em fuga,conseguindo pousar em segurana numtronco ou num galho, est muito alm dacompetncia do ginasta humano mais tre-inado. Embora seja perturbador observaruma caada de chimpanzs, parece-me im-possvel no admirar as habilidades acrobt-icas desumanas desses animais com quecompartilhamos mais de 98% de cdigogentico.

    Comparativamente, os seres humanos soatletas deficientes em terra tambm. Os maisrpidos do mundo conseguem correr velo-cidade de cerca de 37 quilmetros por horapor menos de meio minuto. Para a maioriade ns, que nos arrastamos, essas velocid-ades parecem superhumanas, mas numer-osos mamferos, inclusive chimpanzs ebodes, correm facilmente nessa velocidadedurante vrios minutos sem a ajuda de tc-nico ou anos de treinamento intenso. Noconsigo sequer ultrapassar um esquilo.

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  • Corredores humanos so desajeitados e in-stveis, incapazes de fazer viradas rpidas.At o mais leve encontro ou cotoveladapode faz-los desabar no cho. Por fim, care-cemos de fora. Embora um chimpanzmacho adulto pese de quinze a vinte quilosmenos que a maioria dos homens adultos, asestimativas so de que um chimpanz tpicopode exibir uma fora muscular mais deduas vezes maior que a dos mais vigorososatletas de elite humanos.1

    Quando comeamos nossa explorao dahistria do corpo humano para perguntar aque os seres humanos esto adaptados, umaprimeira questo decisiva : por que e comoos seres humanos tornaram-se to mal ad-aptados vida em rvores, bem como todbeis, lentos e desajeitados?

    A resposta comea com tornando-se ere-tos, ao que tudo indica a primeira grandetransformao ocorrida na evoluo hu-mana. Se houve apenas uma adaptao-

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  • chave inicial, uma centelha que lanou a lin-hagem humana num caminho evolutivo sep-arado daquele traado por outros primatas,foi provavelmente o bipedalismo, a capacid-ade de postar-se e caminhar sobre dois ps. sua maneira tipicamente presciente, Dar-win foi o primeiro a sugerir essa ideia em1871. No possuindo nenhum registro fssil,fez essa conjectura raciocinando que osprimeiros ancestrais humanos evoluram apartir de macacos antropoides; ao se tornareretos, eles emanciparam suas mos dalocomoo, libertando-as para fazer ferra-mentas e us-las, o que depois favoreceu aevoluo de crebros maiores, da linguageme de outras caractersticas humanasdistintivas.

    Somente o homem tornou-se um bpede; e po-demos, penso, ver em parte como ele chegou a as-sumir essa postura ereta, que forma uma de suasmais conspcuas caractersticas. O homem no po-deria ter alcanado sua atual posio proeminente

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  • no mundo sem o uso de suas mos, que so to ad-miravelmente adaptadas a agir em obedincia sua vontade. Mas as mos e os braos dificil-mente poderiam ter se tornado perfeitos obastante para manufaturar armas, ou arremessarpedras e lanas com verdadeira pontaria, en-quanto fossem habitualmente usados para loco-moo e para sustentar todo o peso do corpo, ou,como se observou antes, enquanto eram especial-mente apropriados para trepar em rvores. Se uma vantagem para o homem manter-se firm-emente sobre seus ps e ter as mos e braoslivres, coisa de que, a partir de seu preeminentesucesso na batalha da vida, no pode haver nen-huma dvida, ento no vejo nenhuma razo pelaqual no deveria ter sido vantajoso para os pro-genitores do homem ter-se tornado cada vez maiseretos ou bpedes. Eles teriam dessa maneira sidomais capazes de se defender com pedras ou por-retes, de atacar suas presas ou de obter alimentode outra maneira. Os indivduos mais bem-confor-mados teriam tido mais sucesso no longo prazo, eteriam sobrevivido em maiores nmeros.2

    Um sculo e meio mais tarde, temos agoraevidncias suficientes para sugerir que

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  • Darwin provavelmente estava certo. Graas aum conjunto peculiar de circunstncias con-tingentes muitas das quais iniciadas pelamudana climtica , os membros con-hecidos mais antigos da linhagem humanadesenvolveram vrias adaptaes para semanter e andar sobre apenas duas pernascom mais facilidade e mais frequncia quemacacos antropoides. Hoje, estamos tocompletamente adaptados a ser bpedes queraramente dedicamos muita reflexo nossamaneira incomum de nos postar, andar ecorrer. Mas olhe sua volta: quantas outrascriaturas, com exceo de aves (ou cangurus,caso voc viva na Austrlia), voc v cam-baleando ou pulando por a sobre apenasduas pernas? As evidncias sugerem que, detodas as grandes transformaes por quepassou o corpo humano ao longo dos ltimosmilhes de anos, essa mudana adaptativafoi uma das mais importantes, no s emrazo de suas vantagens, mas tambm em

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  • razo de suas desvantagens. Por isso, apren-der sobre como nossos mais antigosancestrais tornaram-se adaptados a ficar ere-tos um ponto de partida capital para o re-lato da jornada do corpo humano. Como umprimeiro passo, conheamos esses ancestraisprimordiais, a comear pelo ltimo ancestralque compartilhamos com os macacosantropoides.

    O impreciso elo perdido

    A expresso elo perdido, que remonta eravitoriana, uma designao com frequnciamal empregada que se refere em geral a es-pcies transicionais decisivas na histria davida. Embora muitos fsseis sejam superfi-cialmente chamados de elos perdidos, huma espcie fundamental no registro daevoluo humana que est verdadeiramentefaltando: o ltimo ancestral comum (LCA, na

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  • sigla em ingls) dos seres humanos e dosoutros macacos antropoides. Para nossagrande frustrao, essa importante espciecontinua at agora inteiramente descon-hecida. Como os chimpanzs e os gorilas, oLCA viveu muito provavelmente, como Dar-win deduziu, numa floresta pluvial africana,um ambiente pouco propcio preservaode ossos, e portanto criao de um registrofssil. Ossos que caem no solo da florestaapodrecem rapidamente e em seguida se dis-solvem. Por esta razo, h poucos resquciosfsseis informativos das linhagens dos chim-panzs e dos gorilas, e so escassas aschances de virmos a encontrar resquciosfsseis do LCA.3

    Embora ausncia de evidncia no sejaevidncia de ausncia, isso sem dvida dmargem a especulaes desenfreadas. A faltade fsseis da rvore genealgica a que o LCApertence gerou muita conjectura e debatecom relao a esse elo perdido. Ainda assim,

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  • podemos fazer algumas dedues sobrequando e onde o LCA viveu e como era suaaparncia em comparaes cuidadosas dassemelhanas e diferenas entre seres hu-manos e macacos antropoides em conjunocom o que sabemos sobre nossa rvore evol-utiva. Essa rvore, ilustrada na figura 1,mostra que h trs espcies vivas de macacosantropoides africanos, e que os seres hu-manos esto mais estreitamente relacion-ados com as duas espcies de chimpanzs,chimpanzs comuns e chimpanzs-pigmeus(tambm conhecidos como bonobos), do quecom gorilas. A figura 1, que se baseia emamplos dados genticos, tambm mostra queas linhagens humana e chimpanz diver-giram cerca de 8 a 5 milhes de anos atrs (adata exata continua sendo tema de debate).Estritamente falando, os seres humanos soum subconjunto especial da famlia de maca-cos antropoides denominada hominneos,definidos como todas as espcies mais

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  • estreitamente relacionadas a seres humanosvivos que a chimpanzs ou outros macacosantropoides.4

    Nossa relao evolutiva especialmente es-treita com chimpanzs constituiu uma sur-presa para os cientistas no final dos anos1980, quando as evidncias moleculares ne-cessrias para resolver essa rvore tornaram-se disponveis. Antes disso, a maioria dos es-pecialistas supunha que chimpanzs e gorilasestavam mais estreitamente relacionadosuns com os outros do que com seres hu-manos, por serem ambos to parecidos. Noentanto, o fato implausvel de sermos, evol-utivamente, primos em primeiro grau doschimpanzs, mas no dos gorilas, fornecepistas valiosas para a reconstruo do LCA,porque ainda que seres humanos e chimpan-zs compartilhem um LCA exclusivo, chim-panzs, bonobos e gorilas so muito maisparecidos entre si do que com seres hu-manos. Embora gorilas pesem duas a quatro

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  • vezes mais que chimpanzs, se aumentsse-mos um chimpanz at lhe dar o tamanho deum gorila, obteramos algo que de certomodo (embora no completamente) parececom um gorila.5 Bonobos adultos so tam-bm conformados e at se comportam comochimpanzs adolescentes.6 Alm disso, gori-las e chimpanzs andam e correm da mesmamaneira peculiar conhecida como nodoped-alia, em que repousam seus membros anteri-ores sobre os ns dos dedos. Portanto, amenos que as muitas semelhanas entre asvrias espcies de grandes macacos africanostenham se desenvolvido de maneira inde-pendente, o que extremamente improvvel,o LCA de chimpanzs e gorilas deve ter sidoum tanto assemelhado aos chimpanzs ouaos gorilas em termos de anatomia. Pelamesma lgica, o LCA de chimpanzs e sereshumanos provavelmente se assemelhava emtermos de anatomia a um chimpanz ou aum gorila em muitos aspectos.

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  • FIGURA 1. rvore evolutiva de seres humanos, chim-panzs e gorilas. Mostra as duas espcies de chimpan-

    zs (bonobos e chimpanzs comuns); alguns espe-cialistas dividem os gorilas em mais de uma espcie.

    Trocando em midos, quando voc olhapara um chimpanz ou um gorila, provvel

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  • que esteja vendo um animal que seassemelha vagamente ao seu ancestral dis-tante de vrias centenas de geraes atrs aquela espcie desaparecida de fundamentalimportncia. Devo enfatizar, contudo, que impossvel comprovar essa hiptese de mododefinitivo sem evidncias fsseis diretas,deixando muita margem para opinies diver-gentes. Alguns paleontologistas pensam quea maneira como os seres humanos semantm e andam eretos lembra a maneiracomo os gibes, macacos antropoides maisdistantemente aparentados a ns, balanamsob os galhos e se deslocam sobre eles. Defato, durante mais de cem anos, quando sepensava que chimpanzs e gorilas eramprimos em primeiro grau, muitos estudiososraciocinavam que os seres humanos tinhamse desenvolvido a partir de uma espciedesconhecida mais ou menos assemelhadaaos gibes.7 Alternativamente, alguns pa-leoantroplogos especulam que o LCA era

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  • uma criatura com aparncia de macaco quecaminhava sobre os galhos e trepava emrvores usando quatro membros.8 Apesardestas opinies, as evidncias sugerem que aprimeira espcie na linhagem humanadesenvolveu-se a partir de um ancestral queno diferia consideravelmente dos chimpan-zs e gorilas de hoje. O que se verifica queessa deduo tem importantes implicaespara a compreenso de como e por que oshominneos se desenvolveram para ser ere-tos. Felizmente, ao contrrio do que ocorrecom o ainda desaparecido LCA, temos evid-ncias tangveis desses ancestrais muitoantigos.

    Quem foram os primeiroshominneos?

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  • Quando eu era estudante, no havia nenhumfssil til para registrar o que aconteceu dur-ante os primeiros milhes de anos daevoluo humana. Na falta de dados, muitosespecialistas no tinham escolha seno supor(por vezes levianamente) que os fsseis maisantigos ento conhecidos, como Lucy, queviveu h cerca de 3 milhes de anos, erambons substitutos para os hominneos anteri-ores desaparecidos. Desde meados dos anos1990, porm, temos sido abenoados peladescoberta de muitos fsseis dos primeirosmilhes de anos da linhagem humana. Comnomes abstrusos, malsonantes, esses hom-inneos primordiais nos levaram a repensarcomo era o LCA, e, mais importante, rev-elaram muito sobre a origem do bipedalismoe outras caractersticas que tornaram osprimeiros primitivos diferentes dos outrosmacacos antropoides. At o momento, foramencontradas quatro espcies de hominneosprimitivos, duas das quais so mostradas na

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  • figura 2. Antes de discutir como eram essasespcies, a que elas estavam adaptadas e suarelevncia para eventos posteriores naevoluo humana, aqui esto alguns fatosbsicos sobre quem eram e de onde vinham.

    A mais antiga espcie de hominneo con-hecida Sahelanthropus tchadensis,descoberta no Chade em 2001 por uma in-trpida equipe francesa sob a liderana deMichel Brunet. A recuperao de fsseisdessa espcie exigiu anos de extenuante eperigoso trabalho de campo, porque foipreciso desenterr-los das areias da parte suldo deserto do Saara. Hoje, essa rea umlugar estril, inspito, mas milhes de anosatrs era um hbitat parcialmente florestadoprximo de um lago gigantesco. Sahelan-thropus conhecido principalmente por umnico crnio quase completo (apelidado Tou-ma, que significa esperana de vida na lin-guagem da regio em que foi encontrado),mostrado na figura 2, bem como por alguns

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  • dentes, fragmentos de maxilar e outros os-sos.9 Segundo Brunet e colegas, Sahelan-thropus tem pelo menos 6 milhes de anos etalvez tenha at 7,2 milhes.10

    Outra espcie proposta de hominneoprimitivo do Qunia, chamada Orrorin tu-genensis, tem cerca de 6 milhes de anos.11Lamentavelmente, existem apenas algunsrestos dessa enigmtica espcie: um nicofragmento de maxilar, alguns dentes e frag-mentos de osso de um membro. Aindasabemos pouco sobre Orrorin, em parte porno haver muito o que estudar, em parteporque os fsseis ainda no foram analisadosde maneira abrangente.

    O mais rico tesouro de fsseis de hom-inneos foi descoberto na Etipia por umaequipe internacional liderada por Tim Whitee seus colegas da Universidade da Califrnia,em Berkeley. Esses fsseis foram atribudosa duas diferentes espcies de um terceirognero, Ardipithecus. A espcie mais antiga,

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  • Ardipithecus kadabba, foi datada entre 5,8 e5,2 milhes de anos atrs e conhecida atagora por um punhado de ossos e dentes.12 Aespcie mais jovem, Ardipithecus ramidus,datada de 4,5 a 4,3 milhes de anos atrs, representada por uma coleo muito maiorde fsseis, incluindo um notvel esqueletoparcial de uma mulher apelidada Ardi,mostrada na figura 2.13 Essa espcie esttambm representada por numerosos frag-mentos (principalmente dentes) de mais deuma dezena de outros indivduos. O esquel-eto de Ardi foco de intensa pesquisa porquenos proporciona uma rara e empolganteoportunidade de descobrir como ela e outroshominneos primitivos se mantinham em p,andavam e trepavam em rvores.

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  • FIGURA 2. Dois hominneos primitivos. No alto, crniode Sahelanthropus tchadensis (apelidado Touma);

    embaixo, uma reconstruo de Ardipithecus ramidus(apelidada Ardi). O ngulo do formen magno em

    Touma indica um pescoo superior verticalmente ori-entado, um claro sinal de bipedalismo. A reconstruo

    do esqueleto de Ardipithecus parcial sugere que elaestava adaptada para o andar bpede bem como para

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  • trepar em rvores. Imagem de Sahelanthropuscortesia de Michel Brunet; desenho de Ardipithecus

    copyright 2009 Jay Matterns.

    Todos os fsseis de Ardipithecus, Sahel-anthropus e Orrorin poderiam caber numanica sacola de compras. Apesar disso, per-mitem vislumbres concretos das primeirasfases da evoluo humana durante osprimeiros milhes de anos depois que nosseparamos do LCA. Uma revelao nada sur-preendente que esses hominneos primit-ivos so em geral parecidos com macacos an-tropoides. Como previsto por nosso estreitoparentesco com os grandes macacos antrop-oides africanos, eles tm muitas semelhanascom chimpanzs e gorilas em detalhes dedentes, crnio e maxilares, bem como embraos, pernas, mos e ps.14 Por exemplo,seus crnios indicam crebros pequenos, namesma faixa de tamanho que o dos chim-panzs, uma substancial arcada supraciliar,grandes dentes frontais e focinhos longos,

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  • projetados. Muitos traos de ps, braos,mos e pernas de Ardi so tambm semel-hantes ao que vemos em macacos antrop-oides africanos, especialmente chimpanzs.De fato, alguns especialistas sugeriram queessas espcies antigas so demasiado simies-cas para serem realmente hominneos.15Penso, no entanto, que so genunos hom-inneos por vrias razes, a mais importantedas quais que do indicaes de que es-tavam adaptadas a caminhar eretas sobreduas pernas.

    Os primeiros hominneos po-dem se levantar, por favor?

    Criaturas egocntricas que somos, ns sereshumanos muitas vezes consideramos er-roneamente que nossas caractersticas essen-ciais so especiais, quando de fato so

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  • apenas incomuns. O bipedalismo no ex-ceo. Como muitos pais, recordo afetu-osamente o momento em que minha filhadeu seus primeiros passos triunfantes, quesubitamente a fizeram parecer to mais hu-mana que nosso cachorro. Uma crenacomum (em especial entre pais orgulhosos) que andar ereto particularmente desafiadore difcil, talvez porque as crianas humanaslevam muitos anos para aprender a andarbem, e porque poucos outros animais so b-pedes habituais. Na verdade, a razo por queas crianas s comeam a dar passos vacil-antes quando tm cerca de um ano e depoispassam mais alguns anos andando e cor-rendo desajeitadamente que muitas de suashabilidades neuromusculares tambmrequerem considervel tempo para amadure-cer.16 Assim como levam anos para aprendera andar apropriadamente, nossas crianas decrebro grande levam anos para falar em vezde balbuciar, controlar o intestino e

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  • manipular ferramentas com habilidade. Ade-mais, embora o bipedalismo habitual sejararo, o bipedalismo ocasional banal. Maca-cos antropoides por vezes se levantam e an-dam sobre duas pernas, como fazem muitosoutros mamferos (inclusive meu cachorro).Contudo, o bipedalismo diferente do quemacacos antropoides fazem em um aspectodecisivo: habitualmente ficamos parados eandamos com muita eficincia porque re-nunciamos habilidade de ser quadrpedes.Sempre que chimpanzs e outros macacosantropoides andam eretos, eles cambaleiampara c e para l com um andar desajeitado eenergeticamente dispendioso porque lhesfaltam algumas adaptaes decisivas,mostradas na figura 3, que permitem a voce a mim andar bem. O que h de especial-mente empolgante com relao aos hom-inneos primitivos que eles tambm pos-suem algumas dessas adaptaes, indicandoque eram bpedes eretos de algum tipo. No

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  • entanto, se Ardi for representativa desseshominneos, eles ainda conservavam muitostraos ancestrais teis para trepar emrvores. Embora estejamos nos esforandopara reconstruir precisamente como Ardi eoutros hominneos primitivos andavamquando no estavam escalando, no hdvida de que andavam de maneira muitodiferente de voc e de mim, e de umamaneira muito mais simiesca. Esse tipo debipedalismo primitivo era provavelmenteuma forma intermediria crtica de loco-moo ereta que armou o palco para modosde andar posteriores, mais modernos, e issofoi possvel graas a vrias adaptaes queconservamos at hoje em nossos corpos.

    A primeira dessas adaptaes a formados quadris. Se voc vir um chimpanz an-dando ereto, observe que ele mantm as per-nas bem separadas e balana o tronco para le para c como um bbado instvel. Sereshumanos sbrios, em contraposio, oscilam

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  • o tronco quase imperceptivelmente, o quesignifica que podemos gastar a maior partede nossa energia indo para a frente, e no es-tabilizando o tronco. Nossa marcha mais es-tvel atribuvel em grande parte a umamudana simples na forma da pelve. Como afigura 3 mostra, o osso grande e largo queforma a parte superior da pelve (o lio) altoe est virado para trs em macacos antrop-oides, mas essa parte do quadril baixa evoltada para os lados em seres humanos.Essa orientao lateral uma adaptao de-cisiva para o bipedalismo porque permite aosmsculos no lado do quadril (os glteos mn-imos) estabilizar o tronco sobre cada pernadurante a marcha quando apenas uma estno cho. Voc pode demonstrar essa ad-aptao para si mesmo ficando de p sobreuma perna o maior tempo possvel enquantomantm o tronco ereto. (V em frente etente!) Aps um ou dois minutos, sentiresse msculo se cansar. Chimpanzs no

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  • podem ficar de p ou andar dessa maneiraporque seus quadris esto voltados para trs,permitindo aos mesmos msculos apenas es-tender a perna atrs deles. A nica maneirapela qual um chimpanz pode evitar cair delado quando s uma perna est no cho in-clinando acentuadamente seu tronco para olado dessa perna. No o que acontece comArdi. Embora sua pelve estivesse severa-mente distorcida e tenha precisado ser emgrande parte reconstruda, ela parece ter umlio encurtado e voltado para os lados, exata-mente como um ser humano.17 Alm disso, ofmur de Orrorin tem uma articulao com oquadril especialmente grande, um pescoocomprido e a parte superior do fmur larga,traos que permitiam a seus msculos doquadril estabilizar o tronco com eficincia aoandar e suportar as elevadas foras flexorasde lado a lado que essa ao causa.18 Essestraos nos informam que os hominneos

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  • primitivos no tinham de cambalear de umlado para o outro ao caminhar.

    FIGURA 3. Comparao de um ser humano e um chim-panz realando algumas das adaptaes para a pos-tura e o andar eretos em seres humanos. Figura ad-aptada de D.M. Bramble e D.E. Lieberman. Endur-ance running and the evolution of Homo, Nature,

    n.432, 2004, p.345-52.

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  • Outra importante adaptao para ser umbpede uma coluna vertebral em forma deS. Como outros quadrpedes, os macacos an-tropoides tm coluna suavemente curvas (olado dianteiro ligeiramente cncavo), porisso, quando ficam eretos, seu tronco se in-clina naturalmente para a frente. Uma dasconsequncias disso que o tronco domacaco antropoide fica instavelmente posi-cionado em frente a seus quadris. Em con-traposio, a coluna vertebral humana temdois pares de curvas. A curva inferior,lombar, torna-se possvel graas posse demais vrtebras lombares (os macacos an-tropoides em geral tm trs ou quatro, aopasso que os seres humanos tm cinco), vri-as das quais tm forma de cunha, fazendocom que as superfcies superior e inferiorno sejam paralelas. Assim como pedras emforma de cunha permitem a arquitetos con-struir estruturas em arco como pontes,vrtebras em forma de cunha curvam a parte

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  • inferior da coluna para dentro, acima da pel-ve, posicionando o tronco de maneira estvelsobre os quadris. O peito humano e asvrtebras do pescoo criam mais uma curva,mais suave, no alto da espinha, que orienta aparte superior do pescoo para baixo e nopara trs a partir do crnio. Embora aindatenhamos de encontrar alguma vrtebralombar de hominneo primitivo, a forma dapelve de Ardi sugere uma longa regio lom-bar.19 Uma pista ainda mais reveladora daposse de uma coluna em forma de S ad-aptada para o bipedalismo vem da forma docrnio de Sahelanthropus. O pescoo doschimpanzs e outros macacos antropoidesemerge de perto da parte posterior do crnionum ngulo ligeiramente horizontal, mas ocrnio de Touma, mostrado na figura 2, estto completo que podemos deduzir com se-gurana que a parte superior de seu pescooera quase vertical quando ele estava de p ouandando.20 Essa configurao s poderia ser

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  • possvel se a coluna de Touma tivesse umacurva para trs na regio lombar, no pescooou em ambos.

    Adaptaes ainda mais decisivas para alocomoo ereta que aparecem em hom-inneos primitivos esto na outra extremid-ade do corpo, no p. Seres humanos que an-dam em geral pousam primeiro sobre o cal-canhar e depois, quando o resto do p fazcontato com o cho, endurecem o arco do p,o que permite empurrar o corpo para cima epara a frente no fim do apoio, sobretudo como dedo. A forma do arco humano criadapela forma dos ossos do p, bem como pormuitos ligamentos e msculos que mantmos ossos no lugar como cabos numa pontesuspensa, e que ficam retesados (em vriosgraus) quando o calcanhar sai do cho. Almdisso, as superfcies das articulaes entre osdedos e o resto do p em seres humanos somuito arredondadas e apontam ligeiramentepara cima, ajudando-nos a curvar os dedos

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  • num ngulo extremo (hiperestender) quandotiramos o p do cho. O p dos chimpanzs eoutros macacos antropoides no tem arco, oque os impede de se empurrar contra um pretesado, e seus artelhos so incapazes de es-tender tanto quanto os humanos.

    O p de Ardi (e um p parcial mais jovemque talvez pertena ao mesmo gnero) ap-resenta alguns indcios de que o meio estavaparcialmente retesado, e tem juntas de dedosque eram capazes de se curvar para cima nofim do apoio.21 Esses traos sugerem que ela,como os seres humanos, e diferentemente dechimpanzs, tinha ps capazes de gerarpropulso eficiente quando andava ereta.

    As evidncias que acabo de resumir para obipedalismo nos primeiros hominneos sosensacionais, mas reconhecidamente escas-sas. H muita coisa que no sabemos sobrecomo essas trs espcies ficavam de p, an-davam e corriam porque nos falta grandeparte do esqueleto de Ardi, e no sabemos

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  • quase nada sobre os esqueletos de Sahelan-thropus e Orrorin. Apesar disso, h evidn-cias suficientes para indicar que essas trsespcies antigas ficavam de p e andavam demaneira diferente de voc e de mim emgrande medida porque conservavam nu-merosas adaptaes antigas para trepar emrvores. O p de Ardi, por exemplo, tinha umdedo extremamente musculoso e divergenteque era muito capaz de se agarrar em voltade galhos ou troncos de rvore. Seus outrosartelhos eram longos e bastante curvos, e seutornozelo inclinava-se ligeiramente paradentro. Esses traos, teis para trepar emrvores, faziam com que seu p funcionassede maneira diferente de ps modernos. Aoandar, ela provavelmente os usava maiscomo um chimpanz, mantendo seu peso aolongo do lado de fora do p, em vez de gir-lopara dentro (pronao) como um ser hu-mano.22 Ardi tinha tambm pernas curtas e,se andava apoiada no lado de fora dos ps,

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  • talvez fossem mais compridos que os nossos.Talvez ela tivesse joelhos ligeiramente en-curvados tambm. Como seria de esperar, hmuitas outras evidncias de habilidades paratrepar em rvores no tronco de Ardi, quetinha braos longos e musculosos e dedoscompridos e curvos.23

    Se deixarmos de lado os detalhes, oquadro geral dos primeiros hominneos queemerge que eles certamente no eramquadrpedes quando estavam no cho, e simbpedes ocasionais que andavam eretos deuma maneira tipicamente no humanaquando no estavam trepando em rvores.Podiam no andar com passos largos to efi-cientemente como seres humanos, mas eramprovavelmente capazes de andar eretos commais eficincia e estabilidade que um chim-panz ou um gorila. Entretanto, esses anti-gos ancestrais eram tambm competentestrepadores que provavelmente passavamuma parte considervel de seu tempo no ar.

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  • Se pudssemos observ-los trepando emrvores, ficaramos maravilhados com suahabilidade para correr entre ramos e pularde galho em galho, mas talvez fossem menosgeis que um chimpanz. Se pudssemosobserv-los andando, pensaramos que seuandar era ligeiramente estranho ao v-lospisar nos lados de ps compridos, viradospara dentro, dando passos curtos. tentadorimagin-los balanando por toda parte in-stavelmente sobre duas pernas como chim-panzs eretos (ou seres humanos bbados),mas isso pouco provvel. Suspeito queeram competentes tanto para andar quantopara escalar, mas o faziam de uma maneiracaracterstica, diferente de qualquer criaturaviva hoje.

    Diferenas dietticas

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  • Os animais se movimentam por muitasrazes, inclusive fugir de predadores e lutar,mas uma razo principal para andar e correr comer. Assim, antes de considerar por queo bipedalismo se desenvolveu a princpio,precisamos destacar uma srie adicional detraos, todos ligados dieta, que distingue osprimeiros hominneos.

    Via de regra, os hominneos mais antigos,como Touma e Ardi, tm faces e dentes si-miescos, sugerindo que mantinham uma di-eta tambm bastante simiesca, dominadapor frutas maduras. Por exemplo, eles tmdentes frontais grandes como esptulas, ad-equados para morder frutas, como quandocravamos os dentes numa ma. Tambmtm molares com cspides baixas, perfeita-mente formados para esmagar a polpa defrutas fibrosas. H, contudo, algumas in-dicaes sutis de que esses antigos membrosda linhagem humana eram ligeiramentemais bem adaptados que chimpanzs a

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  • comer alimentos de baixa qualidade alm defrutas. Uma diferena que seus molares somoderadamente maiores e mais grossos queos de macacos antropoides como chimpanzse gorilas.24 Molares maiores, mais grossos,teriam sido mais capazes de esmigalhar itensalimentcios mais duros e firmes como caulese folhas. Alm disso, Ardi e Touma tm fo-cinhos um pouco menores em razo de zigo-mas situados mais frente e rostos mais ver-ticais.25 Essa configurao posiciona os ms-culos da mastigao de tal modo que elesproduzem mais fora de mordida para esmi-galhar alimentos mais duros. Por fim, oscaninos dos primeiros hominneos machosso menores, mais curtos e tm menos formade punhal que os dos chimpanzs machos.26Embora alguns pesquisadores acreditem quecaninos masculinos menores sugerem quemachos brigavam menos uns com os outros,uma explicao alternativa e mais convin-cente que caninos menores eram

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  • adaptaes para ajud-los a mastigar ali-mentos mais rijos, mais fibrosos.27

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  • Juntando as evidncias, podemos conjec-turar com alguma confiana que os primeir-os hominneos provavelmente se empantur-ravam de fruta tanto quanto podiam, mas aseleo natural favoreceu aqueles mais aptosa recorrer a comidas piores, a comer coisasmais fibrosas e duras, como caules, que exi-gem muita mastigao para ser quebradas.Essas diferenas relacionadas dieta somuito sutis. No entanto, quando as consid-eramos em conjunto com o que sabemossobre sua locomoo e o ambiente em queviviam, podemos comear a formularhipteses tentando explicar por que osprimeiros hominneos assumiram o bipedal-ismo, colocando a linhagem humana numcaminho evolutivo muito diferente daquelede seus primos.

    Por que ser um bpede?

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  • Plato definiu certa vez os seres humanoscomo bpedes sem penas, mas ele no tinhaconhecimento de dinossauros, cangurus esuricatos. Na verdade, somos os nicos b-pedes sem penas e sem cauda que andam. Ahabilidade de cambalear por a sobre duaspernas s se desenvolveu algumas vezes, eno h nenhum outro bpede que seassemelhe ao ser humano, o que torna difcilavaliar as vantagens e desvantagens de serum hominneo habitualmente ereto. Se o bi-pedalismo hominneo to excepcional, porque se desenvolveu? E como essa estranhamaneira de ficar de p e andar influenciamudanas evolutivas ocorridas ulterior-mente no corpo humano?

    Nunca saberemos com certeza por que aseleo natural favoreceu adaptaes para obipedalismo, mas penso que as evidnciassustentam com mais fora a ideia de que aposio e o andar ereto regulares foram sele-cionados para ajudar os primeiros

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  • hominneos a procurar e obter alimento commais eficincia em face da grande mudanaclimtica que estava ocorrendo quando aslinhagens humana e dos chimpanzsdivergiram.

    A mudana climtica um tpico de in-tenso interesse hoje por causa das evidnciasde que os seres humanos esto aquecendo aTerra ao queimar enormes quantidades decombustvel fssil, mas ela vem sendo hmuito tempo um influente fator na evoluohumana, inclusive durante a poca em quenos separamos dos macacos antropoides. Osgrficos da figura 4 representam a temper-atura dos oceanos ao longo dos ltimos 10milhes de anos.28 Como voc pode ver,entre 10 e 5 milhes de anos atrs, o clima detoda a Terra esfriou consideravelmente. Em-bora esse esfriamento tenha acontecido aolongo de milhes de anos e com intermin-veis flutuaes entre perodos mais quentes emais frios, como efeito, as florestas pluviais

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  • na frica encolheram e os hbitats mais es-parsamente florestados se expandiram.29Agora imagine-se como o LCA um macacoantropoide de corpo volumoso, comedor defrutas durante esse perodo. Se vivesse nocorao da floresta pluvial, provavelmenteno teria notado muita diferena. Mas, setivesse o infortnio de viver nas margens dafloresta, a mudana deve ter sido estressante. medida que a floresta sua volta encolhe ese transforma em florestas mais abertas, asfrutas que voc deseja comer tornam-semenos abundantes, mais dispersas e maissazonais. Essas mudanas iam por vezes exi-gir que voc fizesse viagens mais