a história da revolução francesa- thomas carlile

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    944.04 . C282hi

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  • I

    THOMAS CARLYLE (1795-1881)

    o T H O M A S CARLYLE

    HISTRIA DA REVOLUO FRANCESA

    TraduSo e prefcio de Antnio Ruai

    Volume

    S. EDIO

    '

    EDIES MELHORAMENTOS

    Si

  • Titulo do original Utgli: HH TORY O r T H E FRENCH REVOLUTION

    . .

    ' lodos os direitos reservados pela Comp. Melhoramentos de SSo Paulo, Indstrias de Papel

    Caixa Postal 8120, So Paulo

    VIII-1962

    "A arte de traduzir um dos fatres mais importantes e mais dignos da vida universal."

    Goethe 1

    Do mesmo autor, nas Edies Melhoramentos: OS HERIS (esgotado)

    ibliot ca Municipal Prof. Bento Munho da Eccha Netto

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    Noi pedidos telegrficos basta citar o cd. 0-05-089 n fl JT&*'

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    Livro II: A IDADE DO PAPEL

    t N D I C E

    Carlyle, o Profeta 7 A Histria da Revoluo francesa 1$

    Parte I: A B A S T I L H A

    l i w o / : MORTE DE LUS XV

    I Lus, o Bem-Amado 19 II Ideais Realizados i 22

    III Viaticum \ 30 IV Lus, o Inesquecido ....' 33

    II:

    I Astraea Redux 39 II Petio em Hierglifos 44

    III - Dvidas 46 IV Maurepas 49 V Astraea Redux sem Dinheiro 52

    VI Sacos de Vento 55 VII - Contrato Social 59

    VIII - Papel Impresso 61

    Livro III: O PARLAMENTO DE PARIS I Letras Protestadas 66

    II O Intendente Geral Calonne 70 III - Os Notveis 73 IV Os ditos de Lomnie 80 V Os Raios de Lomnie 84

    VI Os Enredos de Lomnie 88 VII Destruio Mtua 92

    VIII A Agonia de Lomnie 96 IX Enterro com Fogo de Artifcio 105

    Livro IV: ESTADOS GERAIS I Outra Vez os Notveis 109

    II - As Eleies 113 III A Temperatura Torna-se Eltrica 119 IV A Procisso 122

    Livro V: O TERCEIRO ESTADO

    I - Inrcia 138 II Mercrio De Brz , 145

    III Broglie, o Deus da Guerra 151

  • NDICE

    IV V

    VI VII

    VIII IX

    I II

    III IV V

    I II

    III IV V

    VI VII

    VIII IX X

    XI

    s Armas Dem-nos Armas ! Assalto e Vitria No uma Revolta Conquistando o Vosso Rei O Candeeiro

    Livro VI: CONSOLIDAO

    Fazei a Constituio A Assembleia Constituinte A Cambalhota Geral Em Bicha O Quarto Estado

    / Livro Vil: A INSURREIO DAS MULHERES

    156 160 166 173 177 180

    185 190 194

    '.. 202 204

    1'atrulhotismo Ricardo, meu Rei . . . Topes Negros As Mnades O Meirinho Maillard A Versalhes Em Versalhes A Rao Igual

    Lafayette As Grandes Entradas

    De Versalhes '\ .

    207 210 214 216 219 223-227 230 234 237 242

    Parte II: A CONSTITUIO

    Livro l: A FESTA DOS CHUOS

    I II

    III IV V

    VI VII

    VIII IX X

    XI XII

    I II

    III IV V

    VI

    Nas Tulherias Na Salle de Mange . . . . A Parada Jornalismo Clubismo Je le Jure Prodgios Solene Liga e Pacto Simblico O Gnero Humano Como na Idade de Ouro Rudo e fumo

    Livro 11: NANCI

    Bouill Soldos Atrasados e Aristocratas Bouill em Meu Soldos Atrasados era Nanei O Inspctor Malseigne

    Bouill em Nanei

    251 254 265 271 274 278 281 283 288 290 295 300

    307 309 314 317 321 324

    NDICE S

    Livro III: AS TULHERIAS

    I - Epimnides 332 II - O Vigilante 336

    III De Espada na Mo 341 IV Fugir ou no Fugir 346 V - O Dia dos Punhais 352

    VI - Mirabeau 358 VII Morte de Mirabeau 361

    Livro IV: VARENNES

    I A Pscoa em Saint-Cloud 369 II - A Pscoa em Paris 372

    III - O Conde Fersen 375 IV - Atitude 381 V - A Berlina Nova 384

    VI - O Antigo Drago Drouet 388 VII - A Noite das Esporas 391

    VIII O Regresso 398 IX - Tiroteio Rijo 400

    Livro V: O PRIMEIRO PARLAMENTO

    I A Grande Aceitao 405 II - O Livro da Lei 411

    III - Avinho 418 IV - Sem Acar 424 V Reis e Emigrados 427

    VI - Os Bandoleiros e Jals 435 VII A Constituio no Quer Marchar 438

    VIII - Os Jacobinos 442 IX - O Ministro Roland 445 X A Pique-Nationale-Ption 449

    XI O Representante Hereditrio 451 XII A Procisso dos Cales Negros 454

    Livro VI: A MARSELHESA

    I Executivo que no Executa 459 II Marchemos 465

    III Algumas Consolaes para o Gnero Humano 467 IV - Subterrneo 471 V - Ao Jantar 473

    VI Os Campanrios Meia-Noite 476 VII - Os Suos 483

    VIII A Constituio Feita era Pedaos 489

    Parte III: A GUILHOTINA Livro I: SETEMBRO

    I A Comuna Improvisada 497 II - Danton 507

    III Dumouriez 510

  • IV Setembro em Paris 513 V - Uma Trilogia 520

    VI - A Circular 526 VII Setembro na Argona 533

    VIII - Exeunt 541

    Livro II: REGICDIO

    I - A Deliberativa 548 II - O Executivo 555

    III - Descoroado 559 IV Quem Perde Paga 561 V Esticamento das Frmulas 563

    VI No Julgamento 568 VII - As Trs Votaes 574

    VIII - Place de la Rvolution 579

    Livro III: OS GIRONDINOS

    I - Causa e Efeito 585 II Culticos e Sans-culticos 590

    III Aumenta a Aspereza 595 IV A Ptria em Perigo 598 V O Sans-culotismo Provido 605

    VI - O Traidor 608 VII - Em Luta 612

    VIII - Em Abrao de Morte'* 614 IX - Extino 619

    Livro IV: O TERROR

    I - Carlota Corday 624 II - Em Guerra Civil 630

    III Retirada dos Onze 633 IV - Natureza 637 V A Espada Implacvel 641

    VI Levantados contra os Tiranos : 644 VII Maria Antonieta . . . 647

    VIII - Os Vinte e Dois 649

    Livro V: O TERROR NA ORDEM DO DIA

    I No Precipcio 653 II - Morte 657

    III - Destruio : 662 IV Curmanholii Completa 670 V Como uma Nuvem de Troves 675

    VI - Cumpre o teu Dever ! 678 VII - Quadro de Chamas , , 684

    Livra VI: TERMIDOR

    I - Os Deuses Tm Sede 688 II Danton, Nada de Fraqueza , 693

    III As Carroas 697

    I

    IV Mumbo-Jumbo V As Prises

    VI *- Para Acabar com o Terror Vil Derrubados

    . . 702

    . . 705 . 708

    .. 712

    Livro VII: VINDIMARIO

    I Decadncia , II La Cabarrus

    III Quiberon IV - O Leo no Est Morto V ltimas Agonias do Leo

    VI Arenques Assados VII Chuva de Metralha

    VIII - Finis Sumrio cronolgico Index

    718 721 725 728

    .. 7SI

    .. 736 739 744 747

    .. 761

    ,' i

  • NDICE DAS ILUSTRAES

    Luis XV - As Caadas de Luis XV - Luisa de Frana entre Detalhe do quarto de Lufs XV Coroa da sagrao de Lu(s XV

    Espada de Lufs XV Modelo de carruagem para o filho de Lus XV entre

    Maria Antonieta e seus filhos O grande gabinete de Maria Antonieta entre

    Lus XVI Caricatura dos emigrantes Charge sobre a situao das classes antes da Revoluo entre

    Procisso dos Estados Gerais Robespierre Consulta magia sobre a Revoluo As indumentrias da poca entre

    O Juramento do Jogo da Pla Lambesc penetra nas Tulherias Tomada da Bastilha Pilhagem das armas no Garde-Meuble . . entre

    O povo de Paris e a "Primeira Hora da Liberdade" Festa por ocasio da proclamao da Constituio A noite de 4 de agosto entre

    A Galeria dos Vitrais Caricatura de Maria Antonieta Lafayette entre Lufs XVI trabalhando no Campo de Marte Festa da Federao

    Fouquier-Tinville entre Alegoria sobre o regime de Robespierre Mirabeau A Guarda

    Nacional desarma os fidalgos entre Caricatura do rei Lus M. Mailly Priso de Lus XVI No

    tcia sobre a fuga do soberano entre A Constituio de 1791 Membros da Conveno em choque com

    os canhes de Henriot Gravura satrica sobre a Assembleia Nacional entre

    A Marselhesa Rouget de Lisle cantando o canto de guerra Tomada das Tulherias entre

    Monumento aos guardas suos A famlia real na priso do Templo entre

    Georgcs Jacques Danton Robespierre Lus Saint Just entre ltimo retrato de Lus XVI - Morte de Lus XVI entre Assassnio de Maiat ltima mensagem de Carlota Corday Ma

    ria Antonieta perante o tribunal Escrito de adeus de Maria Antonieta entre

    Partida dos voluntrios de 1792 Recrutamento durante a Revoluo - Batalha de Fleurus entre

    Stira sbrc a depurao dos Jacobinos Danton conduzido Guilhotina Priso de Robespierre Execuo dos Girondinos . . entre

    Bonaparte em 1796 Comissrio republicano A moda feminina entre

    224 e 225 240 e 241

    288 e 289

    304 e 05

    352 e 353

    368 e 39

    416 e 417

    432 e 433 480 e 481 496 e 497

    544 e 545

    560 e 561

    608 e 609 624 e 625

    CARLYLE, O PROFETA

    A caracterstica principal de Carlyle a de profeta. Por isso obscuro nos seus pensamentos e na dimenso das suas ideias. Talvez que no pudesse ter sido de outro modo. Pois que um profeta? Um homem que v muito longe, que se projeta, por assim dizer, fora do tempo. Ns, prisioneiros do Tempo, confinados num estreito espao da Dobadoura do Tempo, vemo-nos embaraados para compreender aquele que salta para fora da sua era e que, em face dos acontecimentos presentes, filhos do Passado, prev e diz quais so os seus frutos. E que nos podem antecipar os profetas, seno calamidades? Como so uma espcie de orculos, de mensageiros ou intrpretes dos juzos de Deus, pertencem classe dos msticos.

    A Inglaterra, que, apesar de ser uma nao religiosa sua moda, nunca foi mstica nem inteiramente cptica (mstica foi a Judeia, alfobre de profetas e a pobre Irlanda, alfobre de missionrios) reagiu, por isso, a princpio, contra o profeta Carlyle. Fracassaram os seus primeiros passos na literatura, no porque no revelasse gnio, mas porque, numa poca de utilitarismo e de progresso vertiginoso, no queriam as classes cultas ser atormentadas com vises ttricas de futuras tempestades. O seu primeiro livro Sartor Resartus sofreu crticas impiedosas e at chocarreiras. Na histria literria inglesa nunca se vira nada de mais original. Parecia obra dum louco. O assunto, a maneira de o tratar, o ttulo do livro e dos captulos, as imagens, as comparaes, a linguagem, o estilo, tudo aquilo cheirava a manicmio. O primeiro homem do mundo que compreendeu a obra foi Emerson, uma espcie de Carlyle americano. Foi a Amrica que revelou me ptria o seu homem como, por assim dizer, pouco depois, lhe revelou outro, Macaulay, cujos Ensaios foram primeiro publicados em volume do outro lado do Atlntico.

    O ingls tolerante, devido ao seu carter e s suas instituies polticas e apraz-se com as excentricidades, desde o momento em que estas no penetrem fundo no cerne da sua constituio fsica e moral. Mas sobretudo prtico, utilitarista. Se em pleno sculo dezenove, na progressiva poca vitoriana, Carlyle fizesse muitos discpulos, da tmpera e das ideias do mestre, a Inglaterra teria de se prevenir e tomar decerto providncias drsticas. Porque o seu edifcio social ficaria muito abalado. Seria coisa terrvel que no reinado de uma outra Fairie Queen, quando a Gr-Bretanha era a nica senhora dos mares, domi-

  • 8 CARLYLE. O PROFETA

    nava trs stimas partes da superfcie do globo, se afirmava a primeira nao do mundo em todos os ramos da atividade humana, com os seus teares, as suas estradas de ferro, a sua frota, a sua capacidade financeira, o seu prestgio universal, que o britnico estivesse volta e meia a ser assediado com terrores, com o Man, Tecei, Fars do antigo reino da Babilnia.

    Carlyle, cuja influncia moral foi grande, no fz propriamente discpulos, a no ser Ruskin. E para contrapor ao seu pessimismo, havia o otimismo de Macaulay.

    Macaulay, um talento slido, no genial, era o admirador entusiasta do progresso, da civilizao em geral e, em especial, da civilizao inglesa, fervoroso apstolo do evangelho democrtico, orador nato, advogado nato, que historiava, que citava, que remontava ao passado, indo at Grcia, a Roma, Judeia, Babilnia, para demonstrar que os fatos mais incongruentes, que os acontecimentos mais terrveis,' que os erros e os crimes antigos, que o caos de ontem, tudo isso havia sido a causa deste meio-dia esplendoroso e radiante do dia de hoje, desta colossal realizao em todos os setores, nas artes, nas cincias, nas indstrias, na poltica-, que era o sculo dezenove. O grande whig extasiava-se a contemplar uma civilizao que para le era a obra-prima do gnero humano.

    Carlyle, esse condenava tudo. O utilitarismo de Bentham e Stuart Mill, a democracia, o sufrgio universal, a liberdade, a libertao dos escravos, o catolicismo, o judasmo, o conformismo protestante, o Home Rule da Irlanda, porque para le, inimigo de frmulas, s havia uma realidade, o homem, o heri.

    O heri, no sentido puramente carlyliano, coisa difcil de encontrar. Carlyle, andou, porm, sempre cata dele. Tenta encontr-lo no Abbot Sanso, em Guilherme, o Conquistador, em Cromwell, em Napoleo (*). Fora a histria para encontrar o seu tipo de heri, e se topa com qualquer semelhana de heri veste-o sua moda, como fz com Frederico II, que pouco ter de heri na verdadeira acepo carlyliana.

    Mas poder-se- conceber que Carlyle, neste culto do heri, do homem de fora, na antecipao do super-homem de Nietzsche, fosse um espirito inimigo das mais generosas aspiraes humanas, que desejasse ver forcas < u : HI.I |>I toda a parte e os grandes calcando impiedosamente os pequenos? Um profeta, um mstico como Carlyle no pode desejar seno a dignificao do homem, do homem templo do Deus vivo que est dentro dele, como le diz. O que Carlyle queria era justia, que os mais fortes governassem os mais fracos com justia, no acreditando que I democracia, onde no h heris, pudesse realizar essa justia, com o laisset faire e o voto nas urnas. A sua poca foi a

    ( ) O livto "Os Hcrli", do mcimo aulor, foi publicado por Edies Melhoramentos.

    .

    CARLYLE, O PROFETA 9

    idade urea do capitalismo, desse capitalismo que considerava o operrio apenas como uma mercadoria, sujeita lei da oferta e da procura, lanando-o na revolta e na misria. Por isso Carlyle evocava com saudade os tempos medievais, em que o servo gozava da proteo do senhor, o qual, se no por esprito cristo, ao menos por interesse prprio, o no deixava morrer fome. A liberdade, o voto, o laissez faire, redundavam nisto: os ricos esmagando os pobres. Por isso, a aristocracia do dinheiro considerava-a le a mais vil, a mais baixa, a mais miservel de todas as aristocracias.

    Em plena orgia vitoriana de progresso, era bom que na Inglaterra surgisse, de vez em quando, a voz de Carlyle a pressagiar tempestades. sempre til ao homem, na embriaguez do seu triunfo, que algum lhe lembre as calamidades. Pode assim moderar-se e ficar mais sbrio. O otimismo, quando passa de certos limites, uma intoxicao perigosa, que nos torna cegos, imprevidentes. Far ento bem ler as Lamentaes de Jeremias.

    E foi assim que, de certa poca em diante, os ingleses comearam a escutar Carlyle. Todavia poucos o liam e ainda menos o entendiam. Destacavam-se porm da sua obra um certo nmero de preceitos morais, para uso geral. A tradio puritana estava sendo fortemente minada pelo cepticismo, e Carlyle, com a intransigncia e obstinao do pres-biterianisrho escocs, vinha avigor-la. E por isso, passou a ser a maior influncia moral do seu tempo.

    Carlyle, no sentido geral da sua vida, foi um apstolo. Veio ao mundo para dizer o que pensava e a isso sacrificou tudo: repouso, interesses materiais, conforto e at a boa da esposa. O autntico heri como homem de letras le. No procurou o meio mais fcil e mais rpido de obter fama. Sujeitou-se a viver bastante tempo nas ridas e geladas montanhas da Esccia, pobre, isolado, para no transigir com o mundo e com os gostos do mundo. E venceu afinal, no em proventos fartos, mas em prestgio e influncias.

    So terrveis as crises do Eu em certos indivduos. Um homem nasce neste mundo, de temperamento concentrado e um tanto melanclico, de inteligncia penetrante; embalado pelas crenas caras de seus maiores, aprende as oraes dos lbios de sua me, frequenta, em companhia dos seus, qualquer culto religioso, e com isso vive e entretm o seu esprito infantil at chamada idade da razo. Nessa idade, sob certas influncias e certas leituras, entra de analisar. E com a anlise, l se vai tudo embora. Essas crenas to queridas e to teis, espcie de pra-raios que nos protegia das tempestades de conscincia, a broca dl anlise ruiu-as. Haver um perodo de interregno em que o vio da mocidade, a embriaguez da vida, as perspectivas de futuro nos permitam certa tranquilidade, certa euforia transitria e agourenta

  • 10 CARLYLE, O PROFETA

    como um estupefaciente. Um dia, porm, chega em que, por qualquer motivo, devido a qualquer afeco ou desgraa, comea outra analise, essa, porm, tremenda: a auto-anlise. E depois a interrogao, quando o homem quer conhecer o universo e a posio que ocupa nele.

    Ento, se o homem no tem o esprito muito povoado de imagens novas ou se as velhas se tinham amarrado a algum ancoradouro muito profundo do seu inconsciente, pode voltar ao antigo, f que abandonou. Mas se, por amplido de esprito, ou por qualquer* outra circunstncia, repudia formalmente todos os cultos existentes, tem de arranjar, se possuir foras morais ou intelectuais para isso, um sistema religioso ou filosfico, ou talvez um sistema em que a filosofia e a religio, que no devem ser inimigas, se dem as mos. Isto, porm, s para raros. Construir, de vrios materiais, uma casa espiritual onde a gente viva, fora das crenas oficiais, isolado das fs alheias, tarefa portentosa, s prpria de grandes espritos. Mas continuar na negao a runa, a morte, a loucura ou o suicdio.

    Foi por esta crise terrvel que passou Carlyle, e foi com a ajuda de Goethe que a venceu. O escritor narra esta sua depresso no seu estilo bizarro do Sartor Resartus. O sistema que Carlyle construiu para uso prprio, que lhe aquietou as agonias da sua ansiedade, nunca Carlyle o definiu. Tais coisas so realmente difceis de definir. O que curioso que, divorciado da teologia calvinista, ficou sendo um calvinista sem teologia, isto , um homem com todos os prejuzos dos sectrios dessa f, tormentos e escrpulos de conscincia, averso ao catolicismo, intolerncia, repugnncia pelos judeus, apesar de parecer mais um profeta do Antigo Testamento do que um adepto cristo.

    Mas foi a obra de Goethe que o salvou, da mesma forma que Henry James, o pai do filsofo americano William James, se salvou em crise idntica lendo as obras de Swedenborg. Em temperamento literrio e individual, Goethe e Carlyle pouco tinham de comum. Mas Goethe volvera da negao para uma concepo mais alta do universo. Mos-trara-lhe como se podem rejeitar os dogmas gastos sem cair no materialismo. Custa a compreender como dois espritos to diferentes se compreenderam e amaram, e o mais novo se deixou influenciar to profundamente pelo mais velho, a quem chamava o seu benfeitor. O poeta alemo foi a primeira figura literria do seu tempo. Foi grande o seu poder nas letras modernas. Mas Carlyle era um puritano torturado e Goethe um sereno pago. Carlyle foi um inconformista poltico, avesso aos grandes e inadaptvel a quaisquer ideias do seu tempo, e Goethe foi estadista e corteso. Goethe era de temperamento aventuroso, at para o amor, e Carlyle era rgido observante.

    O que se no pode negar que a amizade destes dois homens foi dignificante para ambos. Nunca se viram, pois Goethe morreu sem Carlyle possuir meios para o ir visitar a Weimar. Mas a nobre reve-

    CARLYLE, O PROFETA 11

    rncia, a expressiva admirao, a manifesta gratido do mais novo so retribudas pelo carinho, pela solicitude, pela amvel condescendncia do mais velho. Goethe, j no fim, era astro de primeira grandeza. Carlyle, moo, apenas uma esperana que prometia. O poeta alemo era um corao cheio de simpatia, de humanidade, de afeio. Entre Craigenputtock e Weimar trocaram-se presentes, de retratos, de livros, de medalhas, de desenhos de residncias, e at Mrs. Carlyle, num gesto de feminina gracilidade, mandou um anel dos seus juvenis cabelos, solicitando troca. Mas o filsofo de Weimar foi ao espelho, apalpou a cabea e viu apenas alguns fios de prata, que o desolaram e o fizeram desistir do intercmbio. Sempre gal, o grande Goethe.

    Dentre as obras de Carlyle, a melhor, a obra-prima , por consenso quase geral, a "Histria da Revoluo Francesa". O seu estilo pico, como convm a um assunto to tumultuoso e catastrfico. As suas narraes so relampejantes. As suas figuras so recortadas em traos rpidos, fulgurantes. A sua filosofia poltica de um grande moralista. O livro , por assim dizer, a refutao da doutrina do super-homem, porque no h super-homens na Revoluo Francesa. Mas creio que i a nica obra por onde verdadeiramente se pode compreender o acontecimento dos acontecimentos. Certamente que h nela opinies muito discutveis e at alguns erros. Mas seria bom, para os povos e para cies, que os estadistas e os polticos de todo o mundo a lessem.

  • A HISTRIA DA REVOLUO FRANCESA

    Os grandes acontecimentos histricos no se devem inscrever apenas como um mero registro de fatos e datas, a frio. J l vai o tempo em que se elogiava o historiador imparcial, isto , aquele que narrava sem simpatia os acontecimentos. Para se penetrar na essncia duma obra literria, necessrio que o crtico se ponha em comunho espiritual com o autor, sem se embrenhar numa anlise de circunstncia, tal como um examinador de portugus ou de outra qualquer lngua incapaz de escrever um trecho com alma, com brilho, com estilo, mas que derrota o aluno, s vezes mais vibrante que o mestre, com a classificao abstrusa de qualquer complemento oracional. Nas obras histricas, nos dramas e nas tragdias dos povos, mister colocar-se o historiador, no no ponto de vista do seu pensamento poltico, da sua educao, da sua tica moral e religiosa, mas no ponto de vista dos comparsas da ao, atendendo s causas que os impulsionaram, ao seu temperamento individual e coletivo, s ideias que os moveram, s circunstncias* em que se acharam.

    isto o que faz Carlyle na sua Histria da Revoluo Francesa, obra que, ao parecer de muita gente culta, a mais compreensiva do grande cataclismo que assolou e subverteu a Frana do sculo XVIII e a Europa. Carlyle no v essa grande transformao propriamente como filsofo, para quem as ideias so tudo e o resto pouco ou nada. O historiador escocs atm-se aos fatos. Res non verba.

    Realmente neste trabalho, que podemos verdadeiramente classificar de pico, ns vemos como o antigo regime se desmorona. Depois da preponderncia na Europa da corte de Lus XIV, ns vemos a Frana conservar essa preponderncia, j no pela realeza, degenerada, decrpita, gangrenada, sob governos de nobres e cardeais dissolutos, de concubinas, mas pelo pensamento francs, pela sua literatura e pelo seu gnio. D-se o seguinte, um governo que j no governa nada, nem o pensamento francs, nem a economia, nem as finanas, nem a nobreza, nem o clero, nem o povo. A Frana governada pela sua literatura e pela sua filosofia. E no s a Frana como a Europa. O antigo desacreditou-se tanto, perderam tanto sentido as suas frmulas, que toda a gente em Frana procura o convvio com os filsofos. Nos sales de Paris, imperam os novos princpios. Tanta fora mostram que at o fidalgo exator e corruto, o Abb licencioso, o Duque anglo-manaco, o prprio irmo do rei, muita e muita desta gente, bons e

  • 14 A HISTRIA DA REVOLUO FRANCESA

    maus, uns por esnobismo outros por averso a coisas velhas e gastas, se inclinam para o lado filosfico. at prova, no de inferioridade moral, de que os homens se importam pouco, mas de inferioridade intelectual e at falta de tom, no conviver com reformadores. Voltaire teve grandes amigos nos privilegiados. Rousseau eminentes admiradores. Isto , as ovelhas admiravam os lobos e prepararam-se para a devora. Inconscincia das inconscincias. Fora da Frana, soberanos absolutos, como Frederico II da Prssia, Catarina da Rssia, monarcas que nos seus estados absorviam todo o poder e que nunca podiam pensar em reparti-lo, acarinhavam os filsofos franceses.

    Quer dizer: era um mundo a gritar pela morte, eram os prprios condenados a pedir a forca ou o veneno, era uma dissoluo geral de instituies e crenas.

    \_ No meio deste desmanchar de feira, quem tinha a Frana, no digo para deter o alude que isso era impossvel, mas para efetuar dentro do poder uma revoluo pacfica que, prestigiando a fonte da autoridade, desse satisfao a algumas das mais instantes reivindicaes pblicas? Que pusesse termo a algumas das mais revoltantes iniquidades e desigualdades, que repartisse equitativamente os impostos, que descongestionasse a propriedade, que aliviasse a vida rural, que abolisse as cartas de prego, e que instalasse um Conselho de Estado composto dos melhores homens da Frana que tirasse ao poder executivo a pecha do absoluto? Lus XVI, homem fraco, passivo, medocre, que no possua o mpeto da ao, que esperava os acontecimentos espera de que o guiassem em vez de le os dominar e guiar. Uma- aristocracia frvola, parasitria, que em vez de suportar a coroa, era por ela suportada e alimentada. Um clero, sem independncia, que em lugar de, como outrora, ser elemento moral na sociedade, era ulico servil da realeza, condescendendo com todas as torpezas, para que o deixassem digerir as cngruas e benesses.

    Do outro lado, uma nao descontente, tendo por rgos do seu descontentamento um filosofismo enftico e declamador, que apregoava as mais arrepiantes incongruncias, que se estava certo na substncia de sua crtica, nunca o estava nos seus meios de ao e nos remdios que propunha. Uma burguesia, justamente vida de conquistas, que se expressava pela classe que geralmente serve para embrulhar as questes politicas, a classe dos advogados. Onde havia decerto inteligncias brilhantes, talentos de foro, mas onde no havia homens de realidade. E todos com um evangelho na cabea: o de Jean Jacques Rousseau.

    Em toda esta galeria de figuras, aparecem-nos dois homens, apenas dois: Mirabeau e Danton. E ambos corrutos. Homens que verdadeiramente se no podem julgar pelas frmulas usuais. Para os compreendermos, temos de pr de parte muita coisa que aprendemos, e v-los a essa luz intensa do claro dos incndios revolucionrios. Mas homens:

    A HISTRIA DA REVOLUO FRANCESA 15

    Mn d IH leva a Constituio pela mo, como uma criana conduz Um cego, e quer salvar a monarquia. Danton salva a Frana das arre-lliri idas de Brunswick.

    Ahl aparece por fim, um terceiro homem: o jovem general corso, i|iii iorta o n grdio da Revoluo e que, obreiro do Destino, prepara | Frana para ir cair no regime das cartas.

    M.is fora destes, o que h? No h ningum, ou por outra, h muita nte: o povo. Pode dizer-se que o nico heri da Revoluo Francesa o povo n cs. le que tem a intuio genial de tudo, que derruba a Bas-I, que institui o Terror, que vence a coligao estrangeira, que ruba Lafayette, que derruba Dumouriez, que o heri de Valmy, |ciiiappes, que frustra as conspiraes da corte no 5 de outubro,

    despeito dos constitucionais, que vence a monarquia no Dez de "MO, a despeito da Legislativa, que abate os girondinos, a despeito Conveno, que domina a Conveno a despeito dos convencionais.

    Na Histria da Revoluo Francesa de Carlyle h, por assim dizer, nico heri: o Povo Francs.

    ANTNIO RUAS

  • PARTE I

    A BASTILHA

    f

  • t

    Livro I

    MORTE DE LUS XV

    Capitulo 1

    LUS, O BEM-AMADO

    0 Presidente Hnault, observando, a propsito de eptetos reais ilustres, como difcil muitas vezes descortinar a razo por que foram conferidos e mesmo a poca em que tiveram origem, aproveita a oportunidade de rematar a sua linguagem simples e oficial com uma ligeira reflexo filosfica.

    "O epteto de Bien-aim, diz le, que Lus XV usufrui, no dar azo a que a posteridade se detenha na mesma dvida. No ano de 1744, enquanto este prncipe se afadigava de um lado para o outro do seu reino, depois de suspender as suas conquistas da Flandres para correr em socorro da Alscia, foi acometido em Metz por doena grave, que ameaava cortar-lhe a existncia. Ao saber disto, Paris, toda alarmada, parecia uma cidade tomada de assalto: as igrejas ressoavam com gemidos e splicas; as oraes do clero e do povo eram constantemente entrecortadas de soluos, Foi por motivo duma dedicao to cara e to terna que Lus XV foi denominado Bien-aim ttulo este mais valioso que todos aqueles que este grande prncipe ganhou1.

    Assim est escrito em memorial imperecvel daquele ano de 1744. Trinta anos mais vieram e decorreram. E agora "este grande Prncipe" est outra vez doente. Mas em que diferentes circunstncias! Nas igrejas no ressoam gemidos e splicas. Paris est estoicamente calma. Os soluos no entrecortam as oraes, porque ningum reza; a no ser, claro, os sacerdotes em suas litanias maquinais, lidas ou cantadas a tanto por hora e insuscetveis, por isso mesmo, de um tal entrecorte. O pastor do rebanho francs fora conduzido do Petit Trianon, em Mtado grave, para a sua cama do Chteau de Versailles. O rebanho nbe-0 e no se rala. Quando muito, pode acontecer que na incomen-lUrvel mar da verborreia francesa (que nunca cessa na sua intumes-

    1 AIMK- Cliionologiquc de 1'Hiaioire de Francc (Pari, 1775), p. 701.

  • 20 MORTE DE LUS XV

    cncia diria, declinando apenas nas curtas horas da noite) o caso da doena rgia surja, de tempos a tempos, como mera notcia banal. Sem dvida, que se fazem apostas quanto ao desenlace; e at h gente que "se pronuncia ostensivamente nas ruas"1. Mas quanto ao resto, quer sobre os prados verdejantes, quer sobre os campanrios das cidades, continua a radiar o sol de maio aps o crepsculo da noite; e os homens mexem-se no exerccio das suas teis ou inteis ocupaes, como se Lus no estivesse em perigo.

    Madame Dubarry deveria com efeito rezar, se tivesse talento para isso; e o Duque d'Aiguillon, Maupeou e o parlamento Maupeou. Todos estes magnatas, alteados nas suas culminncias, com a Frana algemada a seus ps, bem sabem qual o pedestal da sua grandeza. Toma tento, d'Aiguillon; portaste-te finriamente, desde o moinho de S. Cast at Quiberon e o desembarque ingls; "se te no cobriste de glria, atas-caste-te pelo menos de farinha!" A Fortuna foi sempre inconstante e no h co que no tenha o seu dia.

    Bastante desolado vegetava o Duque d'Aiguillon, alguns anos antes; atascado, como dissemos, de farinha. E at de coisa pior. Porque Char-lotais, o parlamentar breto, o acusara no somente de poltronice e tirania, mas at de concusso; acusaes estas a que era mais difcil responder que abafar sob a influncia dos bastidores reais, pois no possvel agrilhoar o pensamento, nem emudecer as lnguas humanas. Foi assim, num eclipse desgraado, que este sobrinho do Grande Ri-chelieu teve de se ofuscar: desprezado pelo mundo, e esquecido ou mesmo desdenhado pelo resoluto Choiseul, homem rude e orgulhoso. E no teve remdio seno conservar-se na Gasconha, a reparar os seus castelos2, para talvez vir a acabar ingloriamente, matando caai Porm, no ano de 1770, voltando da Crsega um certo militar jovem chamado Dumouriez, teve ocasio de observar, com grande desgosto seu, o velho Rei de Frana, de chapu na mo, ao lado do seu magnfico faetonte, prestando homenagem Dubarry, s vistas do seu exrcito8.

    Muita concluso comportava um tal acontecimento! E uma delas, por exemplo, era que talvez d'Aiguillon pudesse adiar a reparao dos seus castelos para, em vez disso, reparar a sua fortuna. Porque, afinal, o decidido Choiseul nada mais antevia na Dubarry que uma mundana de extraordinrios atavios; e seguia o seu caminho, como se ela no existisse. Mas era intolervel! A nica causa dos seus amuos, lgrimas, enfados e suspiros no terminaria, enquanto La France (era assim que ela denominava o seu pajem real) se no resolvesse finalmente a enfrentar Choiseul; e com aquela "tremura do queixo", natural em tais circunstancias4, Lus balbuciou a demisso, despedindo o seu ltimo

    I Memolres de M. !iiru i (|nc todo o reinado da Dubarry se precipita, com tumulto, no pao infinito; e vs, como sucede s aparies subterrneas, desapa-^fteli totalmente, deixando apenas um cheiro de enxofre!

    ^ H l i c todos os que deles dependem talvez orem a Belzebu ou a ucr esprito maligno que os queira ouvir. Mas do resto da Frana

    lliUllir, Hlslolrr de Pari (Paris, 1824), VII. 328.

  • 22 MORTE DE LUS XV

    no se evola, como dissemos, nenhuma orao; a no ser de carter cominatrio, "expressa abertamente nas ruas". Em castelo algum ou palcio, perscrutado pelo Filosofismo esclarecido, se reza; pois nem as vitrias de ROMbach, nem as finanas de Terray, nem mesmo as "sessenta mil Letres-de-Cachet" (que a quanto monta o lote de Maupeou) convidam a isso. Hnault! Onde pairam as tais oraes? De uma Frana torturada, merc de artes diablicas, por pragas vrias; e que jaz agora, dorida e envergonhada, com o gorgomilo quase sufocado pelos ps duma barreg, que oraes podero sair? Ser caso para que esses esquelticos maltrapilhos, esse enxame de esfomeados vagabundos, rodopiando em todos os caminhos e encruzilhadas da vida francesa, dirijam preces ao cu? E tambm os milhes de analfabetos que, na oficina e no campo, se extenuam na roda do trabalho, como burros encabrestados, tanto mais pacficos quanto mais vendados? Ou aqueles que, no Hospital de la Bictre, se amontoam "a oito por cama" aguardando a final libertao? De esprito obtuso e corao empedernido, para eles o grande soberano quase apenas conhecido como o grande aambarcador do po. Se ouvem falar da sua doena, respondem secamente: Tant pis pour lui, ou interrogam: Morrer?

    Sim, morrer? esta agora em toda a Frana a interrogao magna e a grande esperana; e a^nica razo por que a doena do rei ainda, de certo modo, interessa o pblico.

    Capitulo II

    IDEAIS REALIZADOS .

    Aqui temos ns uma Frana mudada; e um Lus, tambm mudado. E ainda mais do que at aqui se viu! bisbilhotice da Histria pa-tenteiam-se agora, na cmara da agonia de Lus, muitas coisas que para os cortesos ali presentes eram invisveis. Porque bem certo o aforismo que diz, "cada objeto comporta um nmero infinito de significaes; os olhos vem nele apenas o que podem ver". Para Newton e para o seu co Diamond, que dois universos to diferentesl Muito provavelmente, a representao ptica na retina de ambos seria a mesmal Que o leitor aqui,, ao p do leito de agonia de Lus, forceje ver tambm com os olhos do esprito.

    Tempos houve cm que os homens podiam (por assim dizer) de um simples mortal como eles, alimentando-o e decorando-o com os necessrios adornos at ao limite prprio, fazer um Rei, quase da mesma forma que as abelhas; e o que ainda mais, obedecendo-lhe lealmente depois de feito. O homem assim alimentado e decorado, doravante

    IDEAIS REALIZADOS 28

    intitulado real, governa verdadeiramente de fato; e diz-se e pensa-se, por exemplo, que est prosseguindo nas suas conquistas da Flandres, quando o certo que se deixa arrastar para l como bagagem; e no bagagem ligeira, pois cobre lguas de caminho. Porque com le viaja a sua destacada Chateauroux, com as suas chapeleiras e boies de tintura a seu lado; e em cada acantonamento, constri-se para comodidade mtua, um corredor de madeira entre ambos os aposentos. No leva somente a sua Maison-Bouche e o interminvel Valelaille, mas a sua companhia de comediantes com os armrios de papelo, rgos, rabecas, tambores, guarda-roupas, despensas (em discusso e disputa permanente). Tudo isto em carroas, carros e seges em segunda mo insuficientes para conquistar a Flandres, mas suficientes para esgotar a pacincia do mundo. com squito to guizalhado e espaventoso que Lus se movimenta para a consecuo das suas conquistas da Flandres. Uma maravilha digna de ser vista e admirada. Mas era e tinha sido assim: a algum caturra poderia parecer esquisito; mas, nem por isso, deixava, mesmo para le, de ser inevitvel, ho ilgico.

    Porque o nosso um mundo muito malevel; e o homem a mais dctil das criaturas. Um mundo que no se apreende, que no se aprofunda! Qualquer coisa que no somos ns, mas com a qual podemos trabalhar, no meio da qual vivemos e a qual modelamos miraculosa-mente^ no nosso miraculoso ser, e a que chamamos mundo. Mas se as prprias rochas e rios (como a metafsica ensina) so, em rigorosa linguagem, criados pelos nossos sentidos exteriores, quanto mais o no sero, pelos nossos sentidos interiores, criados todos os fenmenos de ordem espiritual: Dignidades, Autoridades, Santidades, Satanismos? Acrescendo, alm disso, que os sentidos interiores no tm um carter permanente como os exteriores, mas esto continuamente progredindo e mudando! No extrai o negro de frica da madeira e de roupas usadas (exportadas, por exemplo, por Monmouth Street) o que precisa; e no destes materiais, habilidosamente conjugados, que fabrica para si prprio um dolo (Idol, ou coisa que se v)e lhe chama Mumbo-Jumbo, ao qual da em diante ora, de olhos revirados e com temor, e no sem esperana? O europeu branco zomba; mas devia antes refletir e ver se le no seu pas no capaz de fazer a mesma coisa, um pouco tnaU civilizadamente.

    Era assim, como ns dissemos, nessas conquistas da Flandres, h (Cinta anos; mas o caso agora outro. Porque, no presente, h mais i|in in esteja doente, alm do pobre Lus; no s o rei francs, mas lambem a realeza que, depois de muitos dares e pesares, est dando

    i,i. O mundo acha-se muito transformado, e tanto, que o que ii vigoroso mostra-se decrpito e o que no existia comea a Tl Conduzidos atravs do Atlntico, aos ouvidos quase cerrados i ., Rei pela Graa de Deus, que sons vibram? Sons de um agouro

  • 21 MORTE DE LUS XV

    um pouco confuso, mas novos para o sculo? O porto de Boston regurgita de ch indesejvel; vai reunir-se o Congresso da Pennsylvania. E no tarda muito que em Bunker Hill, a DEMOCRACIA anuncie, pela boca mortfera dos canhes e sob a gide da bandeira estrelada, que j nasceu e que, como um redemoinho de vento, se no demorar a envolver o mundo todol

    Morrem os soberanos e morrem as soberanias; tudo morre, durando apenas um pedao de tempo, um fantasma de tempo, que no obstante se considera real! Os reis merovngios, rodando lentamente nos seus carros de bois atravs das ruas de Paris, de longa cabeleira ao vento, rodavam todos lentamente - para a eternidade. Carlos Magno dorme em Salzburgo, com o seu cetro ao lado; apenas a lenda espera que le desperte. Carlos Martel e o Pepino das pernas tortas! Onde se fixa agora o vosso olhar ameaador, onde troa a vossa voz de comando? Rolo e os seus lanzudos normandos j no cobrem o Sena de navios; mas navegaram para uma viagem mais longa. O cabelo do Cabea de Estopa (Tte d'toupes) j no precisa de ser penteado; o Corta Ferro (TaiUefer) j no pode cortar uma teia de aranha; a astuta Fredegonda e a maliciosa Brunilda deram ao diabo a sua vida briguenta e jazem calmas e frias dos seus delrios mundanos. E nem daquela negra torre de Nesle desce agora pela calada da noite o infortunado amante, at s guas do Sena, para se submergir na noite. Porque a dama de Nesle j se no preocupa com as aventuras galantes deste orbe nem se impacienta com o escndalo mundano; a prpria dama de Nesle se submergiu na noite. Todos se foram, submersos com o rudo que fizeram; e todas as sucessivas geraes passam e repassam sobre eles, sem que as suas carcaas nada ouam.

    E apesar de tudo, no se construiu alguma coisa? Detende-vos (para no irdes mais longe) nestes fortes edifcios de pedra e em tudo o que encerram! A cidade lamacenta dos Fronteirios (Lutetia Parisiorum ou Barisiorum) pavimentou-se, espraiou-se por todas as ilhas do Sena, avassalou largamente as suas margens e ficou sendo a cidade de Paris, empavesando-se algumas vezes com o ttulo de "Atenas da Europa" e at de "Capital do Universo". H torres elevadas de pedra, j negras de um milnio decorrido. H catedrais e uma crena (ou restos de uma crena) dentro delas; palcios, um Estado e-uma lei. V-se o vapor fumegante, expirao incessante de uma cidade viva. Milhares de martelos ferem as bigornas; tambm existe um trabalho mais miraculoso ainda, que labora silente, no com a mo mas com o pensamento. Como puderam os infatigveis e habilidosos operrios de todos os misteres, com a sua arguta cabea e precisa mo direita, pacificar os quatro elementos, de modo a servirem-se deles? Jugulando os ventos ao impulso dos seus navios e fazendo das prprias estrelas o seu alma-

    IDEAIS REALIZADOS 2S

    naque nutico; escrevendo e coligindo uma Bibliothque du Roi, entre cujos livros se encontra o Livro Hebreu! Maravilhosa raa humana; construiu tudo isto e quanto engenho no foi preciso! No chameis, pois, ao passado, apesar de toda a sua tumultuaria perversidade, tempo perdido.

    Observai, pois, que de todas as aquisies terrestres do homem, inquestionavelmente as mais nobres so os seus smbolos: divinos ou que o paream ser. sob a influncia deles que marcha e luta, seguro da vitria, no campo de batalha da vida. A isto que poderemos chamar os seus ideais realizados. Destes ideais, omitindo outros, sobrelevam estes dois: a sua Igreja, ou guia espiritual; e o seu Rei, ou guia temporal. A Igreja: que significao esta palavra no comporta! Mais rica que Golconda e todos os tesouros do mundo! No corao das mais remotas montanhas, eleva-se a pequena igreja; com os mortos a dormir todos ao redor dela, debaixo das suas lpides brancas, " espera de uma feliz ressurreio". Muito duro serias tu, Leitor, se nunca, em qualquer ocasio ( hora fatdica da meia-noite, por exemplo, quando a pequena igreja parece suspensa como um espectro no espao e o nosso ser est como que afundado na escurido) ela te no povoasse o pensamento de coisas intraduzveis, que fossem at ao mago da tua alma. Forte foi sempre aquele que possuiu uma igreja, como ns a entendemos: onservara-se ereto, posto estar no centro das imensidades, na confluncia das eternidades, varonil contudo perante Deus e perante os homens; o vago e tempestuoso universo tornava-se-lhe cidade firme e pousada segura. Tal a virtude da crena, contida nesta palavra, bem sentida: Creio. Bem fizeram os homens em enaltecer o seu Credo, levantando-lhe templos majestosos, reverenciando-lhe as hierarquias e sustentando-o com o dzimo dos seus rendimentos. que valia bem a pena viver e morrer por le.

    E nem mal avisados andaram os guerreiros brbaros que primeiro rrgueram o seu mais forte sobre um trono de escudos e que de armadura tininte e corao fogoso, disseram solenemente: sejas tu o nosso reconhecido mais forte! Com tal reconhecido mais forte (bem denominado rei, Knning, ou o homem que capaz) sobrevinha agora ritplndido um smbolo para eles identificado com os destinos do indo! Um smbolo de governo verdadeiro, a que devia corresponder Obedincia leal: a necessidade prima do homem, se le o soubesse com-reender. Um smbolo a que poderamos chamar sagrado; pois no Rd, na nossa reverncia pelo que nos superior, uma sagrao indes-flillvel? Era por isso, e no deixava de ser justo, que ao reconhecido Mil forte se lhe concedia direito divino. E certamente que o devia ver no mais forte, quer reconhecido ou no se considerarmos

    m o fz forte. Foi assim entre confuses e tremendas anomalias. Ulo de realeza, com a lealdade a circund-la, nasceu; e cresceu

  • 26 MORTE DE LUS XV

    misteriosamente, subjugando e assimilando (porque possua um forte principio de vida) at dominar o mundo e sobrelevar os fatos da nossa existncia moderna. E de tal sorte que Lus XIV, por exemplo, pde responder ao seu queixoso magistrado com o seu "VEtat c'est moi" (o Estado sou eu), sem que este, cabisbaixo, lhe ousasse retorquir. Para este conceito de realeza, haviam concorrido vrios acidentes e circunstancias: os Luses onze, com as imagens de chumbo da Virgem na fita do chapu e as rodas de tortura e as masmorras cnicas debaixo dos ps; os Henriques quarto, com a profecia do milnio social, em que "a cada campons no faltaria uma ave na panela" e a prolificidade desta mui prolfica existncia. Maravilhoso! A propsito disto, no poderemos ns dizer que na enorme massa do mal, quando le avana e cresce, no h sempre uma certa poro de bem, trabalhando subjugada trabalhando para a libertao e para o triunfo?

    Como tais ideais se realizam e crescem maravilhosamente, de entre o caos flutuante e incongruente donde brotam, o que a Histria, se nos quiser ensinar alguma coisa, tem de nos dizer. Como eles nascem e, depois de longo e tormentoso crescimento, florescem exuberantemente, para enfim, rapidamente (porque a florao breve) comearem a declinar, encarquilhando-se e caindo aos bocados, at desaparecerem ruidosa ou silentemente. A florescncia dura to pouco! como a de algumas flores do cacto Secular que, depois de um sculo de espera, se abrem apenas por horas. E assim que, desde o dia em que o bravio Clvis, no Campo de Marte, vista do seu exrcito, teve de, em represlia, rachar a cabea do brbaro franco com um golpe rpido de machado, dizendo-lhe ferozmente: "Foi assim que tu rachaste o vaso (o de S. Remi e o meu) em Soissons", at Lus o Grande, com o seu Utat c'est moi contamos uns mil e duzentos anos. E agora o Lus imediato est agonizando e com le tanta coisa agonizai E tambm se o catolicismo, com as suas ligaes e lutas contra o feudalismo (mas no contra a natureza e seus benefcios) nos deu a ns ingleses um Shakespeare e uma era de Shakespeare, produzindo assim uma florao do catolicismo no foi sem que -o prprio catolicismo, tanto quanto a lei o podia abolir, tivesse sido abolido aqui.

    Mas que devemos dizer dessas idades decadentes cm que no nasce nem floresce nenhum ideal? Quando a .f e a lealdade tm desaparecido e delas resta apenas um falso eco; quando toda a solenidade se transmuda em v ostentao e. a crena das pessoas na autoridade se tem tornado uma de duas coisas: imbecilidade ou maquiavelismo? Ah! A Histria no pode dar guarida a essas idades; a sua narrao tem de ser cada vez mais reduzida, de modo a eliminar-se finalmente dos anais da humanidade: riscada como espria o que na verdade ela . Desgraadas idades, nas quais, entre todas, uma infelicidade nascer-se. Nascer-se para aprender unicamente por tradio e exemplo, que o

    IDEAIS REALIZADOS 27

    universo de Deus de Belial e uma mentira; e que o "supremo charlato" o hierarca dos homens! Nesta f dessorante, no vemos ns geraes inteiras (duas e s vezes trs sucessivamente) viver aquilo a que elas chamam vida e desaparecer sem quaisquer probabilidades de reaparecimento?

    Foi em idade to decadente, ou numa idade que vertiginosamente seguia tal caminho, que o nosso Lus nasceu. Temos tambm de reconhecer que se a monarquia francesa no pudesse, no decurso da sua evoluo, ter muitos anos de vida, era Lus, de entre todos os homens, o que mais depressa podia acelerar a sua queda. A florao da monarquia francesa, semelhana do cacto, fz, portanto, um progresso considervel. Naqueles dias de Metz, ainda conservava todas as suas ptalas, apesar de desbotadas pela regncia do Duque de Orlans e pelo governo de ministros e cardeais dissolutos; mas agora, em 1774, vemo-la despida, com a virtude quase inteiramente extinta.

    Em desastrosa contingncia se encontravam estes "ideais realizados" cada um de per si e todos! A Igreja, que na sua idade de ouro, setecentos anos antes, obrigava um imperador a sofrer uma penitncia de trs dias, de ps descalos sobre a neve, h sculos que se v continuamente definhando; forada mesmo a esquecer velhos preconceitos e inimizades e a juntar os seus interesses aos da realeza: nesta nova aparncia de fora que jaz o embrio da sua decrepitude. E os dois poderes, dai em diante unidos, tero tambm de cair juntos. A Sorbona ainda se congrega, no seu velho palcio; mas apenas mastiga o velho calo acadmico e j no guia conscincia. Para a Sorbona j passou o tempo. Agora, a Enciclopdia, a Filosofia, e uma enorme profuso de escritores, romancistas, dramaturgos e panfletrios que se arvoram em guias espirituais do mundo. O governo temporal do mundo tambm se perdeu, ou resvalou para as mesmas mltiplas mos. Quem que o rei (Homem capaz, tambm chamado Roi, Rex, ou Diretor) agora governa? Os seus prprios monteiros e batedores. E tanto que, quando no h caadas, diz-se automaticamente "Le Roi ne fera rien" (Sua Majestade no far hoje nada)1. Vive ou vegeta assim, como lhe apraz, sem ningum ainda o importunar.

    Os nobres, da mesma maneira, quase deixaram de guiar ou transviar; e So agora, como o seu amo, pouco mais que figuras de ornamento. J l vai o tempo em que se assassinavam uns aos outros ou ao seu rei. Os burgueses, protegidos e animados pelo monarca, haviam cons-li iildo, sculos antes, cidades muradas, dentro das quais exerciam os eus misteres; no permitindo que nenhum baro audacioso vivesse da

    ia. mas mantendo a forca para o impedir. Mas desde aquele pe-ilii Fronda que o nobre trocou a sua espada de combate por um

    ^HBWlrn mr la Vlc privcc de Maric Anioniclle, par Madame Campan (Parii, 186), I, 12.

  • 28 MORTE DE LUS XV

    florete de corte; e agora serve o seu rei como satlite ministerial, dividindo o saque, j no por meios violentos e homicidas, mas implorando com gentileza e finura. Estes homens chamam-se a si prprios os suportes do trono: espcie de caritides de papelo dourado naquele singular ediflciol Quanto ao mais, seus privilgios em todas as esferas acham-se agora muito reduzidos. A lei que autorizava um senhor ao voltar da caa, a matar at dois servos e a refrescar os ps nas suas entranhas estuantes de sangue, havia cado em completo desuso e mesmo na incredulidade; porque, a despeito do deputado Lapoule acreditar nela pedindo a sua ab-rogao, ns no acreditamos1. Nenhum Charolois, nestes ltimos cinquenta anos, apesar da sua predileo pelo tiro ao alvo, se atreveu a derrubar as telhas e os picheleiros e a v-los rodar telhados abaixo2; bastava-lhe, para exerccio, o tiro s perdizes e s aves silvestres. De vistas curtas, a principal preocupao e predileo do fidalgo vestir elegantemente e comer suntuosamente. Quanto sua depravao e sensualidade, podemos remont-la s pocas de Tibrio e Cmodo. Contudo, no se pode deixar de concordar em parte com Madame la Marchale. "Creia nisto, senhor; Deus pensar duas vezes antes de condenar um homem de tal jerarquia"3. Esta gente devia antigamente, sem dvida, possuir virtudes e qualidades, porque seno, no poderiam estar ali. Uma virtude, pelo menos, precisavam possuir (porque o homem no pode viver sem conscincia): a virtude de estarem sempre prontos para o duelo.

    So estes os pastores do povo francs; e que sucede com o rebanho? O rebanho, como inevitvel, passa mal, cada vez pior. No cuidam dele, a no ser para a conveniente tosquia. Mandam-no para trabalhos pblicos no remunerados e exigem-lhe impostos; enviam-no a juncar os campos de batalha (denominados campos de honra) com os seus corpos, combatendo por causas que no so suas; a marca do seu trabalho est em tudo o que o homem possui; mas le prprio pouco tem ou nada. No o educam, no o confortam, no o alimentam; estiola-se na espessa bruma do obscurantismo, na esqulida misria e degradao. esta a sorte de milhes de criaturas: peuple taillable et corvable merci et misricorde. Revoltam-se certa vez na Bretanha pela introduo dos relgios de pndulo, julgando que aquilo tinha que ver com a Gabelle. Paris necessita de ser limpa periodicamente pela polcia, e hordas de vagabundos famintos so constrangidos mais uma vez a errar sobre o espao at voltarem. "Durante uma daquelas limpezas peridicas", diz Lacretelle, "em maio de 1750, a polcia pretendeu roubar filhos de pessoas respeitveis, na esperana de exigir

    1 Hisloire tle la Kcvolution Franjai-, par Deux Amii de la Liberte (Pari, 1792, 11, 212. 2 Lacretelle. HUtoire

  • s o MORTE DE LUS XV

    sem freio nem rdeas: perfeitamente selvagem, na posse de todos os-instrumentos e armas da civilizao. Espetculo novo na Histria.

    numa tal Frana, como num paiol de plvora, ao redor do qual um fogo inextinto e agora inextinguvel crepita avassaladoramente, que Lus est prestes a morrer. Com o pompadourismo e o dubarrisrao, as suas flres-de-lis foram vergonhosamente derribadas em todas as terras e em todos os mares. A penria invade a prpria fazenda real e os impostos j no podem arrebanhar mais. A questo h vinte anos travada com os parlamentos continua de p. Por toda a parte, se esta-deia a misria, a desonestidade e a descrena, e aparecem meios sbios, de crebros esquentados, com elixires de longa vida poltica. uma

    hora terrvel. So estas coisas, invisveis para os cortesos da cmara de agonia de

    Lus, que os olhos da Histria ali descortinam. Fz vinte anos, no dia de Natal, que Lorde Chesterfield, resumindo o que notara nesta mesma Frana, escreveu e enviou pelo correio as seguintes palavras, que se tornaram memorveis: "Em suma, todos os sintomas, que a Histria nos mostra como antecedendo todas as grandes mudanas e revolues nos governos dos povos, existem presentemente e aumentam diariamente em Frana"1.

    Captulo 111

    VIATICUM

    Presentemente, porm, a grande questo que se apresenta aos governadores da Frana : Dever-se- administrar a extrema-uno, ou outro viaticum espiritual (a Lus, no Frana)?

    uma questo intrincada. Porque, se a administram, se apenas chegam a falar nisso, no ter logo, no prprio incio da operao, de desaparecer a, feiticeira Dubarry; para talvez nunca mais voltar, mesmo que Lus se restabelea? Com ela, desaparece o Duque d'Aiguillon e companhia e todo o seu palcio de Armida, como se disse, engolidos de novo pelo caos, no deixando nada seno um cheiro de enxofre. Mas, por outro lado, que diro os delfinistas e os choiseulistas? E at que poder dizer o prprio re"al mrtir, se por acaso piorar mortalmente, sem entrar em delrio? Presentemente, le ainda beija a mo da Dubarry; o que ns, da antecmara, podemos observar; mas depois? Os boletins mdicos dizem aquilo que aos doutores ordenado, mas sabe-se que so "bexigas confluentes" doena de que, como se murmura,

    1 Chesterfield' Letleri, DcJcmbro 25, 175J.

    VIATICUM 31

    a outrora to bela filha do guarda-porto est atacada: e Lus XV no homem que se possa ludibriar acerca do seu viaticum. No costumava le catequizar as suas prprias filhas no Parc-aux-cerjs, e orar com elas e por elas, para que preservassem a sua ortodoxia?1. Fato estranho, no sem exemplo; porque no h animal to estranho como o homem.

    Pelo momento, todavia, se tudo corresse bem, poder-se-ia convencer o arcebispo Beaumont a piscar um lhol Pois Beaurnont de bom grado o faria; porque, coisa singular, tambm a Igreja e toda a esperana pstuma do jesuitismo agora se prendem barra da saia desta impudica mulher. E a fora da opinio pblica? O rigoroso Christophe de Beaumont, que passou a vida a perseguir histricos jansenistas e incrdulos no conformistas; e at os seus cadveres, se no podia peg-los vivos como que ir. abrir as portas do cu e dar absolvio com o corpus delicti ainda ali nas suas barbas? O nosso Grande Esmoler Roche-Aymon, por sua parte, no se importar de dar uma volta chave do cu para a entrar um pecador real: mas h outros dignitrios da Igreja; h um confessor do rei, o insensato Abb Moudon; e o fanatismo e a decncia ainda no esto extintos. Afinal, o que h a fazer? As portas podem ser bem vigiadas; os boletins mdicos ajustados; e tambm, como sempre sucede, muito se pode esperar do tempo c do acaso.

    As portas eSto bem vigiadas, sem poderem ingressar criaturas intrusas. Na verdade, poucos desejam entrar, porque a infeco ptrida chega at ao Oeil-de-Boeuf; e assim, mais de cinquenta adoecem e dez morrem! Mesdames les Princesses so as nicas pessoas que se postam cabeceira do empestado enfermo, impelidas por piedade filial. As trs princesas, Graille, Chiffe, Coche (Farrapo, Trapo e Bcora, como le costumava chamar-lhes), so assduas ali, depois de todos fugirem. A quarta princesa Loque (Rodilha), est, como sabemos, j no convento, e s pode dar as suas oraes. A pobre Graille e as irms nunca louberam o que era um pai; tal , s vezes, a triste situao da grandeza. Apenas ao Dbotter (quando a realeza descalava as botas) elas podiam enfiar as suas enormes saias de balo, cingir a longa cauda em V(ili;i da cintura, apertar seus mantos pretos de tafet at ao queixo Ruim, em pleno traje de gala, entrar majestosamente, receber o beijo ic.il no rosto e sair do mesmo modo majestoso para os bordados, para pequenos escndalos, para as devoes e cios. Se Sua Majestade

    II"". aparecia alguma manh, com cale preparado por si prprio, e o 'hHoli.i com as filhas pressa, enquanto os ces se estavam soltando

    |i>ii.i a caa, era isso recebido como uma graa do cu*. Pobres mulheres RIUelucidas e desoladas! Nas correrias loucas que ainda esperam a

    (VIII, 217); Bescnval, etc. I, 11-36.

  • SS MORTE DE LUS XV

    vossa frgil existncia, antes de ela ser esmagada e rompida; quando fugirdes atravs de pases hostis, por sobre mares tempestuosos, quase pegadas pelos turco; e quando, no terremoto sans-cultico, no diferenciardes a vossa mo direita da esquerda, que isto ocupe um lugar sempre seguro na vowa lembrana; porque o ato era bom e carinhosol Para ns, um pequeno osis soalhento, naquele deserto lgubre, onde dificilmente achamoi outro.

    No entretanto, que deve fazer um corteso prudente e imparcial? Em circunstncias to delicadas, quando a questo no apenas de' vida ou de morte, mas de sacramento, provvel que os mais hbeis hesitem. Poucos so to felizes como o Duque de Orlans e o Prncipe de Conde que podem, com sais volteis, frequentar a antecmara do rei e, ao mesmo tempo, mandar os seus valorosos filhos (Duque de Chartres, futuro Egalit; Duque de Bourbon, que tambm vir a ser Conde e famoso entre os velhos tontos e enamorados) prestar vassalagem ao delfim. Para alguns outros, a resoluo est tomada: jacta est alea. O velho Richelieu, quando o arcebispo de Beaumont, acicatado pela opinio pblica, se decide finalmente a entrar na cmara do enfermo, agarra-o pela sobrepeliz, leva-o a um canto; e ali, com a sua velha e dissipada cara de mastim e com a mais untuosa veemncia, vemo-lo a protestar (e at, como podemos julgar pela mudana de cr no rosto de Beaumont, com xito) "que no devem matar o rei com um preceito de teologia". O Duque de Fronsac, filho de Richelieu, segue as pisadas do pai: quando o Cure de Versalhes se pe a rabujar sobre sacramentos, ameaa-o de "o lanar pela janela fora, se le sugerir tal coisa".

    Felizes estes, podemo-lo dizer; mas para os outros, que oscilam entre duas opinies, no enervante? Aquele que quiser compreender ao que o catolicismo e muita coisa mais tinha agora chegado; e como os smbolos do mais sagrado se tinham tornado dados de jogo do mais vil deve ler a narrativa destes acontecimentos feita por Besenval, Soulavic e por outros cronistas da corte, daquele tempo. Ver a Galxia de Versalhes toda disseminada, agrupada em novas constelaes sempre a mudarem; acenoi e olhares significativos; coscuvilhices, vivas principescas em trajei de seda deslizando misteriosamente, com sorrisos para esta constelao, suspiros para aquela. H ansiedades, de desespero ou esperana, em alguns coraes; e sobre isto tudo paira a plida e arreganhada sombra da morte, cerimoniosamente atendida por outra sombra arreganhada, a da etiqueta: de vez em quando, o som cavo dos rgos da capela, numa toada mecnica, proclama, como numa espcie de hrrida e diablica irriso:

    Vaidade das Vaidades, tudo i Vaidade!

  • Em cima: J. B. Oubry. As caadas I de Lus XV: O Encontro no Pool do Rei (Floresta de CompigneM Tapearia dos Gobelins (1733-1745M Palcio de Fontainebleau. O qua-i dro distingue-se pela ketexa do\ verde de suas amores e pelo veris-i mo dos trajes, expresses e gestos.]

    Embaixo: Lusa de trana, filhai de Luis XV. Retrato de ]. Ml

    Nattier. Museu de Versalhes. '

    Captulo IV

    LUS, O INESQUECIDO

    Pobre Lus! Para estes, isto mera fantasmagoria, onde como palhaos riem e choram, soltando exclamaes falsas e mercenrias; mas para ti uma terrvel realidade.

    Terrvel para todos os homens a morte, de longe chamada rainha dos terrores. A nossa pequena e compacta habitao de uma existncia, onde moramos queixosos, mas contudo dentro dela, vai passar, em tenebrosas agonias, para uma regio desconhecida de separao, mistrio e possibilidades vagas. O imperador pago pergunta sua alma: Para que lugares vais partir? O rei catlico deve responder: Para a barra de julgamento do Altssimo Deus! Sim, para uma apresentao dos feitos da vida; liquidao final, com a conta dos atos praticados pelo corpo: agora, esto concludos, e ali esto inalterados, mostrando os seus frutos, enquanto durar a eternidade.

    Lus XV teve sempre o mais rgio pavor da morte. No era como aquele beato Duque de Orlans, av do Egalit porque, na verdade, alguns-dles tinham um toque de loucura que honestamente acreditava no haver morte! le, se os cronistas da corte podem ser acreditados, levantou-se uma vez, ardendo em desprezo e indignao, contra o leu pobre secretrio, que gaguejava nas palavras, feu roi d'Espagne (o defunto Rei de Espanha): "Feu roi, Monsieurf" "Monseigneur", respondeu apressadamente o trmulo mas esperto serventurio, "c'est nu titre qu'ils prennent" ( um ttulo que eles tomam)1. Lus, como dissemos, no era to feliz; mas prevenia-se como podia. No consentia que lhe falassem na morte; evitava a vista de cemitrios, de monumento! fnebres e de tudo o que lhe pudesse provocar a sinistra lembrana. f, o recurso da avestruz que, perseguida tenazmente, enterra a estpida Glbcn no cho, esquecendo-se que o seu estpido corpo fica mostra. Outras vezes, porm, numa contradio espasmdica, que significa o rumino, ta ver: fazia parar as suas carruagens de corte e mandava per-|linliir aos cemitrios "quantas sepulturas novas houve hoje?" apesar d> IMO causar Pompadour os mais desagradveis arrepios. Podemos lltU|finar o pensamento de Lus naquele dia em que, principescamente

    icntado para a caa, encontrou de repente, numa volta da flo-Hti de Senart, um campons esfarrapado com um caixo: "Para

    ^ B " Era para um pobre irmo escravo, a quem Sua Majestade

    nival. I, 199.

    Mlit. (Uv. FraneMO

  • : i i MORTE DE LUS XV

    vira algumas vc/.cs a mourejar naqueles stios. "De que morreu?" "De fome" o rei deu de esporas ao cavalo1.

    Imaginemos, porm, os seus pensamentos, agora que a morte se lhe prende s fibras do corao, no prevista, inexorvell Sim, pobre Lus, finalmente que a morte te encontrou. Nem os muros do palcio, nem os guardas reais, nem as tapearias caras, e nem o formalismo dourado do mais rgido cerimonial a puderam afastar: ela aqui est, para te tirar o teu sopro de vida, e h de tirar-to. Tu, cuja existncia toda foi at aqui uma quimera e um espetculo cnico, vais finalmente ser uma realidade: o suntuoso Versalhes submerge-se, como um sonho, no vazio da imensidade; terminou o teu tempo e todas as suas construes desabam com medonho estridor em volta da tua alma: os reinos das sombras abrem as goelas; e ali tens de entrar, nu, sem manto real, e esperar a tua sentena! Infeliz homem, quando te viras em lenta agonia, no teu leito de enfermo, que pensamentos devem ser os teus! O purgatrio e o fogo do inferno, agora ambos possveis, em perspectiva; em retrospectiva ah, que coisa fizeste tu que no fosse melhor no a teres feito; que mortal ajudaste generosamente; de que dor te compadeceste? No te assombraro nesta hora as quinhentas mil almas, que se afundaram vergonhosamente em tantos campos de batalha, de Rossbach a Quebec, para que a tua barreg se vingasse dum epigrama? E o teu repugnante harm; e as maldies das mes, e as lgrimas e a infmia das filhas? Miservel homem! Fizeste o mal que pudeste: toda a tua existncia parece um hediondo aborto e erro da natureza, cujo verdadeiro sentido difcil de conceber. Terias tu sido um grifo fabuloso, devorador das obras humanas, a arrastar diariamente virgens para a tua caverna revestido tambm de escamas, que nenhuma lana podia perfurar: nenhuma lana, a no ser a da morte? Um grifo no fabuloso, mas real! Tremendos, Lus, devem ser estes momentos para ti. No perscrutemos mais os horrores do leito de morte de um tal

    pecador. E contudo, que nenhum homem, por mais humilde que seja, julgue,

    com lisonja, que a sua alma se acha livre de mancha. Lus foi um governante; mas tu tambm o no s? A sua larga Frana, se para ela olhares das estrelas fixas (que no so elas prprias ainda infinidade) no mais larga que a tua estreita casa de tijolos, onde tu procedeste fielmente ou infielmente.. Homem, "Smbolo da Eternidade aprisionado no Tempo!" no so as tuas obras, que so todas mortais e infinitamente pequenas, as maiores no maiores que as pequenas, mas somente o esprito que lhes insuflaste que pode ter valor ou continuao.

    Mas reflcti, em todo o caso, que problema de vida este do pobre Lus, quando se levantou como Bien-aim daquele leito de doena em

    1 Campan, Ill, 59.

    LUS, O INESQUECIDO K

    Meu! Que filho de Ado podia ter jugulado tantas incoerncias em coerncia? Podia le? A fortuna mais cega arremessou-o para o cimo de tudo: e ali fica a nadar, com to pouca fora sobre aquela mar, como um toro de madeira tona de gua sobre um oceano balanado pelos ventos e impelido pela lua. "Que fiz eu para ser to amado?" disse le ento. Agora, pode dizer: Que fiz eu para ser to odiado? No fizeste nada, pobre Lus! A tua culpa precisamente essa, que no fizeste nada. Que podia o pobre Lus fazer? Abdicar e lavar as suas mos, em favor do primeiro que quisesse aceitar! Sabedoria mais clara no era para le. Ficou, pois, a olhar dbiamente, le o mais absurdo mortal existente (verdadeiro solecismo encarnado) para o mundo mais absurdo e confuso; onde, afinal, nada parecia to certo como isto: Que le, o solecismo encarnado, tinha cinco sentidos; que havia mesas volantes (Tables Volantes, que desaparecem pelo cho dentro, para reaparecerem carregadas de novo) e um Parc-aux-cerfs.

    Pelo que, pelo menos, se nos apresenta de novo esta curiosidade histrica: um ser humano, numa posio original; nadando passivamente, como nalgum insondvel "pego", para destino que le em parte via. Porque Lus, apesar de tudo, possua uma espcie de viso. Quando um novo Ministro da Marinha, ou outro qualquer, vinha anunciar a lua nova era, a concubina ouvia dos lbios de Sua Majestade ceia: "Sim, le estendeu a sua mercadoria como os outros; prometeu as coisas mais belas do mundo; nada disso se realiza; le no sabe com quem lida; ver". Ou ento: " a vigsima vez que ouo isso; a Frana nunca possuir uma marinha, creio-o". Como isto tambm impressionante: "Se fosse tenente da polcia, proibia esses cabrioles de Paris"1.

    Condenado mortal; pois no condenao ser um solecismo encarnado? Um novo Roi Fainant, rei que no faz nada; mas com o mais entranho Maire du Palais: no o Pepino das pernas tortas, mas essa purio envolta em nuvens, a despedir fogo, o Espectro da Democracia, (}ue com um progresso incalculvel est avassalando o mundo! No tril Lus, ento, pior que qualquer outro ocioso e comilo privado, il.K|iicles que vemos frequentemente, sob o nome de Homens do Prazer, | i i mvar a diligente criao de Deus, por algum tempo? Mais desgra-inlu. cia! A sua vida-solecismo era vista e sentida por Lodo o mundo ticntidulizado; a le o esquecimento infindo no o pode engolfar, tragando o em profundezas infindas nem mesmo durante uma gerao OU dum.

    Mudo, seja como fr, ns observamos, no sem interesse, que "na i. a dama Dubarry sai da cmara do enfermo, com perceptvel

    io no rosto. na quarta noite de maio, do ano da Graa

    I I 'Ir Miil.un,- dc IlaiiMct, p. 293, te.

  • de 1774. O Oeil-de*Boeuf pe-se todo a cochicharl Estar le ento a morrer? O que se pode dizer que a Dubarry parece estar fazendo as malas; vagueia chorosa pelos lioudoirs dourados, como a despedir-se. D'Aiguillon e companhia esto quase a jogar a ltima carta; contudo, ainda no do o jogo por acabado. Mas quanto controvrsia sacramental, essa est resolvida, sem preciso de se falar mais nisso; Lus manda chamar o seu Abb Moudon no decurso da noite seguinte; confessado por le, dizem que no espao de "dezessete minutos" e pede os sacramentos de sua prpria vontade.

    Reparai que, j na tarde desse dia, a feiticeira Dubarry, de leno nos olhos, sobe para a carruagem de D'Aiguillon, rolando nos braos consoladores da esposa do duque. Foi-se, e o lugar que ocupou no a conhece mais. Desaparece, falsa feiticeira no espao! em vo que pairas no vizinho Ruel, pois o teu dia acabou. Fechados te esto para sempre os portes do palcio real; j no podes, sob as sombras da noite, descer com domin negro, como ave negra noturna, a perturbar o concerto musical da bela Antonieta no parque, fazendo fugir de ti todas as aves do paraso e emudecer os instrumentos musicais1. T u coisa no limpa, contudo no maligna, nem indigna de lastimai Que maldio foi a tua desde aquela primeira cama de rodinhas (na terra de Joana d'Are) onde tua me te gerou, com lgrimas, de um pai incgnito; e da por diante, atravs ds mais baixas profundezas subterrneas e por sobre as mais altas eminncias, da prostituio e da vilania at ao cutelo da guilhotina, que rasoura a tua cabea a soluar em vo! Fica a no amaldioada, apenas enterrada e extinta; que mais mereces tu?

    Lus, entretanto, est muitssimo impaciente pelos seus sacramentos; manda mais duma vez janela, para ver se esto vindo. Conforta-te Lus, com o conforto que podes: esto j a caminho, esses sacramentos. Pelas seis da manh, ei-los que chegam. O cardeal esmoler-mor Roche-Aymon est aqui em pontifical, com o seu cibrio e o seu ferramental: aproxima-se da cabeceira do rei; eleva a sua hstia; murmura ou parece murmurar qualquer coisa; e assim (como o Abb Georgel, em palavras que nos ficam na memria o exprime) Lus fz a sua amende hono-rable a Deus, conforme o entende o jesuta. Wa, Wa, como o brbaro Clotrio exclamou, quando a vida se lhe estava extinguindo, "que grande Deus esse que arrebata a fora dos mais fortes reisl"2.

    A amende honorable, ou desculpa legal, fz Lus a Deus: mas no, se D'Aiguillon o puder impedir, a far aos homens. A Dubarry ainda paira na sua manso de Ruel; e enquanto h vida, h esperana. O esmoler-mor Roche-Aymon, por isso (pois parece estar no segredo) logo que arruma o seu cibrio e aprestos, majestosamente marcha para fora, como se o trabalho estivesse feito! Mas o confessor do rei, o Abb

    2 G " , V u 9 r o n e n . . . . Hl... 11b. IV. c p . 21.

    Moudon, avana ao seu encontro e, de face ansiosa e acidulada, agarra-o pela manga e murmura-lhe ao ouvido. Aps o que o pobre cardeal tem de se voltar e declarar audlvelmente "que Sua Majestade se arrepende de quaisquer motivos de escndalo que possa ter dado (a pu donner); e que tenciona, se lhe assistir o auxlio do cu, evitar os mesmos para o futuro!" Palavras estas que foram escutadas por Richelieu com cara de mastim, a fazer-se cada vez mais negro, e respondidas, em voz alta, "com um epteto" que Besenval se no atreve a repetir. Velho Richelieu, conquistador de Minorca, companheiro de orgias da mesa volante, perfurador de paredes de salas de dormir1, no estar tambm findo o teu dia?

    Ah, os rgos da capela podem continuar a soar; e o relicrio de Santa Genoveva a ser arreado e elevado de novo sem efeito. noite toda a corte, com o delfim e a delfina, assiste na capela: os padres ficam roucos de cantar as suas "Oraes das Quarenta Horas" e os foles sopram arquejantes. Espetculo confrangedor! Porque at o cu se escurece; precipitam-se furiosas torrentes de chuva com troves, quase afogando a voz do rgo; e fascas eltricas fazem de candelabros a iluminar o altar. De modo que a maior parte, como nos contam, retirou-se, acabada a cerimnia, de passo estugado, em estado de meditao (recuieille-ment), pouco dizendo ou nada2.

    Durou isto pouco mais de oito dias; a Dubarry j se tinha ido h quase uma semana. Diz Besenval que toda a gente estava impaciente que cela fintt; que o pobre Lus terminasse com aquilo. Estamos agora a 10 de maio de 1774. O rei no tarda a morrer.

    Este dia 10 de maio irrompe pela cmara repugnante do enfermo; mas sombrio, sem darem ali por le: porque os que olham para fora das janelas s vem trevas; a roda da cisterna move-se discordante sobre 0 seu eixo; a vida, como um cavalo estafado, est arfando para a sua meta. Nos seus apartamentos distantes, o delfim e a delfina esto aprontados para partir, com todos os lacaios e escudeiros de botas e esporas; esperando por algum sinal para fugir daquele lugar de pestilncia8. Escutail atravs do Oeil-de-Boeuf, que som chega: som tremendo e biolutamente como um trovo? o afluxo de toda a corte, correndo i\ compita, a saudar os novos soberanos: Vivam Suas Majestades! O delfim e a delfina so rei e rainha! Assoberbados por muitas emoes, 01 dois caem juntos de joelhos, exclamando, de lgrimas a correr: "

    I ItMnvil, I- 159-72. Genlis; Duc de Lcvis. etc. ' W I I H I , Mcmoircs concernant Maric Antoinctte (Londres, 1809), J. 22. 1 KipiiKii;i-ii"s ocupar-nos da "vela" belamente teatral, que Madame Campan (I. 79) acen-

    'iii ocasio c que soprou no momento da morte. Se se acenderam ou apagaram velas, i "m Mo grande corno o de Versalhes, ningum a tal distncia poderia afirmar: ao mes

    II o, como ciam duas horas numa tarde de maio e essas cavalarias reais deviam estar uns

    ">* ou seiscentos metros distantes da cmara do enfermo, a "vela" ameaa apagar-se

    > 'Ir n. Uca, nn verdade, a arder na sua fantasia: projetando luz sobre milito " Mimarias.

  • :w MORTE DE LUS XV

    Deus, guiai-nos, protegei-nos; somos demasiado jovens para reinar!" -Na verdade, demasiado jovens.

    Foi assim, entretanto, "com um som absolutamente como o do trovo" que o relgio do tempo bateu e uma era velha passou. O Lus que foi, jaz abandonado, uma massa de barro desprezvel; abandonado a algumas pessoas pobres e aos padres da Chapelle Ardente que se apressam a p-lo "em dois caixes de chumbo, sobre que derramam abundante esprito de vinho". O novo Lus com a sua corte est rodando para Choisy, nessa tarde de vero: as lgrimas reais ainda correm; mas uma palavra mal pronunciada por Monseigneur d'Artois f-los rir a todos, e o choro cessa. Volveis mortais, como danais o minuete da vossa vida, sobre abismos sem fundo, separados de vs por uma pelcula!

    Quanto ao mais, as, prprias autoridades assentiram que nenhum funeral devia ser mais incerimonioso. O prprio Besenval pensa que foi bastante incerimonioso. Duas carruagens com dois nobres com funes palatinas e um padre de Versalhes; algumas dezenas de pajens a cavalo, uns cinquenta, palafreneiros; estes com tochas, mas no vestidos de preto, partem de Versalhes na segunda noite, com o seu atade de chumbo. Marcham a grande trote, e no abrandam. Porque as chufas [brocars) dos parisienses * que se postam em duas filas, em todo o percurso at S. Denis, "dando largas ao seu humorismo, a caracterstica da nao", no os tenham a afrouxar o mpeto com que vo. Pela meia-noite, as criptas de S. Denis recebem o que lhes pertence; sem que nenhum de todos estes chore; talvez nem a sua desprezada filha, a pobre Loque, cujo convento est perto.

    Impelem-no para baixo e metem-no no subterrneo, desta maneira impaciente; a le e sua era de pecado, tirania e desvergonha; porque surge uma nova era e o futuro promete ser tanto mais brilhante quanto o passado foi vil.

    Livro II

    A IDADE DO PAPEL

    Captulo I

    ASTRAEA REDUX

    Um filsofo paradoxal, levando at ao exagero aquele aforismo de Montesquieu "Feliz do povo cujos anais esto cheios", disse "Feliz do povo cujos anais esto vazios". No haver neste dito, insensato como parece, algum gro de razo? Porque verdadeiramente, como j se tem escrito, "o silncio divino" e do cu; e assim em todas as coisas terrestres h tambm um silncio que melhor que qualquer discurso. Pensai bem: o acontecimento, a coisa de que se pode falar e se pode registrar no , em todos os casos, um rompimento, uma soluo de continuidade? Nem que seja um acontecimento feliz, le envolve mudana, provoca perda (de fora ativa); e at certo ponto, quer no passado, quer no presente, uma irregularidade, uma doena. A nossa bem-aventurada deveria ser a mais calma perseverana; no o deslocamento e a alterao se os pudssemos evitar.

    O carvalho cresce silentemente na floresta, uns mil anos; s no seu milsimo ano, ao chegar o couteiro com o seu machado, se ouve um eco a ressoar pela solido; e o carvalho anuncia-se a si prprio quando, com um estrondo que se repercute ao longe, cai. Como foi tambm silenciosa a plantao da glande, trazida no regao de algum vento errante! E mesmo quando o nosso carvalho floresceu ou se revestiu de folhas (o seu acontecimento feliz) que grito de proclamao podia ter havido? Nem os mais observadores soltariam uma palavra de reconhecimento. Estas coisas no aconteceram, foram lentamente feitas; no numa hora, mas atravs da fuga dos dias. Que se poderia dizer delas? Esta hora parecia absolutamente como foi a anterior, como o seria a seguinte.

    por isso que em toda a parte o insensato rumor paira no do que foi feito, mas do que foi mal feito ou desfeito; e a insensata Histria (sempre mais ou menos, a sinopse epitomizada do rumor) sabe to pOUCO, que valia mais a pena no saber nada. As Invases do tila,

  • 40 A IDADE DO PAPEL

    as Cruzadas de Gauthier sem dinheiro, as Vsperas Sicilianas, as Guerras dos Trinta Anos: apenas pecado e misria; no trabalho, mas impedimento ao trabalho I Porque a terra, em todos estes momentos, se vestia anualmente de verde e amarelo com as suas benficas colheitas; a mo do artificie, o esprito do pensador no descansavam: e por isso, apesar de tudo, e a despeito de tudo, ns possumos este to glorioso e florescente mundo, sob uma cpula to alteada; a respeito do qual, a pobre Histria, pode bem perguntar, com assombro: Donde veio le? Ela sabe to pouco disso, mas sabe tanto do que o obstruiu, daquilo que o teria tornado impossivell Tal , porm, por necessidade ou por insensata escolha, a sua regra e prtica; e por isso, aquele paradoxo de que "Felizes os povos cujos anais esto vazios", no deixa de ter o seu lado verdadeiro.

    E contudo, o que parece mais cabido notar aqui, que uma calma, no de crescimento sem obstrues, mas de inrcia passiva, sintoma de derrocada iminente. Assim como a vitria silente, assim a derrota. Das foras opostas, a mais fraca renunciou; a mais forte marcha para a frente, sem rudo agora, mas rpida, inevitvel: a derrocada e o aniquilamento no se daro porm sem rudo. Como nasce tudo, e tem o seu perodo, mesmo as ervas do campo, seja le anual, centenal ou milenal! Tudo nasce e morre, cada coisa pelas suas maravilhosas leis, sua maravilhosa feio; as coisas espirituais muito mais maravilhosamente que as outras. Inescrutveis, para os mais sbios, so estas, sem se poderem profetizar ou compreender. Se quando o carvalho se ostenta, na sua forma mais orgulhosamente florida, a nossos olhos, ns percebemos que o seu corao est forte, o mesmo no acontece com o homem; quanto menos com a sociedade, com a nao dos homens! Destas pode at afirmar-se que o aspecto superficial, que a sensao interior de plena sade, geralmente ominosa. Porque, na verdade, de apoplexia, por assim dizer, e de um hbito pletricamente preguioso do corpo, que igrejas, realezas, instituies sociais, frequentemente morrem. Triste, quando tais instituies dizem pletricamente para si prprias: Descansa, tens a casa arrumada; como o tolo do Evangelho, a quem responderam: Tolo, esta noite, vo-te exigir a tua vidai

    a paz saudvel ou a insanidade ominosa que vigorar em Frana, durante estes prximos dez anos? Sobre isto o historiador pode passar ao de leve, sem necessidade de se deter: porque ainda no ocorrem acontecimentos, quanto mais realizaes. Tempo da mais soalhenta calmaria; deveremos chamar-lhe, o que toda a gente pensava que era, a nova Idade do Ouro? Chamemos-lhe, pelo menos, do papel, que, em muitas maneiras, o sucedneo do ouro. Papel de banco, com o qual se pode ainda comprar, quando j no h ouro; papel de livros, resplandecente de teorias, filosofias, sensibilidades esplndida arte, no

    ASTRAEA REDUX II

    s para nos revelar o pensamento, mas tambm para esplendidamente nos ocultar a falta de pensamento! O papel feito de trapos ou coisas que outrora existiram; h infinitas excelncias no papel. Que admira que a mais sbia filosofia, neste perodo alcinico e inocorrente, pudesse profetizar que se estava aproximando, prenhe de trevas e confuso o acontecimento dos acontecimentos? A esperana anuncia uma revoluo assim como o tempo luminoso precede os terremotos. Em cinco de maio, daqui a quinze anos, o velho Lus no mandar buscar os sacramentos; mas um novo Lus, seu neto, com toda a pompa da Frana cheia de admirao e entusiasmo, estar abrindo os Estados Gerais.

    0 reinado da Dubarry e dos seus D'Aiguillons desapareceu para sempre. H um rei jovem, dcil e bem intencionado; uma rainha jovem, bela e generosa, e bem intencionada; e com eles toda a Frana, por assim dizer, se torna jovem. Maupeou e o seu parlamento tm de se sumir na noite espessa; os respeitveis magistrados, no indiferentes nao, quanto mais no fosse por se terem oposto corte, descem agora sem cadeias das "rochas escarpadas de Croe em Combrailles" e de outras partes, e retribuem louvores cantados: o velho parlamento de Paris reassume as suas funes. Em vez de um torpe bancarroteiro, o Abb Terray, temos agora como superintendente geral, um virtuoso e filosfico Turgot, com toda uma Frana reformada na cabea. Pelo qual, tudo o que estiver errado, nas finanas ou em outra parte, ser acertado tanto quanto possvel. No como se a prpria sabedoria tivesse doravante assento e voz no conselho dos reis? Turgot tomou posse com a mais nobre singeleza discursiva; e foi ouvido com a mais nobre confiana real1. verdade, que o Rei Lus objeta, "Dizem que nunca vai missa"; mas a Frana liberal no gosta menos dele por isso; a Frana liberal responde: "o Abb Terray ia sempre". O filosofismo v, pela primeira vez, um sbio (ou at mesmo um filsofo) no governo: secund-lo- plauslvelmente em todas as coisas; nem o volvel e velho Maurepas far obstruo, se facilmente o puder evitar.

    Como so agora "doces" as maneiras; o vcio, "perdendo toda a sua deformidade" e tornando-se decente (como as coisas estabelecidas, fazendo regulamentos para si prprias, costumam); tornando-se uma espcie de virtude "doce"! A inteligncia abunda tanto, irradiada pelo engenho e pela arte da conversao! O filosofismo mostra-se jubiloso nos sales brilhantes, conviva nos jantares da opulncia a fazer de ingnua, com os prprios nobres a sentirem orgulho de se sentarem i seu lado; e prega, elevado por sobre todas as Bastilhas, o prximo milnio. Da distante Fernay, o patriarca Voltaire d sinal; os veteranos Dldcrot, D'Alembert viveram para ver este dia; estes com os seus jovens Marmontels, Morellets, Chamforts, Raynals alegram a mesa especiosa

    1 Cmli de Turgot: Condorret, Vle de Turgot (Oeuvrea de Condorcet, t. v.), p. 67. A data IH il* ignito de 1774.

  • 42 A IDADE DO PAPEI.

    de vivas ricas, de recebedores gerais filosficos. Noites e ceias de deuses! Certamente, o que est de h muito demonstrado vai ser realizado agora: "a idade das revolues aproxima-se" (como Jean Jacques escreveu), mas das mais felizes e abenoadas. O homem desperta do seu longo sonambulismo; expulsa os fantasmas que o assediavam e enfeitiavam. Contemplai a nova manh que esplende das escarpas do Oriente; fugi, falsos fantasmas, dos seus raios de luz; que o absurdo desaparea inteiramente, abandonando esta terra inferior para sempre. a verdade e o Astraea Redux que (na forma do filosofismo) reinaro doravante. Para que fim imaginvel foi o homem feito, seno para ser "feliz"? Com a vitoriosa anlise e o progresso das espcies, aguarda-o agora bastante felicidade. Os reis podem tornar-se filsofos; ou ento os filsofos reis. Que a sociedade seja uma vez justamente constituda pela vitoriosa anlise. O estmago que est vazio ser cheio; a garganta que estiver seca ser regada com vinho. O prprio trabalho ser a mesma coisa que descanso; no doloroso, mas alegre. Os campos de trigo, pensar-se-, no podem gerar sem cultivo, sem que ningum fique enlameado ou cansado no labor; a no ser que verdadeiramente a mquina faa tudo? Alfaiatarias e restaurantes gratuitos, podem ins-talar-se, de vez em quando, como, que no se sabe ainda. Mas se cada vontade, de acordo com a regra da benevolncia, tiver um cuidado para todos, ento certamente que ningum deixa de ser assistido, E at quem sabe se, pela anlise suficientemente vitoriosa, "a vida humana no pode ser indefinidamente prolongada" e os homens libertos da morte, como eles j se libertaram do diabo? Seremos ento felizes, a despeito da morte e do diabo. Assim prega o magniloquente filosofismo o seu Redeunt Saturnia regna.

    A cano proftica de Paris e dos seus filosofantes bastante audvel no Oeil-de-Boeuf de Versalhes; e esse Oeil-de-Boeuf, ocupado principalmente com uma bem-aventurada mais prxima, s pode responder, quando pior, com um polido "Por que no"? O bom e alegre velho Maurepas um primeiro ministro demasiado divertido para contrariar a alegria do mundo. Basta para o dia o seu prprio mal. Ancio jovial, solta os seus gracejos e move-se descuidosamente, com a capa bem ajustada aos ventos, para que possa agradar a toda a gente. O jovem e simples rei, que Maurepas no pensa importunar com negcios, re-tirou-se para os seus apartamentos interiores; taciturno, irresoluto, se bem que com uma pontinha de birra s vezes: finalmente, resolve-se a fazer um pouco de serralheiro; e assim, sob a direo do Sieur Gamain (a quem um dia ter poucas razes de bendizer) est aprendendo a manipular fechaduras1. Parece, alm disso, que entendia de geografia e lia ingls. Jovem e infeliz rei, a sua confiana infantil naquele insen-

    1 Campan, 1, 125.

    ASTRAEA REDUX I:I

    sato e velho Maurepas merecia outra recompensa. Mas amigos e inimigos, o destino e le prprio, tudo se combinou para lhe fazer mal.

    No entretanto, a bela e jovem rainha, nos seus sales de cerimnia, apresenta-se como uma deusa da beleza, a cinosura de todos os olhares. Por enquanto, no se mete nos negcios; no se preocupa com o futuro; e nem pelo menos, o teme. Weber e Campan1 descreveram-na, ali dentro das tapearias reais, nos brilhantes toucadores, salas de banho, penteadores, e na grande e pequena toilete; com todo um mundo luzido na espera obsequiosa dum seu olhar. Jovem e formosa filha do tempo, que coisas no tem o tempo de reserva para ti! Como a mais brilhante apario da Terra, ela move-se graciosamente, rodeada da grandeza da Terra: uma realidade e, no obstante, uma viso mgica; por que, meditai, no a submergir finalmente a inteira escurido? O seu jovem e brando corao adota rfos, dota donzelas meritrias, compraz-se em socorrer os pobres os pobres que vm pitorescamente ao seu caminho; e estabelece a moda de fazer isso; porque, como se disse, a benevolncia comea agora a reinar. Na sua Duquesa de Polignac, na sua Princesa de Lamballe, ela desfruta qualquer coisa quase como amizade; agora tambm, depois de sete longos anos, tem uma criana e em breve at um delfim, muito seus. Pode julgar-se, tanto como se julgam as rainhas, feliz num marido.

    E quanto a acontecimentos? Os grandes acontecimentos so apenas caridosas festas morais (Ftes des moeurs), com os seus prmios e discursos; procisses de peixeiras ao bero do delfim; e acima de tudo, flertes, seu nascimento, progresso, declnio e termo. H esttuas de neve, erguidas pelos pobres em Inverno rigoroso a uma rainha que lhes deu combustvel. H mascaradas, amadorismos teatrais, embelezamentos do pequeno Trianon, compra e reparao de S. Cloud; viagens do Eliseu de Vero da corte para o de Inverno. H amuos e birras das cunhadas sardas (porque os prncipes tambm so casados); pequenos cimes que a etiqueta da corte pode moderar. Em conjunto, a mais frvola e a mais leviana espuma da existncia; uma espuma porm artificiosamente refinada; agradvel vista, se no fosse to custosa, como aquela que se evola do vinho da Champagnel

    Monsieur, o irmo mais velho do rei, distingue-se por uma espcie de engenho e inclina-se para o lado filosfico. Monseigneur d'Artois tira a mscara a uma bela impertinente; em consequncia, trava um duelo quase a escorrer sangue2. Possui cales de uma espcie nova no mundo uma espcie fabulosa: "quatro lacaios altos", diz Mer-

    iomo se o tivesse visto, "sustentam-no no ar para que le possa i.iir na pea de vesturio sem vestgio de rugas; tendo noite, os

    I I uiupaii. I, 100-51. Webcr, I, 11-50. H llrin,il, 11, 82-S30,

  • 44 A I D A D E DO P A P E I .

    mesmos quatro servidores, da mesma forma e com maior esforo, de o libertar daquela rigorosa compresso1. Este ltimo aquele que agora, j grisalho e cansado, mora desolado em Gratz2, depois de ter rematado o seu destino com os Trs Dias. De tal sorte, so os pobres mortais varridos e arremessados de um lugar para o outro.

    Capitulo 11

    PETIO EM HIERGLIFOS

    Com o povo trabalhador, as coisas no correm to bem. Infelizmentel Porque h de vinte a vinte e cinco milhes deles, a quem, contudo, ns agrupamos numa espcie de obscura unidade compendiosa, monstruosa mas obscura, de h muito chamada canaille; ou mais humanamente, "as massas". Massas, com efeito: e todavia, se, com um esforo de imaginao, tu as s