a grande desvalorização iii

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Neste trabalho Eleutério Prado trás importantes contribuições a cerca da grande desvalorização do valor a qual o capitalismo contemporâneo em crise passa.

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    Como os bancos centrais so transformados em bad banks

    Ernst Lohoff e Norbert Trenkle discutem a crise econmica e financeira

    Entrevista dada a Reinhard Jellen. Traduo da verso em ingls feita por Joe Keady do original em alemo. A entrevista

    foi publicada originalmente na revista Telepolis em 1 de agosto de 2012.

    Nuvens negras despontam no horizonte: com as economias da Europa ameaando cair como peas de domin e com o fim do euro vista, as contramedidas polticas parecem ser cada vez mais ineficazes, apesar das suas dimenses absurdas (a Alemanha, por exemplo, est atualmente comprometida com um passivo global de 644 bilhes de euros).

    Cada soluo apresentada para o problema parece se transformar discretamente em um problema ainda maior, pois exacerba e aprofunda ainda mais a crises financeira, da dvida e econmica. Com o fim da ltima bolha financeira remanescente, ou seja, quela dos emprstimos soberanos, juntamente com a iminente inflao, a crise vindoura poderia fazer o perodo seguinte Sexta-feira Negra, em 1929, parecer um agradvel passeio em um luminoso domingo de Pscoa. O que se segue uma conversa com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, cujo livro Die Grosse Entwertung (A grande desvalorizao) localiza os limites histricos da economia burguesa em nosso tempo.

    RJ: Como Marx nos ajuda a compreender de modo melhor a presente crise do

    que outros tericos?

    EL: Para responder a essa pergunta, primeiro temos que olhar para as discusses travadas em torno da crise atual, as quais se caracterizam por uma discrepncia notvel. Por um lado, facto de que se est diante de uma crise de propores histricas; a cada par de semanas acontece uma nova reunio de cpula que termina com as cabeas mais importantes do mundo atual anunciando que acabaram de salvar a economia global da destruio. Por outro lado, as explicaes que esto sendo oferecidas para este desenvolvimento dramtico so extremamente pobres. O discurso oficial em torno da crise est sendo conduzido no mesmo nvel de atuao de um encanador amador que corrige um cano aqui e ali da casa em construo, enquanto o poro est se enchendo de gua. Toda espcie de manobra tecnolgica e financeira est sendo discutida, mas ningum realmente sabe o que de cada uma delas vir, porque no existe uma anlise teoricamente fundamentada do processo de crise em curso.

    Enquanto isso, os representantes mais conscienciosos da teoria econmica esto admitindo abertamente a falncia de sua disciplina. O professor de Harvard e ex-economista-chefe do FMI, Kenneth Rogoff, por exemplo, disse recentemente ao jornal alemo de negcios Handelsblatt que os modelos econmicos altamente elegantes

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    que dominam a academia h dcadas, na prtica, foram muito, muito mal sucedidos. Quando o grande choque veio, eles se mostraram inteis.

    RJ: O que causa essa falha total? EL: Achamos que essa causa se encontra numa questo bsica que est

    pedindo para ser respondida, em primeiro lugar. A questo fundamental posta pela crise de nossa era realmente muito bvia: por que uma sociedade dotada de uma capacidade produtiva absolutamente imensa, que capaz de produzir sem parar enormes quantidades de riqueza material, pode chegar concluso em certo momento de que ela, aparentemente, est vivendo acima de suas possibilidades? Podemos encontrar a resposta a esta questo em Marx desde que ele seja lido criticamente e no por meio dos modelos interpretativos do marxismo tradicional ou do chamado renascimento de Marx que estamos vendo prosperar agora.

    Riqueza material vs. Riqueza abstrata

    O Capital de Marx no comea contrastando o capital e o trabalho, mas pela

    forma elementar da riqueza na sociedade capitalista: a mercadoria. Marx mostra que a contradio fundamental que explica a tendncia crise no capitalismo em geral e, em particular, naquela que ocorre no momento atual, est contida na prpria mercadoria. Trata-se da contradio entre duas formas diferentes de riqueza: por um lado, tem-se a riqueza material, tal como expressa na produo de bens; por outro, tem-se a riqueza abstrata, a qual est representada na categoria valor e se encontra reificada na forma de dinheiro.

    Sob as condies da moderna produo de mercadorias, ou seja, dentro de uma sociedade capitalista, a riqueza material apenas produzida medida que ela tambm pode representar valor, ou seja, medida que contribui para a valorizao do capital. Assim, a produo de bens sempre um meio para um propsito que lhe externo: o fim em si mesmo de transformar dinheiro em mais dinheiro. Toda vez que este fim no pode ser alcanado porque a valorizao do capital chegou a um impasse, a riqueza material tambm deixa de ser produzida. Os bens so mesmo destrudos porque no podem ser vendidos; e isso ocorre apesar do fato de que necessidades permanecem insatisfeitas numa escala macia. Por exemplo, as pessoas tm que viver em tendas, enquanto suas casas permanecem vazias, porque simplesmente elas no podem mais pagar a sua dvida hipotecria.

    RJ: O que caracteriza as crises econmicas na sociedade burguesa em

    comparao com as crises de outras eras? NT: Basicamente, podemos dizer que as crises no capitalismo no surgem da

    escassez, mas da abundncia e em meio abundncia. Essa uma insanidade bsica que os economistas no podem explicar porque eles naturalizam a produo da riqueza abstrata: eles apresentam a produo de mercadorias como uma forma inata da economia humana. Por essa razo, eles no prestam ateno s contradies internas entre a produo material e a produo de riqueza abstrata e, assim, tornam-se cegos para as causas profundas da crise corrente.

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    Crise estrutural na produo de valor real RJ: Que espcie de crise econmica esta que ora acontece? EL: Marx faz distino entre crises gerais e particulares; afirma que nas crises

    do mercado mundial, todas as contradies da produo burguesa entram em erupo em conjunto; nas crises especficas (particulares em contedo e em extenso) as erupes so apenas espordicas [sic], isoladas e unilaterais. Nenhuma outra crise na histria do capitalismo merece ser chamada de crise geral como aquela que tem se manifestado desde o outono de 2008. todo um sistema de crises parciais que se criam mutuamente, sobrepem-se e se constroem umas s outras.

    Antes de tudo, duas camadas principais tm que ser analisadas separadamente. Primeiro, h uma crise estrutural na produo de valor real. Esta vem ocorrendo continuamente sob a superfcie dos acontecimentos, desde os anos 1970; ela nunca foi superada e, de fato, no pode ser superada porque se origina no fato de que a produtividade, desde ento, tem sido muito alta para manter o processo de valorizao do capital. O capital tem de se reproduzir porque, em caso contrrio, ele deixa de ser capital. E, para que isso ocorra, preciso que uma fora de trabalho em constante crescimento seja utilizada para produzir mercadorias. Mas, ao mesmo tempo, a concorrncia produz sem parar uma corrida pelo aumento da produtividade, a qual leva a uma constante substituio de trabalho por capital fixo. Ora, essa a contradio interna fundamental no modo de produo capitalista que, ao final, volta-se contra o prprio modo de produo. Especificamente, se a produtividade to alta que enormes massas de fora de trabalho so tornadas suprfluas, isto pe em risco a prpria base da valorizao do capital. Trata-se precisamente disso o que est no miolo da crise estrutural fundamental crise esta, alis, que o prprio sistema capitalista global ps-se a si mesmo aps o fim do boom do ps-guerra.

    RJ: Qual vem a ser a outra camada fundamental da crise? NT: A crise que acabamos de descrever tem sido encoberta pela enorme

    expanso dos mercados financeiros ao longo de dcadas. Ao nvel do sistema, a acumulao de capital ganhou fora aps as crises da dcada de 1970; desse modo, a economia mundial conseguiu comear a crescer novamente. Esse crescimento, porm, no foi acionado pela produo efetiva de valor por meio do emprego de fora de trabalho, mas por meio do aumento explosivo de capital no setor financeiro. medida que a circularam mais e mais ttulos de propriedade (dvidas, aes, derivativos, etc.), teve continuidade uma prestidigitao que consiste em fazer aparecer no presente um valor futuro, ou seja, em transformar um valor que, na verdade, no foi ainda produzido e que, talvez, no venha a ser nunca produzido, em riqueza abstrata atual.

    Mas essa reproduo do capital por meio da antecipao de valor, a qual j h muito tempo atingiu propores astronmicas, entrou em crise. Ainda que o aumento constante nos ttulos de propriedade, sem o qual o capitalismo j no pode mais sobreviver, esteja acontecendo da mesma forma que sempre, ou melhor, esteja at mesmo ganhando velocidade, isso ocorre porque um impulso esta sendo dado pelos governos e, sobretudo, pelos bancos centrais. Os estados nacionais aumentam a sua dvida e os bancos centrais fornecem crditos excessivos os bancos privados, a taxas

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    nulas de juros, enquanto que, simultaneamente, seguem comprando certos ttulos que ningum mais quer comprar. Na verdade, lentamente, est se chegando aos limites desse processo, sendo a crise do euro apenas um exemplo.

    "Os bancos centrais assumem os riscos"

    RJ: Como mudou o papel dos bancos centrais ao longo da crise financeira? EL: Acima de tudo, o termo capital fictcio evoca o capital fictcio criado pelos

    prprios atores econmicos no setor privado: direitos dos bancos comerciais contra os seus devedores; aes e ttulos que so mantidos pelas companhias de seguros, fundos de investimento ou por investidores privados. Mas medida que o dinheiro deixou de se apoiar no padro-ouro, outro ator tornou-se importante na criao de capital financeiro no interior do prprio setor financeiro: o banco central. A poltica monetria no significa nada sem a influncia de uma custdia do dinheiro medida que o capital-dinheiro fictcio vai sendo criado. Isso pode acontecer indiretamente, por exemplo, por meio da criao de reservas mnimas que os bancos comerciais esto obrigados a manter, deixando de emprestar.

    Mas h outra coisa que muito mais importante. Os prprios bancos centrais entram nos mercados financeiros e de capitais na condio de participantes que acumulam capital fictcio. A chamada criao de dinheiro acontece quando os bancos centrais garantem crdito aos bancos comerciais por meio da compra de certas promessas de pagamento. Quando os bancos centrais reduzem as taxas de juros que pagam nessa compra de ttulos de crdito, eles alimentam a criao de capital fictcio. O aumento da taxa bsica de juros tem o efeito oposto. Essa poltica de juros tem sido essencial para a superao das quedas crticas anteriormente ocorridas na era do capital fictcio. Ele conseguiu alimentar o comeo de uma acumulao privada de capital fictcio durante a grave crise da Nova Economia, na virada do milnio, reduzindo drasticamente a taxa bsica de juros.

    A bolha imobiliria que reacendeu o fogo da economia real foi alimentada pelo crdito barato. Mas a crise atual parece diferente. Para evitar o colapso do sistema financeiro, os bancos centrais tm comprado, sucessivamente, mais e mais ativos txicos para garantir crdito em grande escala ao setor privado, de um modo que ningum mais poderia faz-lo, alm de manter uma poltica de juro zero que fornece a matria-prima para novas bolhas. Durante a fase de crise aguda, no outono de 2008, ele teve de substituir o mercado interbancrio paralisado. Normalmente, os bancos internacionais emprestam uns aos outros aquele dinheiro que eles no esto atualmente usando; porm, aps o colapso do Lehmann Brothers, eles ficaram to desconfiados uns dos outros que essa forma de liquidez secou e os bancos privados passaram a receber crdito apenas dos bancos centrais.

    O que ainda mais grave do que a ao de resgate de curto prazo o fato de que os bancos centrais terem sido obrigados, nesse entretempo, a comprar em grande escala ttulos de governos com o fim de evitar que o mercado de ttulos entre em colapso, produzindo-se ento uma reao em cadeia de falncias governamentais. Mas a crise bancria continua ainda latente, de tal modo que os bancos centrais continuam a assumir riscos. Eles esto, tambm, alimentando os bancos comerciais em

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    dificuldades com crdito de longo prazo que, obviamente, tero de ser cancelados em caso de falncia.

    Seja o Fed nos EUA seja o Banco Central Europeu, esse processo est transformando esses bancos centrais em bad banks. Eles esto loucamente bombeando capital-dinheiro no sistema bancrio, ao mesmo tempo em que a qualidade de suas reservas monetrias est se deteriorando rapidamente; eis que elas se compem cada vez mais por ativos txicos no comercializveis. As compras emergenciais de promessas de pagamento feitas nos ltimos quatro anos pode ter impedido o colapso do sistema financeiro; elas, porm, apenas adiaram a necessidade de desvalorizao. De qualquer modo, ao faz-lo, nacionalizaram o problema.

    A questo no se vai haver inflao, mas quando ela aparecer.

    RJ: Quando, em sua opinio, a inflao comear?

    NT: A estabilidade monetria est ameaada de dois lados: por um lado, os

    bancos centrais esto introduzindo mais e mais capital dinheiro no sistema bancrio. medida que os bancos e seus clientes reutilizam esse capital dinheiro como capital, ou seja, desde que comprem ttulos de propriedade ou que o invistam de forma produtiva, no h consequncias graves para a estabilidade monetria. Isso muda, porm, quando ele passa a fluir nos mercados de bens e servios finais, sendo ento tratado meramente como dinheiro extra para a compra das mercadorias disponveis nos mercados. Se isso acontece em grande escala devido falta de investimentos de capital, o inchao na superestrutura financeira ter de ser transformada em uma desvalorizao da moeda, ou seja, em inflao. Ao mesmo tempo, como j foi indicado, cedo ou tarde, ocorrer uma desvalorizao aberta das reservas monetrias. Assim, uma oferta imensa de dinheiro encontrar uma demanda reduzida.

    Nessa perspectiva, a questo no saber se haver inflao, mas quando ela ir comear e qual o curso que ir tomar. Por enquanto, pelo menos aqui na Alemanha, a inflao tem se restringido aos metais preciosos e aos bens imobilirios, os quais funcionam como investimentos seguros no mundo contemporneo. Na vida cotidiana, isso aparece tambm sob a forma de rendas crescentes. Mas dificilmente pode parar por a.

    Em outra perspectiva, possvel tambm que haja um retorno ao estado em que a economia mundial se encontrava antes da decolagem do capital fictcio. Na dcada de 1970, os pases capitalistas centrais foram marcados por um fenmeno que os economistas chamaram de estagflao: um fraco crescimento era acompanhado de inflao anual de cerca de 10%. Mas as dimenses do problema cresceram em comparao com aquelas observadas no referido perodo. Um fraco crescimento pode levar agora a uma depresso manifesta; a inflao pode chegar hiperinflao. Adiar crise tem um preo.

    A crise econmica e o capital fictcio

    Enquanto os tericos neoliberais e keynesianos preferem interpretar a crise como um problema do lado da oferta ou lado da procura, Ernst Lohoff e Norbert Trenkle afirmam que a economia burguesa sofreu um ataque cardaco com o incio da

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    era da TI [ou seja, da tecnologia da informtica]. Pois, com ela veio uma crescente substituio do humano trabalho por tecnologia. Ocorreu uma expulso muito grande de pessoas para fora do trabalho assalariado [produtivo], ao mesmo tempo em que foi mantido o trabalho como fonte fundamental do lucro. Essa mudana, segundo eles, apenas pde ser compensada com a expanso exorbitante do capital especulativo ou seja, do capital fictcio. A quantidade de ttulos de propriedade negociados nos mercados financeiros cujo valor apenas pode ser realizado no futuro, mas que so negociadas com antecedncia como capital, tais como os derivativos, os ttulos futuros, as opes, etc., aumentou dramaticamente nos ltimos anos, excedendo o valor produzido pela economia real muitas vezes.

    Mas esse deslocamento da acumulao da produo para a esfera da especulao no elimina o problema da valorizao. Em vez disso, ele move esse problema para um nvel mais profundo com consequncias ainda mais graves. previsvel que a f na realizao do valor futuro deva entrar em colapso porque a base real desses ttulos de propriedade est sendo erodida. Ento, na opinio dos autores do Die Grosse Entwertung (A grande desvalorizao), toda a cadeia desse castelo de cartas tambm entrar em colapso.

    RJ: O que causou a crise atual? NT: Ao olharmos para as causas, temos de distinguir entre as duas grandes

    camadas da crise. No nvel de base, a crise da valorizao do valor, como j foi dito, resulta da acelerao do desenvolvimento da produtividade, a qual torna o trabalho cada vez mais suprfluo. A terceira revoluo industrial desempenha um papel fundamental nesse processo. Nas fases anteriores do desenvolvimento capitalista tambm existiram foras poderosas em direo racionalizao, por exemplo, nos anos das dcadas iniciadas em 1920 e em 1930, quando foram introduzidos os mtodos da produo fordista. Mas tambm, nessas fases, abriram-se ao mesmo tempo novos setores da produo industrial de massa, os quais exigiram uma absoro macia de fora de trabalho adicional. A expanso da produo de mercadorias para novos campos compensaram os efeitos de racionalizao, de modo que, em ltima anlise, mais trabalho passava a ser absorvido do que antes.

    Mas, na terceira revoluo industrial, este mecanismo de compensao no est mais funcionando. Pois, a reestruturao do processo de produo com base na tecnologia da informao significa que se transfere o poder produtivo da sociedade para o nvel do conhecimento ou, mais precisamente, para o nvel da aplicao do conhecimento produo. Como resultado, os fundamentos da valorizao do capital so ento postas em causa. E isso ocorre porque h um deslocamento absoluto da fora de trabalho em todos os setores da produo de valor, ao mesmo tempo em que no surgem novas indstrias que possam se tornar competitivas.

    RJ: Ento, o que capital fictcio e qual o seu papel na crise atual? EL: A noo de capital fictcio essencial para a compreenso da segunda

    camada da crise. um termo que Marx introduziu apontando para um modo de existncia do capital que distinto daquele do capital funcionante. Ele mostrou que o capital em seu curso de desenvolvimento no apenas transforma a produo de

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    batatas, ao, txteis etc. em produo de mercadorias, mas tambm que ele prprio, enquanto capital dinheiro, tambm se transforma numa mercadoria negocivel.

    "Esperana objetiva de valor futuro"

    O que acontece nesse processo surpreendente. O capital inicial, como

    resultado de uma venda, ganha de repente uma existncia dupla. Por um lado, certo capital inicial est agora na posse de um devedor ou de uma empresa emissora de aes, mas, ao mesmo tempo, o credor ou o acionista detm tambm um espelho do capital inicial, ou seja, um ttulo de propriedade (indicador de um emprstimo, de uma participao etc.), o qual representa uma esperana objetiva de um valor futuro. Esta duplicao no uma mera fico como o termo capital fictcio parece sugerir. Ela no existe apenas na mente das pessoas. Ela adquire uma existncia social objetiva sob a forma de valores mobilirios, pelo menos enquanto o certificado de dvida correspondente se afigura como resgatvel. Trata-se de uma reivindicao de valor futuro que representa riqueza capitalista, exatamente da mesma forma que o valor retirado pelo capital funcionante do trabalho na esfera da produo.

    Este tipo de expanso de capital mediante a capitalizao prvia de valor futuro era marginal, quase irrelevante para o desenvolvimento de longo prazo da acumulao de capital, no tempo de Marx. Mas, ao longo dos ltimos 30 anos, tornou-se uma fonte imprescindvel de riqueza. Diante do fato de que o trabalho est se tornando cada vez mais suprfluo devido aos ganhos de produtividade, para que a produo capitalista possa ter continuidade, pores cada vez maiores de valor futuro, fictcio, foram sendo trazidos do futuro para o presente. Como resultado desse processo, a crise estrutural de valorizao pode ser, por enquanto pelo menos, adiada.

    RJ: Como fica o que est sendo puncionado do futuro? EL: Infelizmente, um sistema baseado na antecipao da produo de valor

    futuro s pode funcionar como uma corrente de cartas que se multiplica ao longo do tempo, ou seja, como um processo duplamente limitado: de um lado, quanto mais tempo essa forma insana de capitalismo continua se reprocessando, mais rpido acumulado em direo aos cus um montante de ativos txicos, indicadores de um futuro capitalista que j foi consumido. As dvidas do passado no podem desaparecer sem consequncias. Ou elas tm de ser refinanciadas ou o capital social que representam ser destrudo por anulao do capital fictcio.

    "As dvidas do passado no podem desaparecer sem consequncias"

    Por outro lado, a crescente onda de novos ttulos de propriedade s pode

    encontrar mercado caso, de alguma forma, paream plausveis os cumprimentos das promessas de pagamento e as perspectivas de lucro oferecidas por parte dos tomadores de emprstimos. Quando isso no pode mais ser garantido, a bolha estoura e parece ocorrer uma mera crise financeira. Na realidade, a nica coisa que falhou foi o mecanismo que permitiu a crise estrutural de valorizao ser adiada por dcadas. Ao se entender esse ponto, compreende-se que a crise atual muito mais dramtica

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    do que tem sido percebida. uma crise sistmica no sentido mais estrito do termo: uma crise que realmente pe em causa o sistema capitalista de produo de riqueza.

    RJ: Quais sero as consequncias das polticas de austeridade que esto sendo

    implementadas pelos dirigentes financeiros e polticos como uma soluo para a crise? NT: Duas coisas tm de ser mantidas separadas quando se fala de polticas de

    austeridade. Austeridade no sentido de estabelecer metas oficiais, especificamente como um caminho para a consolidao oramentria, vem a ser uma fada Morgana. Pois, novas dvidas tero de ser contradas, crescendo assim por conta prpria, porque os Estados ficaram sem nenhuma outra opo do que bombear continuamente incontveis bilhes no sistema bancrio e financeiro, a fim de adiar o prprio colapso pelo tempo que puderem. Fazem isso porque haver consequncias catastrficas se no o fizerem. Mas esses bilhes no podero vir de criao de valor real. Apenas podero ser levantados por meio da antecipao repetida de valor futuro.

    "As consequncias para a maioria da populao so devastadoras"

    Assim, os Estados tm de fazer tudo ao seu alcance para garantir a sua

    solvncia, procedendo como se estivessem em condies de consolidar os seus oramentos de longo prazo. E isso exatamente o que eles procuram demonstrar por meio de polticas brutais de austeridade, as quais se voltam contra todas as esferas sociais; pois, os sistemas de segurana social, os servios pblicos, a educao etc. so considerados puro lastro da perspectiva do capital fictcio. A verso oficial dessa histria , na verdade, bastante reveladora: eis faz distino entre os setores que so sistemicamente relevantes e os que no so sistemicamente relevantes. O fato de que as consequncias dessas polticas sejam devastadoras para a maioria da populao e para a produo de riqueza material no precisa de maiores explicaes. suficiente apenas olhar para a Grcia e para a Espanha, onde tudo o que est sendo implementado exatamente aquilo que, mais cedo ou mais tarde, ir ameaar mesmo os pases que ainda no foram gravemente afetados pelas consequncias da crise.

    RJ: Por que eles esto optando por esta poltica de empobrecimento? NT: Eles no esto fazendo isso, por exemplo, para criar uma sociedade

    sustentvel ou para no deixar dvidas excessivas para nossos filhos, tal como diz o jargo poltico, pateticamente insincero e hipcrita. Eles esto procedendo desse modo apenas para continuar a acumulao de capital fictcio. O preo dessa loucura, entretanto, est ficando cada vez maior porque no se trata mais de manter em funcionamento a mquina produtora de riqueza abstrata, mas sim porque essa mquina entrou num impasse inescapvel em virtude da alta produtividade do trabalho. Acima de tudo, pelo contrrio, o que se tem tentado impedir o colapso das imponentes montanhas de promessas de pagamento irresgatveis. Por esse motivo, a maior parte do capital fictcio recentemente criado reflui para o prprio setor financeiro, entrando assim cada vez menos, diretamente, na circulao na economia real.

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    "Esto sendo empilhadas montanhas de promessas de pagamento irresgatveis

    Em consequncia, a poltica demonstrativa de austeridade est chegando a um

    ponto em que est se tornando contraproducente, mesmo na perspectiva estreita da acumulao de capital fictcio como um fim. Mesmo onde est sendo levada ao extremo, como na Grcia e na Espanha, ela est levando a economia, diretamente, depresso econmica o que tambm acaba afetando o prprio sistema bancrio e financeiro. Mesmo entre os czares alemes e europeus da austeridade est-se lentamente tomando cincia de que a linha dura insustentvel. Por essa razo e claro por causa dos protestos, novos programas de crescimento e de estmulo esto agora sendo discutidos; porm, resta saber se esses programas sero mesmo ou no implementados a tempo, antes do incio do dilvio. Esperemos que sejam adotados, pois, assim podem pelo menos retardar o rumo do empobrecimento.

    claro que, mesmo no melhor cenrio possvel, esse programas s atrasariam o desenlace porque eles seriam subsidiados com base no mesmo capital fictcio. Segue-se, ento, que os seus apoiadores, tal como o novo presidente da Frana, Franois Hollande, no esto de fato desafiando a austeridade. S querem lhe dar uma forma ligeiramente diferente. Esto tambm correndo atrs da iluso de um oramento equilibrado; em ltima anlise, eles esto dispostos a exigir da populao que faam todo sacrifcio possvel em nome dessa fico. A partir dessa perspectiva, podemos esperar novas cargas de crueldade vindas de uma possvel coalizo de governo vermelho-verde na Alemanha no ano que vem.

    RJ: Em seu livro, voc escreve que mais cedo ou mais tarde, chegar o

    momento em que o nvel da capacidade de produo se tornar incompatvel com a forma capitalista de riqueza. Mas no existem sempre tendncias que neutralizam uma crise esteja ela em curso ou ento aps o seu fim?

    EL: A teoria marxiana da crise considera dois elementos juntos. Por um lado,

    Marx mantm que o capital caminha rumo a um limite histrico intransponvel devido ao desenvolvimento das foras produtivas. Por outro lado, examina tambm o curso peridico das crises que interrompem a progresso da acumulao de capital sempre num nvel mais elevado. Em sua teoria da crise, estes dois elementos esto unidos: nessas duas dimenses sempre aparece o problema fundamental do capitalismo, qual seja ele, a subordinao da produo de riqueza material ao objetivo da valorizao do valor.

    "A maneira budista de compreender as crises"

    Ainda mais do que em outras esferas da sociedade, a discusso na esquerda

    dominada por uma marcada tendncia a minimizar a crise atual. Assim, o problema das crises peridicas visto de forma isolada e a possibilidade de um limite histrico simplesmente desconsiderada. Como resultado tem-se uma espcie de maneira budista de compreender crises: segundo essa viso, as crises no engendram nada mais do que puros movimentos de autocorreo. Trata-se de um ir e vir por toda a eternidade, o qual, ao final, apenas refora o capital. Algo disso tambm aparece em

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    Marx mas ele diz algo completamente diferente sobre as crises peridicas: as crises so sempre solues momentneas e forosas das contradies existentes. Elas so erupes violentas que restabelecem por certo tempo o equilbrio perturbado. Portanto, para ele, o elemento principal a intensificao constante e a acumulao de novas contradies.

    Nosso argumento no livro apreende diretamente a tese marxiana de que h um limite histrico e o coloca na terceira revoluo industrial. O fato de que a destruio do capital em tempos de crise restaura a rentabilidade do capital sobrevivente, podendo, portanto, tornar-se o ponto de partida de uma acumulao renovada no faz referncia ao problema do limite histrico, mas se cinge, estritamente, considerao das crises peridicas. Assume que um novo impulso autossustentado de valorizao do capital pode comear aps o excesso de capacidade ter sido corrigido. Mas isso exatamente o que est fundamentalmente excludo de acordo com as condies da terceira revoluo industrial.

    O neoliberalismo transformou-se no padrinho do sector financeiro

    Durante a era keynesiana, o estado se consolida como um defensor ativo da

    vida econmica, passando a operar por meio de intervenes diretas e indiretas. No entanto, a inconsistncia fundamental entre a produo material e a valorizao abstrata e, em consequncia, a propenso s crises, nunca foi questionada pela economia burguesa. Como resultado, um dilema fundamental permaneceu encoberto: o aumento da produtividade com taxas inalteradas ou estagnadas de acumulao sempre acompanhado por uma tendncia a cortar empregos; ora, como consequncia, cresce sempre a eroso da base da acumulao real.

    Quando, no final dos anos 1970, a receita keynesiana deixou de ter um efeito positivo sobre os investimentos privados, ela foi substituda pelo neoliberalismo. A nova receita orientou o capital de investimento para a esfera especulativa do setor de finanas, at ento inexplorada. Isso levou a crescente dependncia da economia real aos impulsos vindos dos mercados financeiros. Ora, isto solapou progressivamente a base econmica do capitalismo, pois produziu, periodicamente, bolhas de valorizao financeira, sem base real. Aps a onda da Nova Economia e do estouro da bolha imobiliria, a crise estendeu-se progressivamente passando a erodir tambm as finanas pblicas.

    RJ: Voc faz conexo das vitrias do keynesianismo e do neoliberalismo,

    respetivamente, s duas fases subsequentes da dinmica de valorizao econmica no capitalismo. Voc pode explicar isso?

    NT: O relativo sucesso do keynesianismo durante o boom do ps-guerra deveu-

    se a certas condies estruturais especficas, as quais ele tomou como dadas, pois estavam realmente fora de seu alcance. Ou seja, ele no as criou e no poderia t-las criado. Apesar disso, a poltica de regulao e redistribuio keynesiana foi totalmente funcional [para o desenvolvimento do capitalismo no ps-guerra]. Pois, expandiu a massa do emprego industrial e agiu como o motor da autosustentao da valorizao do capital. A expanso dos sistemas de bem-estar social e o aumento dos salrios reais

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    no s contriburam para a pacificao social, mas tambm para a estabilidade do crescimento econmico j que fortaleceu o consumo de massa. A expanso da infraestrutura pblica foi pelo menos to importante. Sem isso, a industrializao onipresente e a mercantilizao de tudo na sociedade no poderia ter funcionado. Os automveis no poderiam circular sem uma densa rede de estradas; a eletrificao dos domiclios exigia um fornecimento crescente de energia eltrica; um sistema de ensino ampliado e de grande cobertura era necessrio para educar uma fora de trabalho qualificada.

    Para tanto, o Estado assumiu um papel central; difundiu-se ento a ideia de que ele estava em condies de manter em processo o desenvolvimento econmico, guiando-o e o estabilizando no longo prazo. Porm, o boom fordista do ps-guerra chegou ao fim e essa expectativa revelou-se afinal como uma iluso. A valorizao do capital chegou ento a um impasse j que cada vez mais os trabalhadores foram despedidos devido ao rpido aumento da produtividade. Isso ocorreu no apenas porque as fontes de financiamento para as atividades do Estado haviam secado. Mais grave do que isso foi o fato de que ele no conseguia despertar uma nova onda de valorizao autossustentada do capital, apesar de ter provido macios estmulos e pacotes de crescimento financiados pelo crdito.

    De nossa perspectiva, no h nada de notvel nesse fracasso. Pois, se o Estado pode intervir, at certo ponto, nos mecanismos do mercado, ele no tem acesso ao processo bsico que se encontra impulsionado pela contradio interna do capitalismo. Dito de outra maneira, o keynesianismo foi impotente diante da racionalizao generalizada que se seguiu terceira revoluo industrial. Eis que esta, em ltima anlise, correu as bases de valorizao do capital. Toda tentativa de tirar a economia real da rota de estagflao falhou miseravelmente.

    Essa foi, portanto, a razo mais profunda para a vitria do neoliberalismo. Ele no tinha um projeto para acelerar a valorizao do capital, mas lanou as bases para o deslocamento da dinmica econmica para a indstria financeira, adiando assim, consequentemente, a crise para as prximas trs dcadas. Os fatores crticos que permitiram esse deslocamento foram, por um lado, a liberalizao consistente dos mercados financeiros e, por outro lado, o aumento da dvida pblica na administrao Reagan. Ambos abriram espao para uma forma de financiamento que permitiu a expanso em larga escala da acumulao de capital fictcio, o que adiou o colapso do sistema. A destruio das estruturas fordistas atravs do enfraquecimento dos sindicatos etc. fez o resto. Ao mesmo tempo, a privatizao do sector pblico abriu novos campos de investimento financeiro: por exemplo, os sistemas de penso estatais foram transformados em sistemas de seguro de vida privado.

    RJ: Qual o papel da revoluo da TI em tudo isso? NT: Da mesma forma que o keynesianismo apoiou a expanso da produo

    industrial de massa, o neoliberalismo se tornou o padrinho da indstria financeira. uma ironia da histria que, simultaneamente, tenha propiciado o irromper da terceira revoluo industrial. Esta, por si mesma, teria se sufocado devido sua prpria produtividade. Mas a acumulao de capital fictcio criou um espao de acumulao que era necessrio para uma ampla instalao de tecnologia da informao. Assim, apelando valorizao futura, foi possvel conter temporariamente os efeitos de uma

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    racionalizao poderosa que provoca um deslocamento macio do trabalho vivo dos setores em que ocorre a real valorizao do valor. O resultado desse processo, no entanto, vem a ser uma eroso progressiva da produo de valor, a qual realmente s se torna visvel agora, em sua escala completa, na crise do capital fictcio.

    RJ: Em seu livro, voc compara a teoria econmica a uma tcnica artstica que

    prescreve o uso de uma borracha como o nico instrumento necessrio para fazer retratos. O que voc quer dizer como isso?

    EL: Isso nos leva de volta questo inicial apresentada j na primeira parte da

    entrevista. A teoria econmica, independentemente de qual escola se trate, no consegue entender a crise porque oblitera a distino bsica entre as duas formas de riqueza: a material e a abstrata. Os captulos de abertura dos livros de teoria econmica dizem sempre que o propsito da economia a satisfao das necessidades e a proviso tima de bens para as pessoas e que s a economia de mercado, sob a condio de avanada diviso do trabalho, pode conseguir isso.

    Assim, a economia de mercado descrita como se funcionasse de acordo com o princpio simples da troca de mercadorias, tal como ocorria de fato num mercado medieval onde, por exemplo, sapatos so trocados por sunos e ovos so obtidos por meio de novelos de l. Isto sistematicamente oblitera o que realmente bvio, ou seja, que, em condies capitalistas, ser produzido apenas o que faz do dinheiro mais dinheiro, de tal modo que o objetivo da produo a reproduo da riqueza abstrata, sendo a mercadoria apenas um meio para manter este sistema auto-referencial em operao. Para dizer de forma diferente: a economia utiliza a borracha diretamente ao nvel dos seus pressupostos bsicos e, assim, apaga o que especfico sobre o modo de produo capitalista. No de admirar, ento, que ela seja incapaz de reconhecer as causas da crise.

    RJ: Voc considera a crtica que personifica os especuladores e os banqueiros

    como instrumento de argumentao antissemita e racista. Por qu? A crtica dirigida aos banqueiros a partir de 2008 no est sendo construda com base em clichs antissemitas, ao contrrio daquela que ocorreu na dcada de 1920, por exemplo. Naquele momento, empregaram-se de fato caricaturas construdas com imagens antissemitas. Ou ser que eu perdi alguma coisa?

    NT: Para comear, preciso tomar distncia fundamentalmente de qualquer

    crtica que personifica, pois esta est atualmente fora de controle em todas as formas possveis. A crise do capital fictcio tambm uma crise do euro. E como ela est sendo tratada? A culpa dos gregos preguiosos que supostamente desperdiam o nosso suado dinheiro. Esta personificao ignora insanamente o fato de que a sociedade tem sido empobrecida no meio da abundncia simplesmente porque toda a riqueza gervel tem que passar primeiro no fundo da agulha da produo de mercadorias. O pior que a raiva em relao a esse estado miservel projetada em sujeitos coletivos especficos; a coisa construda de tal modo que, agora, tem-se de fato uma temporada de caa a eles.

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    Temporada de caa a sujeitos coletivos Colocar a culpa em banqueiros e especuladores por si s "apenas" mais um

    caso de personificao. Mas h a um sinal de alguma coisa a mais e esta bem inconsciente. Essa personificao em particular bem congruente com o modelo bsico do antissemitismo, pois ela constri uma oposio entre um capital construtivo e um capital dinheiro de araque e este ltimo identificado com os judeus. Podemos ver esse modelo novamente hoje na ideia generalizada de que a economia real foi destruda por alguns especuladores gananciosos e o que importa agora que eles sejam colocados em seus lugares.

    Porm, no se quer afirmar aqui que todos os que atacam os banqueiros e os especuladores sejam antissemitas. O que se quer dizer que esse modo projetivo de apreender a crise totalmente compatvel com o procedimento acusatrio antissemita. No coincidncia, ento, que tal uso derivativo da linguagem metafrica aparea sempre de novo, por exemplo, no notrio termo gafanhotos, popularizado pelo poltico socialdemocrata alemo, Franz Mntefering, quando ele se posicionou como um crtico do capitalismo. A frase eles nos atacam como gafanhotos vem do filme de propaganda nazista Jud S. Classificar certas pessoas como porcos gananciosos um modo de acusar que no precisa de mais explicaes. H outras imagens desse tipo e elas se repetem: por exemplo, a descrio popular do capital financeiro como um polvo que tem o mundo em seus tentculos. Tudo isso se afigura como formas de propaganda idnticas s expresses antissemitas empregadas pelos nazistas. preciso ter muito cuidado com tudo isso. H ainda um tabu na Alemanha que impede uma transio para a agitao antissemita aberta, mas a tendncia cada vez mais perceptvel e isto muito perigoso.

    RJ: Que prticas polticas e tericas concretas advm de seu modelo terico? NT: Bom, em primeiro lugar, advm uma rejeio fundamental austeridade.

    totalmente insano afirmar que temos vivido acima das nossas possibilidades e que, por isso, temos agora que apertar o cinto, pois estamos diante de nveis extremamente elevados de produtividade. O oposto verdadeiro. Se pudssemos fazer pleno uso das possibilidades do poder produtivo moderno, cada pessoa no mundo poderia ter uma vida boa e s teria de gastar uma frao de seu tempo produzindo bens materiais ao longo da vida.

    A compulso para produzir riqueza abstrata

    A nica razo pela qual isso no acontece porque as empresas em geral e

    isto bvio obedecem apenas sua compulso para produzir riqueza abstrata. Elas aderem simplesmente noo de que a riqueza material s pode ser reconhecida como tal na medida em que representa valor. E no se trata simplesmente de uma oportunidade perdida ou de uma possibilidade que passou despercebida. A adeso lgica da produo de valor no nvel atual de produtividade do trabalho simplesmente catastrfica. Ela leva excluso de um nmero enorme de pessoas suprfluas, as quais so sacrificadas no altar do imperativo sistmico que atua para manter o fluxo de capital fictcio do futuro para o presente.

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    Mas se ns nos livramos da ideia aparentemente bvia de que os bens e os servios apenas podem ser produzidos como mercadorias, novas perspectivas se abriro. Especificamente, ento, ns poderamos perguntar como e de que forma o potencial produtivo existente poderia ser mais bem usado para gerar o bem-estar geral, sem ter que raciocinar sobre a viabilidade financeira, a comercializao ou rentabilidade. Em vez disso, teramos que orientar as nossas prticas pela perspectiva da riqueza material e das necessidades concretas. Ora, isto j acontece nas prticas dos movimentos sociais, por exemplo, quando os despejos so impedidos porque as pessoas no veem por que algum deveria viver na rua ou em uma barraca, simplesmente porque no pode pagar a sua hipoteca ou o aluguel. Tambm acontece quando as pessoas dizem no privatizao de rgos pblicos nas esferas culturais ou sociais. Esses so os primeiros passos, mas eles apontam na direo certa. Sempre que eles estiverem ligados a uma crtica radical da forma riqueza abstrata, um conjunto de novas perspectivas de emancipao social se abrir.