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Rafael de Paula Taveira Rodriguez Meire
A golpes de Machado Ficções, estilos e objetos
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Orientadora: Profa. Helena Franco Martins
Rio de Janeiro Abril de 2017
DBDPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1311746/CA
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Rafael de Paula Taveira Rodriguez Meire
A golpes de Machado Ficções, estilos e objetos
Defesa de Tese apresentada como requi-sito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporanei-dade do Departamento de Letras do Cen-tro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Exa-minadora abaixo assinada.
Profa. Helena Franco Martins
Orientadora Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Marília Rothier Cardoso
Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof. Rodrigo Gueron
UERJ
Profa. Eneida Maria de Souza UFMG
Profa. Monah Winograd
Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 27 de abril de 2017.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.
Rafael Meire
Graduou-se em Letras pela Universidade Federal Fluminen-
se, em 2008, e em Educação Artística (com habilitação em
Música) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em
2007. Na PUC-Rio, especializou-se em Literatura, Arte e
Pensamento Contemporâneo. É Mestre em Literatura, Cul-
tura e Contemporaneidade pela mesma instituição.
Ficha catalográfica
CDD800
Meire, Rafael de Paula Taveira Rodriguez A golpes de Machado – Ficções, estilos e objetos / Rafael de Paula Taveira Rodriguez Meire ; orientadora: Helena Franco Martins. – 2017. 147 f. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2017. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Agência. 3. Objetos. 4. Estilo. 5. Machado de Assis. I. Martins, Helena Franco. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. De-partamento de Letras. III. Título.
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Agradecimentos
Agradeço à Capes, pela bolsa de pesquisa que me foi concedida ao longo de
todo o meu doutorado, assim como pela bolsa-sanduíche PDSE, com a qual tive a
oportunidade de realizar parte de meus estudos na Université Paris Ouest Nanterre
La Defense (Paris X) entre os meses de junho de 2015 e abril de 2016.
Meus agradecimentos sinceros aos docentes do Departamento de Letras da
PUC-Rio, cujos cursos e pesquisas passaram a fazer parte de minha sensibilidade
há pelo menos seis anos – quando, saído da especialização latu sensu, optei por
seguir a pós-graduação em Literatura, cultura e contemporaneidade.
Especialmente, à Helena, orientadora desta tese: o vigor permanente no pen-
sar, a sensibilidade nas leituras, as sugestões, a parceria e o incentivo generoso
foram determinantes para mim em diversos momentos, tão numerosos e singular-
mente férteis quanto estes podem ser ao longo do(s) tempo(s) de um doutorado.
À Marília, pela inspiração em artes e escritas.
À Ana Kiffer, pelas ótimas sugestões entre Brasil e França.
À Angela Perricone, pelas aulas e vivências em francês.
Aos amigos de curso e de percurso: Mayumi Aibe, Felipe Machado, Joana
Rabelo, Raïssa de Góes, Aline Leal, Luiz Coelho, Lucas Viriato, Sofia Karam,
Thiago Leite, Lia Duarte, Denise Schittine, Beatriz Castanheira, Maira Fernandes,
Zé McGill, Rodrigo Ferreira, Perla, Thiago Assis, Nara Faria, Diogo Maia, Mari-
ana Stutz, Rogério Wanderley, Adriana Azevedo, Antonio Dantas, Thiago Floren-
cio, Helen Miranda, Gabo, Amélie Viaene, Joana Saraiva, Alexandre Velho, Ni-
kola Peros, João Pedro Guéron, Giorgio Venturi, Renato Menezes, Fernanda Ma-
rinho, Filipe Galvon, Tiaraju Pablo, Talles Lima, Gabriel e Vanessa Oliveira.
Aos membros da banca examinadora: Júlio Diniz, Eneida Maria de Souza,
Rodrigo Guéron, Marília Rothier Cardoso, Paulo da Costa e Daniel Castanheira.
Aos amigos da Casa Anthropos, com especial afeto: Daniel, Paula, Maíra,
Kátia, Clara, Luiz, Keyla, Vinícius, Andrêas.
A Roberto, Angélica, Renata, Luiz, Valbeth, Fernanda, Gustavo, Maya e
Tiê.
A Natalie Lima – amor.
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Resumo
Meire, Rafael de Paula Taveira Rodriguez; Martins, Helena Franco. A
golpes de Machado – Ficções, estilos e objetos. Rio de Janeiro, 2017. 147
p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Esta tese propõe investigações sobre as relações entre as noções de estilo e
agência dos objetos, tomando como intercessores privilegiados, nos termos de
Gilles Deleuze, narrativas curtas e fragmentos da obra de Machado de Assis. A
escolha por se trabalhar com contos desse autor se dá pelo fato de, aí, surpreende-
rem-se linhas de força e problemas que, singularmente corporificados na escrita
machadiana, permitem contágios fecundos com certas vertentes do pensamento
contemporâneo. A tese explora, em especial, a potência dos contos escolhidos
para catalisar os debates hoje travados em torno da revisão filosófica e antropoló-
gica da partição natureza-cultura no ocidente. O trabalho de criação teórica aqui
empreendido busca relacionar, nesse âmbito, os tópicos da vida dos objetos (agora
saídos do mundo dito “inanimado” e dotados de agência) e do estilo (noção que,
na contramão de definições clássicas estritamente textuais, compreende-se agora
como embate de forças produzido nas relações entre corpos provenientes de do-
mínios heterogêneos). Em conexão com o trabalho teórico, a tese propõe, ainda,
revisões críticas de alguns vetores comumente atribuídos à ficção machadiana, tais
como a desvalorização do mundo das aparências, a centralidade de valores emi-
nentemente modernos, e o pessimismo. Buscando alimentar a discussão também
por meio de suas próprias estratégias de composição, a tese explora possibilidades
de trânsito entre o ensaístico e o epistolar.
Palavras-chave
Agência; objetos; estilo; Machado de Assis
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Abstract
Meire, Rafael de Paula Taveira Rodriguez; Martins, Helena Franco
(Advisor). With blows from Machado – Fictions, styles and objects. Rio
de Janeiro, 2017. 147 p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This thesis proposes investigations into the relationships between the con-
cepts of style, and the agency of objects, taking as privileged intercessors, in
Gilles Deleuze's words, short narratives and fragments from the work of Machado
de Assis. The choice of working with this author's short stories is due to the fact
that they present guidelines and problems that, uniquely embodied in Machado's
writing, allow fertile contagion with certain strands of contemporary thought. The
thesis approaches, especially, the strength of the chosen short stories in order to
catalyze the debates held today around the philosophical and anthropological revi-
sion of the partition between nature and culture in the West. The work of theoreti-
cal creation undertaken here seeks to relate, in this context, the topics of the life of
objects (now out of the so-called "inanimate" world and endowed with agency)
and style (a notion which, contrary to strictly textual classic definitions, is now
understood as a clash of forces produced in the relations between bodies from
heterogeneous domains). In connection with the theoretical work, this thesis also
proposes critical revisions of certain aspects commonly attributed to Machado's
fiction, such as the devaluation of the world of appearances, the centrality of emi-
nently modern values, and pessimism. Seeking to fuel the debate, also by means
of its own composition strategies, the thesis explores the possibilities of transit
between the essayistic and epistolary genres.
Keywords
Agency; objects; style; Machado de Assis
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Sumário
1. Introdução 9
2. Os óculos de Pedro Antão, ou: solidão das coisas? 17
3. Os demônios dos chapeus 38
4. Os músicos estão mortos 73
5. Alianças intensivas em “O capitão Mendonça” 104
6. Considerações finais 137
7. Referências bibliográficas 143
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Lista de abreviaturas No que tange às obras de Machado de Assis, utilizo aqui a edição da Obra
completa em quatro volumes, publicada pela Editora Nova Aguilar, em 2008.
Abrevio abaixo títulos frequentados ao longo dos capítulos que se seguem. Nas
referências feitas a tais obras doravante, essas abreviaturas serão seguidas de nú-
meros de página correspondentes à edição supracitada.
[VH] Várias histórias
[HSD] Histórias sem data
[CA] Contos avulsos
[PA] Papéis avulsos
[PR] Páginas recolhidas
[M] Miscelânea
[AS] A semana (crônica)
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1 Introdução
A motivação principal deste trabalho é propor relações teórico-críticas entre
as noções de estilo e agência dos objetos, tomando como intercessores privilegia-
dos, nos termos de Deleuze (1992), algumas narrativas curtas e fragmentos esco-
lhidos da obra de Machado de Assis.
Grosso modo, minhas preocupações e indagações inscrevem-se no âmbito
mais amplo dos estudos e discursos que, multiplicando-se hoje em diferentes
campos disciplinares, destacam-se por um desejo de renunciar a perspectivas an-
tropocêntricas – um movimento que, entre outras coisas, tende a subverter, deslo-
cando-as, tanto nossas noções e vivências habituadas do mundo dito inanimado
quanto nossas formas de endereçar a questão do estilo.1
Diga-se de saída que, se me proponho pensar as articulações entre agência e
estilo a partir de (e, mais do que isso, junto com) textos machadianos, trata-se de
evitar, tanto quanto possível, a aplicação de conceitos aos textos ficcionais. Ao
fazer minhas indagações situando-me na perspectiva geral da “virada não huma-
na” a que Erick Felinto (2013), em consonância com outros pensadores, se refere,
tenho a consciência de que essas mesmas indagações poderiam perfeitamente ser
feitas e exploradas sem que, para tanto, se recorresse à mediação da literatura.
Contudo, na medida em que esta última é convocada, em seu vigor, enquanto for-
ça pensante, pode-se dizer que a sua relação com o conceito teórico é antes da
ordem da porosidade do que da hierarquização, já que seus próprios recursos, ma-
teriais e ações também propõem problemas, impõem perplexidades. E se, para
estes, não apontam propriamente respostas ou soluções, podem por outro lado
“dar-nos desejos” – capacidade que Proust incluiu certa vez entre “os grandes e
maravilhosos aspectos dos belos livros” (Proust, 2003, p. 30) e que reconheço em
enorme medida na escrita de Machado.
1 Com diferentes ênfases, ilustram essa tendência os estudos de Deleuze e Guattari (1992, 1995),
Deleuze (1997), Latour (2012, 2013), Antelo (1998), Derrida (2002), Viveiros de Castro (2004),
Nodari (2009), Martins (2009), Sauvagnargues (2010), Berger (2010), Felinto (2013), entre muitos
outros.
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Escolho então partir do conhecido ensaio “Literatura realista”, do próprio
autor fluminense, para precisar em que sentido (e em que campo de problema)
inscrevo as minhas preocupações acerca das relações entre agência dos objetos e
estilo.
No texto em questão, publicado em 1878 no jornal O cruzeiro, Machado de
Assis, além de fazer a famosa crítica ao romance O primo Basílio, de Eça de
Queirós, problematiza, tensionando-o, o binômio arte e moral. Como se sabe, em-
bora não deixe de elogiar o talento literário do escritor português, faz ali severas
objeções à obra em questão e, concomitantemente, à doutrina / escola à qual se
filia – o Realismo. Do pouco ou nenhum avanço que O primo Basílio teria repre-
sentado em relação ao romance anterior de Eça à crítica à “reprodução fotográfica
e servil das coisas mínimas e ignóbeis” (M 1233), o que se insinua como proble-
ma sob as considerações gerais do ensaio é o dogmatismo inerente a essa estética
enquanto discurso edificante e/ou cioso de demonstrar esta ou aquela tese.
Embora nos limites do texto não se chegue, a rigor, a enunciar esse dogma-
tismo, me parece que ele se anuncia, vigorosa mas discretamente, em meio às nu-
ances de suas avaliações: “[um] dos meus contendores louva o livro do Sr. Eça de
Queirós, por dizer a verdade, e atribui a algum hipócrita a máxima de que nem
todas as verdades se dizem. Vejo que confunde a arte com a moral; vejo mais que
se combate a si próprio (...)” (M 1242).
Quando propõe que um de seus “contendores” não faz mais que confundir
arte e moral, o escritor fluminense dá a entender que seria na moral, e não na arte,
que a pretensão a uma verdade é propugnada. E valendo-se dos argumentos de seu
oponente, põe-no em contradição: “se todas as verdades se dizem, por que excluir
algumas?” Segundo o escritor brasileiro, há certas coisas que, a despeito da exaus-
tão descritiva, são preteridas nos romances de Zola ou Eça de Queirós: trata-se de
“atos íntimos e ínfimos, vícios ocultos, secreções sociais”. O crítico-ensaísta pro-
voca: “Se são naturais para que escondê-los?” – insinuando que por trás da omis-
são haveria o dedo moralista (M 1242).
Em ensaio dos anos 1980, ao fazer considerações sobre o estilo “gago” de
Machado, Haroldo de Campos (2006) circunda essa tensão entre arte e moral,
trazendo à tona aquilo a que chama de “outridade”. Das observações agudas do
crítico, uma me parece particularmente interessante: a que propõe que a maior
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criação machadiana para a estética do romance brasileiro não seja exatamente
Capitolina/Capitu, mas o “capítulo gaguejado”, que
adultera os padrões rígidos do mundo linearizado pela moral dos códigos formais,
introduzindo a outridade irredutível (enquanto comportamento não-legislado, lá-
bil), a qual, como efeito desse desgarrar do referente no texto, é inaferrável e não
pode ser indigitada pelo dedo moralista. Função antecipadora, no plano dos mode-
los éticos do mundo, de um texto pobre. (Campos, 2006, p. 225)
Ao articular expressões como “moral dos códigos formais”, “outridade irre-
dutível” e “modelos éticos do mundo”, Campos toca naquilo que se apresenta co-
mo um dos pontos de inflexão da presente pesquisa: de um lado, situar a crítica a
projetos antropocêntricos no âmbito geral de uma ética – a outridade irredutível a
que se refere o crítico e poeta paulista, se atualizada à luz de perspectivas contem-
porâneas, não deixa de apontar para essa direção. De outro lado, explorar a solida-
riedade entre ética e estética em alguns escritos de Machado, de modo a, nestes,
valorizarem-se os pontos ali onde a ficção promove críticas com alcance político e
epistemológico: sobre o estatuto do humano e do não-humano, da verdade e da
mentira, do real e do ficcional, da natureza e da cultura etc2.
A esse propósito, e ressaltando o vigor contemporâneo da escrita machadia-
na, diz-nos Roberto Corrêa dos Santos, em “A moeda e a economia da vida men-
tal em Machado de Assis”:
Fazem-se seus trabalhos de arte e pensamento de forma trans-epistemológica, de
máximo vigor crítico e analítico (...). E isso com o domínio afiadíssimo de aspectos
e posturas que temos nomeado hoje de atitude transdisciplinar, ou adisciplinar.
(Santos, 2008, p. 141)
Tendo isso em vista, junto ao par de palavras arte e moral, posto em evidên-
cia pelo escritor fluminense em “Literatura realista”, outro, mais produtivo, se
anuncia como possibilidade investigativa: arte-pensamento e ética. Para pensar
este último, destaco como recorte a vida dos objetos e sua articulação com o pro-
blema do estilo, discutido enquanto individuação não humana – algo que, como se
disse, vem ganhando força em debates contemporâneos ao mesmo tempo em que
se insinua, de forma singularmente pensante, em alguns textos machadianos.
Em certo sentido, A golpes de Machado: ficções, estilos e objetos é uma
continuação de preocupações que trago da minha dissertação de mestrado, na qual
2 Naturalmente, não trabalharei de maneira direta, necessariamente, com esses pares de conceitos.
Destaco-os, entretanto, considerando que, a depender da discussão em pauta, os mesmos se encon-
tram direta ou indiretamente insinuados.
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trabalhei com o conceito de estilo. Sobre este último, propõe-nos Gilles Deleuze
(1992) em Conversações:
(...) o que somos ‘capazes’ de ver e dizer (no sentido do enunciado)? Mas se há
nisso toda uma ética, há também uma estética. O estilo, num grande escritor, é (...)
a invenção de uma possibilidade de vida (...). (Deleuze, 1992, p. 130)
Na medida em que possui como horizonte de debate essa “invenção de uma
possibilidade de vida” – a qual aponta, entre outras coisas, para tópicos sobre arte
e linguagem em que a atitude antropocêntrica se encontra tensionada em suas re-
lações com afetos, variações, intensidades etc. –, é possível que essa abordagem
sobre o conceito de estilo3 me permita articulá-lo tanto à orientação teórica segun-
do a qual os objetos também possuiriam “agência” quanto às conseqüências polí-
tico-epistemológicas daí advindas que, como mostra Erick Felinto em “Meio, me-
diação, agência: a descoberta dos objetos em Walter Benjamin e Bruno Latour”,
representariam, ao lado da virada linguística, da virada afetiva e da virada perfor-
mativa, uma virada não humana. De fato, no contexto dito pós-humano, articula-
ções de espírito deleuziano entre estilo e invenção de possibilidades de vida têm
se multiplicado, multiplicando, ao mesmo tempo, o interesse pela vida dos obje-
tos.
Em artigo intitulado “Deleuze, cartografias do estilo: assignificante, intensi-
vo, impessoal”, Anne Sauvagnargues (2010) mostra como o estilo, se observado
segundo o ponto de vista tradicional, depende de toda uma “epistemologia política
da norma”, que consiste em identificar, classificar, localizar, atribuir e, finalmen-
te, reduzir aquilo que é plural – sejam obras de arte, sujeitos, ou a própria lingua-
gem – à condição de unidade estabilizada e normatizada. Apresentando-se como
uma “teoria da individuação”, o estilo, assim concebido, marcaria “sua preferência
para o pessoal, o unitário, a norma fechada, a propriedade estabelecida” (Sauvag-
nargues, 2010, p. 20). Entretanto, a autora argumenta que Deleuze transforma
3 Cito passagens em que Deleuze e Deleuze/Guattari tratam do conceito em questão, sempre enfa-
tizando as relações entre dados materiais, intensivos, humanos e não humanos : “Criação sintática,
estilo, tal é o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que valham fora dos
efeitos de sintaxe nos quais se desenvolvem” (Deleuze, 1997, p. 16); “Os devires são o que há de
mais imperceptível. São actos que só podem estar contidos numa vida e expressos num estilo”
(Deleuze & Parnet, 2004, p. 13); “As figuras estéticas (e o estilo que as cria) não têm nada a ver
com a retórica. São sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires” (Deleuze
& Guattari, 1992, p. 209); “O que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do
mundo, é precisamente o procedimento de uma variação contínua. (...) É aí que o estilo cria língua.
É aí que a linguagem se torna intensiva, puro contínuo de valores e de intensidades” (Deleuze &
Guattari, 1995, p. 41-43).
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inteiramente as questões que gravitam em torno da noção de estilo, a qual “faz
valer um outro processo de individuação, modal e não substancial” que é da or-
dem das “relações de força, relações complexas de lentidões e de velocidades”,
assim como de “variações de potência e passagem de afectos” (Ibidem, p. 21). Em
meio às suas observações, cito uma passagem que, a meu ver, dialoga mais dire-
tamente com o problema colocado por Felinto, via Bruno Latour e Walter Benja-
min, da “agência dos objetos” – na medida em que enfatiza uma concepção sobre
o sentido que não mais depende de um ato de consciência, ao mesmo tempo em
que redistribui as partições operadas pela linguagem: “[Deleuze] faz valer toda
uma outra repartição, que concerne às modalidades conexas porém disjuntas do
real, o atual presente e o virtual diferencial, os dois aspectos da diferença” (Ibi-
dem, p. 22).
Em direção análoga, a autora situa e define o estilo como um “variar inten-
sivo” da língua, isto é, como uma tensão a partir da qual esta última é posta em
relação com a sua “margem intensiva”. Quer se trate de matérias não formadas,
sons musicais ou gritos assignificantes – efeitos da desterritorialização do sentido
–, importa dizer que essa margem seria ao mesmo tempo o “limite” da língua;
limite esse que, segundo Sauvagnargues, não se apresenta, para Deleuze, como o
ponto ali onde as desterritorializações cessam, mas sim como o “entremeio disjun-
tivo” a partir do qual elas procedem (Sauvagnargues, 2010, p. 29-30). Destaco
esses aspectos pelo seguinte motivo: ao situar o conceito de estilo como um “vari-
ar intensivo”, a pesquisadora o faz de modo a alinhavar essa variação com noções
como as de “agramaticalidade, devir-menor ou devir-animal” – sugerindo, assim,
interlocuções com o campo teórico do perspectivismo, o qual particularmente me
interessa.
Algumas narrativas machadianas de alguma forma mobilizam esse devir-
animal da língua ao qual se refere Sauvagnargues. No conto “Ideias de Canário”,
por exemplo, o narrador Macedo entende o que lhe fala o animal, que, entretanto,
se expressa em trilados; e aquilo que é dito e impossivelmente compreendido em
tudo desafia as suas expectativas – que são as de um cientista natural. Do mesmo
modo, em crônica publicada em A semana em 16 de outubro 1892, narra-se uma
conversa entre dois burros que se expressam pela “língua dos Houyhnhnms” (AS
926). Na conversa em questão, um deles provoca o outro, dizendo-lhe que “há
muito de homem” em sua cabeça. E, após dissertar sobre a degradação progressi-
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va dos burros com a chegada dos bondes elétricos, pondera que “[ao] homem que
anda sobre dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da as-
tronomia. Nós nunca seremos astrônomos; mas a filosofia é nossa. Todas as tenta-
tivas humanas a este respeito são perfeitas quimeras” (AS 927).
Interessante notar que o cronista-narrador, que sabe falar a língua dos
Houyhnhnms, se por um lado distingue cavalos e burros – “[b]em sei que cavalo
não é burro” –, por outro propõe que sua língua seja “a mesma” (AS 926). Com
isso, homem, burro, cavalo e língua são pensados em clave interespecífica, de
modo que uma das últimas provocações da crônica – que se dá após um “choque
elétrico” – seja o questionamento sobre que tipo de homem era aquele que falava
a língua dos burros:
aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dois burros:
– Houyhnhnms!
Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e per-
guntaram-me cheios de entusiasmo:
– Que homem és tu, que sabes a nossa língua? (AS 928)
De maior interesse aqui é naturalmente constatar que o “variar intensivo” da
língua de que fala a autora de “Cartografias do estilo (...)” também comparece, na
literatura de Machado, em zonas de vizinhança entre o mundo dito animado e o
mundo dito inanimado. É o caso, por exemplo, de passagens dos conhecidos con-
tos “O espelho” e “O alienista”. No primeiro caso, ao se discorrer sobre a existên-
cia de duas almas – a interior e a exterior –, elencam-se objetos que, desafiando a
interioridade subjetiva, figuram lado a lado à chamada “alma exterior”, podendo
interferir (de onde se vê a sua força ativa) na existência da pessoa:
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro (...). Há casos, por exemplo, em que um simples
botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o vol-
tarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavantina, um tambor etc. (...)
Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos
há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. (PA
323)
No segundo caso, Simão Bacamarte intenta “restituir a razão” aos seus paci-
entes a partir da administração de objetos como perucas, casacas, bengalas etc.:
Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada
um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualida-
de predominante. Suponhamos um modesto (...). Às vezes bastava uma casaca,
uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros
casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis brilhantes, às distinções
honoríficas etc. (PA 266)
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Voltando-me, pois, para ocasiões da prosa de Machado de Assis como essas
que acabo de citar, tomo a vida dos objetos e a questão do estilo como operadores
críticos relevantes a partir dos quais se podem pensar, em perspectiva contempo-
rânea, o vigor do pensamento desse autor. Minha intenção, portanto, não é escre-
ver uma tese inteiramente dedicada a Machado, empenhada unicamente em con-
tribuir para a sua fortuna crítica. Trata-se, em vez disso, da tentativa de articulação
de sua escrita com os problemas mencionados acima de modo a dar relevo a tex-
tos literários singulares, cujas provocações, a meu ver, possuem envergadura éti-
ca. Creio estar aí a relevância desta pesquisa. Com isso, espero contribuir para as
investigações que buscam explorar esse espaço “adisciplinar” que se faz ao mes-
mo tempo de “arte e pensamento”, para falarmos com Roberto Corrêa dos Santos
(Santos, 2008, p. 141).
Meu interesse por textos machadianos (nos termos dos recortes propostos no
presente trabalho) é pois animado em primeiro lugar pela força contundente que
as coisas, em especial os objetos técnicos (chapeus, vestimentas, instrumentos
musicais etc.), parecem exercer ali, de uma maneira geral, sobre os personagens
humanos. Junto a isso, o desconforto que sinto em relação a um aspecto em parti-
cular que em certa medida atravessa as numerosas e multifacetadas leituras da
ficção machadiana: seu suposto pessimismo, celebrado principalmente nas ten-
dências críticas dos anos 1970 que o inscrevem, por assim dizer, no espectro mais
amplo (e, nesse sentido, não estritamente filosófico-existencial) da vida “em soci-
edade”. Seja este um diagnóstico justo ou não, em relação a ele eu gostaria de
situar a minha voz, enfatizando, para tanto, linhas de força que, presentes nos tex-
tos selecionados, a meu ver abrem possibilidades para que se aposte em outra di-
reção, da afirmação da vida; uma vida que, animada pelas forças desestratificado-
ras da arte, ultrapassa vínculos morais, humanos e, no limite, orgânicos – como
mostra Anne Sauvagnargues a propósito das individuações não humanas operadas
pelo estilo em perspectiva deleuziana.
Nos capítulos que se seguem, busco pensar as questões delineadas acima
junto a alguns textos-força de Machado, postos em contágio e fricção com outros
intercessores, em especial da teoria literária, da antropologia e da filosofia. Para
alimentar a discussão também por meio de minhas próprias estratégias de compo-
sição, exploro, como se verá, algumas possibilidades de trânsito entre a escrita
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ensaística, a ficcional e a epistolar. O próximo capítulo, que sob certos aspectos
estende esta apresentação, começa por uma justificativa dessa minha disposição
de transitar.
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2 Os óculos de Pedro Antão, ou: solidão das coisas?
“[O]lha estes objetos de feitiçaria dispostos no chão; tudo isto quer dizer
que a religião nem a filosofia bastavam à alma do tio e quando a filosofia e a reli-
gião não podem triunfar em uma alma, triunfa a superstição” (CA 1247). A frase
vem do conto “Os óculos de Pedro Antão”, publicado por Machado de Assis no
Jornal das Famílias. É dita em relação ao personagem-título, Pedro Antão, pro-
prietário recém falecido da casa que seu sobrinho Mendonça e um amigo, o narra-
dor Pedro, agora vasculham em busca de indícios que esclareçam enigmas de sua
vida e de sua morte. Concentremo-nos nesta que é uma articulação relevante para
efeito da discussão que eu gostaria de fazer sobre agência dos objetos e estilo: os
objetos de feitiçaria e a superstição. No âmbito do conto, os primeiros consistem,
segundo o narrador, em “coisas extravagantes” (CA 1244) que se encontram então
reunidas; são chinelas, trança de cabelos amarelados, um baralho de cartas, uma
cruz, uma imagem da Virgem e uma página de hebraico. Assim, entre objetos
pessoais, objetos cotidianos e peças religiosas, Pedro Antão, segundo o narrador e
autor da frase que abre este capítulo, faria seus trabalhos de feitiçaria. O que me
interessa aqui é menos a extravagância dessas coisas reunidas do que aquilo que
essa reunião supõe enquanto prática. A esse respeito, trago o aforismo 111 da
primeira parte de Humano, demasiado humano:
O meio principal de toda magia é termos em nosso poder algo que seja próprio de
alguém: cabelos, unhas, um pouco da comida de sua mesa e mesmo sua imagem,
seu nome. Com tal aparato se pode então praticar a magia, pois o pressuposto fun-
damental é de que a todo ser espiritual pertence algum elemento corporal; com o
auxílio deste se pode vincular o espírito, prejudicá-lo, destruí-lo; o elemento corpo-
ral fornece a alça com que podemos apreender o espiritual. (Nietzsche, 2005, p.85)
O que a mim interessa nessa passagem de modo algum é o prejuízo que por
meio da feitiçaria e da magia pode-se causar a terceiros, mas a porosidade funda-
mental entre o corporal e o espiritual e a evidência de que, por meio dela, forças
são mobilizadas no contexto da magia. Entretanto, pergunto-me: e se, embora não
lide diretamente com magia e feitiçaria (e esse, naturalmente, é o caso), eu pudes-
se guardar esse dado para efeito de práticas escriturais e estilísticas, isto é, o dado
de que o trato com as materialidades implica, necessariamente, a produção de
efeitos que fogem ao nosso controle? Ou, ao menos, que algo da ordem do invisí-
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vel se passa e escapa à maneira instrumentalizada com que costumamos lidar com
as coisas, com os objetos, enfim, com o mundo material?
Com isso quero dizer que, se não há garantias de que quando friccionamos
um lápis sobre uma folha de papel forças e efeitos se mobilizam, por outro lado,
nada nos autoriza a afirmar que nada se passa entre o lápis, o gesto de empunhá-
lo, a folha de papel e todo o entorno dessa cena em princípio prosaica e cotidiana.
Os “estranhos devires” a que se referem Deleuze e Guattari em “1730 – Devir-
Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível...”, onde se propõe que o escritor seja
um feiticeiro, apontam para essa direção: “[s]e o escritor é um feiticeiro é porque
escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são de-
vires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo etc.” (Deleuze &
Guattari, 1997, p. 21). Diante da impossibilidade de se pacificar a questão, gosta-
ria de situar-me no e se... E, enquanto o faço, propor interlocuções com autores
que a meu ver abrem possibilidades teóricas para que se pensem articulações entre
agência dos objetos e estilo.
Além do exposto acima, tais articulações me interessam, também, pelo se-
guinte motivo: eu falava ao final do capítulo anterior do recurso à literatura para
debater essas questões; em seguida, trouxe as forças que, no contexto da magia e
da feitiçaria (e também fora dele), podem ser mobilizadas a partir do trato com as
matérias em geral e com os objetos em particular. Diante do fascínio de se lidar
com as materialidades para além de sua instrumentalidade, pergunto-me se a letra
escrita, ela, também não é um corpo tão material quanto o são os mais diversos
objetos que nos circundam. E, por isso mesmo, se também ela não estaria sujeita a
ser mobilizada, por assim dizer, de modo a dessa mobilização produzirem-se não
exatamente efeitos intencionais, mas linhas de força, campos de força eminente-
mente não-humanos que, entretanto, possuem agência, produzem ações e, para
usarmos o vocabulário de Bruno Latour, constroem “coletivos” (Latour, 2012, p.
353).
Nesse sentido, por literatura entendo também um corpo material cuja mani-
pulação, como com qualquer outro corpo material, é passível de produzir forças
desestabilizadoras que escapam às partições entre os pólos da natureza e da cultu-
ra; do objeto e do sujeito. Mais do que um saber passível de ser problematizado
por outros saberes, seria a literatura um fazer que teoriza por conta própria e que
levanta seus próprios problemas, deixando rastros. Isso não significa que ela faça
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parte de um espaço autônomo, muito pelo contrário. Assim, na qualidade funda-
mental de não-humano, entendo a letra, o texto – e, portanto, a arte e a literatura –,
como “mediadores” (Latour, 2012, p. 113).
Por esse motivo, penso que o debate em torno da questão da agência dos ob-
jetos e a discussão, nos termos de Gilles Deleuze, sobre o que seria um estilo –
animados, de maneira indireta, por aquilo a que Diana Klinger (2014) chama de
“vida artística” (campo informe e intensivo que tudo processa) – são pertinentes
não só para que se justifique a minha escolha por trabalhar com literatura, mas
também o modo, a maneira como pretendo fazê-lo: intercalando análises literárias,
corpora bibliográficos, dicção ensaística e problemas teóricos com cartas endere-
çadas a alguns personagens.
Desse modo, se não discutirei questões relativas à agência dos objetos e ao
estilo a partir de um enfoque puramente teórico, por outro lado, ao reclamar a lite-
ratura (em particular a de um clássico como Machado de Assis), gostaria de, com
ela, ou seja, com a força desestabilizadora da ficção, propor experimentos de es-
crita de tal modo que ambos sejam tomados como mediadores legítimos. Nesse
caso, teoria, ficção e crítica literária operariam lado a lado a serviço de um pen-
samento que, voltando-se para as coisas, o fizesse, também, em direção a uma
saúde – a qual se gostaria de encontrar pelo caminho.
Rio de Janeiro, 23 de abril de 2016.
Caro Pedro,
Devo dizer que a frase que você disse a Mendonça não me sai da cabeça:
“quando a filosofia e a religião não podem triunfar em uma alma, triunfa a supers-
tição”. No momento, estou às voltas com um trabalho grande por terminar, motivo
pelo qual adio para mais tarde uma conversa mais demorada sobre esse tema. Mas
não posso deixar de lhe perguntar: será que, assim como o falecido Pedro Antão
dispusera objetos em sua casa para que seu sobrinho e algum amigo tentassem
descobrir os mistérios de sua vida, você também não teria dito essa frase apenas
para que alguém, depois, se lançasse ao esforço de decifrá-la? Não é o que me
parece. Tranças de cabelos, baralho de cartas, uma cruz: tal associação, creio, já se
insinua como resposta opaca a essa pergunta.
Não, não se trata de descobrir o significado – e nem mesmo os significados
– da frase em questão, em particular, ou de seja lá o que for. Antes, trata-se de se
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produzirem sentidos; os quais, se não prescindem totalmente das ações daquele
que, feiticeiro, maneja coisas, tampouco depende totalmente delas: os sortilégios
se produzem. Imagino que feiticeiros, tais como xamãs, sejam apenas diplomatas
cósmicos. Apenas não, porque isso, seguramente, não é pouca coisa, muito pelo
contrário. Além disso, imagino que em tais contextos a produção de sentido não
se limite à consciência humana (do mesmo modo que o estilo, diz-nos uma estu-
diosa francesa, também não se limita a tal). Por esse e, certamente, por muitos
outros motivos, às vezes triunfa, em uma alma, a superstição, a operar lógicas
outras que não a de doutrinas ou dogmas. Que me diz?
No mais, ela, a superstição, não é amiga de ninguém: nem dos sortudos,
nem dos azarentos. Simplesmente, batemos ou não batemos com os nós dos dedos
na madeira, passamos ou não passamos debaixo de escadas. E a vida – a nossa e a
da madeira, a nossa e a da escada – se faz. Como sei que você é amigo dos misté-
rios, vou lhe contar. Certo dia, conversei com uma cigana, para quem disse o mo-
tivo das minhas aflições de então: eu não conseguia escrever. Lia, lia; e à hora de
articular ideias, as palavras mostravam-se hostis em demasia. Ela me disse que
quando fosse escrever, eu pusesse um copo d’água sobre a mesa, acendesse uma
vela e mentalizasse o povo cigano. Digo que isso atenuou um pouco o grave blo-
queio psicomotor que me acometia, mas ao copo d’água e à vela (os meus baralho
e cruz, por assim dizer) faltava ainda alguma coisa. Quero dizer: o agrupamento, a
assemblage, ainda não estava fechado.
Naquele pacto cósmico-material, pois, faltava ainda algum elemento, sem o
que eu não conseguia ouvir a música cigana. Pedro, meu amigo! Será você capaz
de descobrir o que era? Bem, como esta pequena carta não é a casa de Pedro An-
tão, digo-lhe logo, sem rodeios. O que faltava, creia-me, era um lápis e um cader-
no. Não, não pode ser tinta. Há que ser grafite; e se for caderno (e não folha avul-
sa), melhor – materiais com os quais lhe escrevo agora. Veja bem, nada disso tem
a ver com crer ou não crer, acreditar ou não acreditar. Creio que você saiba: trata-
se de uma prática e mesmo de uma política. O problema é que eu, às vezes, sou
teimoso. Nem crente, nem descrente, mas teimoso. E o que mata é essa teimosia.
Quando ela se aproxima, vejo logo que ficarei algum tempo sem nada escrever,
pois me descuido do lápis, do caderno e de todo o resto (é verdade que não é sem-
pre que lanço mão do copo d’água e da vela, embora, em certas ocasiões, estes
sejam realmente imprescindíveis).
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Mas o fato é que fico achando que na falta do lápis, ocasionalmente, uma
caneta irá me servir. Naturalmente, ela não (me) serve. É certo que outras pessoas
que também se ocupam da escrita servem-se do (e servem ao) reino das tintas.
Não eu. Talvez seja por isso que alguns passam tranquilamente debaixo de esca-
das e outros não: essas coisas, quer me parecer, não pressupõem efeitos univer-
sais. Por outro lado, é imperioso estar atento: nem só de baralhos, tranças de cabe-
los e cruzes se fazem feitiçarias: “tu és a rainha do mundo, ó superstição”, lembra-
nos o Bruxo (CA 988).
Na expectativa de conversações mais alongadas,
Um abraço do
Rafael
Publicado por Machado de Assis em 1874 no Jornal das Famílias, sob o
pseudônimo de “J.J”, o conto “Os óculos de Pedro Antão” faz todo um investi-
mento na vida dos objetos. Neste, quadros, cachimbos, bustos, baralhos de cartas,
escadas de seda etc. (objetos inventariados pelo narrador Pedro e por seu interlo-
cutor Mendonça) resistem às investidas desses dois personagens, tornando-se eles
mesmos, de certo modo, os protagonistas da narrativa, coisa que se anuncia, para
todos os efeitos, no próprio título do conto em questão. Essa resistência possui por
si só um alcance teórico-crítico, na medida em que se articula, via fazer ficcional,
a problemas que vêm sendo discutidos, em perspectiva contemporânea, por dife-
rentes áreas do saber. Essa será a minha aposta e o meu investimento neste pri-
meiro encontro com Machado – a partir do qual introduzirei alguns tópicos rele-
vantes para efeito do restante da tese, entre eles o problema do meio e da media-
ção, ambos situados no âmbito mais amplo do perspectivismo.
Para tanto, trago para o debate o ensaio “O perjúrio absoluto (Sobre a uni-
versalidade da Antropofagia)”, de Alexandre Nodari (2009), buscando articular
alguns dos pontos aí discutidos com aspectos do conto machadiano. Como já dito,
importa sublinhar que a minha intenção é menos aplicar o pensamento teórico
desenvolvido no referido ensaio ao texto artístico (no caso, a Antropofagia mo-
dernista atualizada pelo perspectivismo ameríndio) do que propor cruzamentos
entre ambos, valorizando, tanto quanto possível, a capacidade pensante da ficção.
Dos tópicos desenvolvidos por Nodari, dou ênfase aos seguintes: o questio-
namento da “ordenação cronológica da história” (Nodari, 2009, p. 127) e sua rela-
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ção íntima, segundo nos mostra o ensaísta, com a articulação entre objeto e pro-
priedade; a “desrealização do objeto”, que liberaria “os meios, os artifícios de toda
demonstração, de todo fim” (Ibidem, p. 129); e, por fim, a crítica da “mediação”,
isto é, “daquilo que limita e direciona o conhecimento” (Ibidem, p.114). É perti-
nente frisar que esses três pontos articulam-se entre si no tecido argumentativo
desse texto, assim como a questões outras a que a ênfase de minha leitura, em
solidariedade com o enredo do conto de Machado de Assis, por ora não recairá.
Pode-se dizer que “O perjúrio Absoluto (...)” tem como uma de suas princi-
pais motivações propor reavaliações do legado antropofágico deixado pelo mo-
dernismo brasileiro tanto à geração crítica a ele contemporânea (na qual se inscre-
vem alguns dos escritores do período) quanto às que o sucederam. Na contramão
tanto da leitura canônica quanto da leitura desconstrucionista, traça-se então uma
terceira via – que já estaria anunciada em textos de Oswald de Andrade (entre
manifestos, entrevistas, conferências e poesia) – cujo instrumental teórico, a saber,
o perspectivismo, encontra-se mais bem elaborado em nossos dias a partir do tra-
balho de nomes como Eduardo Viveiros de Castro, Raúl Antelo, Anne Sauvag-
nargues, Bruno Latour, do próprio Alexandre Nodari, entre outros. Como ponto
de partida para a minha reflexão, detenho-me na quarta seção do texto, intitulada
“Absoluto”, onde, entre outros aspectos, traçam-se as relações, segundo destacado
acima, entre “ordenação cronológica da história” e articulação objeto-propriedade.
Fazendo referência a um dos aforismos do Theodor Adorno de Mínima Mo-
ralia, mostra-nos Nodari que, para o filósofo frankfurtiano, poder e concepção de
temporalidade encontram-se intimamente ligados entre si: uma vez que o tempo
linear possui uma inscrição histórica precisa (pelo fato de em sua base situar-se o
problema da ordenação da propriedade), ele fornece um “critério moral objetivo”
segundo o qual aquilo que se dá primeiro, no fluxo temporal, possui total privilé-
gio sobre o que lhe sucede – apresentando-se, assim, como um operador crítico
eminentemente excludente. Tal concepção teleológica
se espalha para uma moral do amor e está também na origem dos trotes de inicia-
ção, da xenofobia, do fascismo (...), pois a mesma objetivação no tempo linear que
garante exclusividade, nega toda experiência singular (seja entre duas pessoas, seja
entre alguém e a natureza, etc.) ao convertê-la em relação entre proprietário-sujeito
e propriedade-objeto (...). (Nodari, 2009, p. 127)
Interessante notar que o enredo do conto “Os óculos de Pedro Antão” dialo-
ga não apenas com o tema da propriedade, um de seus estímulos iniciais (Men-
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donça, sobrinho do falecido Pedro Antão, herda a casa do tio, a ele deixada em
testamento), mas também, e sobretudo, com o tema da relação objetivada, exclu-
siva e excludente (portanto não singularizada enquanto experiência) entre proprie-
tário-sujeito e propriedade-objeto – inscrevendo-se, assim, no problema da orde-
nação cronológica do tempo. A partir desta última, que, na narrativa, possui papel
relevante na qualidade de instância a ser questionada, parece-me que Machado de
Assis também lida com o que Alexandre Nodari chama de mediação, isto é, aqui-
lo que “limita e direciona o conhecimento” (Nodari, 2009, p. 114). Vejamos em
que sentido tal se dá.
Após excêntrica introdução em que discorre sobre as três causas que levam
ao uso dos óculos – a miopia, a moda, e o desejo de parecer sábio –, Pedro, o nar-
rador do conto, alerta o leitor de que o que vai contar não é nem folhetim, nem
romance, mas “uma narração fiel do que me aconteceu há cerca de três anos: é
crônica” (CA 1241). Valendo-se desse conhecido recurso romanesco a funcionar
como pacto ficcional, reclama, desde o início – como em muitas das estórias de
Machado –, a presença desse leitor virtual.
Chamo a atenção para esse aspecto pelo seguinte motivo: “Os óculos de Pe-
dro Antão” fazem parte daquelas narrativas de Machado de Assis nas quais, como
mostra Renato Cordeiro Gomes no ensaio “Singulares ocorrências: claro enigma
de uma ficção”, recorre-se à estratégia de se contar uma segunda estória dentro da
estória – de modo a enfatizarem-se, por meio desse artifício, as relações tensiona-
das entre contato e desvio, reconhecimento e estranhamento. A partir dessas rela-
ções, desafiam-se permanentemente o horizonte de expectativas do leitor do sécu-
lo XIX e seu correlato complexo de valores, sobretudo no tocante a códigos mo-
rais e/ou de conduta pré-estabelecidos.
Por um lado, sigo essas observações de Gomes, já que se pode dizer que as
constantes referências que se fazem a clichês da prosa romântica em “Os óculos
de Pedro Antão” configuram-se como aquilo a que o autor chama de “contato”,
isto é, as relações de identificação imediata que se dão entre esses clichês e o gos-
to médio do leitor de então. Por outro lado – e este é o acréscimo da minha leitura
–, o “desvio” que me interessa no conto em questão diz menos respeito a códigos
morais e/ou de conduta (seja das personagens em cena, seja do leitor virtual) do
que ao modo como esse desvio se realiza, a saber, a partir da própria mediação, à
qual perturba enquanto tal.
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Em outras palavras: o meu esforço é o de observar de que maneira o método
empregado pelo narrador para contar as duas histórias que compõem “Os óculos
de Pedro Antão” (contato) é ele mesmo o que, no meu entender, está sendo mais
radicalmente problematizado (desvio): o reconhecimento enquanto paradigma
epistemológico de conhecimento. Isto é, aquilo que, por um lado, promove pacifi-
cações de sentido via referências clicherizadas e/ou já assimiladas pela cultura e,
por outro, apresenta-se como uma pretensa Verdade: “Tudo o que até aqui tenho
dito é a verdade; do estudo destes objetos que vemos a conclusão que tiro é que só
a minha narração pode explicar a vida de Pedro Antão” (CA 1249). Nesse sentido
é que me parece que a narração de Pedro funciona como uma “mediação” a ser
posta em questão pela pena machadiana. Feitas essas considerações, voltemos ao
conto.
Logo após a explanação ao leitor das três causas que “podem aconselhar o
uso dos óculos” e a ressalva de que o que será narrado não é nem folhetim nem
romance, mas crônica, acrescenta o narrador: “Quanto a Pedro Antão é positivo
que os seus óculos deviam ter por causa o enfraquecimento da vista; mas ainda
assim não lhe posso afirmar nada” (CA 1241-1242). Com essa frase, levanta-se o
problema em torno do qual giram o conto e seus desdobramentos: de um lado,
uma possibilidade de interpretação que se anuncia – “deviam ter por causa” –, de
outro, a sua impossibilidade: “não lhe posso afirmar nada”.
Essa tensão, contudo, não se consolida de imediato. A rigor, tal só se dá no
fechamento da narrativa, de modo que a sua presença já na introdução desta fun-
ciona como uma espécie de autoconsciência do narrador, a qual, possibilitada pelo
que este já sabe, insinua-se como contraponto ao que será narrado a seguir: as
duas histórias que se alimentam, sobretudo, de possibilidades interpretativas. Cito
o trecho que dá início ao plot da primeira história:
Há cerca de três anos, como dizia, recebi a seguinte carta do meu amigo Mendon-
ça:
Pedro. Recebi hoje as chaves da casa de meu tio; vou abri-la. Queres acompanhar-
me? Não penses que é por medo de lá entrar só; é porque eu sei que tu tens interes-
se e gosto em penetrar nos negócios misteriosos; e nada mais misterioso que a casa
do famoso tio. Vem ao meio dia.
Teu Mendonça.
A minha resposta foi a seguinte:
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José. Vou, mas não ao meio-dia. Entrar em casa misteriosa, quando o sol está no
zênite, é anacronismo. Irei às onze horas da noite, e à meia-noite em ponto entra-
remos na casa do defunto.
Teu Pedro. (CA 1242)
De início, um lugar comum: a opção por se entrar na casa do falecido Pedro
Antão (que lá vivera e morrera na mais completa reclusão) não ao meio dia, mas à
meia noite. A esse lugar comum, imediatamente seguem-se outros, que reforçam a
atmosfera “misteriosa” do lugar – tal e qual numa história de horror: a presença de
“uma escada velha e úmida que ia ter ao primeiro andar”, ratos, baratas, maus
odores de casa fechada etc.
De fato, ao passo que Mendonça seria “um elegante de primeira classe,
amigo do conforto”, Pedro dispunha-se a fazer o que fosse necessário para “apro-
veitar aquela página de romance tétrico” que se poderia ver no “interior da casa
misteriosa” (CA 1243). Em outras palavras, pode-se dizer que já aqui a literatura
media, enquanto discurso normalizado, aquilo que os dois personagens estão a
observar a olho nu, no caso, a casa do defunto.
A essa altura, anuncia-se a motivação principal que anima as duas histórias
de “Os óculos de Pedro Antão”: conhecer o homem tanto a partir de sua casa co-
mo a partir dos objetos que aí se encontram dispostos; ou seja, conhecê-lo por
intermédio de seus pertences:
− Vamos ver o resto da casa – disse Mendonça.
− Espera.
− Esperar o quê? ficaremos agora a contemplar a casa?
− Pareces-me tolo – respondi –, tu queres a herança do tio, e eu quero conhecer o
homem. A sala é um primeiro indício. Vês este painel sobre a mesa?
− Vejo – disse ele –, é a Madona da cadeira.
− Cópia de Rafael. Já por aqui sabemos que o homem amava as artes. A cópia não
é má, e a moldura é severa (CA 1243).
A partir daí, à medida que vão explorando o imóvel, surge em proliferação
uma série de objetos por meio dos quais os dois personagens tecem elucubrações:
um cachimbo alemão que indicaria que o tio era ortodoxo; dois bustos de mármo-
re sobre a secretária (um de Cristo e um de Satanás) que, para Mendonça, repre-
sentariam a luta do mal contra o bem (e a vitória deste último); coisas extravagan-
tes (entre elas uma trança de cabelos amarelos, um baralho de cartas, uma cruz,
uma página de hebraico) que, reunidas no chão, indicariam que o homem era feiti-
ceiro; e uns óculos quebrados encontrados por acaso – que, segundo Pedro, era
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usado pelo tio “para abrandar os raios de luz quando trabalhasse ou lesse de noite”
(CA 1246). Por fim, destaca-se uma escada de seda jogada num canto, além de
uma janela que, dando para o telhado da casa, comunica-se com a janela de um
sobrado ao lado: “– Creio que isto é alguma” (CA 1246).
Neste ponto, trago para o debate as considerações de Alexandre Nodari, via
Carl Einstein, sobre a questão da “desrealização do objeto”.
Segundo nos mostra o ensaísta, Carl Einstein, antes de Adorno, “já insistia
no problema do objeto como moldura nociva na arte, política e história” (Nodari,
2009, p. 128). O vocábulo “objeto” [Gegenstande], entretanto, significa aqui “as-
sunto” ou “tema” e, na concepção de Einstein, nele a tradição se acumularia, adi-
ando e deslocando a “imediaticidade”. Para esse pensador, “o homem está farto de
objetos que o descrevem” (Einstein, 1970, p. 253. apud. Nodari, 2009, p. 128).
Escritas para a Enciclopédia Soviética – informa-nos Nodari –, essas ideias, que
não chegaram a ser aí publicadas, foram retomadas e aproveitadas para o “Dicio-
nário Crítico” da Documents, sob o verbete Absoluto – o qual se definia como
“aquilo que permite ao homem livrar-se do objeto”, possibilitando-lhe “tanto a
servidão quanto a liberdade” (Nodari, 2009, p. 128).
Se tomarmos a palavra objeto, como mencionado acima, por “assunto” ou
“tema” (esse é o aspecto que por ora nos interessa), livrar-se do objeto, então, sig-
nifica – e aqui sigo o autor de “O perjúrio Absoluto (...)” – livrar-se dos meios,
dos “artifícios de toda demonstração, de todo fim” (Ibidem, p. 129). Em suma,
trata-se daquilo a que Alexandre Nodari chama de crítica da mediação. A essa
altura, pergunta-se o autor se a crítica da mediação levaria a uma imediaticidade,
ao mesmo tempo em que indaga em que consistiriam “uma política absoluta e
uma arte absoluta” para, mais adiante, responder:
O absoluto é a verdade máxima, que não tem melhor exemplo que a mentira. A
desrealização do objeto não produz nenhuma imediaticidade, mas libera os meios
(...). A ruptura imanente assume como política o absoluto, isto é, a mentira” (Noda-
ri, 2009, p. 128-129).
Entre essas questões, detenho-me no tópico da liberação dos meios. Note-se
que, a partir das interpretações dos pertences de Pedro Antão, os personagens ti-
ram conclusões, se não de todo apressadas, certamente apoiadas em convenções –
poderíamos dizer: em “artifícios de toda demonstração, de todo fim” (Nodari,
2009, p. 129). São elas: Pedro Antão, o amante das artes; Pedro Antão, o “servo
de Deus”; Pedro Antão, o ortodoxo; Pedro Antão, o feiticeiro; Pedro Antão, o
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leitor, e assim por diante. Neste particular, pode-se dizer que, de um lado, faz-se aí
todo um investimento cuja estratégia consiste em ler esses pertences de modo que
os mesmos possam descrever o homem e, de outro, recorrem-se a “assuntos” ou
“temas” que sustentam esse expediente. Um exemplo disso são as apreciações de
Mendonça sobre a disposição dos bustos de Cristo e Satanás – que tem como refe-
rência a moral judaico-cristã do bem contra o mal:
− Bravo! – exclamei. – Vou penetrando no homem. Acha ainda alguma ortodoxia
nesta aproximação de bustos?
Mendonça, que estava enlevado no primor da escultura, respondeu:
− Toda.
− Explica-te.
− O tio juntava-os para emblema da vida humana, que se compõe do mal e do bem;
o bem está aqui para corrigir o mal. É o ceci tuera cela, de Victor Hugo.
− Está feito; tu explicas tudo (...) (CA 1244).
A certa altura de suas interpretações, Pedro finalmente propõe a seu interlo-
cutor: “(...) ainda que eu suponha teu tio amante de feitiçarias, creio que não é
essa a parte mais importante da vida dele (...). Meu caro, temos já todos os ele-
mentos de que compor um romance; vamos para a outra sala” (CA 1247).
Precisamente neste ponto, inicia-se a segunda história de “Os óculos de Pe-
dro Antão” – o “romance” composto pelo narrador. Que, tal e qual nos casos ante-
riores, também se orienta por contatos e por reconhecimentos. Dessa segunda nar-
rativa, além da pretensão de dizer a “verdade” sobre a vida do defunto, o outro
aspecto que nos interessa é-nos dado por seu autor:
Viste aqui uma casa velha, trastes velhos, ares velhos, nada mais. Eu vi aqui dentro
uma história misteriosa. Organizar no vácuo não é coisa que todos possam fazer.
Vejamos se não me achas razão (CA 1247).
A partir das relações objetivadas entre “proprietário-sujeito” e “propriedade-
objeto” (Nodari, 2009, p. 127), Pedro – que julga organizar sua história “no vá-
cuo” – tece toda uma cadeia discursiva linear-evolutiva que, imersa em relações
de causa e efeito, produz sentidos excludentes à medida que avança no tempo.
Trata-se, aqui, daquele privilégio do que vem primeiro a que, segundo Nodari, se
refere Theodor Adorno em Mínima Moralia. Partamos do ponto, já parcialmente
aludido acima, em que Pedro situa os objetos acima inventariados nessa cadeia
discursiva:
− Sabes a razão da reclusão do tio?
− Não – respondeu o meu companheiro.
− Foi uma paixão. Não te rias. Eu imagino que teu tio se apaixonou por alguma
dama formosa. Sabes donde concluo isto? Do gosto pelas artes (...); olha estes ob-
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jetos de feitiçaria dispostos no chão; tudo isto quer dizer que a religião nem a filo-
sofia bastavam à alma do tio e quando a filosofia e a religião não podem triunfar de
uma alma, triunfa a superstição. Que te parece?
− Um conto para passar o tempo.
− Ouve o resto. Ao cabo de um ou dois anos, Pedro Antão recebeu uma pequena
cartinha...
− Ah! Onde está?
− Não sei; mas recebeu. Talvez a encontremos dentro desta secretária (...) (CA
1247).
Sem me deter nas idas e vindas do complicado enredo dessa segunda narra-
tiva, limito-me a elencar seus pontos de articulação: a carta que supõe a existência
de uma mulher amada (que moraria no sobrado ao lado); o amor impossível entre
esta e Pedro Antão; o namoro na janela; a descoberta do pai da moça; a convales-
cença e a recuperação desta; a escada de seda e o acordo entre os namorados
(conversarem com Pedro Antão pendurado na janela do sobrado); o casamento
arranjado entre Cecília e outro homem; a recusa desta; o amor, o dever e os confli-
tos morais; a decisão pelo rapto da mulher amada; a descoberta de tal projeto pelo
criado de Pedro Antão; o assassinato daquele por este último...
− Onde viste sinais desse crime?
− Não vi sinais; mas é um crime lógico. Por que razão morreria o criado logo na
véspera do rapto? Teu tio quis arredar uma testemunha ou um cúmplice; mas vai
ouvindo. (CA 1251)
...o enterro do criado e das provas do crime; a leitura de Pedro Antão (usan-
do seus famosos óculos) enquanto esperava a hora combinada com Cecília; o
momento do rapto propriamente dito; a demora de Cecília; a espera; novamente o
pai da moça, que surpreende Pedro Antão no telhado: “Miserável!”; a pistola
apontada; o vulto que aparece do nada e salva Pedro Antão; o convite deste último
para que o vulto entrasse...
Atravessaram o telhado e entraram pela janela. Como estivesse escuro, Pedro An-
tão tomou um fósforo, que levava consigo para a volta e à luz quem havia ele de
ver?
− Quem?
− Adivinha.
− Não sei.
− O criado?
− Sim.
− O defunto?
− Nem mais nem menos, o defunto.
− Essa agora!... (CA 1252-1253)
...o susto diante do defunto do criado, que o agarra; a força que Pedro Antão
faz para se desvencilhar; os óculos que caem, quebrando-se; finalmente, a morte
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do tio de Mendonça, que rola pelas escadas. Pedro conclui aí a narrativa, expli-
cando assim a razão de ser dos dois objetos que faltavam: a escada de seda e os
óculos quebrados.
Conquanto as interpretações feitas se dêem a partir da mediação de lugares
comuns e suposições as mais variadas, a meu ver não é somente esse aspecto que
alimenta a segunda história de “Os óculos de Pedro Antão”. Além dele, é preciso
ressaltar a importância da inferência como estratégia argumentativa, a qual, após
fixar a função deste ou daquele objeto na trama narrativa, necessariamente empur-
ra-a para frente – excluindo não apenas possibilidades alternativas, quais sejam,
mas também o papel da contingência e da “experiência singular” a que se refere o
autor de “O perjúrio absoluto (...)” (Nodari, 2009, p. 127). Exemplo disso seria o
argumento do crime lógico citado no diálogo acima sobre o assassinato do criado
de Pedro Antão.
O conto terminaria aí, não fosse a perturbação causada pela pena de Macha-
do de Assis. Tal e qual numa estória de folhetim, surge uma carta inesperada. Essa
carta, entretanto, não é aquela que o narrador (que andava então atrás de uma pro-
va concreta) esperaria encontrar, legitimando sua história:
Muitos objetos íamos encontrando que não serviam para o caso; papeis velhos, car-
tas de amigos, contas de credores, notas de leitura etc. (...)
− É impossível – disse eu –; vejamos nas gavetinhas (...).
Em resumo, nada encontramos que nos pudesse guiar no assunto, e eu senti deveras
porque o menor indício era naquele caso uma prova; ao menos eu assim o entendia.
(CA 1253-1254)
Por trás de uma tabuinha, uma gaveta salta por acaso e, de dentro desta, a
carta inesperada, que dizia:
Meu sobrinho. Deixo o mundo sem saudades. Vivo recluso tanto tempo para me
acostumar à morte. Ultimamente li algumas obras de filosofia da história, e tais
coisas vi, tais explicações encontrei de fatos até aqui reconhecidos, que tive uma
ideia excêntrica. Deixei aí uma escada de seda, uns óculos verdes, que eu nunca
usei, e outros objetos, a fim de que tu ou algum pascácio igual inventassem a meu
respeito um romance, que toda a gente acreditaria até o achado deste papel. Livra-
te da filosofia da história. (CA 1254)
Não se sabe se as “tais explicações” de “fatos até aqui reconhecidos” que
Pedro Antão leu nas obras de filosofia da história funcionam de maneira análoga
ou oposta à narração de Pedro, isto é, como discurso que, tal e qual esta última,
investe no reconhecimento como paradigma epistemológico de conhecimento, ou,
pelo contrário, como discurso que perturba essa lógica. Seja como for, a carta re-
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lança as duas histórias de “Os óculos de Pedro Antão” à sua introdução, onde,
antes de narrá-las, o narrador formula a frase ambivalente: “(...) é positivo que os
seus óculos deviam ter por causa o enfraquecimento da vista; mas ainda assim não
lhe posso afirmar nada (...) (CA 1241-1242).
Hostis tanto ao “deviam ter por causa” quanto ao “não lhe posso afirmar na-
da”, isto é, tanto à possibilidade interpretativa quanto à sua impossibilidade, os
personagens principais deste conto machadiano – um cachimbo, uma escada de
seda, um par de óculos, dois bustos, uma trança de cabelos, um baralho de cartas,
uma página de hebraico, quadros, papeis velhos, notas de leitura... – resistem.
Seria o caso de se falar em uma solidão das coisas? Ou estaríamos buscando
instâncias outras em que, livres da mediação, limiares perspectivos se abrem de
modo a embaralhar pares – verdade e mentira, real e ficcional4, linguagem e coi-
sa? Sem que isso seja uma resposta, deixo citada uma passagem de “Os óculos de
Pedro Antão” em que, por um instante, o delírio narrativo de Pedro entra em curto
circuito na qualidade de discurso mediador, perturbando, de viés, o limite confor-
tável entre a sua ficção e o espaço extra-ficcional em que se situam ele próprio,
Mendonça, e as coisas que os rodeiam:
− (...) Vai ouvindo. A noite do enterro do criado era a noite do rapto de Cecília.
Tudo estava preparado. Pedro Antão aguardou silenciosamente a hora marcada por
ele, isto é, meia-noite. O leitor facilmente calculará...
− Que leitor?
− Foi engano. Quero dizer que tu facilmente calcularás as emoções do namorado
(...). (CA 1251)
Assim como os três tópicos destacados por Alexandre Nodari na seção “Ab-
soluto” são solidários entre si, esta última, por sua vez, articula-se às outras quatro
seções do ensaio em questão: “Universal”, “História”, “Comum” e “Verdade” –
de modo que, do ponto de vista das questões que o atravessam, o ensaio inscreve-
se de maneira contundente no campo teórico-conceitual do perspectivismo. Com o
intuito de abrir interlocuções teóricas, cito uma passagem em que o ensaísta defi-
ne o conceito de mediação:
É difícil não remeter esta busca [a absorção antropofágica do fora, isto é, a conver-
são do tabu em totem] quase titânica a uma tentativa de minar a mediação, toda
forma de relação que separa ao articular, que impossibilita o acesso por meio de
regras e proibições – em suma, a relação sujeito-objeto. (Nodari, 2009, p. 126)
4 Este é um dos pontos de chegada do texto de Alexandre Nodari (2009), onde, via Oswald de
Andrade, explora-se em que medida a crítica da mediação implica uma arte e uma política absolu-
tas, segundo as quais, entre outras coisas, se confere força de lei (isto é, de verdade) à mentira, à
ficção.
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Note-se como, aí, o conceito de mediação é posto em diálogo direto com o
problema da relação entre sujeito e objeto. Tal aproximação é feita, igualmente,
por Erick Felinto (2013) no ensaio “Meio, mediação, agência: a descoberta dos
objetos em Walter Benjamin e Bruno Latour”.
Neste, Felinto possui dois objetivos principais: de um lado, investigar a per-
tinência das reflexões de Walter Benjamin, feitas em dois textos de juventude,
para as discussões contemporâneas sobre os conceitos de meio, mediação e me-
dialidade5. De outro lado, investir numa proximidade contundente entre o pensa-
mento do jovem Benjamin e a teoria do ator-rede, de Bruno Latour. Para o autor
de “Meio, mediação, agência (...)”, os dois pensadores possuiriam “essencialmen-
te as mesmas linhas de força e premissas epistemológicas” (Felinto, 2013, p. 3).
Embora este não seja o objeto de minha discussão, é sabido que há em Ben-
jamin toda uma concepção filosófica que opera na contramão da concepção cor-
rente acerca das noções de meio, comunicação e linguagem. Essa concepção teria
como ponto de partida a ideia de que há uma linguagem da justiça, da arte ou da
religião que, entretanto, não compreenderia o discurso dos especialistas sobre es-
ses domínios. Nesse contexto,
língua, ou linguagem, significa o princípio que se volta para a comunicação de
conteúdos espirituais nos domínios em questão: na técnica, na arte, na jurisprudên-
cia ou na religião. Resumindo: toda comunicação de conteúdos espirituais é língua,
linguagem, sendo a comunicação pela palavra apenas um caso particular (...). (Ben-
jamin, 2011, p. 49-50)
De acordo com essa orientação – recorrente nos tantos saberes e discursos
contemporâneos que procuram relativizar a centralidade da consciência humana
na dinâmica da produção de sentido –, a linguagem encontrar-se-ia destituída da-
quilo que, do ponto de vista tradicional, a sustenta na qualidade de instrumento
representativo: ela não se limitaria nem ao regime sígnico dos significantes e sig-
nificados, nem ao complexo cognitivo som-imagem-sentido, e nem tampouco à
consciência humana propriamente dita. Assim é que haveria uma língua / lingua-
5 Esses dois textos são: “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” e “A tarefa
do tradutor”. Os mesmos, segundo o autor, ocupam lugar marginal tanto na fortuna crítica de Wal-
ter Benjamin quanto nos estudos contemporâneos sobre os meios. No primeiro caso, a crítica teria
inflacionado de leituras o clássico “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”,
fazendo com que as questões despertadas por esse trabalho obnulassem textos outros de Benjamin.
No segundo caso, tal se daria devido ao caráter hermético e exotérico daqueles dois textos de ju-
ventude, que misturam reflexões filosóficas a referências à Cabala.
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gem das coisas (animadas ou inanimadas) que, não funcionando como instrumen-
to, possuiria, contudo, o direito de comunicar.
Dentro desse contexto, a ideia de comunicabilidade, em Benjamin, não
pressupõe ou almeja à reciprocidade cara às funções semióticas e instrumentais.
Antes, trata-se de um movimento de mão única em que essas funções encontrar-
se-iam entre parênteses. Como nos mostra Felinto, Benjamin chamaria de “ex-
pressão” a essa ultrapassagem da condição representativa da linguagem. (Felinto,
2013, p. 7)
Assim, a partir da distinção entre o que se comunica “através” da linguagem
e o que se comunica “na” linguagem; e, ainda, entre “comunicar algo” e “se co-
municar”, opõem-se, em alemão, duas traduções possíveis para a noção de meio:
Mittel e Medium. A primeira corresponderia à transmissão instrumental de conte-
údos exteriores, isto é, daquilo que se transmite “através” e comunica “algo”. A
segunda, por seu turno, seria da ordem daquilo que se insinua “na” linguagem e
“se” comunica. A partir dessa segunda concepção, o conceito de meio “deve ser
compreendido como um ambiente, um lócus (como, por exemplo, nas expressões
‘meio aquoso’ e ‘meio gasoso’”. (Ibidem, p. 6-7)
À pergunta sobre o que, exatamente, se comunica na linguagem, responde-
nos então Erick Felinto: a comunicabilidade – que seria, por sua vez, a “essência
espiritual” a que se refere Walter Benjamin em “Sobre a linguagem em geral e
sobre a linguagem dos homens”. Cito a passagem do filósofo alemão que toca
nesse problema:
Não há evento ou coisa, tanto na natureza animada, quanto na inanimada, que não
tenha, de alguma maneira, participação na linguagem, pois é essencial a tudo co-
municar seu conteúdo espiritual. (Benjamin, 2011, p.51)
Se em “O perjúrio absoluto (Sobre a universalidade da antropofagia)”, Ale-
xandre Nodari define a mediação como “toda forma de relação que separa ao arti-
cular, que impossibilita o acesso por meio de regras e proibições” (p. 126), Felinto
trabalha com o conceito de meio de maneira a investi-lo de força paradoxal. Sepa-
rando e ligando ao mesmo tempo; não se configurando nem como “intervalo pas-
sivo” nem como “realidade de ordem material” (Felinto, 2013, p. 7),
o meio é aqui concebido como uma separação que todavia conecta, reúne, não dire-
tamente, mas através de um movimento, de uma transmissão, de uma transforma-
ção. (Weber, 2008, p. 34. apud. Felinto, 2013, p. 7)
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A meu ver, o conceito de mediação em Nodari (2009) é equivalente ao con-
ceito de meio entendido em sua qualidade instrumental, ou seja, como espaço a
partir do qual se vinculam informações. De fato, em “O perjúrio absoluto (...)”, o
ensaísta faz referência, por exemplo, às diversas verdades históricas que o teatro
de Oswald de Andrade encarrega-se de pôr em questão valendo-se da estratégia de
conferir força de lei à ficção; verdades históricas essas que, vale dizer, funcionam
como conteúdos transmitidos via linguagem.
Já o conceito de meio entendido de maneira não instrumentalizada diria res-
peito àquilo que Alexandre Nodari, via Oswald de Andrade, entende por “ruptura
imanente”: o ponto ali onde a linguagem apresenta-se, já, como o seu próprio fo-
ra; como aquilo que faculta tanto a abertura a temporalidades não teleológicas
quanto a experiências de alteridade que permitam “atualizar uma possibilidade,
redesenhando o horizonte do universal (...)” (Nodari, 2009, p. 124). Tal abertura
diz respeito ao “movimento por meio do qual o mundo se constitui” ao qual Erick
Felinto se refere (Felinto, 2013, p. 7-8)
Neste particular, a minha interlocução com Felinto chega ao ponto em que a
reflexão sobre o problema teórico da mediação possui grande interesse para o
presente trabalho, uma vez que, aí, creio ser possível traçarem-se aproximações
entre esse problema e o campo teórico do perspectivismo, a partir do qual penso
relações entre agência dos objetos e estilo.
A meu ver, o movimento por meio do qual o mundo se constitui se aproxima
tanto da expressão “entremeio disjuntivo” (proposta por Anne Sauvagnargues
(2010, p. 30) acerca da noção de estilo em Deleuze (isto é, o espaço diferencial
em que a produção de sentido, enquanto individuação não humana, independe da
consciência), quanto do escopo geral da teoria do “ator rede”, de Bruno Latour
(2012, 2013). Quando este último insiste na distinção entre os conceitos de medi-
adores e intermediários ao tratar de objetos técnicos, em particular, e de objetos
de pesquisa em geral, o que está em jogo são as cosmologias que se desenham a
partir das conexões heterogêneas que se dão entre os diferentes meios materiais e
imateriais do mundo moderno; conexões essas que desafiam tanto a concepção
temporal linear-evolutiva deste último quanto suas partições entre os pólos do
sujeito e do objeto. É o que nos sugere o antropólogo francês, respectivamente,
em Jamais fomos modernos e Cogitamus, em proveito da composição de mundos:
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O que fazer se não podemos nem avançar nem recuar? Deslocar nossa atenção. Nós
nunca avançamos nem recuamos. Sempre selecionamos ativamente elementos per-
tencentes a tempos diferentes. Ainda podemos selecionar. É a seleção que faz o
tempo, e não o tempo que faz a seleção. (Latour, 2013, p. 75)
O que procuramos descrever já não é a Distinção entre ciência e política (...), mas
sim as distinções – assim, no plural – entre composições de mundos. Não se trata
mais de definir o que é o universo, para em seguida extrair dessa definição regras
de ação; mas trata-se de forçar cada parte a explicitar o seu – ou os seus – cosmos.
(Latour, 2016, p. 160)
Essas reverberações teórico-conceituais são igualmente audíveis no conceito
de multinaturalismo formulado por Eduardo Viveiros de Castro (2004) em “Pers-
pectivismo e multinaturalismo na América indígena” – sobre o qual, por ora, teço
breves considerações, a serem desdobradas em outros capítulos.
Tendo em vista a complexidade e o refinamento teórico-conceitual das
questões levantadas por Eduardo Viveiros de Castro no referido ensaio, opto,
aqui, por destacar duas palavras como estratégia para se chegar à noção de multi-
naturalismo: intencionalidade e agência. Ao contrastar o ideal de conhecimento
da modernidade ocidental com o do xamanismo ameríndio, propõe-nos Viveiros
de Castro que aquele é orientado por processos de objetivação – “conhecer é obje-
tivar” – ali onde este último se orienta pelo seu contrário – “[c]onhecer é personi-
ficar”:
Sendo mais preciso (...), diria que estamos diante de um ideal epistemológico que,
longe de buscar reduzir a ‘intencionalidade ambiente’ a zero a fim de atingir uma
representação absolutamente objetiva do mundo, faz a aposta oposta: o conheci-
mento verdadeiro visa à revelação de um máximo de intencionalidade (...). (Vivei-
ros de Castro, 2004, p. 231-232)
Entre as muitas frases e expressões lapidares do ensaísta, duas me parecem
particularmente exemplares no que diz respeito a essa distinção fundamental. A
primeira, relativa à epistemologia ocidental, diz-nos: “A forma do Outro é a coi-
sa”. A segunda, relativa às cosmologias ameríndias, marca sua diferença: “A for-
ma do Outro é a pessoa”. Cito mais uma passagem em que a nuance do vocabulá-
rio de Viveiros de Castro dá a ver um dos pontos de inflexão centrais para que se
pense a noção de “multinaturalismo”:
O xamanismo ameríndio parece guiado pelo ideal inverso [ao da epistemo-
logia da modernidade ocidental]. Conhecer é personificar, tomar o ponto de
vista daquilo que deve ser conhecido – daquilo, ou antes, daquele; pois o
conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito
ou agente. (ibidem, p. 231)
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Esse “daquele” que se sobrepõe ao “daquilo” e esse “alguém” que se sobre-
põe ao “algo” dá as medidas, em certo sentido, do porquê o perspectivismo ame-
ríndio é irredutível aos termos do relativismo cultural: se neste último o que se
tem é uma única natureza e múltiplas representações desta – as quais se dão, por
sua vez, segundo essa ou aquele cultura –, naquele o que se tem é apenas uma
representação (palavra que, nesse caso, precisa ser nuançada conceitualmente,
uma vez que não se trata, aqui, de representação mental, mas de perspectivas cor-
porais) e múltiplas naturezas em conflito.
Tal se dá, principalmente, pelo fato de que, nas cosmologias ameríndias, o
humano não se limita à espécie humana, mas também a determinados animais e
até mesmo a coisas, como roupas e/ou certos artefatos – na medida em que estes
possuem agência e intencionalidade. A rigor, a noção de humanidade escapa to-
talmente à ideia de espécie; antes, ela se apresenta como uma condição cujos as-
pectos (que dizem respeito ao modus operandi dessas cosmologias) a situam nas
fronteiras incertas entre o humano e o não-humano. Nesse contexto, os animais se
vêem a si mesmos tais como os humanos se vêem a si: como humanos. Estes, por
sua vez, são vistos por aqueles não como humanos, mas como animais ou espíri-
tos:
Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos
vêem como humanos. Eles se apreendem como, ou se tornam, antropomor-
fos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus
próprios hábitos e características sob a espécie da cultura (...). (Viveiros de
Castro, 2004, p. 227)
A nós, importa destacar que esse “ver como” não se limita, de modo algum,
à visão; antes, trata-se de perceptos. Além disso, o ponto de vista situa-se no cor-
po, o qual, por sua vez, não se restringe ao corpo fisiológico – compreendendo,
mais amplamente, o arco dos afetos e das afecções a partir dos quais a alteridade
se faz sentir em seu vigor. Acrescente-se que o ponto de vista, além de não se li-
mitar à visão e à consciência, não se apresenta como algo que, a elas exterior, se
sobrepõe às coisas, quais sejam. Em outras palavras: a rigor, não há pontos de
vista sobre as coisas; estas é que seriam os pontos de vista. Desse modo, o que
está em jogo é menos a maneira como esse ou aquele ser vê o mundo do que qual
mundo se exprime através desse ou daquele ser. Por fim, destaque-se o aspecto
altamente relacional e transformacional das cosmologias ameríndias, em que, en-
tre outras coisas,
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[a] possibilidade de que um ser até então insignificante revele-se como um
agente prosopomórfico capaz de afetar os negócios humanos está sempre
aberta; a experiência pessoal, própria ou alheia, prevalece sobre qualquer
dogma cosmológico substantivo. (ibidem, p. 228)
Assim como em relação às considerações de Sauvagnargues sobre o estilo
em Deleuze, essas concepções descritas por Eduardo Viveiros de Castro, caras ao
perspectivismo ameríndio, sob certos aspectos se aproximam tanto daquele movi-
mento por meio do qual o mundo se constitui, ao qual se refere