a herança de jesus e a questão do poder na igreja missao ieab

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A herança de Jesus e a questão do poder e missão na Igreja Anotações sobre missão/diaconia Paulo Ueti 1 “... não há entre vós muitos sábios segundo a carne, Nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus escolheu para confundir os sábios; E, o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; E, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é...” (1Cor 1:26b,28) 1. Introdução Como título da minha colaboração para este encontro, tomo emprestado de Paul Hoffmann, professor de Novo Testamento da Universidade de Bämberg, Alemanha, o título (com uma modificação) de um dos seus livros, em alemão “Das Erbe Jesus um die Macht in der Kirche: Rückbesinnung auf das Neue Testament”, publicado em português pela Editora Paulus no ano de 1998 com o título “A Herança de Jesus e o Poder na Igreja, reflexão a partir do Novo Testamento”. Faço este texto no contexto da minha errância espiritual e militante na busca do Reino e do “bom/belo 2 ” exercício do poder que defende a vida, assumindo as consequências que essas opções carregam. Também na alegria de minha raiz na tradição cristã e nas contradições existenciais comigo, com o mundo, com a igreja e com minha comunidade que isso traz. É urgente continuar revisitando as Escrituras Sagradas dos cristãos (incluindo aqui o Testamento Judaico, normalmente chamado de Antigo Testamento) para garantir alguma luz e bom senso no caminho espiritual que queremos traçar. Penso que especial atenção deve ser dada ao Segundo Testamento (ou Testamento Cristão ou Novo Testamento), para iluminar a reflexão e práxis que continua desejando ser jesuânica e cristã. 1 Teólogo, biblista, da Secretaria de Intercâmbio do CEBI, professor no Instituto São Boaventura e no Curso de História do Cristianismo (UnB), assessor do Movimento Sem Terra e membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblia – ABIB, colaborador no projeto IVBS (International Voices in Biblica Studies da SBL – Society of Biblical Literature), da Catedral da Ressurreição (IEAB)-Brasilia DF. Novembro 2011. Email: [email protected] ou [email protected] 2 Em Hebraico TOV pode significar bom e belo ao mesmo tempo.

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Texto apresentado no retiro do Clero da Diocese Anglicana de Brasilia, 25 e 26 de novembro de 2011.

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A  herança  de  Jesus  e  a  questão  do  poder  e  missão  na  Igreja  Anotações  sobre  missão/diaconia  

Paulo Ueti1

“... não há entre vós muitos sábios segundo a carne,

Nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus escolheu para confundir os sábios;

E, o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; E, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é,

Deus escolheu para reduzir a nada o que é...” (1Cor 1:26b,28)

1. Introdução    Como título da minha colaboração para este encontro, tomo emprestado de Paul Hoffmann,

professor de Novo Testamento da Universidade de Bämberg, Alemanha, o título (com uma modificação)

de um dos seus livros, em alemão “Das Erbe Jesus um die Macht in der Kirche: Rückbesinnung auf das

Neue Testament”, publicado em português pela Editora Paulus no ano de 1998 com o título “A Herança de

Jesus e o Poder na Igreja, reflexão a partir do Novo Testamento”. Faço este texto no contexto da minha

errância espiritual e militante na busca do Reino e do “bom/belo2” exercício do poder que defende a vida,

assumindo as consequências que essas opções carregam. Também na alegria de minha raiz na tradição

cristã e nas contradições existenciais comigo, com o mundo, com a igreja e com minha comunidade que

isso traz.

É urgente continuar revisitando as Escrituras Sagradas dos cristãos (incluindo aqui o Testamento

Judaico, normalmente chamado de Antigo Testamento) para garantir alguma luz e bom senso no caminho

espiritual que queremos traçar. Penso que especial atenção deve ser dada ao Segundo Testamento (ou

Testamento Cristão ou Novo Testamento), para iluminar a reflexão e práxis que continua desejando ser

jesuânica e cristã.

                                                                                                                         1 Teólogo, biblista, da Secretaria de Intercâmbio do CEBI, professor no Instituto São Boaventura e no Curso de História do Cristianismo (UnB), assessor do Movimento Sem Terra e membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblia – ABIB, colaborador no projeto IVBS (International Voices in Biblica Studies da SBL – Society of Biblical Literature), da Catedral da Ressurreição (IEAB)-Brasilia DF. Novembro 2011. Email: [email protected] ou [email protected] 2 Em Hebraico TOV pode significar bom e belo ao mesmo tempo.

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Nada mais óbvio e fundamental para a fé cristã do que buscar em Jesus e na sua herança (que é

a Boa Nova, o Evangelho e não a Igreja) inspiração para a nossa conspiração atual e cotidiana como

herdeiros/as e continuadores/as da sua missão (aqui sim como Igreja), conforme a Parábola dos Talentos

encontrada no Evangelho de Mateus. Apesar da pesquisa do Jesus Histórico não nos levar diretamente a

sua pessoa, ela nos ajuda a recolher, do que podemos saber do seu tempo/contexto e de sua pessoa,

bem como da memória celebrada e escrita de sua vida, elementos que deveriam ser constitutivos da

nossa espiritualidade e missão no mundo (kosmos) em que vivemos.

Eu, juntamente com muita gente, chamo isso de espiritualidade, para mim expressão da missão,

diaconia ou pastoral (desenvolvimento, trabalho transformativo). Aqui entendo espiritualidade nos termos

paulinos como “vida espiritual” ou “vida segundo o Espírito”, de Romanos 8. Espiritualidade que é práxis

que envolve o corpo, a alma e o espírito, enquanto seres humanos e enquanto seres humanos conectados

com o planeta (nossa oikoumene). De forma alguma entende-se, na tradição cristã, que termos como

Espírito, espiritualidade, vida espiritual e mística estão relacionados com algo pós-metafísico, imaterial. Ao

contrário, é a partir de baixo, do cotidiano da realidade que vivemos uma vida segundo o Espírito ou

segundo a Carne. Esta é uma clara alusão a experiência que o ser humano faz na história de Deus e

como se organiza e se expressa essa experiência na vida cotidiana. “Os padres do deserto nos ensinam

uma espiritualidade que vem de baixo. Eles nos mostram que devemos principiar em nós e em nossas

paixões. Para os padres do deserto, o caminho para Deus sempre conduz ao autoconhecimento. Certa

vez, Evágrio Pôntico formulou isso da seguinte maneira: ‘se queres conhecer a Deus, aprende

primeiramente a conhecer a ti mesmo!’ Sem autoconhecimento corrermos sempre o perigo de nossos

pensamentos acerca de Deus serem meras projeções.”3 Entendo a espiritualidade como Bento de Núrsia

tão bem a definiu: como humilitas, ou seja a capacidade de reconhecermo-nos húmus, terra fértil, iguais na

natureza e diferentes no contexto.

Por isso a espiritualidade é constitutiva e expressiva de nossa experiência de Deus e de nossa

tentativa cotidiana de configurar nossa vida com a vida de Jesus, inspiração da nossa missão que se

traduz na diaconia e trabalho transformativo (desenvolvimento, pastoral) – somos sempre mutatis

mudandis. Infelizmente em nossas famílias religiosas e em no campo semântico ordinário das igrejas e

teologias institucionais podemos, sem muito esforço, encontrar largos e profundos fossos entre o que

Jesus é e fez com aquilo que hoje nossas Igrejas fazem e dizem (nós todas/os incluídas/os). Esses fossos

já começaram a ser construídos e percebidos mesmo no segundo século da Era Cristã. Basta uma leitura                                                                                                                          3 GRUN, A. O céu começa em você. A sabedoria dos padres do deserto para hoje. Editora Vozes. Petrópolis, 2002, p.23.

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superficial do texto canônico que temos, que chamamos de Novo Testamento/Segundo Testamento, para

verificar o processo de transformação que foi ocorrendo no discurso teológico, com consequências diretas

para a instituição igreja, durante os primeiros 150 anos do cristianismo4.

Este fato não ocorreu sem resistências ou disputas, as vozes discordantes e proféticas também

estão bem presentes no texto canônico. Neste caso não basta uma leitura corrida e superficial. É

necessário buscar em várias outras ciências ajuda para nossa reflexão.

2. Missão:  significado  e  desentendimentos  Quando ouvimos a palavra “missão” nos vem a mente as teorias e práticas clássicas de

comunicação da Boa Nova. Missão também está conectada com a Evangelização. Mas o que significam

mesmo essas palavras poderosas que criaram boas realidades, mas também destruíram vidas, povos,

grupos, sabedorias. Para nossos ouvidos latino americanos a palavra/prática “missão” vem carregada de

negatividade, de colonialismos travestidos de evangelização e boa nova, violência e genocídio disfarçados

de catequese e iluminação. Isso deve nos fazer pensar quando, no século 21 novamente pronunciamos e

nos colocamos novamente “em missão”.

Talvez algo que marcou essa conversa de missão, tradicionalmente tenha sido a figura de

Saulo/Paulo e o mandato de Jesus descrito somente no Evangelho de Mateus, capítulo 28, 19-20:

“Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito

Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco

todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém”. Paulo e a comunidade de Mateus foram lidos

desde a perspectiva do poder-dominação, do colonialismo, da expansão territorial, bem compreensível se

nos damos conta de que o cânon bíblico foi se definindo numa época em que o império romano já havia

cooptado a tradição hegemônica das igrejas em volta de Roma. A “igreja” e o “império” acabam se

tornando não só cúmplices, mas quase a uma versão do Reino de Deus. Há um teólogo antigo que

lembrou que Jesus mandou pregar a Boa Nova, algumas pessoas confundiram isso com erguer igrejas e

aliar-se aos impérios.

Sob essa ótica, a missão foi vista como conquista e dominação. Como já dissemos, para nosso

continente o resultado da missão entre outros foi a justificação da escravidão e um genocídio indígena em

                                                                                                                         4 Para estudo: A Canonização dos Escritos Apóstolicos. Ribla 42/43. Editora Vozes.

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larga escala. Por isso urge repensar a missão como algo diferente da mensagem do império. Missão para

nós, cristãos, deve ter outro significado e evocar outras imagens e práticas.

Em primeiro lugar é importante perceber que a missão é de Deus, é Palavra (dabar, logos) de

Deus, ou seja presença forte e vida de libertação e práticas políticas que buscam a vida. Nós somente

participamos por vocação e escolha. O testemunho das escrituras nos mostra muito claramente que Jesus

nos ensinou que a missão não consiste tanto no que dizemos, mas no que fazemos. "Pelos seus frutos os

conhecereis" (Mt 7:16). "Nem todo aquele que me diz "Senhor, Senhor" entrará no reino dos céus, mas

aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está nos céus" (Mt 7:21). As Igrejas apostólicas destacaram

esta característica fundamental da vida cristã: "Sejam praticantes da Palavra" (Tiago 1:22). Tudo que não

seja conforme a estes princípios é um pseudo-evangelho, o trágico engano de uma "fé estéril".

Numa observação de Sebastião Gameleira, reduzindo-se a fé e a missão ao “espiritual” (entendido

aqui como imaterial, pensa-se estar prestando o maior sublime serviço ao Evangelho. Mas, com coragem

profética, o autor chama essa prática de idolatria, conclamando os leitores a não hesitarem em “denunciar

o espiritualismo como perversão da mensagem cristã”, porque esconder-se atrás do sagrado é “eximir-se

da responsabilidade de assumir a tarefa de transformar o mundo”5.

A missão é a ação de Cristo, e a ação de Cristo é uma ação de amor. O amor é o elemento central

da missão. O amor é transgressor e gratuito. "E se tivesse a profecia e entendesse todos os mistérios e

toda a ciência, e se tivesse toda a fé, de tal maneira que transladasse os montes, e não tiver amor, nada

sou" (1Cor 13:2).

O mandato do Novo Testamento de proclamar o Evangelho deve entender-se no contexto da

prática destra verdade. Quando Paulo disse que havia sido enviado a "pregar o Evangelho (1Cor 1:17),

fala a partir de sua experiência e prática de levar a cruz, de caminhar ao lado de Jesus.

Se bem que é verdade que o Evangelho nos disse que Jesus começou proclamando uma

mensagem sobre seu reino, o centro mesmo dessa mensagem não está finalmente no que Ele disse, se

não no que Ele foi e fez. A proclamação é sua cruz e sua ressurreição. É o amor que derramou em

abundância em sua vida e em sua morte o que valida, vivifica e fortalece as palavra que pronunciou. Este

é o ato evangelizador definitivo.

A missão é a ação dirigida para esta tarefa e este desígnio de Deus; a participação pessoal nesta

luta constitui a essência da resposta cristã. Se não participamos com Cristo nas situações mesmas em

                                                                                                                         5 Ver Rodolfo G. Neto, A diaconia de Jesus. Contribuição para a fundamentação teológica da diaconia na América Latina. Pag. 17 e 18. 2001. Paulus, Cotexto Editora e Ed. Sinodal.

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que as pessoas sofrem, chegaremos inevitavelmente a uma teologia deformada e agnóstica, como se a

salvação se devesse a um conhecimento reto (orto-ensinamento) em vez de um ação justa, isto é, a ação

divina (ortopraxis).

Sendo assim, uma participação débil conduz a uma teologia débil, a um dualismo perigoso que

separaria a identidade religiosa das pessoas de sua realidade secular, e perpetuaria assim uma falsa

tomada de consciência sobre a natureza do pecado e a opressão que Cristo veio destruir.

Ao contrário, uma participação real conduz a uma teologia autenticamente encarnada e bíblica e a

uma compreensão e uma prática autenticas da missão.

A missão consiste essencialmente em viver a vida cristã com Jesus, sentindo-nos solidários de

toda a humanidade. A missão é a tarefa de fazer fermentar o conjunto da criação de Deus, a comunidade

humana. O conteúdo desta ação é a vida do Reino, quer dizer, fazer efetiva a realidade do Senhorio de

Cristo na vida do mundo.

3. A  espiritualidade  do  seguimento  de   Jesus:   fonte  da  compreensão  de  poder  e  de  missão  

O Reino de Deus é o horizonte e a pauta principal para o seguimento e para a missão. Esse

horizonte nos convoca para uma mudança radical na vida e na mentalidade (para uma metanoia). Somos

chamadas/os a mudar de comportamento mas também de perspectivas, de olhares, de óculos quem sabe.

Novas lentes são utilizadas para transformar a vida, a nossa, das outras pessoas e do mundo (da

oikoumene). Ele (o Reino) é dom gratuito e não pode ser “merecido”, precisa somente ser revelado,

ordenado. Da mesma forma que do “caos” a divindade cria o “kosmos”, nós também continuamos esse ato

“cosmético” a cada dia em nossas sociedades e em nossos corpos.

Os Evangelhos mostram que o próprio Jesus delineou a exigência do seguimento em relação ao

Reino e a uma nova compreensão da experiência de Deus. Em determinadas ocasiões, o chamamento de

Jesus para seguí-lo dirige-se a pessoas singulares: A Simão e André, seu Irmão (Mc 1, 16-18), a Tiago e

seu irmão João (Mc 1, 19-20), a Levi (Mc 2,14). Em outras ocasiões, dirige-se ao círculo de seus

discípulos em geral (Mt 16,24), às pessoas que o rodeiam junto com seus discípulos ou até mesmo a

todos que querem ouví-lo (Lc 9, 23)6. Sua práxis também chamou a atenção. Aqui preciso sublinhar que

                                                                                                                         6 Discute-se se o chamado ao seguimento estrito foi dirigido pelo Jesus histórico a todos ou somente a alguns, isto é, aos escolhidos para colaborar mais diretamente com Ele na proclamação do Reino, chamados estritamente de discípulos. Talvez se possa dizer que Jesus, no começo de sua vida pública, restringiu ao pequeno grupo dos discípulos o chamado ao seguimento, para

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as mulheres não precisaram ser chamadas. Elas inseriram-se no movimento de Jesus por iniciativa

própria, expressando-se sempre de forma contundente e como modelos de discipulado e de missão para a

Igreja cristã dos primeiros séculos. Claro que isso foi combatido e canonicamente foi sendo diminuída sua

atuação e importância. Em outro momento podemos aprofundar esse aspecto.

Considerando com atenção esses chamamentos de Jesus para seguí-lo, vemos que se

caracterizam por sua singular radicalidade e por sua dupla finalidade: estar com ele e assumir uma missão

(cf. Mc 3:13-15; Mc1:17). Mas não se pode olhar pra trás quando se põe a mão no arado, tem que deixar

os mortos enterrarem seus mortos, tem que abandonar ou rever os laços consangüíneos (minha

verdadeira família7 é quem faz a vontade de meu Pai); tem que largar tudo (pai, barco, lugar geográfico

assumindo o risco do caminho sem nada). Comunicar o Evangelho não é simplesmente um emprego, mas

é uma escolha de estilo de vida, um estilo radical, perigoso, aventureiro e martirial.

Quando celebramos a “missa” (do latim “missio” / missão) estamos cumprindo o mandato de

Jesus: Façam isso em memória de mim. Mas o que é esse “ISTO”? o que é para fazer mesmo?

Infelizmente muita gente com pouca sensibilidade e prática interpretativa rapidamente vai responder que

“ISTO” é a performance da chamada última ceia. Refazer a cena estética do que teria sido a última

refeição de Jesus, durante a Páscoa Judaica, com suas/eus discípulas/os. Mas precisamos ser mais

cosméticos do que simplesmente estéticos nessa aproximação ao texto e ao mandato. Fazer ISTO é fazer

o que ele fez. A Ceia é a celebração (o ponto alto, um sumário) da vida dele, de suas práticas, de suas

transgressões, conflitos, ternuras, presenças, falas, posturas. Por isso a missa é tão importante para

nossa estrutura de fé. Não por razões somente estéticas. Não, o culto não basta e nem é o mais

“agradável a Deus”, basta revisitar a tradição profética. O culto, a missa é para ao mesmo tempo regozijar-

se pelo cumprimento e pela fidelidade ao caminho, mas também para lembrar criticamente que nosso

espírito (nossa espiritualidade) pode estar precisando de rumo, de norte, de horizonte.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       universalizá- lo depois, ao chegar ao final (cf. Evangelho de Mateus). Em todo caso, a partir da Páscoa, já se produz a identificação entre crer em Jesus e segui-lo, tomar parte da comunidade crente e ser discípulo seguidor de Jesus. (Cf. HENGEL, M., Seguimiento y carisma. La radicalidad de la llamada de Jesus (Santander, 1981) pp. 91-93, 128; BORNKAMM, G., Qui est Jésus de Nazareth? (Paris, 1973) (pp. 173-174). A teologia atual costuma considerar que o seguimento, como diz Bonhoeffer, é "um preceito divino dirigido a todos os cristãos" (cf. EI precio de la gracia (Salamanca, 1968), p. 23; METZ, J. B., op. cit., pp. 27-45; Von BAL THASAR, H.-U., Ensayos teologicos 11. Sponsa Verbi (Madrid 1964), (p. 155). Isto não significa ignorar a diversidade de carismas, vocações, ministérios e tarefas no seio da única comunidade, chamada toda ela à santidade, ao seguimento de Jesus. Como observa Metz, "na realização prática do seguimento podem dar-se níveis e 'divisões do trabalho, mas o que não existe, de modo algum, é uma dispensa geral desta missão". 7 Aqui vale a pena sublinhar a necessidade de se rediscutir o conceito de família na tradição crista.

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4. Radicalidade   do   seguimento:   a   excentricidade   como   “centro”   da  missão  

A singular radicalidade dos chamados de Jesus concretiza-se na exigência de obediência (Ob –

audire – escuta interior e pragmática) absoluta ou de entrega incondicional que deverá articular-se

historicamente em uma série de renúncias radicais. É efeito dominó. Na realidade, torna-se necessário

renunciar a tudo para fixar bem os sólidos cimentos do seguimento real (cf. Lc 14:28-33; Mt 13:44-46). A

fonte Q insiste mais na renúncia à família; Mc e Lc insistem de forma especial na renúncia aos bens

materiais; Mt e também Jo, na renúncia ao apego à própria vida. Porém, o que se trata, em definitivo, é de

renunciar a tudo que possa impedir o seguimento a Jesus e de colocar-se inteiramente ao serviço do

Reino (missão, diaconia, trabalho pastoral – desenvolvimento). Temos que ser UM (de coração unificado –

centrados – não dispersos – Sl 86: reúne o meu coração):

- renúncia ao dinheiro e aos bens materiais deste mundo (cf. Mt 6,24; Lc 18,22).;

- renúncia ao apego a nós próprios, à própria vida (cf. Mt 10, 39,e 16,24 e par.; Jo 12,24); Mt 10,39 e 16,24.

- renúncia à instalação cômoda (cf. Lc 9,57-58);

- renúncia às vinculações familiares que possam impedir ou atrapalhar o seguimento (cf. Lc 9,59-62; Mt 10,35,35-38 e par.)

- e renúncia a toda forma de dominação e opressão (cf. Mc 10,42-45; Lc 22, 24-27; 1Pe 5,2s; Mt 23,8-11 comunidade de irmãos; Jo 13).

Com razão pode-se dizer que este modo de Jesus chamar a seu seguimento nos confronta

conosco mesmas/os e com o estado atual da vida cotidiana. Estar com Jesus exige um desapego que não

estamos acostumadas/os a viver. Não é por acaso que os relatos de chamado e, especialmente o bloco

central do Evangelho de Lucas e os primeiros capítulos de Atos dos Apóstolos, estão repletos dessa

discussão que gira em torno do desapego (das coisas, do dinheiro, das pessoas, das verdades teológicas

e epistemológicas) para a missão, do abandono para o Reino. Infelizmente, na maior parte do tempo são

só temas para encontros e retiros ou textos acadêmicos e não entram na vida cotidiana, não transformam

a realidade de ninguém nem da sociedade. Algo para nosso pensar em nosso ministério seja presbiteral,

seja como teólogas/os, seja como epíscopos.

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5. Estar   com   Ele   e   assumir   sua   causa   e   seu   destino   –   O   Reino   como  conspiração  missionária  

“A espiritualidade é um caminhar em liberdade segundo o Espírito de amor e de vida. Essa

caminhada tem seu ponto de partido em um encontro com o Senhor... o encontro é marcado pela iniciativa

divina.”8

Jesus convida seus seguidores a estarem com Ele (cf. Mc 3:14), a manterem-se ao seu lado (cf.

Lc 22:28), a partilharem seu estilo próprio de vida, intinerante e desinstalado (cf. Mc 6:8ss e par.; Lc 9:57 -

58), e a seguirem em todo momento o seu exemplo (cf Jo 13:15; 14:6). O seguimento de Jesus implica,

em primeiro lugar, a comunhão com Ele (na sua vida e relações e transgressões, sofrimento, morte e

ressurreição), "assemelhar-se a Ele", ter suas mesmas atitudes e sentimentos (cf. Fil 2:5), ser santos

como Ele foi (cf. IPe 1:15-16), proceder como Ele procedeu (IJo 2:6), seguindo suas pegadas a todo

momento (cf. IPe1:21-22).

Mas, para a seguidora/or de Jesus, esse estar com Ele e comungar com seus sentimentos e

atitudes de vida é inseparável de seu ser enviado à missão de ser "pescadores de homens e mulheres"

(cf. Mc 1:17 e par.), de proclamar com palavras e sinais que o Reino já é chegado como presença salvífica

e libertadora que cura os enfermos, expulsa os demônios9, liberta os cativos e é bem-aventurança para os

pobres (cf. Lc 9:1-6; 10:2-12; Mt 10:1-16; Mc 6:7-13). O seguimento é essencialmente tarefa, encargo,

missão, prática salvífico-libertadora, comunhão com a causa de Jesus de servir ao Reino. Exige, inclusive,

a disponibilidade para participar também em seu próprio destino, assumindo a inevitável conflitividade e

perseguição, isto é, carregando a cruz até ao fim (cf. Mc 8:35; Mt 10:16-18.21-25.38-39; Lc 14:27; Jo

12:24-26).

Mas isso não estava entendido previamente pela comunidade. Houve um desentendimento no que

significava a messianidade de Jesus bem como o seguimento dele. A comunidade cristã, ainda hoje, tem

muitos problemas teológicos e espirituais de compreender a Cruz dentro da economia da salvação.

Normalmente se deseja somente um pedaço de Jesus. Ou se acentua em demasia sua vida e sua obra ou

se confunde ressurreição com imaterialidade e com irrealidade. Das duas formas nós somos arrancados

dos processos históricos, onde deveríamos viver essa espiritualidade cristã, nossa missão divina – Opus

Dei – Missio-Dei.

                                                                                                                         8 Gutierrez, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Pág. 50. Ed. Loyola. São Paulo.2000. 9 Aqui vale a pena ressaltar que há uma diferença entre “demônio” e “diabo”, que em outra oportunidade poderemos retomar.

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Nos evangelhos há uma insistência em repetir para a comunidade o fato da consequência das

opções de Jesus ser a cruz. Alguns chamam destino, mas não porque ‘já estava escrito’, mas porque esse

era e é o resultado de toda aquela/e que se compromete com a aliança. A cruz é consequência inalienável

da vida cristã. Já desde a encarnação de Deus em Jesus temos esse anuncio estabelecido. Já desde o

seu nascimento Jesus incomodava os poderosos religiosos e políticos de sua época. Não era necessário

ser muito adivinho para perceber que a consequência da vida de Jesus seria o sofrimento, a exclusão e a

cruz.

6. Seguir  Jesus  é  mover-­‐se  em  missão/diaconia  A espiritualidade não pode ser algo que aliena da realidade que nos rodeia mas, ao contrário,

vincula -se estreitamente a ela. Deus sempre toma a iniciativa. Toma a iniciativa de “descer” e de

“desempoderar-se” da sua condição divina (Fl 2:5-11). Deus vem visitar o seu povo e depor os poderosos

dos seus tronos (Lc 1:46-55.67.79). Escolheu falar com o povo diretamente e do jeito do povo. O “poder”

de Deus é a sua capacidade de relacionar-se e transformar novas todas as coisas (Is 12; Ap 21). Deus é

amor, é relação transgressora e erótica de amor. É só ali, na relação, que podemos perceber e entrar no

mistério da sua presença e graça.

Para escutar Deus é necessário assumirmos nossa humanidade, nossa fraqueza e limite, também

nossas possibilidades, seguindo o exemplo dele. Encarnou-se como carne, como gente, como ser

humano. Não é pecado ser gente. As fraquezas são só fraquezas, não “defeitos de fábrica” que precisam

ser ‘consertados’. Fazem parte da nossa humanidade, do nosso jeito de estar no mundo. E é só

assumindo esta realidade que vamos poder falar de uma realidade transcendental. A cruz é o maior

paradoxo que podemos encarar na tradição cristã. A Cruz é ao mesmo tempo sinal de sofrimento/morte e

vida/ressurreição. Como pode ser isso? Como pode a fraqueza e a derrota se transformar em fortaleza e

vitória?

Aqui não se trata apenas de ouvir a voz de Deus naquilo que eu penso e sinto, nas minhas

paixões e enfermidades... também não se trata de apenas subir a Deus descendo à minha realidade.

Trata-se de estar, a partir das minhas possibilidades, disponível a um estado de relação. E uma relação

que é essencialmente transformadora e missionária em direção as outras pessoas e ao mundo que

precisa de cura e rearranjo. Estar dispostas e dispostos a ‘dar um pulo na noite’ (cf. João da Cruz), a viver

na insegurança e nas incertezas, num estado de dependência desconfortável. Trata-se de estar

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dispostos/as a ir além das palavras, ou seja, de dialogar. E o primeiro diálogo no encontro com o sagrado

é o dialogo com as nossas fraquezas. Evagrio Pontico vai dizer que se queres conhecer a Deus tens que

conhecer a ti mesmo. A tradição monástica vai nos ensinar (o que a Bíblia já nos disse muitas vezes) que

a verdadeira oração surge das misérias e fraqueza, não das virtudes.10

Na abertura interrogativa à provocação da realidade e suas exigências de mudança e, mais

concretamente, na conversão à provocação dos empobrecidos e de seu clamor, nos abrimos à

provocação do Deus transcedente. Na alteridade da outra (especialmente a/o que mais necessita) sai-nos

ao encontro a alteridade do Deus transcedente, o radicalmente "Outro", com maiúscula, que exige de nós

um processo sempre inacabado de conversão/conversação – mudanças estruturais na vida privada e na

sociedade em que habitamos. Cumpre, porém, precisar mais na linha do seguimento tal como o temos

especificado. A solidariedade amorosa com o "outro" empobrecido, se quiser ser real e operativa, tem que

traduzir-se em participação em processos de luta libertadora. Esta participação, expressão histórica do

amor, em uma realidade marcada pelo conflito, é que constitui o lugar privilegiado de acesso ao mistério

do Deus transcedente, por quanto introduz numa dinâmica histórica que se transcende a si mesma na

medida em que reclama que se assuma uma tarefa de transformação nunca terminada. Ela é a mediação

mais apta para encontrar-se com a realidade última que a tudo transcende porque carrega em seu bojo a

exigência de um "plus" inesgotável de humanização, de busca e desinstalação permanentes e de radical

disponibilidade, de abertura ao futuro e à sua novidade inacabável e insuspeitável, de imersão em um

processo inacabado e permanente de conversão. Em definitivo, leva em si a exigência daquela mudança e

ruptura que permite passar do ser ao dever-ser, de nossos caminhos para os caminhos de Deus. A prática

da justiça é o lugar preferencial que possibilita, sem enganos, ascender ao mistério de Deus e a Deus,

precisamente, enquanto mistério último que nos transcende sempre e nos urge na entrega incondicional,

inclusive a dar a vida pelos outros (Verdade única de Deus – a entrega incondicional simbolizada pela ceia e testemunhada pela Cruz).

Aqui cumpre um papel fundamental a catequese e a liturgia. São dois aspectos da vida da Igreja

que, juntamente com a organização e prática da comunidade/igreja, devem nos levar a conhecer a Deus e

não simplesmente a cumprir os ritos que supostamente nos levariam a ele. O conhecimento (ou melhor o

reconhecimento) de Deus é feito quando nós nos deparamos com ele do jeito que nós somos. A liturgia,

em especial, é o espaço privilegiado da celebração da verdade (do não esquecimento). Mas não de

qualquer verdade, mas daquela que é a Verdade de Deus, conforme já citei acima. É o lugar onde o                                                                                                                          10 Ver as obras de Anselm Grün.

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símbolo e o rito, o espaço e a palavra falada, tornam-se não mais instrumento simplesmente de acesso ao

sagrado, mas tornam-se expressão do amor apaixonado que irradia de Deus e atinge a todo o mundo.

Como podemos ajudar a comunidade onde vivemos a viver isso de maneira humilde e serviçal? Como

podemos ajudar a comunidade onde vivemos a se descobrir necessitada de Deus e de libertação? Como

podemos envolver nossas igrejas numa espiritualidade que não seja mais falaciosa nem egocêntrica.

A experiência do Reino e da Misericórdia de Deus, portanto da Revelação de Deus em Jesus,

sempre vai nos recordar que a vida, sofrimento, alegrias, morte e ressurreição dele foi uma vida de

excentricidades, de sempre para fora de si mesmo.

7. A   imagem   de   Deus   como   “questão”   para   o   exercício   do   poder   e   a  missão    

O Novo Testamento é um escrito que abrange pelo menos 400 anos de vida, conversas,

celebrações e muitas controvérsias, revisitações, reescriturações, etc. Ele quer manter a memória dos

conflitos ocorridos no movimento de Jesus bem como na organização e crescimento das igrejas locais em

torno da imagem de Jesus, sua memória. Quem quer que fosse Jesus, ele é o fundamento da “ordem

eclesiástica e eclesial”. Portanto é fundamental manter viva determinada memória deste fundamento para

que a “ordem estabelecida” nas igrejas locais tenha sustento e “herança”.

O segundo Testamento é fruto da memória de diferentes comunidades com diferentes propósitos

e em diferentes épocas. Temos cartas, evangelhos, apocalipses, sermões, ditos, parábolas. Temos uma

variedade de temas e questões não resolvidas que ainda nos tomam tempo e nos envolvem de prazer ao

discutir e refletir. Outros temas são espinhosos e nos desconfortam em vários níveis da vida. Estes últimos

são os mais interessantes e os de maior incidência no texto canônico.

O tema do movimento de Jesus e o aparecimento da Igreja ou, em outros termos, o fato de que

Jesus veio anunciar o Reino e a Misericórdia e Salvação de todos/as e o que aparece depois é a Igreja é

um desses. Conflitivo e desconfortante no texto bíblico, nas relações históricas, na atualidade. Como de

um grupo aberto, livre, carismático, transgressor passamos para uma igreja patriarcal, imperialista,

excludente e encerrada em si mesma?

“A transformação do movimento de Jesus originalmente carismático-pessoal livre numa igreja institucional representa um processo sociologicamente necessário e também teologicamente legítimo. Um movimento carismático necessita de institucionalização para

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sobreviver ao tempo e finalmente precisa também da “grande forma” Igreja, se não quiser reduzir-se a uma seita. Todavia, se o processo de institucionalização há de ser n uma forma “monárquica” ou “democrática” é algo que não está precisamente definido pela institucionalização em si”.11

É visível, percorrendo os textos e os contextualizando na história que as igrejas,

sistematicamente, foram se adequando à configuração da casa paterna (Pater familias) e o império

romano. Não sabemos se foi de propósito ou se é algo da “natureza” das instituições. Aos poucos as

igrejas e o império seriam aliados e estariam completamente harmonizados. Constantino iria garantir isso

como forma de garantir seu poder imperial.

Ao ler os textos bíblicos comprovamos que “a proposta paulina12 de uma Eclésia igualitária,

ministerial e leiga, sinal vivo da ágape/caridade e expressão máxima da nossa fé no Cristo Senhor, veio,

aos poucos, sendo substituída por uma igreja hierárquica, autoritária e sacerdotal”.13 Os textos do NT são

a memória escrita e mantida que chegou até nós e podem nos dar um panorama desse processo cheio de

nuances e cheio de debates internos entre as igrejas da época.

Entre o movimento de Jesus, juntamente com as primeiras igrejas de inspiração paulina e os

textos do século II, como de Inácio de Antioquia, Timóteo e Apocalipse podemos perceber uma mudança

radical. Essa mudança se deu em torno da organização das igrejas mas também em termos de como

Jesus é apresentado. Temos, pelo menos, cinco “apresentações” da memória de Jesus: os quatro

evangelhos e os textos autenticamente paulinos. Em relação a igreja acrescenta-se os textos deutero-

paulinos, muito importantes para a estruturação, e a justificação dessa estrutura “imperial e familiar”, das

igrejas. Claro que os conflitos estão a flor da pele e são visivelmente perceptíveis numa leitura diacrônica.

De uma igreja de carismas e movida totalmente pelo espírito surge uma igreja completamente

hierarquizada e aos moldes do império romano e da casa paterna. Em Coríntios (década de 50/60) a Igreja

foi retratada como “corpo de Cristo” onde todos os membros eram iguais em dignidade e no ministério.

Mais tarde o Cristo se separa da Igreja “corpo de Cristo” para tornar-se o Cabeça da Igreja (Colossenses e

Efésios). Aparecem os conflitos em torno da direção e coordenação da Igreja. Diáconos (agora aqui no

                                                                                                                         11 HOFFMANN, P. op. Cit. p. 54. 12 Aqui me refiro às Cartas Paulinas, consensualmente consideradas autenticas: 1Ts, 1Cor, 2Cor, Gl, Fl, Fm e Rm. As cartas pastorais foram escritas por outros/as autores, pseudoepigraficamente, a partir dos anos 80 E.C. 13 GALAZZI, S. Da autoridade para a hierarquia. In: RIBLA 42/43 – A Canonização dos Escritos Apostólicos. Editora Vozez: Petrópolis, 2002, p. 9.

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masculino) estão em conflitos com os presbíteros e estes com os epíscopos. De vocações particulares e

independentes chegamos hoje a uma concentração em uma mesma pessoa.

As décadas onde os Evangelhos foram finalmente redigidos14 são de uma riqueza de informações

sobre esses conflitos impressionante. Conflitos sobre o significado do “poder de Jesus” manifestado nos

milagres/sinais (que na verdade são parábolas da misericórdia e graça de Deus, mais do que “poder”).

Conflitos sobre a participação na eucaristia, quem tem direito e quem não tem direito15. Conflitos sobre os

privilégios (ou não) de se estar mais perto de Jesus16. Os conflitos entre as comunidades joaninas e as

comunidades dos evangelhos sinóticos em torno da presença e ministérios de mulheres nas comunidades,

ou seja, de quem é a liderança.

A lista é longa e não cabe neste ensaio fazê-la. Aponto essas observações para poder perceber

como a questão da “memória” de Jesus e de sua representação são fundamentais para o ordenamento

das igrejas e para suas teologias.

Como compreender a vocação de Deus, e portanto vocação para sua missão e nosso

comprometimento com essa missão, que morreu na Cruz. Que poder é esse que “não tem poder”,

conforme as categorias ordinárias dos nossos pensamentos, imagens e discursos.

Parece que o hino que cantamos em Filipenses 2:5-11 não combina com a imagem que foi

desenvolvida e inscrita no “normal” da nossa teologia cotidiana, do nosso universo vocabular e semântico

ou na espiritualidade das comunidades. Experiências como fraqueza, limite, morte e finitude não

combinam com o Deus/Cristo Rei onipotente e todo-poderoso que foi sendo pintado e catequizado durante

mais de um milênio. Foi problema para os apóstolos de Jesus (os homens) que não puderam nunca

compreender o significado do seu ministério (Jo 12:1-8; Mt 26:6-13; Mc 14:3-9). Foi problema para as

igrejas depois da década de 70 E.C. Como “adorar” e/ou ter como “fundante” um Deus que se “encarnou”

– assumiu a forma humana na totalidade do limite e da finitude? Alguém que morreu crucificado? Alguém

que, aparentemente, foi vencido?

“Tu és o único forasteiro em Jerusalém que ignora os fatos que nela aconteceram nestes dias? ... O que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obra e em palavra, diante de Deus e diante de todo o povo: nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte e o

                                                                                                                         14 Falo aqui de UMA das finalizações. Com certeza durante o processo de canonização outras modificações foram executadas. 15 Vale a pena fazer uma analise literária, eclesiologica e litúrgica do conjunto de textos sobre “pão e mesa” dentro dos Evangelhos. Um bom exemplo pode ser Marcos 6-8: Primeira multiplicação dos Paes; Mulher siro Fenícia; Segunda multiplicação dos Pães. 16 Conforme os relatos da paixão Mc 8,31 – 10,52 e paralelos.

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crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel...” (Lc 24:18b-21a).

Essa pergunta, crucial para a fé e para a organização das igrejas, nos acompanha até hoje.

A primeira estrofe de Fl 2:5-11 ainda é um certo “nó na garganta” e na “mente/compreensão” de

muitas/os cristãs/ãos. O hino afirma que Jesus, o Cristo, tinha “condição divina e não se apegou a isso”.

Ou seja, não utilizou dessa “prerrogativa da sua natureza” (segundo o hino) como “privilégio”, mas como

responsabilidade e consequência do seu desejo de amar o mundo. Jesus é, para as/os cristãs/ãos, a

plena revelação de Deus. Mas é importante lembrar que Jesus não é Jesus sozinho. A economia que

envolve a pessoa, a prática e o discurso de Jesus se faz na comunidade, no mundo das relações e das

transgressões em defesa da vida como expressão do amor.

Como sempre o caminho escolhido por Deus assusta nossas mentes acostumadas a um tipo de

imagem de um Deus onipotente e todo poderoso. Na tradução da LXX Yahweh e El Shadday viraram

“pantocrator” e no Greek New Testament Jesus tornar-se “kyrios”. Coincidentemente os dois termos são

os mesmos usados para designar o imperador. Em várias Igrejas inclusive há uma festa para o

“pantocrator”, o Cristo Rei, celebrada no ultimo domingo de novembro, onde Jesus é apresentado

travestido de “rei/imperador”, apesar da nossa tentativa de disfarçar com o sermão, provocando uma

confusão entre o que se escuta e o que se contempla.

Somos ensinados, pelo rito e pela partitura dessa música/hino, que ser gente é algo divino. Nossa

finitude, limite, pecado não são impedimentos para a graça de Deus e para a salvação por causa da fé de Jesus (Rm 6-8; Ef 2:1-22). Faz parte da divindade em nós acolher nossas luzes e nossas sombras

integralmente. O corpo humano não é somente a expressão do limite, da casca/forma, o lugar do pecado,

como por tantos séculos fomos ensinados/as. O corpo humano é também o lugar de Deus, da divindade

que escolhe esse método e esse lugar para dizer-se e para ser “dito”. Contra todos os interditos ao redor

dos corpos, das sexualidades, dos desejos, dos limites, das doenças proibidas de serem sequer

pronunciadas, Jesus se diz e faz dizerem dele palavras que desconcertam, que geram incompreensões.

Deus nos fez corpos. Deus fez-se corpo. Encarnou-se. Corpo: imagem de Deus. Corpo: nosso destino, destino de Deus. Isso é bom. Eterna divina solidariedade com a carne humana. Nada mais digno. O corpo não está destinado a elevar-se a espírito. É o Espírito que escolhe fazer-se visível, no corpo. E o corpo de Deus, Jesus Cristo, se expande, incha, tomando o universo inteiro: “presente em todos os lugares, mesmo dentro da folha mais diminuta, em cada uma das coisas criadas, dentro e fora, à

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sua volta e no interior de suas nervuras, por baixo e por cima, atrás e à frente...” (Lutero). É bem aí, no corpo, que Deus e o homem se encontram” (ALVES, 2006, p.51-52)

Sua vida, práxis de libertação e de transgressões, guardada na memória das igrejas e transmitida

pelo cânon, é o apontamento sobre onde e como devemos continuar nosso caminho em direção à

santidade/perfeição, para que a vida, que é o que importa, cresça e floresça em todos os cantos.

Não existe um “lado” humano e um “lado” divino em Jesus. Cantamos com esse hino essa junção

misteriosa, erótica (que dá energia de vida) e desconfortável da humanização da divindade e vice-versa.

Privilégios e exercício de dominação não fazem parte da liturgia de Deus em Jesus. Ele não se utilizou do

fato de sua “condição divina” para si próprio. Foi exatamente o contrário, foi uma vida doada para que

outras vidas aprisionadas pela religião, pela dominação, pela distorção da memória pudessem ser livres

novamente, pudessem ser integradas.

É somente a partir “de baixo” que podemos encontrar “as coisas de cima”. Deus encarnou-se em

Jesus, desceu para encontrar a humanidade e sua criação. Encontrar Deus, pois, exige de nós descer

também, circular nos “infernus” como já nos ensinava a Igreja Primitiva. Tanto para o tempo de Paulo

como de Jesus foi necessário cantar esse hino sempre para ajudar as igrejas, que já estavam em

processo de hierarquização, a manter-se fiéis ao desejo e sonho de Deus em Jesus. A memória do Êxodo

precisava ser mantida e revisitada para que as comunidades, especialmente as lideranças das

comunidades, não corressem o risco de “traição” em nome da “tradição”.

Alguns anos antes Paulo já havia ensinado para a comunidade de Corinto que o corpo é a Igreja

de Cristo. Há havia conflitos e disputas de quem era o mais importante ou qual ministério era mais divino

do que outro. A Ceia não expressa mais o “sinal dado de graça e por graça” para que a vida permaneça

viva, mas tinha se tornado, por causa da não solidariedade, lugar de possível condenação. “Por isso há

tantos doentes entre vós”, porque a Ceia não era mais sinal e exigência de solidariedade, mas estava

correndo o perigo de tornar-se um rito vazio e externo ou, em palavras modernas, um fetiche.

8. Missão  de  Deus  –  a  excentricidade  do  Evangelho  Continua urgente e necessário fazer missão. A palavra de Deus tem “poder”. Nossa palavra tem

“poder” criador de realidades.

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"Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10:10). Esta foi a missão de Jesus,

que venha o Reino de Deus e que se faça sua vontade na terra. Essa é ainda sua missão; é o que Cristo

está fazendo através do Espirito Santo, e nós estamos chamados a tomar parte nesta obra de Deus:

conduzindo e restaurando a vida. Está claro que a “missio” não constitui proselitismo nem muito menos

aumentar as fronteiras e a dominação de uma determinada corrente religiosa, epistemológica ou cientifica.

Onde se deve “adorar a Deus”? foi a pergunta da samaritana para Jesus. Uma questão teológica

importante. Parece que a resposta é desapontadora. Não se deve adorar em nenhum lugar em particular.

Na religião cristã não existe “um lugar” geográfico e/ou arquitetônico. O “lugar” privilegiado do encontro

com Deus é a história no planeta. Mergulhar (batizar-se) na história é o início da nossa identificação com

Deus que se revelou nos corpos humanos e nas fraquezas humanas. Deus que se revela na sua criação.

Por isso falamos de missão como algo inerente, intrínseco e identitário da nossa práxis. A missão,

diaconia ou pastoral é excêntrica. É do centro para fora dele. Jesus nos chama para nos enviar, não para

ficar ao seu redor. Aqueles (o masculino é de propósito) que quiseram “ficar perto dele” foram criticados

sistematicamente pela tradição da Igreja constada nos Evangelhos. A eucaristia, o culto, a ceia são para

sairmos de nós mesmos, alcançarmos as fronteiras do mundo onde o mundo mais precisa de nossa

presença reveladora da Misericórdia e Graça de Deus. Nossa presença é requisitada onde há perigo,

tensão, desconforto.

A visão Anglicana de missão já desde muito tempo tem considerado a globalidade e a integridade

da criação como locus fundamental e estruturante da fonte e da ação missionária e diaconal, que para nós

cristãs/ãos é o mesmo que dizer nosso envolvimento com ações de transformação. No livro “Horizons of

mision”, volume 11, em 2001, Titus Presler elenca 10 marcas ou qualidade da missão:

1. Proclamar o Evangelho com a força do batismo,

2. Servir como sacramento (parábola17) de Cristo nas relações estabelecidas,

3. Viver em solidariedade com o sofrimento,

4. Receber o Cristo como peregrino no caminho,

5. Alimentar a “inteireza” humana em comunidades locais,

6. Lutar por justiça, reconciliação e paz,

7. Colaborar com outras igrejas e grupos cristãos,

8. Perceber a expressão do Evangelho nas diversas culturas,

                                                                                                                         17 Inserção do autor deste texto.

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9. Cooperar com gente de outras tradições religiosas,

10. Celebrar a eucaristia em comunidade.

Alguns anos mais tarde durante o 140 Encontro do Conselho Consultivo Anglicano, que aconteceu

na Jamaica em 2009, falando sobre o Evangelismo e a Iniciativa de Crescimento da Igreja afirmou que “a

compreensão anglicana de missão é holística como afirmado dentro das Cinco Marcas de Missão:

Proclamar o Evangelho do Reino, Ensinar, batizar e sustentar novos convertidos, responder as

necessidades humanas através do serviço de amor, procurar transformar as estruturas injustas da

sociedade, lugar para salvaguardar a integridade da criação e sustentar e renovar a vida na terra.

9. A  Missão  de  Deus  tem  sua  iluminação  com  a  Encarnação  É necessário enfatizar que a missão de Deus tem como um dos pontos de partida o

reconhecimento do evento erótico e apaixonado da encarnação. “O verbo se fez carne e habitou entre

nós” (Jo 1:18). Veio sacralizar, dar sentido novo, ao mundo de complexas e paradoxais relações nas quais

estamos todas/os (nós e o planeta) envolvidas/os.

E ele se faz reconhecer como servo sofredor (Mc 1:9-11; 8:31-10:52). Faz-se manifestar no povo

empobrecido, necessitado e carente de amor e compaixão (nem a religião nem o império puderam garantir

isso, o que torna urgente uma reflexão e autocrítica). Isto reflete e afeta toda a nossa atitude com o povo e

com o planeta, bem como sobre a forma em que nos comunicamos e compartilhamos o evangelho de

Jesus: O Reino de Deus chegou. Os chefes religiosos, muitos chefes de ONGs e de muitas instituições,

não começaram pelo povo, mas sim por uma série de certezas teológicas que introduziram pela força na

situação humana, com resultados trágicos. Jesus começa pela condição humana e pergunta pelo que trará

e restaurará a vida. Para ele a vida em necessidade e ardente de desejos vêm em primeiro lugar e

transforma-se em sua pauta práxica até sua morte e morte de cruz.

A Missão de Deus começa pelo reconhecimento de quem é o povo, em relação com o Criador e

com as pessoas entre si mesmas, bem como com o restante da criação, tanto no que se refere as

limitações da existência como a suas possibilidades.

Isto implica certos pressupostos sobre a natureza da humanidade. É essencial que esses

pressupostos se expressem deliberada e coincidentemente.

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As pessoas são feitas a imagem de Deus18. Esta afirmação bíblica essencial tem uma enorme

importância para a dignidade de todos os seres humanos, para sua personalidade e sua relação com o

Criador, e para toda a concepção do ecumenismo. O destino das pessoas criadas a imagem de Deus é

desfrutar de uma humanidade plena, isto é, ser "sujeitos" ( participantes ativos na história de suas vidas) e

não "objetos" ( receptores passivos de ditados e imposições de outros).

O crescimento e a liberdade dos seres humanos estão sempre em relação com outros membros

da comunidade humana e cada vez mais tomamos consciência de uma conexão com a natureza/planeta.

A missão que começa precisa continuar muito sensível a realidade cultural, que é fundamento

mesmo em que está arraigada a existência de cada um. Dado o caráter social dos seres humanos, quando

não se respeita sua realidade cultural não se respeita sua condição humana. A realidade cultural das

pessoas incluí seu patrimônio religioso e seu território.

Esta forma de considerar as pessoas em sua realidade cultural não significa uma aceitação

estática ou desprovida de sentido crítico de toda expressão cultural. Não obstante, o fundamental da

missão cristológica que começa pelas pessoas consideradas em sua realidade cultural é o respeito. Deus

já está aí, seu espirito atua desde o princípio.

A convicção de que as pessoas têm a responsabilidade de administrar a criação de Deus é

fundamental para a concepção cristã de "quem é o povo"; esta convicção se deriva da verdade de que os

seres humanos foram criados a imagem de Deus e, por isso, foi-lhes dado a responsabilidade (o domínio)

da ordem criada. Por conseguinte, os seres humanos são os administradores junto com Deus da criação.

A afirmação de que as pessoas devem ser sujeitos e não objetos se confirma de novo. Toda forma de vida

humana (toda estrutura da sociedade) que mantém as pessoas como objetos e lhes nega o direito a ser

"sujeitos de sua história" é uma violação de sua condição humana e de seu destino de ser administradores

da criação de Deus.

10. A  missão  começa  pelas  "pessoas  que  estão  em  vulnerabilidade"    Ainda que a missão de Jesus é universal, para "que a humanidade seja salva e conheça a

verdade" (1Tim 2:4), também é verdade que Jesus mostra um interesse especial pelas pessoas que

                                                                                                                         18 Tomo como referência reflexões já realizadas e publicadas no contexto do Programa Missão Urbana e Rural (encerrado) do Conselho Mundial de Igrejas na década de 80.

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sofrem. No sermão de Nazaré, no princípio de seu ministério (Lc 4:18-19), Jesus fala com as palavras do

profeta Isaías:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres, e curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, a proclamar um ano aceitável ao Senhor.

Assim é como Jesus entende sua missão.

A proclamação de hoje em dia da opção deliberada de Deus de por-se do lado dos oprimidos é fiel

a esta revelação bíblica. Karl Barth afirmou este ensinamento bíblico muito antes (1961) de que se adotara

como um tema central da "teologia da Libertação".

“A justiça humana requerida por Deus (...) tem necessariamente o caráter de uma reivindicação de

direitos em favor dos inocentes que se vem ameaçados, dos pobres que sofrem opressão, das viuvas, os

órfãos e os estrangeiros. (...) Deus sempre se põe incondicional e apaixonadamente deste lado e só deste

lado (...) contra quem já desfrutam de direitos e privilégios e em favor daqueles a quem lhes é negado

estes e se vêm privados deles.”

11. Organização  para  conquistar  a  justiça  /  organização  para  exercer  poder    (diaconia)  Existem muitos interesses poderosos que atuam contra a libertação; por isso, é evidente que não

poderá conquistar-se a liberdade sem luta. Para poder ganhar essa luta é absolutamente essencial que o

povo se organize para adquirir poder, organização que consiste em ensinar as pessoas a descobrir seu

valor como seres humanos criados a imagem de Deus, sua dignidade, confiança e sabedoria coletiva, todo

o qual conduz a uma ação comunitária eficaz. Dada a realidade dos ‘principados e potentados", que se

encontram manifestamente nas estruturas da sociedade, a luta por uma libertação completa do povo

requer organizar-se para adquirir poder e exercê-lo a partir da fé no Cristo que é irmão e salvador.

Omitir-se desta necessidade revela uma ignorância culpável das forças do mal e uma negativa a

reconhecer uma dimensão vital do processo que as freia e as derrota. É imperativo para as igrejas

envolverem-se na formação de lideranças na luta pela cidadania plena e na busca dos direitos humanos e

planetários. A vida pública (a res-pública) é responsabilidade também da missão de Deus e nós, como co-

trabalhadoras/es (colaboradoras/es) precisamos nos articular para um maior envolvimento. “A vida do

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homem é a glória de Deus” já disse Irineu de Lyon no final do século II d.C. Glorificar a Deus, fazer missão

de Deus é fazer a vida florescer, envolver-se, participar na construção e no desenvolvimento do nosso

lugar de morada que é comum e está visivelmente ameaçado.

12. Educar  para  a  liberdade  –  emancipação  como  critério  As pessoas tem que participar no processo de sua própria libertação. A liberdade é uma função do

ser humano. A participação é a prática da liberdade. Se não se estimula e capacita as pessoas para

participarem plenamente no processo libertador, não poderá produzir-se uma verdadeira libertação; tal é a

importância fundamental da participação, que é uma característica do ser humano e da comunidade

humana. Todo "projeto de libertação" que subestime e ignore a participação como um elemento básico do

caminho ( e a meta) da libertação haverá de considerar-se com uma enorme desconfiança. Os cristãos

creem ter uma percepção especial da profundidade do mal e de suas diferentes manifestações, tanto sutis

como de outro tipo. A melhor proteção contra todas as formas de fascismo e de totalitarismos é a

participação plena e significativa do povo no processo de libertação.

A organização para adquirir poder de uma forma que permita conquistar as metas da missão cristã

se caracteriza sempre pela realidade da participação popular em todos os níveis e espaços da vida. Nas

igrejas não pode ser diferente. Tanto mais as igrejas pertencem à herança de Jesus quanto elas foram

expressões de participação e co-responsabilidade entre todos/as os/as membros.

13. O  imperativo  da  resistência  Quem espera em Cristo não pode seguir aceitando a realidade tal como se apresenta, se não que

começam a sofrer sua consequências e opor-se a ela. A paz com Deus significa conflito com o mundo. A

esperança faz com que a Igreja Cristã seja um estorvo contínuo na sociedade. “Não vos conformeis com

esse mudo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade

de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12:2).

Esperar contra toda esperança e resistir são atitudes em defesa da plenitude da vida. É toda

atitude e ação, individual e coletiva, que se opõe as forças que ameaçam aos seres humanos e a obra

criadora de Deus no mundo ( entre estas ameaças concretas se encontram a exploração econômica, a

marginalização e a perseguição das pessoas). Parece que cabe as igrejas esse papel de evangelizar no

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sentido de ser realmente parábolas do Reino e espaços de vida e de relações

“saudáveis/salvíficas/curadoras”.

Por isso, o fato de que os cristãos estejam chamados a oferecer resistência não deveria sequer

considerar-se como tema de discussão na comunidade cristã. Onde quer que as leis da sociedade violem

de uma maneira flagrante e sistemática a lei de Deus, não deveria existir nenhuma dúvida de qual é o

dever cristão. Há muitas situações na vida nas quais obedecer a Deus exige desobedecer ao César.

A desobediência às “coisas do mundo” se converterá em uma qualidade necessária da missão

cristã sempre que as leis da sociedade prejudiquem gravemente aos seres humanos e ao planeta.

Os cristãos estão unidos a Cristo e receberam do Espirito Santo o poder de participar na obra

divina de libertar a criação para que esta seja totalmente conforme aos desígnios de Deus. Estar unido a

Cristo significa estar unido a uma comunidade que tem uma função especial no seio da humanidade e em

favor dela. A Igreja de Cristo - seu corpo - existe para o mundo. É um instrumento dos desígnios salvíficos

de Deus para toda a criação, o plano divino " de reunir todas as coisas em Cristo, na dispensação do

cumprimento dos tempos, assim as que estão nos céus como as que estão na terra"(Ef.1:10).

Os cristãos que entregam sua vida pela cura da comunidade humana dão testemunho da

realidade de Deus, de quem recebem sua força. Dão testemunho da plenitude de vida e da libertação de

que gozam os filhos e filhas do Criador que vivem em uma comunidade nutrida por Aquele que é o pão da

vida. "Fazer a Missão" a maneira de Cristo é viver esta vida para o mundo.

Esta comunidade encontra Deus na celebração do culto e na oração, assim como no ato de partir

o pão, e encontra também Deus encarnado muito especialmente nos que sofrem. "Pai, aqueles me deu,

quero que onde eu estiver também eles estejam comigo" (Jo 17:24). Encontramos Deus no faminto, no

que padece frio e está nu; o encontramos no pobre e no prisioneiro.

14. Continuando  a  provocação   É muito desafiante atirar-se na direção do desconhecido ou do conhecido que sabemos que

comporta conflitos e desconfortos. A certeza cristã de que o Espírito do Senhor é nosso paráclito e está

conosco se mistura com o medo do desconforto (vento impetuoso) e do fogo que arde e incomoda (At 2).

A beleza e a exigência intrínseca à identidade cristã da misericórdia e da graça misturam-se com nossas

limitações de compreensão das mesmas e nossa eterna tentativa, feito Jonas, de zangarmo-nos com

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Deus que perdoa ímpios e pecadores ou de parecer com o filho mais velho da parábola do pai

misericordioso de Lucas 15, indignado pela festa dada ao que havia se perdido e foi encontrado.

É neste emaranhado de encontros e desencontros que seguimos em esperança eterna nos

desafiando e nos deixando desafiar pela fé militante e graciosa (graça plena que faz a ética e a estética

misturarem-se) dada por Deus, que mesmo sabendo que no coração da humanidade habita o pecado e a

iniquidade (Gn 6-8 e Rm 1-8) decidiu nunca mais destruir o mundo e tornar seu amor por nós

inquebrantável, pois nada pode nos separar do amor de Cristo.

“Que o caminho seja brando a teus pés o vento sopre leve em teus ombros, que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas em teus campos. E até que, de novo, eu te veja, Que Deus te guarde na palma da sua mão” (benção irlandesa)