a gestão dos recursos humanos nas forças armadas e as suas...

7
Página 1 de 7 2016/06/10 A gestão dos recursos humanos nas Forças Armadas e as suas implicações para a segurança dos cidadãos 1 Eduardo Jorge Antunes Afonso 2 O centro de gravidade de qualquer organização humana reside na qualidade, competência e motivação dos seus quadros. A problemática que pretendo analisar nesta reflexão diz respeito às Forças Armadas (FA), contudo as suas potenciais consequências ou riscos são transversais a toda a sociedade, pelo que não deve deixar de merecer o olhar atento da sociedade civil. Refiro-me à questão do Regime de Contrato (RC) com limite de seis anos, em vigor nas FA. Esta questão, como todas as questões que merecem análise e reflexão, é complexa e apresenta várias facetas, que podem por sua vez ser abordadas de diversos ângulos; pretendo abordar apenas duas dessas vertentes, sem desprimor por outras, certamente relevantes: refiro-me às implicações e riscos desta estratégia de gestão Recursos Humanos (RH), tanto para o funcionamento e operacionalidade das FA, como para a segurança dos cidadãos. Para esse efeito, formulei duas questões derivadas: 1. O desperdício de capital humano qualificado e especializado e, consequentemente, do investimento realizado no seu recrutamento, formação e treino. 2. O risco para a segurança interna e externa 3 , que decorre da oportunidade de captação desta mão-de-obra diferenciada, a custo zero, por redes de crime organizado. Antes de “mergulharmos” nesta reflexão, um breve apontamento, para nos situarmos conceptualmente, na questão da gestão de RH, que podemos enunciar nos seguintes termos: 1 Artigo originalmente divulgado pela Associação dos Oficiais das Forças Armadas. 2 Mestre em Ciências Militares e Auditor do Curso Intensivo de Defesa Nacional. 3 Tal como salientei na reflexão que tive ensejo de produzir acerca dos ataques de Paris, estou convicto de que não existe uma verdadeira separação entre segurança interna e externa, mas antes que estas são duas faces da mesma moeda, intrinsecamente ligadas, que não devem ser artificialmente separadas e abordadas per si, sob pena de se perderem importantes sinergias e vasos comunicantes.

Upload: vunhi

Post on 11-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Página 1 de 7

2016/06/10

A gestão dos recursos humanos nas Forças Armadas e as suas implicações para a segurança dos cidadãos1

Eduardo Jorge Antunes Afonso2

O centro de gravidade de qualquer

organização humana reside na

qualidade, competência e motivação

dos seus quadros.

A problemática que pretendo analisar nesta reflexão diz respeito às Forças Armadas (FA), contudo as suas potenciais consequências ou riscos são transversais a toda a sociedade, pelo que não deve deixar de merecer o olhar atento da sociedade civil.

Refiro-me à questão do Regime de Contrato (RC) com limite de seis anos, em vigor nas FA.

Esta questão, como todas as questões que merecem análise e reflexão, é complexa e apresenta várias facetas, que podem por sua vez ser abordadas de diversos ângulos; pretendo abordar apenas duas dessas vertentes, sem desprimor por outras, certamente relevantes: refiro-me às implicações e riscos desta estratégia de gestão Recursos Humanos (RH), tanto para o funcionamento e operacionalidade das FA, como para a segurança dos cidadãos.

Para esse efeito, formulei duas questões derivadas:

1. O desperdício de capital humano qualificado e especializado e, consequentemente, do investimento realizado no seu recrutamento, formação e treino.

2. O risco para a segurança interna e externa3, que decorre da oportunidade de captação desta mão-de-obra diferenciada, a custo zero, por redes de crime organizado.

Antes de “mergulharmos” nesta reflexão, um breve apontamento, para nos situarmos conceptualmente, na questão da gestão de RH, que podemos enunciar nos seguintes termos:

1 Artigo originalmente divulgado pela Associação dos Oficiais das Forças Armadas. 2 Mestre em Ciências Militares e Auditor do Curso Intensivo de Defesa Nacional. 3 Tal como salientei na reflexão que tive ensejo de produzir acerca dos ataques de Paris, estou convicto de que não existe uma verdadeira separação entre segurança interna e externa, mas antes que estas são duas faces da mesma moeda, intrinsecamente ligadas, que não devem ser artificialmente separadas e abordadas per si, sob pena de se perderem importantes sinergias e vasos comunicantes.

JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt

Página 2 de 7

«A gestão de RH é não mais do que a utilização eficiente dos colaboradores, através

do uso efetivo dos seus talentos e habilidades, com vista ao atingir dos objetivos da

organização, sem esquecer o bem-estar dos próprios colaboradores.»

Esta definição, bastante sintética, falha no ponto de vista limitado - o da empresa - em que aborda a questão, descurando os seus impactos na sociedade.

Relativamente à primeira questão derivada:

Um sistema que incorpora cidadãos com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos e os dispensa entre os 24 e os 30 anos4 - no auge das suas capacidades físicas e intelectuais - não pode, de todo, estar a interpretar e implementar corretamente o conceito de gestão de RH enunciado.

Quantas especializações são ministradas, por exemplo, a um militar de uma qualquer Força Especial (FE), quais os custos dessas formações e que retorno efetivo podem estes militares trazer às FA e ao País, na sua curta passagem pelas fileiras?

Quando receberam a formação e o treino adequados, depois de participarem, em muitos casos, de missões internacionais e, mais importante, se encontram “endoutrinados” (imbuídos dos valores e da cultura institucional intrínsecos às FA, como o patriotismo, a disciplina, o espírito de corpo, a abnegação, entre outros), são ingloriamente dispensados, antes mesmos de alcançarem a sua “Full

Operational Capability” (FOC), para utilizar um inglesismo muito usado entre nós.

Em síntese: o atual sistema de gestão, ao invés de garantir «a utilização eficiente

dos colaboradores», desperdiça não só RH qualificados como os recursos financeiros, humanos e materiais investidos no seu recrutamento, formação e treino.

No que diz respeito à segunda questão derivada:

No caso concreto dos RH das FA, com as suas características e habilidades específicas e, em alguns casos, extraordinárias, o impacto da sua transição desordenada do serviço ativo para a disponibilidade encerra desafios e riscos para a segurança que não podem, nem devem, ser descurados.

Temos que nos interrogar, com sentido crítico, acerca das competências em áreas sensíveis, como as comunicações, os explosivos ou “sniper” - para dar apenas alguns exemplos - adquiridas pelos militares na sua breve passagem pelas fileiras.

Estes militares são dispensados das fileiras, contra sua vontade, em muitos casos revoltados e relativamente desprotegidos, dotados de um conjunto de competências, atitudes e comportamentos que os transformam em “alvos” fáceis e muito apetecíveis

4 Dos 18 aos 24 anos e no mínimo o 9.º ano de escolaridade; até aos 27 anos, com licenciatura; e até aos 30 anos, com licenciatura em medicina.

Militares Portugueses de Forças Especiais.

JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt

Página 3 de 7

para as redes de crime organizado e, efetivamente, para as redes de recrutamento de organizações terroristas.

O auto proclamado “Estado Islâmico”, é sabido, incorpora ex-militares de diversas nacionalidades, com esse tipo de competências e sofisticação, com os resultados que estão à vista de todos, tanto em termos de capacidade de planeamento, quanto no rigor e eficácia na condução de operações militares e na execução de atentados.

Compreende-se facilmente o interesse destas redes em explorar este “filão” de mão-de-obra qualificada, em alguns casos altamente diferenciada e treinada, a custo zero.

Nos Estados Unidos da América (EUA), as autoridades manifestam preocupação com o interesse de organizações criminosas conhecidas por “gangs”, em recrutar ex-militares e/ou em infiltrar as FA em geral e as FE em particular, com o intuito de adquirir competências e treino operacional de qualidade e, não menos importante, de obter licença para adquirir armas de guerra.

O FBI publicou um relatório em 2011 em que alerta para que os “gangs” e o crime organizado penetraram já todos os ramos das FA.5

No relatório, o FBI estima que existam 1,4 milhões de membros de “gangs” nos EUA, e que muitos estão a penetrar as FA, que já registaram membros de 53 “gangs” diferentes, em instalações militares, em nos EUA e no estrangeiro.

O relatório considera que os militares afiliados a “gangs” expandem a sua cultura e operações a novas regiões, tanto no plano interno como externo, minando os esforços das autoridades no combate ao crime organizado.

Os membros de “gangs” com treino militar representam uma ameaça única para as Forças e Serviços de Segurança (FSS), devido à sua capacidade para utilizar armamento especial e às competências de combate adquiridas, que por sua vez podem transmitir aos membros dos respetivos “gangs”.

No México, o cartel “Los Zetas”, o mais poderoso e cujos métodos são de uma brutalidade extrema, foi criado por 34 ex-militares das FE mexicanas.6

5 “The FBI Announces Gangs Have Infiltrated Every Branch Of The Military” disponível em: [http://www.businessinsider.com/fbi-gang-assessment-us-military-2011-10]. 6 “How 34 commandos created Mexico's most brutal drug cartel” disponível em: [http://www.businessinsider.com/how-34-commandos-created-mexicos-most-brutal-drug-cartel-2015-3].

Um soldado norte-americano numa zona de combate, utilizando sinalética e linguagem corporal associada à subcultura dos “gangs”.

JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt

Página 4 de 7

O Governo dos EUA classificou-o como “o mais tecnologicamente avançado,

sofisticado e perigoso Cartel a operar no México”.

Com uma forte presença em 17 Estados mexicanos – metade do país – Los Zetas é a maior organização criminosa a operar no País.

O Departamento de Defesa Mexicano reconheceu-o o grupo como “o mais formidável esquadrão

da morte que alguma vez trabalhou

para o crime organizado, na história

do México”.

Outros exemplos haverá, um pouco por todo o mundo (Máfia Russa / Spetznaz, etc.), pelo que não nos podemos considerar imunes a estas tendências e aos riscos para a segurança que representam.

Se a questão da compra do armamento de guerra não se coloca em Portugal com a mesma acuidade (não deixa de ser preocupante e um provável sinal desta tendência, os recentes - e públicos - furtos de armas em unidades militares), já a aquisição de competências e treino operacional tem, obviamente, relevância entre nós.

A incorporação de valor acrescentado na organização sem a necessidade de investimento em formação e treino é tão aliciante para o crime organizado em Portugal, como o é em qualquer parte do mundo. É uma questão de necessidade, disponibilidade e oportunidade e as leis de mercado funcionam basicamente do mesmo modo, em qualquer ponto do globo.

Los Zetas estendem a sua influência a metade do território mexicano, e muito para lá das fronteiras do país.

Os métodos extremamente violentos e o uso de armamento sofisticado são imagens de marca do cartel Los Zetas.

JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt

Página 5 de 7

Para agravar este quadro, o financiamento destas redes criminosas não é, no quadro atual, propriamente difícil, tendo nos paraísos fiscais - que movimentam, fora do controlo das autoridades, 8 % de toda a riqueza mundial 7, terreno fértil para as operações de financiamento e de branqueamento de capitais destas organizações. 8

Entre nós, felizmente, não tem sido noticiada a contratação de ex-militares por organizações ligadas ao crime organizado, o que não quer dizer que esse risco não exista, ou que seja negligenciável, particularmente num contexto de graves dificuldades socioeconómicas, em que o desemprego é uma dura realidade.

Fará sentido, e será esta a melhor gestão de RH, continuarmos a dispensar os nossos contratados no auge das suas capacidades? Não seria mais racional rentabilizar estes militares, o seu “saber de experiência feito”, mantendo-os na componente operacional do sistema de forças por um período mais longo, quiçá até aos 40 anos de idade?

Num contexto em que se assiste ao acentuado e acelerado envelhecimento da população portuguesa9 e ao aumento de longevidade nas sociedades modernas - veja-se a crescente longevidade dos atletas de alta competição -, uma solução desta natureza reveste-se de particular pertinência e atualidade.

Este envelhecimento terá, a curto prazo (se não está já a verificar-se), reflexos muito negativos na capacidade das FA para captar voluntários em número suficiente10 para suprir as suas necessidades de pessoal em RC.

A esta dificuldade acresce a falta de atratividade do RC nas FA, que se apresenta como uma solução de trabalho de baixa remuneração, e a termo.

7 El Telegrafo online, disponível em: [http://www.eltelegrafo.com.ec/noticias/economia/8/el-8-de-la-riqueza-mundial-esta-offshore]. 8 Para não falar de mecanismos ainda mais difíceis de rastrear pelas autoridades, como é o caso da moeda “bitcoin”, transacionada na “darkweb” e utilizada para todo o tipo de atividades ilícitas ou criminosas. 9 PORDATA, disponível em: [http://www.pordata.pt/Portugal/Indicadores+de+envelhecimento-526] 10 É sabido que a tendência natural, quando os números insuficientes, é de diminuir o grau de exigência colocado na seleção.

Aos 38 anos, Ricardo Carvalho será o jogador de campo mais velho de sempre, a participar no Europeu de futebol.

O negócio da droga gera enormes volumes de dinheiro, que os offshores e a opacidade do setor financeiro ajudam a “lavar”.

JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt

Página 6 de 7

As FSS não têm (ainda) dificuldades de recrutamento, por diversos motivos, sendo a existência de um QP para praças/ agentes, com toda a certeza, um dos principais.

Como gerir então esta matéria tão sensível?

De uma perspetiva da gestão de RH, a operacionalização desta solução far-se-ia de modo bastante simples e, muito provavelmente, menos oneroso para o erário público do que o sistema atual: através da criação de um Quadro Permanente (QP) para militares oriundos do RC.

Esta solução permitiria uma melhor rentabilização do investimento - não desprezível - feito no recrutamento, formação e treino destes militares e, simultaneamente, diminuir - não eliminar - o risco destes virem a ser captados por organizações criminosas e/ou terroristas.

Perguntarão os mais céticos: o que fazer com estes militares, após os 40 anos?

Penso que esta é uma falsa questão; quantas funções de natureza administrativo-logísticas são hoje desempenhadas por jovens na casa dos 20 anos? E haverá alguma vantagem nisso?

Não se sentiria um general mais seguro, se tivesse como condutor um experiente ex-operacional de uma FE, em vez de um jovem na casa dos 20 anos, dotado apenas da instrução militar básica? Penso que sim.

A doutrina de referência considera a necessidade de 7 (sete) Homens envolvidos em tarefas relacionadas com a formação e com o apoio administrativo-logístico, por cada combatente na “linha da frente”.11

Não faria mais sentido integrar estes ex-operacionais nas estruturas de apoio, naturalmente submetendo-os a formação adicional para o desempenho das novas funções, de modo a não se perder o seu conhecimento e experiência acumulada, numa lógica de aprendizagem ao longo da vida?

É portanto necessário reorientar a filosofia de gestão de RH, de tal forma a que os militares iniciem, por regra geral, a sua carreira no desempenho de tarefas de

11 «Assim, em qualquer exército ocidental, o número de efetivos utilizados para o municiamento das

unidades de combate era muito superior ao número de combatentes.» Excerto de “A guerra na história da Europa”, de Michael Howard.

A população portuguesa apresentava em 2014 um índice de envelhecimento de 138,6%.

JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt

Página 7 de 7

natureza operacional para, após os 40 anos de idade (ou outra que se entenda mais adequada do ponto de vista psicofisiológico), passarem por um processo de reorientação laboral, que lhes permita integrar as estruturas de formação ou de apoio administrativo-logístico.

As FA precisam, como do ar que respiram, de valores fundamentais como o da coesão, da disciplina, e de espírito de corpo. Estes valores são valores que se aprendem, desenvolvem, consolidam e transmitem às novas gerações no decurso de uma vida, não de seis anos.

Esse passar de testemunho enriquece qualquer organização, ainda mais quando esta assenta em valores e atitudes que, infelizmente para a nossa sociedade doentiamente competitiva e autofágica, se praticam cada vez menos, e que por isso mesmo se vão, gradual mas irremediavelmente, perdendo.

Em conclusão: um QP de Praças, Sargentos e Oficiais oriundos do RC constituiria uma ferramenta fundamental para gestão de RH numas FA modernas e adaptadas à realidade demográfica do país.

Simultaneamente, não resolvendo por completo o quadro de riscos e ameaças que constitui a captação de RH diferenciados por organizações criminosas e/ou terroristas, poderia contribuir, para a solução deste problema, potencialmente grave.