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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995) MARIA DE FáTIMA SILVA Universidade de Coimbra A HISTORIA DE POLÍCRATES DE SAMOS MAIS UM CAPÍTULO NA BIOGRAFIA DA HUMANIDADE Reunia Polícrates, o tirano de Samos, um conjunto de condições para merecer um lugar de destaque nas Histórias de Heródoto, ao lado de Creso, Ciro, Cambises ou Xerxes. Como eles detinha poder e riqueza, governava um império sólido que ansiava por aumentar, parecia, em todos os empreendimentos que arriscava, um dilecto da fortuna. E, como eles, confiava na sorte, que julgava fiel aliada. Sem disso ter consciência, Polícrates, pelo simples facto da sua enorme prosperidade, corria o risco de desencadear a infalível inveja (cpSóvoç) divina; não fosse ainda, a acrescer a essa mesma fortuna, a ousadia de tentar sempre mais, de ceder à corrupção que o poder acarreta, dando assim, à justiça dos deuses, o pretexto de uma punição merecida. Mas, como aos seus iguais no poder deste mundo, uma lição o aguardava, à espera apenas que a roda da fortu- na lhe marcasse dia e hora. E esse dia em que Polícrates compreendeu a sua cegueira e aprendeu, pelo sofrimento, as verdadeiras regras da exis- tência humana, esse foi igualmente o dia da sua morte. Cumpria-se, uma vez mais em Samos, aquela que Heródoto anunciara, desde o prólogo da sua narrativa, como uma constatação irrefutável e universal, que determi- nara o historiador a passar em revista a história das cidades grandes e pequenas, sem distinção: que a felicidade humana em caso algum perma- nece constante (T^V áv8pcu7tr)ír]v ôv sTciCTxájaevoç eô8aiu.ovÍT)v oòSauà év TòDTCB u.évoucrav, 1. 5. 4); como se executava também, uma vez mais, a véu.ecnç divina, a que sobretudo os poderosos estão sujeitos.

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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)

M A R I A D E F á T I M A S I L V A

Universidade de Coimbra

A HISTORIA DE POLÍCRATES DE SAMOS

MAIS UM CAPÍTULO NA BIOGRAFIA DA HUMANIDADE

Reunia Polícrates, o tirano de Samos, um conjunto de condições para merecer um lugar de destaque nas Histórias de Heródoto, ao lado de Creso, Ciro, Cambises ou Xerxes. Como eles detinha poder e riqueza, governava um império sólido que ansiava por aumentar, parecia, em todos os empreendimentos que arriscava, um dilecto da fortuna. E, como eles, confiava na sorte, que julgava fiel aliada. Sem disso ter consciência, Polícrates, pelo simples facto da sua enorme prosperidade, corria o risco de desencadear a infalível inveja (cpSóvoç) divina; não fosse ainda, a acrescer a essa mesma fortuna, a ousadia de tentar sempre mais, de ceder à corrupção que o poder acarreta, dando assim, à justiça dos deuses, o pretexto de uma punição merecida. Mas, como aos seus iguais no poder deste mundo, uma lição o aguardava, à espera apenas que a roda da fortu­na lhe marcasse dia e hora. E esse dia em que Polícrates compreendeu a sua cegueira e aprendeu, pelo sofrimento, as verdadeiras regras da exis­tência humana, esse foi igualmente o dia da sua morte. Cumpria-se, uma vez mais em Samos, aquela que Heródoto anunciara, desde o prólogo da sua narrativa, como uma constatação irrefutável e universal, que determi­nara o historiador a passar em revista a história das cidades grandes e pequenas, sem distinção: que a felicidade humana em caso algum perma­nece constante (T^V áv8pcu7tr)ír]v ôv sTciCTxájaevoç eô8aiu.ovÍT)v oòSauà év TòDTCB u.évoucrav, 1. 5. 4); como se executava também, uma vez mais, a véu.ecnç divina, a que sobretudo os poderosos estão sujeitos.

56 MARIA DE FÁTIMA SILVA

Era já proverbial entre os Gregos, ao tempo de Heródoto, a fama da prosperidade a que o tirano de Samos, no poder desde os anos trinta do séc. VI a. C , tinha guindado a sua ilha1; à riqueza, associou-se um requintado mecenatismo, que atraiu à corte artistas célebres 2, em cujo número figuram os nomes de Anacreonte e Ibico. E parece que a perma­nência em Samos não desiludia as expectativas daqueles que à ilha se acolhiam; assim Ibico, num dos seus poemas3, propunha esquecer os heróis troianos, e canalizar todas as suas forças para o louvor da glória imortal de Polícrates; como também Anacreonte lhe não terá negado merecidos elogios4.

Plenamente justificado, em Histórias, o episódio de Polícrates, cons­tatamos que, nas suas linhas gerais, a textura que lhe dá forma repete uma estratégia comum a outros logoi de índole semelhante, que Immerwahr5

definiu segundo um ritmo permanente: ascensão de um chefe, expansão do seu poder até um ponto climático, queda fatal que leva à destruição ou à morte. Tal esquema, repetitivo em Heródoto, informa em conceitos de base como a efemeridade da sorte, fippiç como corrupção que o excesso de poder provoca, inveja (çGóvoç) e infalível vingança (véu.scriç) que os deuses não deixam de aplicar ao prevaricador.

Mas se o tema deste episódio encontra, em Heródoto, paralelos evi­dentes, de que a história de Creso é, sem dúvida, o mais flagrante, a téc­nica narrativa patenteia qualidades de energia e eficácia, simetria, impres-sividade e força vocabular, que deixam reconhecer, no logos de Polícrates, o dedo de artista do famoso contador de histórias que é Heródoto6.

1 Ateneu (3 a) menciona a grandeza da biblioteca de Samos; e largo é o eco das preciosidades exóticas que o tirano foi acumulando como um imenso tesouro.

2 Cf. Ateneu 540 c-e. 3 Lyra Graeca, fr. 263 Page. 4 Estrabão (638 c) confirmava que também Anacreonte não poupou versos de

elogio ao tirano de Samos. Cf. ainda, para outras referências ao tirano e à sua relação com este poeta, Heródoto 3. 121; Ateneu 540 e; Eliano, História Verdadeira 9. 4. De resto, o curso do tempo pareceu reavivar a memória, já mítica, de Polícrates: cf. Galieno, Protréptico 4, pp.3-4 Kaibel; Tzetzes 7. 203-220; Cícero, De extremis 5.(30).92; Plínio, História Natural 33. 27.

5 Form and Thought in Herodotus, The American Philological Association, Cleveland, 1966, pp. 76 sq.

6 Com toda a propriedade se poderá adequar a este logos um critério de análise vocabular semelhante àquele que, com significativos resultados, foi aplicado às históri­as do Livro I por T. Long, Repetition and variation in the short stories of Herodotus, Frankfurt, 1987. É também um pouco no mesmo sentido que se orienta o recente artigo de J. Van der Veen, 'The lord of the ring. Narrative technique in Herodotus story on Polycrates' ring', Mnemosyne, 44, 1993, pp. 433-457.

A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 57

Liberta de pormenores desnecessários ou decorativos, a história de Polícrates desenvolve-se de uma forma directa, a que a escolha, particu­larmente hábil, da linguagem confere uma enorme força e expressividade. A introdução de um certo vocabulário restrito a cada momento da narrati­va, que ganha, devido às inúmeras repetições de que é objecto, uma ine­gável prioridade, define os próprios momentos do episódio e salienta os aspectos prioritários ou essenciais na arquitectura das situações e no perfil psicológico dos seus intervenientes.

O percurso da existência de Polícrates, que faz dele um paradigma trágico do homem poderoso que mergulha no mais infame dos aniquila­mentos, desenvolve-se, no Livro III de Histórias, em dois momentos dis­tintos: o do apogeu (39-43) e o da queda (120-125). Internamente, esta bipartição da história faz da segunda parte a demonstração prática e con­creta de tudo aquilo que, na primeira, tinha o tom da profecia. Esta mesma relação de equilíbrio natural entre os dois momentos do logos ganha uma verdadeira simetria no desenvolvimento estrutural e vocabular, que os torna, de forma visível, as duas faces de uma mesma moeda. Para maior enriquecimento deste esquema claramente articulado, quaisquer des­vios de um puro paralelismo só contribuem como factores de empolamen­to dos dados climáticos da história.

O acesso do tirano ao poder não foi pacífico, antes se envolveu em instabilidade e violência. Da mesma forma que a dinastia mérmnade (1.8--13), de que Creso foi o último soberano, ficou marcada por um começo sangrento — provocado pela espada com que Giges, o cortesão de confi­ança, feriu de morte o seu senhor, Candaules — também Polícrates, para impor sobre toda a Samos a sua autoridade, não hesitou, depois de uma partilha de poder com os seus dois irmãos, Pantagnoto e Síloson, em liquidar um e reduzir ao exílio o outro dos rivais da sua autoridade (39. 2). Sem reticências ocupou um trono culpado, sem mesmo procurar obter dos deuses um sinal de assentimento. Ao avalizar outrora o direito de Giges ao trono da Lídia, Apolo remetera para o quarto descendente na linha dinástica de Sardes a expiação daquele crime (1. 13). O silêncio, que agora cobre o usurpador, não significa conivência — a justiça divina não dorme —, mas simplesmente que a Polícrates os deuses reservavam uma expiação imediata, a pagar, sem adiamentos, pelo próprio culpado.

Por outro lado, no lugar de qualquer contestação humana, Polícrates colhe as manifestações de amizade afável de um aliado poderoso, Amásis, faraó do Egipto, nascida sob os melhores auspícios, de que os presentes constantes se tornaram, de parte a parte, um expressivo penhor. "E%etv 'ter' é então o verbo que melhor define a situação: Polícrates firma o seu

58 MARIA DE FÁTIMA SILVA

poder no domínio progressivo de toda a ilha (ea%£ Eáuov, 39. 1, SCT%£ 7tãaav Eá(^ov, 39. 2) e na consolidação de alianças (è'xcov õè ÇSIVÍTJV 'Ap.ácn., 39. 2).

O tempo de ascensão é sempre curto na narrativa de Heródoto (èv Xpóvco 5è oXiyco aÒTÍKa, 39. 3) e cobre-se de vitórias e de fama. É pelas armas que o tirano se engrandece, multiplicando-se em campa­nhas (arpaTeóscBai, 39. 3) que vão alargando as fronteiras de um impé­rio em constante expansão. O modo como Heródoto narra a actividade bélica do tirano de Samos torna esses anos de progresso num verdadeiro frenesim. Consciente do poder militar e naval que possuía, que tornava Samos a maior talassocracia grega depois dos tempos lendários de Minos (cf. 3. 122. 2), Polícrates vivia a rentabilizar, sem tréguas, esse potencial: sçepe ... T)ys ... Xafiòv ... ápaipfjKse ... Kpaxrjaaç siXe (39. 4), 'rapinava ... raptava ... tomava ... apropriava-se ... dominava'. Diversas na forma, mas similares no sentido, estas palavras de acção sugerem o ritmo imparável de uma marcha sem fim, que não permite um momento, ainda que breve, de reflexão ou de humanidade. É o desvario que impera.

No meio do torvelinho abre-se uma brecha para o vislumbre de um sentimento, a amizade. Como procede com os amigos este Polícrates con­quistador? A resposta dá-a o próprio Polícrates adequada, prática, demoli­dora de qualquer barreira, por mais ténue que seja, oposta à sua sede insa­ciável de conquista: 'os amigos ficam mais satisfeitos se se lhes devolve o que se lhes tirou do que se nada se lhes tiver tirado' (39. 4). O que signi­fica que amizade, aliança, põe-nas Polícrates ao serviço dos seus interes­ses, favorecendo-as, como no caso do Egipto, ou desconhecendo-as, de acordo com uma única preocupação verdadeira: o fortalecimento do impé­rio marítimo de Samos.

Deste Polícrates, conquistador activo e incansável, se pode dizer que era SUTD%T)ç (cf. 39. 3) 'afortunado', o mesmo epíteto com que Sólon definiu Creso, o poderoso rei da Lídia no auge da sua grandeza. EôTO%íO,,

a situação daquele a quem tudo 'acontece' dentro dos melhores auspícios, não dá direito — afirmara-o o sábio de Atenas — ao qualificativo de oXfhoç 'feliz'. O que sobretudo distingue estes dois estados é a margem de contingência que faz parte da própria natureza de Tó%T). Sólon fora bem claro (1. 32. 6-7): ' ... alguém isento de deformidades, de doenças, de desgraças, e, por outro lado, dotado de filhos e de beleza; se, para além de todas estas vantagens, tiver um bom fim de vida, é esse o homem que procuras, a quem, com justa razão, se pode chamar feliz (ôA,pioç).

A HISTÓRIA DE POLÍCRATES DE SAMOS 59

Mas antes que atinja o fim da vida, convém aguardar e evitar chamar-lhe feliz; o que ele é de facto é afortunado (evJTU%f]ç)'.

A agitação frenética que dominava Polícrates conhece um momento de pausa com a chegada à corte de Samos de uma carta enviada por Amásis. Introduz Heródoto, desta forma, um alerta ao tirano, numa perfei­ta simetria com a chegada de Sólon à corte de Sardes7. Cobertos de sabe­doria, ambos os conselheiros trazem aos poderosos um aviso, a que Polícrates, aliás, ao contrário de Creso, não é indiferente8. Representa, por outro lado, ó' conselheiro um poderoso factor de oposição ao monarca, que muito contribui para lhe projectar, com nitidez ímpar, os traços de carácter. Todo este episódio, que marca o ponto de mudança no trajecto da vida de Polícrates, se constrói de uma forma rigorosamente simétrica, jogando com aqueles que são, à distância, os seus dois interventores. Em vez do diálogo directo, a carta serve de veículo do conselho de Amásis e, depois, de emissário da resposta de Polícrates. No intervalo das missivas situa-se o ritual do lançamento ao mar do anel, duplamente projectado como reflexo de uma tradição famosa, de que Histórias são o eco, e sím­bolo supremo, no contexto interno da narrativa, da inevitabilidade do des­tino, uma das grandes mensagens de todo o episódio.

Antes de mais, o factor que leva Amásis a tomar a iniciativa de aler­tar Polícrates é a sua capacidade de pensar, de sondar a realidade sob a capa das falsas aparências9. Em conformidade, pela primeira vez neste episódio, multiplicam-se os termos que abrem lugar à razão e à compreen­são: OòK êXávGavs (40. 1) ..., s7U|j.eXéç (40. 1) ..., TtuvOávsaGai (40. 2) ..., èmorauévcp (40. 2), 'não lhe passou despercebido ... preocu-

7 Da mesma maneira que a cronologia relativa da actividade legislativa de Sólon e do remado de Creso exclui a historicidade desta entrevista, também a missiva de Amásis não passa de um mero artifício literário. Ambas cumprem uma função semelhante, a de trazer, à presença do poderoso, directa ou indirectamente, o aviso do destino através de uma voz autorizada.

8 Sobre a intervenção da figura do conselheiro como uma constante na história de Heródoto, cf. R. Lattimore, "The wise adviser in Herodotus', CPh 34, 1939, pp. 24-35.

Pelo tipo de actução que lhe cabe, o conselheiro torna-se um elemento equivalen­te aos sonhos, portentos ou oráculos em qualidade profética.

9 Cabe aqui recordar, pela propriedade com que se ajustam a Amásis, as pala­vras com que Hans-Peter Stahl ('Learning through suffering? Croesus' conversations in the history of Herodotus', YCIS 24, 1975, p. 7) refere a intervenção de Sólon junto de Creso: 'Sólon, embora conhecendo a inveja divina e as perturbações que provoca, não possui qualquer iluminação divina do presente ou pressentimento do futuro. As suas preocupações derivam do conhecimento empírico que tem da instabilidade comum na condição humana'.

60 MARIA DE FÁTIMA SILVA

pava-o ... tomou conhecimento ... sabia'. Mas nem só a lucidez o distin­

guia de Polícrates, Amásis tinha também um critério de amizade e lealda­

de aos amigos, que não pode deixar de recordar, por oposição, a atitude

pragmática e falsa que era a de Polícrates na mesma matéria10. A conten­

to com a personalidade delicada e sensitiva que Heródoto aqui atribui ao

faraó, Amásis não se manifesta, em relação aos amigos, apenas com pre­

sentes, e menos ainda com a devolução cínica e opulenta daquilo que,

pela força, antes lhes houvesse confiscado. Amizade manifestava-a o egíp­

cio com preocupação (èm\ieXèq, 40. 1), com o prazer de constatar-lhes a

felicidade (f)8b u.èv icuvSávsaBai avSpa cpíXov KCC! ^e ívov eò

7ipriaaovTa, 40. 2), com o desejo de partilhar com eles os anseios que

alimentava para si próprio (KCù KCOç PoóXou.ai iça! aòxòç KCù T S V

av KTj8cou.ai, 40. 2), com o conselho oportuno e bem intencionado (aó

vuv èu.01 7rsi9ójj.evoç, 40. 3).

Em todo este contexto em que, à volta de Polícrates, cresce um halo

de preocupação na pessoa de um Amásis racional e sensível, o tirano de

Samos continua a ser tão somente o eôxo%écûv u,syáXcoç (40. 1) ' o

senhor de uma grande fortuna', noXXcá §è STI nXéovóq oí eÔTuxíilç

•yivouivTjç (40. 1) 'bafejado por uma sorte que não parava de aumentar',

a i c a l \ieyaXai sín;vj%íai (40. 2) 'coberto de uma enorme prosperida­

de ' , num embriagamento total e inconsciente face ao bafejo da sorte.

Nada mais consentâneo com a cegueira e a ignorância do que o próprio

sucesso.

A mensagem transmitida por Amásis condensa-se na mesma filosofia

da imprevisibilidade da existência (èvaXXát,) e da inconstância da fortu­

na, para além do critério 'teleológico' de felicidade, que fora também a

essência da reflexão de Sólon em Sardes. Acima desta fragilidade estão

ainda os deuses, sempre dispostos a tudo revolucionarem se o excesso de

felicidade dos homens se lhes torna desagradável. Deste princípio existe

um eco iniludível nas palavras dos dois filósofos: é7ti<náiievóv [ie T ò

Beïov nõ.v èòv cpOovspóv TS KCù xapa%cõ5eç (1. 32. 1), dissera

Sólon; e agora Amásis reafirma: t ò Bsïov èjttcrxaiiévff) cbç è'cri <p9o-

vspóv (3. 40. 2). Falta apenas ao monarca egípcio a consciência do poder

soberano do destino; optimista perante a vida, julga Amásis poder propor

medidas de prevenção que acautelem os homens avisados contra as pena­

lizações invariáveis de TV%J]. É nesse sentido que sugere a Polícrates uma

medida concreta para se antecipar a pagar ao destino o preço da sua fortu-

Cf. supra p. 58.

A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 61

na, antes que a respectiva factura lhe seja cobrada. É, em primeiro lugar,

à reflexão, à consciencialização do amigo que Amásis apela: cppovxíaaç

av supr)ç (40. 4), abrindo, na actividade até aí frenética do tirano, um

espaço até então esquecido. É necessário que Polícrates encontre, num

gesto de privação, o modo de criar a ficção do sofrimento, através da

perda irreparável de algo da sua particular estima. Palavras de privação e

sofrimento — sic' óS ànoXo\j.sv(ù u á ^ i c t a rrjv \)/vj%-f|v aXyrjoxic

(40. 4) 'com essa privação infligirás à tua alma o maior sofrimento'; a i

evJ>TVj%íai TOI TTJcri náQrjdi Ttpoo-juTtTCûai (40. 4) 'a fortuna a alternar

com o sofrimento' — insistem neste jogo infantil em que o homem procu­

ra iludir e vencer o seu adversário, a própria Tú%TJ. Partida semelhante

arriscara-a Astíages, face ao prenúncio da chegada de um usurpador do

seu poder na pessoa de Ciro (1. 120); jogara-a igualmente Creso, ao tomar

medidas para impedir que sobre a cabeça de Átis desabasse a espada fatal

(1. 34). Mas fora constante o resultado de cada jogada: perdida e inútil é

a partida derradeira em que o ser humano se confronta com o destino, na

hora da sua execução.

A mensagem calou fundo a Polícrates, que a aceitou como sensata e

se decidiu de novo à acção, agora numa atitude medida e pensada de pro­

cura (S§íÇT]TO, 41. 1, SiÇrjiísvoç, 41 . 1), até encontrar (sôpiaKe 4 1 . 1)

o objecto cuja perda o atingisse mais fundo na alma (èrc' &> a v

jiálxcjTa TTJV \|/vj%fjv àcTTjSeÍT], 4L 1). A própria semelhança da lingua­

gem entre a sugestão da carta e a sua execução por parte de Polícrates.

revela a submissão meticulosa com que o tirano entendeu dever aceitá-la.

Para, por fim, encontrar a solução num anel pessoal (o selo que sempre

trazia consigo e que era símbolo da sua autoridade), valioso (encastoado

em ouro e ornamentado de uma bela esmeralda), raro (obra de um artista

famoso e já falecido), insubstituível. Era de facto um pouco de si próprio

que Polícrates sacrificava ao privar-se de tal objecto. Por isso quis o tira­

no rodear o acto de solenidade e oferecê-lo ao testemunho do seu povo,

num rito que se revestiu de aparato teatral. Foi em pleno mar alto, sobre

um navio, cenário simbólico do seu poder, que o monarca, à vista de

todos, tirou do dedo o anel da sua autoridade para o lançar nas profunde­

zas marinhas, como vítima oferecida aos deuses e ao destino u . No regres-

11 J. Labarbe, no seu artigo 'Polycrate, Amasis et Fanneau', AC 53, 1984, pp. 19sq., faz-se eco de uma hipótese, aventada por Reinach, que vê no gesto de Polfcrates um acto ritual, uma espécie de rito de casamento com o mar, próprio de uma talassocracia, para o qual encontra, ao longo da história, diversos paralelos. Esta inter-

62 MARIA DE FÁTIMA SILVA

so, Polícrates retirou-se e, no isolamento silencioso dos seus aposentos, deu largas ao sofrimento. Pela primeira vez o tirano sofria (o-Du.(popf} èxpãxo, 41. 2), sobrepondo ao arbítrio da sorte a sua própria vontade de se submeter à dor; mas, na realidade, a tentativa montada por Polícrates de prescindir das insígnias do poder não passava de uma vaga simulação, que em nada alterou a sua condição de soberano e não pôde, portanto, tra­var a marcha do destino.

Por isso este lhe recusou a imolação e lhe devolveu a alegria, sob a forma de uma dádiva suave, irrecusável (5c6pov ooOrjvai, 42. 1; 8i5oóç, 42. 1), grande e bela como o exigia o destinatário (uéyav -te içai KCCXóV, 42. 1). Chegava, sob uma falsa capa de júbilo, a hora do ajuste de contas.

Ao depor nas mãos do soberano um enorme peixe que acabava de colher nas suas redes, um pescador de Samos fez-se, involuntariamente, porta-voz dessa coerência constante entre Polícrates e o que é belo e mag­nífico: 'mas, por o achar bem digno do teu poder, aqui to trago de presen­te' (42. 2). Tão simples palavras e oferta tão especial tiveram o condão de alterar de imediato o humor do soberano. E, sem hesitação, esquecendo o prudente <ppovTÍcraç 'pensa primeiro' com que Amásis procurara regrar-lhe o espontâneo optimismo, eis Polícrates entregue ao prazer (íjaGsíç, 42. 2), disposto a saudar, como honras devidas à sua grandeza, as aten­ções de que era alvo (sõ eTtoí-rjcraç Kal %áptç SITIA,-/], 42. 2). Aos seus olhos o palácio desanuviava-se de sombras e a alegria que o dominava

pretação foi, por Legrand (Les Belles Lettres, Paris, 1939, pp. 33sq.), repudiada em favor de uma outra leitura: 'a história maravilhosa do anel, sacrificado para prevenir a inveja dos deuses e que regressa ao proprietário dentro de um peixe que lhe é dado de presente, pode bem ser a adaptação de um conto popular, em que um anel mágico, per­dido pelo seu proprietário, regressava ao seu poder de forma milagrosa, ou, na versão contrária, de um outro conto em que o proprietário de um anel maldito não conseguia desfazer-se dele'. Este conjunto de hipóteses, em que sobressai o carácter ritual e mági­co do anel, torna patente, em Heródoto, a exclusão do dado maravilhoso. Sobeja, nesta versão da história, o racionalismo pragmático que transforma em sacrifício apotropaico o acto de privação do anel, que é sobretudo um objecto de estimação. Se mais algum significado se pode atribuir a este objecto é, sem dúvida, o de símbolo do poder políti­co do seu possuidor. Tais alterações conciliam-se perfeitamente com o espírito iónico do historiador. Recorde-se a adaptação idêntica a que foi submetida a história de Giges e Candaules, face à versão do mesmo conto transmitida por Platão na República (359d--360b); um anel que possuía, na versão de Platão, o poder de conferir a quem o usasse o dom da invisibilidade, e cuja posse incentivou Giges a matar impunemente o seu soberano, conquistar a rainha e tomar o poder de Sardes, é, em Heródoto, totalmente suprimido em favor de uma nova versão dos acontecimentos, em que impera um jogo psicológico e a execução da vingança sobre o comportamento desmedido de Candaules.

A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 63

parecia contagiar-se a todos os que o rodeavam: ao pescador, galardoado

com um convite real para jantar, aos criados a quem coube 'redescobrir'

(eòpícjKouai, 42. 3) o talismã — objecto que, enquanto longe da vista

dos homens, havia de proteger o seu senhor — e que lho devolveram,

radiantes (KS%apTjKÓxsç, 42. 4). Uma vez mais é patente a semelhança

entre a reacção de Polícrates e a de Creso, num momento em que, após o

alerta lançado por Sólon, uma força divina complementa, com alguma

ambiguidade é certo, o mesmo grito de prudência: Creso recebeu, do orá­

culo de Apolo, uma resposta aos seus projectos de novas conquistas que o

deixou radioso de certezas (1. 53; cf. ainda ònepi]aQr], 1. 54. 1; TT.OX.XOV

TI (a.áXiCTxa Ttávxcov r\aQr], 1. 56. 1); também Polícrates acolhe este

sinal incerto, onde pressente a mão divina, com euforia. Ou seja, o riso e

a alegria coroam ironicamente um processo de avisos, que não colheram,

junto daqueles a quem se dirigiam, o mais leve eco de compreensão.

'Veio à ideia de Polícrates que ali andava o dedo dos deuses' (42. 3),

conta Heródoto, e essa sensação levou-o a dirigir, por sua vez, uma missi­

va a Amásis a narrar o resultado das suas diligências; o faraó sim, com­

preendeu a situação (sunOs, 43. 1), elaborou-lhe as respectivas conse­

quências e tirou dela uma conclusão, para si também: de que nada se

pode fazer para obstar ao curso do destino; a um homem como Polícrates,

a quem a sorte persistia em favorecer, mesmo contra sua vontade, só res­

tava esperar um mau fim. De novo o tema do euxu%eïv e do eu xeXeo-

T8ÏV (43. 1) se cruzam neste momento, a encerrar um primeiro aro que

tem no centro o anel poderoso de Polícrates.

Quedaram-se os acontecimentos em suspenso, enquanto soava ainda

o eco destas palavras proféticas; com elas, no entanto, o senhor de Samos

registava a sua primeira perda efectiva, a amizade zelosa do faraó que lha

retirou para se poupar ao sofrimento que lhe causaria a infelicidade de um

amigo (í'va jxí] cjoyxuxírjç ... áXy-rjcjsxs xfjv \\rv%f)v, 43 . 2). 12

Subtilmente, neste final de capítulo, à eôxu%ía substitui-se a CTVJVXU%í<X,

numa vaga previsão de desgraças futuras.

12 Na versão de Heródoto é Amásis que toma a iniciativa de romper o pacto de aliança existente com Samos; Diodoro (1. 95. 3) confirma esta versão, embora a justifi­que de outro modo, pelo repúdio do faraó pela política tirânica de Samos. Hoje tem-se defendido mais a ideia de que a iniciativa do rompimento fosse de Polícrates, perante a ameaça persa contra o Egipto. De facto, o capítulo que se segue comprova até uma tentativa de adesão, por parte de Samos, ao inimigo poderoso em marcha contra o Egipto (3. 44).

64 MARIA DE FÁTIMA SILVA

Seguiu-se para Polícrates uma fase de tréguas com a sua sorte, até ao

dia em que os acontecimentos vieram dar inteira razão à prudência de

Amásis. Apesar do intervalo 13 que separa as duas partes deste logos, o

processo de destruição do tirano, que deixámos como um S ò T U X ^ ç , vai

suceder-se como uma resposta, ponto por ponto, ao processo de ascensão

que colocou Polícrates no lugar de um alvo ideal para a desdita. Heródoto

acentua que não foi necessário que o soberano cometesse qualquer erro

para que a crise estalasse. Tal como fora inútil a iniciativa tomada para

travar o progresso do destino, não foi igualmente necessário accionar o

que quer que fosse para o pôr de novo em movimento. Foi 'sem dele ter

sofrido qualquer ofensa, sem ter ouvido da sua boca qualquer palavra

insolente, e até, simplesmente, sem nunca o ter visto antes' (120. 1), que

Oretes, o governador persa de Sardes, congeminou o plano de o liquidar.

Mas se nenhum sinal de inimizade para com Oretes justificava semelhante

vingança, razões havia-as, no entanto (xoirjvSe xivà O.íTIT]V, 120. 1), M

pessoais e políticas; e, como é habitual em Heródoto, a estas últimas é

dado um espaço curto de intervenção, enquanto avultam motivos pessoais

e conceptuais, ou seja, aqueles que, no contexto do episódio, obrigam o

indivíduo a cumprir um destino, cujo progresso é constante e universal.

Fora, segundo uma versão muito divulgada de que o historiador se

torna agora o eco, no decurso de uma conversa sobre valentia e notabili­

dade (Ttspi àpeTríç, 120. 2) que tal projecto havia sido sugerido a

Oretes. Porque não provaria ele a sua superioridade anexando, aos domí­

nios de sua jurisdição, a ilha de Samos, servindo ao mesmo tempo os seus

interesses e os do rei persa? Nem tal empresa representaria uma dificulda­

de desanimadora, já que um simples homem da ilha, com um punhado de

hoplitas, aí tinha imposto o seu poder, que até então conservava. Estas

palavras, para além de incentivarem a ambição de Oretes, picaram-lhe

também o orgulho e decidiram-no a desejar arrasar por completo (Ttávxcoç

ânoXéaai, 120. 4) o reino de Polícrates. Não se tratava, porém, em todo

este processo de agressão, de uma circunstância fortuita que simplesmente

13 No Livro III sucedem-se episódios que se centram sobre a história da Pérsia, no momento em que a morte inesperada de Cambises deixa o império a braços com um problema de sucessão.

14 É muito curioso que Heródoto não inclua a razão dada por Diodoro (10. 16. 4) de que se tratava, da parte de Oretes, de uma vingança por Samos ter acolhido alguns lídios que fugiam à sua perseguição. Esta omissão deixa campo livre a uma outra justificação, muito mais expressiva dentro do sentido global da história de Polícrates.

A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 65

resultasse de uma conversa de acaso; na realidade, o destino preparava

contra o tirano uma hábil armadilha, que visava, antes de mais, o primeiro

dos seus crimes: a tomada do poder pela violência. Ao liquidar sumaria­

mente a concorrência dos irmãos e ao tomar conta do poder de Samos, o

próprio Polícrates revelara ao inimigo o acesso fácil à soberania da ilha,

pelo simples exemplo de como também ele dela se assenhoreara.I5 Se esta

versão dos factos aponta para um aspecto concreto — o primeiro com

relevância no seu crescimento como homem poderoso — , de que é a

réplica e a justa reparação, a segunda versão registada por Heródoto tal­

vez represente, dentro dos erros antes salientados em Polícrates, um

exemplo da inconsequência com que tratava os hóspedes e aliados. Trata-

se agora de uma simples atitude de omissão para com um embaixador

que, em nome do senhor de Sardes, dirigia ao tirano de Samos uma qual­

quer solicitação. A cena descrita enquadra um tirano poderoso e adulado,

entregue ao conforto e ao capricho mecenático de uma corte faustosa,

num momento de lazer, em companhia de Anacreonte de Téos, hóspede

dilecto da ilha16. Em contraste com toda a descontracção e tranquilidade

régia, tanto mais gritante se torna o efeito da insistência num vocabulário

onde pondera xó%rj: xòv I loXuKpáxsa XVJ%SIV KaxaKeíiisvov èv

ávSpsrovi (121. 1), 'por acaso Polícrates descansava estendido nos apo­

sentos masculinos do palácio'; xòv IIoXoKpáxsa xu%sïv yàp è n e a -

xpau.uévov Ttpòç xòv xot%ov (121. 2), 'Polícrates estava então, por

acaso, voltado para a parede'. Sobretudo crrjvxo%ír| (121. 2), a desgraça

temida por Amásis (cf. supra p. 63), regressa, numa manifestação evidente

de que é chegada a hora do seu cumprimento.

Ainda uma vez se impõe um paralelo com a história de Creso, no

momento em que se iniciava o cumprimento do seu destino, muito seme­

lhante ao de Polícrates. Também a desgraça (crupcpopá) chega a Sardes na

pessoa de um hóspede e suplicante, Adrasto. E apesar de Creso, ao con­

trário de Polícrates, ter para com o recém-chegado o comportamento aten­

to e solícito de um hospedeiro zeloso, nem por isso ele deixa de ser um

embaixador de sofrimento (1. 35. 41-45). Pela indiferença ou pela solici-

15 A ironia que subjaz a esta sugestão recorda o caso, mutatis mutandis, da pró­pria tomada de Sardes, cidade defendida pelas suas muralhas e escarpas naturais, que parecia, à primeira vista, inexpugnável. Mas a simples queda do capacete de um dos defensores, que desceu pelas ribas da cidade a apanhá-lo, patenteou ao inimigo que era falsa toda aquela aparente resistência (1. 84). Nos dois casos, são as próprias vítimas da ameaça quem, involuntariamente, ilumina ao agressor o caminho para o golpe mortal.

16 Cf. supra p. 56, a respeito da presença de Anacreonte em Samos.

66 MARIA DE FÁTIMA SILVA

tude, ambos os tiranos alimentam, na pessoa de um hóspede, uma mão

cúmplice com o destino.

De facto Oretes, decidido a liquidar Polícrates, opta por feri-lo com

as mesmas armas pelas quais se sentira atingido: será através de um novo

embaixador, que se apresenta em Samos, não a pedir, mas a oferecer van­

tagens, que Oretes desafia a ambição de Polícrates e lhe prepara uma cila­

da. Tal como Amásis, Oretes valeu-se da inteligência, do conhecimento

que tinha dos projectos de Polícrates (u.a9ò>v t o o rioXuKpctTeoc xòv

vóov, 122. 1; u.a9ò)v av Taõxa u.iv § iavosú(^svov , 122. 3)) no

momento em que decidiu estabelecer com ele contacto; e, naturalmente, o

mesmo vocabulário, alusivo à reflexão e ao conhecimento impõe-se de

novo no texto.

Heródoto retoma de seguida o tema da conquista e alargamento do

poder empreendido pelo talassocrata de Samos. Recorda a sua aposta

(è7isvorj9r|, 122. 2) na famosa armada de que era senhor, a projecção que

ela efectivamente lhe tinha trazido (íjp£,e xríç OaXáaarjç, 122. 2) e

levanta o véu sobre novos projectos (èXníòa,ç noXXàç s%cov, 122. 2),

que trariam, às fronteiras já largas de um império marítimo, outra dimen­

são (Tcovírjç TE Kcxi vrjccov ap%eiv, 122. 2). Em perfeita simetria

com aquela ocasião em que Amásis procurara alertar Polícrates para pos­

síveis perigos ameaçadores da sua grandeza, a narrativa adopta agora, no

momento em que essas vagas sombras se tornam verdadeira procela, uma

estrutura que lhe é também equivalente. Uma outra missiva é enviada a

Samos, que, por razões inversas, vai merecer do tirano uma atenção não

inferior àquela com que ponderara as recomendações do faraó. Mas, pela

própria iminência da fatalidade, a decisão é agora mais dilatada: Polícrates

informa-se da sua viabilidade, escuta, para os recusar, os brados de pru­

dência, múltiplos, que lhe são dirigidos. Depois, executa o seu plano, já

não um ritual apotropaico e meramente simbólico, mas o sacrifício autên­

tico que lhe é infligido na carne. Por fim, à missiva de Oretes responde,

desta vez, o silêncio de Polícrates, numa assimetria final por demais

expressiva.

Tal como o aviso de Amásis, a mensagem da tentação chega numa

missiva, enviada por Oretes, que é da anterior um eco sugestivo.

Preparam-nos para essa similitude as simples fórmulas de abertura, que se

repetem: 'OpoÍTTjç r i o ^ u K p a x s i œSs ^ é y s i (122. 3) / "Ajraaiç

r io^uKpaxei tí>§8 Xéyei (40. 1). Mas se a repetição não é aqui parti­

cularmente significativa, dado o carácter formular do texto, o mesmo se

não pode dizer das palavras seguintes, onde Amásis se congratulava por

saber da prosperidade de um amigo ou de um hóspede, embora se preo-

A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 67

cupasse com a sua excessiva fortuna: fj§b (lev TtuvOávecrGai a v S p a

q>{\ov Kal Çsivov su Ttpi iaaovxa, su.ol Sè a í a a i p s y á A a i

sòxo%íai OôK ápéciKooCTi (40. 2). Neste ponto a confluência é flagran­

te: 7tuv0ávou.cu STtiPouXsúeiv CTS 7tpr)Ynacn psyáA,oiCTi Kal

%prju.axa TOI OòK e iva i Kaxà xà (ppovfjpaxa (122. 3). Retira Oretes

das suas palavras as afirmações de amizade ou dedicação que davam à

missiva do faraó uma outra tonalidade, apesar de, em geral, as referências

à prosperidade e aos sonhos de grandeza serem as mesmas; poupa, pelo

menos, à sua vítima esse acréscimo de ironia; não lhe elogia a prosperida­

de adquirida; fixa-se sobretudo no futuro, nos projectos megalómanos de

Polícrates e propõe-se, não contrariá-los, antes alimentá-los e patrociná-los

activamente. Xprju«xa, a alusão directa ao dinheiro, soa em todo o con­

texto como uma nota viva e agressiva: fora um pequeno pedido de dinhei­

ro (cf. 122. 1, xprjuaxoç SeTjaópsvov), tratado por Polícrates com indi­

ferença, que despoletara, segundo alguns, a sede de vingança em Oretes;

mas esta oferta de apoio financeiro para facilitar novas conquistas de um

poderoso senhor projecta a desmesura dos planos, já mesmo além das

enormes riquezas do próspero tirano de Samos.

Como outrora Amásis, também Oretes avança com uma proposta

concreta, cujo objectivo define com clareza. Dissera o faraó: CTú VUV

êu.ol TtsiGó^evoç TIOíTJCTOV Ttpòç xàç s£)xu%íaç xo iáSs (40. 3),

'aceita o meu conselho e, contra a tua constante prosperidade, faz o

seguinte'; de igual forma, Oretes sugere agora: cró vuv còSe Ttoirjcraç

ôpOaxreiç fièv CTsmuxóv, CTCDCTSIç § S Kal èjj,é (122. 3), 'se agires

assim, projectas a tua pessoa e salvas-me a mim também'. Ambos incenti­

vam Polícrates à acção, mas em direcções opostas: Amásis propõe-lhe

uma estratégia para travar uma prosperidade perigosa, Oretes uma outra

para o impulsionar à aquisição de vantagens, de que o próprio se deseja

também beneficiário. Esta margem de egoísmo e hipocrisia que se vai

infiltrando, preenche o espaço dedicado, no texto de Amásis, à amizade e

ao desinteresse afectuoso.

A mentira acrescenta ao quadro uma pincelada final; insiste-se em

afirmações de clareza e transparência, de lealdade e lisura, para que mais

convincente se torne a trama de falsidade que com elas se deseja encobrir.

Fala Oretes de um projecto de assassínio (éTxiPoiAeúsi Gávaxov, 122.

3), claramente anunciado (è£,ayys^Xsxai CTacprjvécoç); e, nesta informa­

ção, todos os dados estão correctos, menos a clareza com que o facto é

divulgado; na realidade, a versão que Oretes transmite altera apenas os

intervenientes no crime anunciado, assumindo-se ele próprio como vítima

de um carrasco, que, na ficção, é encarnado por Cambises. A esta falsa

68 MARIA DE FÁTIMA SILVA

clareza, segue-se uma falsa comprovação de lealdade: quaisquer dúvidas que o tirano de Samos possa alimentar quanto ao projecto proposto (eí Sé um âîciorésiç, 122. 4) podem ser totalmente sanadas por um emis­sário da confiança de Polícrates (ócrxiç Tticrxóxaxoc, xuy%ávei scov, 122. 4), numa visita a Sardes; a intervenção de um mensageiro, preparada como uma garantia de confiança, para afinal se tornar um colaborador involuntário numa cilada, ganha, no actual esquema de vingança, particu­lar significado dados os antecedentes da questão. No centro da trama está o dinheiro (%pr)p.axa, cf. 122. 3-4), constantemente a vibrar aos ouvidos de Polícrates, dinheiro que lhe aumentará o património (xà p.èv aòxcov aòxòç s'xs, 122. 3), dinheiro que lhe trará mais poder, mesmo para além dos seus projectos mais ambiciosos (eívetcév xs %pr]u.áxa)v âp^siç ãnáar]q xTJç ' E ^ á S o ç , 122. 4), dinheiro que Oretes deseja mostrar-lhe (xcp éycb àiio8é^cû, 122. 4) através dos olhos de um seu representante, para que o sinta como a presença palpável de tantos sonhos de grandeza.

Como poderia o Polícrates ambicioso que conhecemos reagir a esta mensagem sedutora, senão com voracidade e esfuziante alegria (f^aGr), 123. 1)? Como aos seus pares, atraía-o, por um lado, o hábito do sucesso, que estimula o ser humano à aventura e ao perigo; por outro, não podia deixar de sentir que a renovação e ampliação do seu reino se tornaria um factor de segurança e estabilidade para o trono que ocupava. Eis Polícrates encravado num ciclo vicioso, em que o sucesso pede risco e o risco bem sucedido fortalece o sucesso. De facto, Oretes tinha-lhe atingi­do o ponto fraco e feito fervilhar a sua paixão desmedida, excessiva — e, como tal, perigosa — pelo poder do dinheiro (iu.eípexo yàp %prju.axœv Li6yáÀ,coç, 123. 1). Por isso, de sorriso nos lábios, tomado de doce ilusão, Polícrates propôs-se conspirar com as traições da sorte.

À mesma inconsciência, por instinto confiante, de Polícrates, continuou Oretes a opor uma esperteza mal intencionada: ao saber (uaBcòv, 123. 2) da vinda próxima de um inspector, o senhor de Sardes tudo preparou cuidado­samente para o tornar um agente activo, ainda que involuntário, no logro 17. O inspector de confiança chegou, examinou atentamente (9erjcyáu.evoç, 123. 3) a evidência que lhe foi oferecida e fez o seu relato a Polícrates. Não se deu, porém, conta de que, por baixo de uma fina camada de oiro, uma

17 Tal como no logos de Ciro foram apresentadas aos inspectores enviados por Hárpago provas convincentes da morte da criança abandonada nas montanhas, tanto mais óbvias quanto se procurava, através delas, iludir uma verdade diferente, também aqui Oretes prepara um espectáculo tanto mais convincente, quanto ilusório.

A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 69

mera aparência de fortuna, os tesouros arrecadados em cofres por Oretes

não passavam, na realidade, de uma imensa pilha de pedras.

As últimas dúvidas do monarca de Samos desvaneceram-se; aos

olhos da sua imaginação ofereciam-se tesouros e vitórias sem conta.

A todos os que procuraram, com insistência, dissuadi-lo — adivinhos,

amigos (124. 1) — se mostrou surdo e indiferente. Por intermédio da

filha, chegou-lhe, sob a forma de uma visão nocturna, a imagem da des­

graça iminente: 'parecia-lhe ver o pai, nas alturas do firmamento, a ser

banhado por Zeus e oleado pelo sol' (124. 1)18. Também Creso recebeu,

por um sonho, no momento da derrocada, um último aviso, que quis, mas

não pôde, acautelar. Polícrates nem mesmo prestou atenção às advertên­

cias que a filha, com insistência, lhe repetia; foi, então, sob funestos aus­

pícios (s7ie(pr)|j.íÇeTO, 124. 2) que partiu num navio, já não para executar

um ritual profiláctico, mas, agora sim, em busca do verdadeiro sofrimen­

to; pôde ainda, no derradeiro momento, corresponder às palavras de dedi­

cação e amizade, com que a filha o alertava, com uma última ameaça,

como tantas vezes fazia àqueles que lhe eram fiéis e devotados. Com a

presença da filha abre-se, no mundo de Polícrates, quase exclusivamente

público, um acesso ao plano familiar. Na intimidade, o monarca persiste

na mesma atitude: cruel, na forma apressada como afasta, com uma sim­

ples palavra de ameaça gratuita, aqueles que apenas queriam a sua felici­

dade. Este é mais um aspecto em que Creso se encontra, em relação ao

tirano de Samos, em clara vantagem, apesar das muitas confluências que

se podem pressentir entre os dois monarcas. O espaço dado, na história do

rei da Lídia, ao mundo privado é maior; e nele, Creso evidencia uma certa

compreensão humana, nomeadamente para com Adrasto, uma preocupa­

ção séria para com aquele que considera o seu herdeiro, Átis, uma atenção

a que não falta liberalidade, quando este se opõe a uma decisão que o pai

havia tomado.

18 Já foi notado (apud A. Corcella, Erodoto e Y analogia, Palermo, 1984, p. 157) que, em Heródoto, 'os sonhos constituem o sinal da crise iminente, o anúncio implícito ou explícito do fim, ou de um episódio significativo que tem o valor de um golpe da fortuna para uma personagem poderosa e o início da ascensão do seu suces­sor'. Os exemplos multiplicam-se: o sonho de Creso que anuncia a morte de Átis; os sonhos de Astíages que lhe prevêm a ascensão de Ciro ao poder; o de Ciro, no momento de atacar os Massagetas, que lhe fala da futura subida ao trono da Pérsia de Dário; o sonho em que Cambises toma conhecimento do acesso de Esmérdis ao poder de Susa; e, finalmente, os sonhos de Xerxes durante a preparação da campanha contra a Grécia.

70 MARIA DE FÁTIMA SILVA

Com uma última constatação desta surdez teimosa e insolente,

Heródoto lança Polícrates no desastre, que ocorre rápido, sem perdas de

tempo, fulminante: 'chegado à Magnesia, Polícrates teve uma morte terrí­

vel (SieçBápr] KCIKCDç), de modo algum digna dele ( O U T S èauxoõ

á^ícoç), nem dos seus projectos (ouxe èauxoõ (ppovr}u,áx<Bv, 125. 2).

Uma última referência à dignidade e magnificência deste tirano, um gran­

de entre os grandes, apenas consegue agora tornar mais agudas as circuns­

tâncias que envolveram a sua morte. Morte que, pelo horror de que se

rodeou, nem sequer pareceu digna de ser relatada por palavras (áE,ícoç

àTtTjy/]aioç, 125. 3). Já cadáver, Polícrates foi crucificado e, lá no alto,

cumpriu por completo a visão do sonho de que a filha tinha sido a emis­

sária: 'era lavado por Zeus quando chovia e oleado pelo sol, que lhe

extraía das carnes as últimas seivas' (125. 4).

Uma fórmula de remate cerra o grande círculo que é a história de

Polícrates: 'eis como terminou a enorme prosperidade de Polícrates, como

lhe tinha predito Amásis, faraó do Egipto' (125. 4). IToÀAal eôxvj%íai

sç XOVJXO éx6À.8ÓxrjCTav: a grandeza da vida e a qualidade da morte, na

sua eterna relação de incerteza, fizeram mais uma vítima predilecta entre

os poderosos deste mundo. Previra-o um egípcio, aqui mais douto do que

o grego Polícrates, senhor de Samos. Executara-o o destino de modo

metódico, eficiente, inabalável. Com ele colaborara Polícrates, que, na sua

vida, somara a uma permanente actividade de conquista, actos de cruelda­

de, sempre em nome de uma insaciável sede de poder, que é, por nature­

za, a vertigem fascinante do abismo.

Feita de história e de ficção, de tradição popular e de conceitos de

uma filosofia de vida que Heródoto partilhou com a Grécia do seu tempo

— em particular com a tragédia de Esquilo e de Sófocles —, a história de

Polícrates está muito além de ser o relato frio e rigoroso de factos concre­

tos. Acima de tudo ela é um símbolo das forças constantes que impulsio­

nam a existência humana, das grandes leis universais que ditam, invaria­

velmente, os diversos capítulos da biografia da humanidade.