a geografia do pensamento filosófico artigo de roberto machado

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1 A geografia do pensamento filosófico 1 Roberto Machado A filosofia, para Gilles Deleuze, não está num nível mais elevado do que os outros saberes; não é uma “reflexão sobre”, no sentido de um metadiscurso, uma metalinguagem, um discurso, um saber, que teria por objetivo formular ou explicitar critérios de legitimidade ou de justificação dos outros discursos, dos outros saberes, tendência moderna que começa com Kant – ao criar a distinção entre o empírico e o transcendental – e perdura, por exemplo, na epistemologia, no neopositivismo, na filosofia da linguagem. Para Deleuze, a filosofia é produção, criação de pensamento, tal como são as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não. Daí por que, ao se colocar em relação intrínseca com outros domínios, seu objetivo é estabelecer conexões, ressonâncias entre esses domínios, a partir da questão central que orienta suas investigações. Essa questão diz respeito ao que significa pensar. O objeto principal da filosofia de Deleuze é o exercício do pensamento. Mas o pensamento não é um privilégio da filosofia: filósofos, cientistas, artistas são pensadores. Isso não significa, no entanto, que Deleuze assimile os diferentes domínios de saber, pois ele assinalou claramente – sobretudo em Qu’est-ce que la philosophie? – o fundamental da diferença constitutiva da filosofia: enquanto a ciência cria funções e a arte cria agregados sensíveis, “compostos de sensação”, perceptos e afetos, a filosofia cria conceitos. Assim, há, ao menos, três aspectos na ideia de que a filosofia é criação de conceitos. Primeiro, ela é criação, assim como a ciência, a arte, a literatura. O elemento da filosofia não é dado, não existe implicitamente, velado, em algum lugar, sendo explicitado, revelado, desvelado pelo filósofo. Se o pensamento filosófico é criador é porque faz nascer alguma coisa que ainda não existia, alguma coisa nova. E a esse respeito Deleuze está seguindo Nietzsche quando diz que o filósofo não descobre: inventa. Segundo, a filosofia é criação 1 Estas ideias são aprofundadas em meu livro Deleuze, a arte e a filosofia, Rio Zahar, 2009.

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Roberto Machado

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  • 1

    A geografia do pensamento filosfico1 Roberto Machado

    A filosofia, para Gilles Deleuze, no est num nvel mais elevado do que

    os outros saberes; no uma reflexo sobre, no sentido de um metadiscurso,

    uma metalinguagem, um discurso, um saber, que teria por objetivo formular ou

    explicitar critrios de legitimidade ou de justificao dos outros discursos, dos

    outros saberes, tendncia moderna que comea com Kant ao criar a distino

    entre o emprico e o transcendental e perdura, por exemplo, na epistemologia,

    no neopositivismo, na filosofia da linguagem. Para Deleuze, a filosofia

    produo, criao de pensamento, tal como so as outras formas de saber, sejam

    elas cientficas ou no. Da por que, ao se colocar em relao intrnseca com

    outros domnios, seu objetivo estabelecer conexes, ressonncias entre esses

    domnios, a partir da questo central que orienta suas investigaes.

    Essa questo diz respeito ao que significa pensar. O objeto principal da

    filosofia de Deleuze o exerccio do pensamento. Mas o pensamento no um

    privilgio da filosofia: filsofos, cientistas, artistas so pensadores. Isso no

    significa, no entanto, que Deleuze assimile os diferentes domnios de saber, pois

    ele assinalou claramente sobretudo em Quest-ce que la philosophie? o

    fundamental da diferena constitutiva da filosofia: enquanto a cincia cria

    funes e a arte cria agregados sensveis, compostos de sensao, perceptos e

    afetos, a filosofia cria conceitos.

    Assim, h, ao menos, trs aspectos na ideia de que a filosofia criao de

    conceitos. Primeiro, ela criao, assim como a cincia, a arte, a literatura. O

    elemento da filosofia no dado, no existe implicitamente, velado, em algum

    lugar, sendo explicitado, revelado, desvelado pelo filsofo. Se o pensamento

    filosfico criador porque faz nascer alguma coisa que ainda no existia,

    alguma coisa nova. E a esse respeito Deleuze est seguindo Nietzsche quando

    diz que o filsofo no descobre: inventa. Segundo, a filosofia criao

    1 Estas ideias so aprofundadas em meu livro Deleuze, a arte e a filosofia, Rio Zahar, 2009.

  • 2 especfica, criao de conceitos, enquanto que as outras formas de criao

    cientfica, artstica, literria no so conceituais. Desse modo, se, por um lado,

    os conceitos so como sons, funes, imagens, linhas, cores, quando se trata de

    criao o meio, o instrumento, o elemento prprio da filosofia o conceito.

    Terceiro, essa criao de conceitos singular, ou melhor, criao de conceitos

    singulares. O conceito uma singularidade. Ideia, tambm de inspirao

    nietzschiana, que j afasta Deleuze de muitos outros filsofos, e o leva a sugerir

    que todos eles criaram conceitos singulares, mesmo se disseram o contrrio. E a

    esse resposto pode-se dizer que os conceitos so assinados, tm o nome de seu

    criador: assim, Ideia remete a Plato, substncia a Aristteles, cogito a

    Descartes, mnada a Leibniz, condio de possibilidade a Kant, durao a

    Bergson...

    *

    Se fazer filosofia criar conceitos, como so criados os conceitos da

    filosofia de Deleuze? Minha hiptese que sua filosofia , em ltima anlise,

    um sistema de relaes entre conceitos criados de duas maneiras diferentes: por

    um lado, conceitos oriundos, provenientes, extrados da prpria filosofia, isto ,

    de filsofos privilegiados em suas leituras principalmente Espinosa, Nietzsche

    e Bergson e, por outro lado, conceitos suscitados, sugeridos, pela relao entre

    conceitos filosficos e elementos no conceituais provenientes de domnios

    exteriores filosofia. Assim, no procedimento filosfico de Deleuze, a literatura,

    as cincias e as artes esto a servio da prpria filosofia, ou da criao de

    conceitos. Se no h reflexo sobre, mas pensamento a partir, ou melhor, com, e

    se a filosofia especificamente o domnio dos conceitos, pensar a exterioridade

    da filosofia estabelecer ressonncias, conexes, agenciamentos entre conceitos

    filosficos e elementos no conceituais dos outros saberes que, integrados ao

    discurso filosfico, so transformados em conceitos.

    Mas a relao com a exterioridade ou com os outros saberes, embora

    constitutiva, no o aspecto determinante desta inter-relao conceitual. Mesmo

    que um conceito seja como um som ou uma imagem, e no haja superioridade

  • 3 de um sobre os outros, do ponto de vista da elaborao da problemtica

    filosfica de Deleuze, ou de seu prprio exerccio de pensamento, h prioridade

    da filosofia sobre os outros domnios. A razo que, sendo sua questo uma

    questo filosfica o que pensar? ou melhor, sendo seu objetivo principal

    produzir o conceito de exerccio do pensamento, o apelo aos saberes no

    filosficos funciona fundamentalmente como comprovao ou confirmao de

    uma problemtica definida conceitualmente pela filosofia. O nofilosfico entra

    como elemento que vem alimentar um pensamento eminentemente voltado para

    a filosofia e at mesmo para os conceitos tradicionais da filosofia. Se h, nesse

    caso, prioridade da filosofia porque ela o regime dos conceitos, e, mesmo

    que os conceitos venham de fora, os conceitos suscitados pela exterioridade no

    conceitual esto, no pensamento de Deleuze, subordinados aos conceitos

    oriundos da tradio filosfica.

    No nego a importncia do extrafilosfico para compreender seu

    procedimento de criao. A antropologia, a psicanlise, a etologia, so, neste

    sentido, fundamentais. O cinema, a pintura, a literatura tambm. Desejo

    salientar, no entanto, no s que suas questes vm prioritariamente da filosofia,

    da tradio filosfica, mas tambm que, na trajetria de Deleuze, elas se

    colocaram a partir da filosofia. A meu ver, Deleuze fundamentalmente um

    historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente, deixando a marca de

    seu prprio pensamento em todos os seus estudos. Isso implica levar em

    considerao o que exterior ao discurso tcnico ou explicitamente filosfico.

    Mas significa principalmente instituir a leitura dos filsofos como parte

    essencial de seu modo prprio de filosofar, ou de subordinar o conhecimento das

    questes e problemas filosficos constituio de um pensamento: o seu.

    *

    A caracterstica mais elementar da leitura deleuziana dos pensamentos

    filosficos, cientficos e artsticos o fato de ela se propor mais como uma

    geografia do que propriamente como uma histria, no sentido de considerar o

    pensamento no atravs de uma dimenso histrica linear e progressiva, em que

  • 4 o posterior superior como em Hegel , nem mesmo de uma histria

    descontnua, que abandona a ideia de progresso como em Foucault , mas

    privilegiando a constituio de espaos, de tipos no apenas heterogneos, mas

    sobretudo antagnicos.

    Isso significa que a relao entre criao de conceitos e tradio

    filosfica, como a estabelece Deleuze, consiste em erigir o modelo, ou mais

    precisamente, o processo de pensamento de determinados filsofos como

    condio de seu modo singular de filosofar. Assim, o privilgio de determinados

    filsofos em seus estudos monogrficos a tentativa de construir um espao

    ideal,2 diferente do representado por Plato, Aristteles, Descartes, Hegel, que

    se organiza segundo outros princpios e pretende escapar dos pressupostos em

    que normalmente se acredita estar fundada a filosofia; o projeto de criar, a

    partir de filsofos passveis de entrar em relao, em comunicao, em

    ressonncia num mesmo espao, conceitos que expressem ou tornem possvel

    um novo pensamento. E essa ideia de criao de outro espao de pensamento,

    que aparece nos livros monogrficos, perceptvel bem mais claramente nos

    livros temticos Diffrence et rptition, Logique du sens, Lanti-Oedipe,

    Mille plateaux,Quest-ce que la philosophie?. Pois, centrados nas questes da

    diferena, do sentido, do desejo, da multiplicidade, do pensamento filosfico,

    esses livros estendem as ressonncias aos saberes cientficos, literrios e

    artsticos, sempre com o objetivo de contrapor o espao da imagem do

    pensamento, que dogmtico, ortodoxo, metafsico, moral, racional..., ao espao

    do pensamento sem imagem, que pluralista, heterodoxo, ontolgico, tico,

    trgico... Assim, por exemplo, enquanto a moral julga a vida a partir de valores

    transcendentes, um sistema de juzos sobre o que se diz e o que se faz em

    termos de bem e de mal considerados como valores metafsicos, a tica avalia

    sentimentos, condutas e intenes referindo-os a modos de existncia imanentes

    que eles supem ou implicam, leva em considerao os modos de ser das foras

    vitais que definem o homem por sua potncia, pelo que ele pode.

  • 5

    *

    Qual o procedimento utilizado por Deleuze para criar essa geografia do

    pensamento? Ou mais precisamente, como se d a relao entre os filsofos

    privilegiados por expressarem um estilo de pensamento que permite a criao do

    espao ideal alternativo do pensamento sem imagem? Estabelecendo uma

    analogia com a pintura e em aluso a um dos domnios de expresso do

    movimento dadasta, de Arp, Picabia, Duchamp, Man Ray, Max Ernst...,

    Deleuze diz, no texto mais explcito sobre o assunto, que essa relao do tipo

    de uma colagem. Quer dizer, assim como Marcel Duchamp colocou uma

    pequena barba e um bigode na Mona Lisa de Leonardo da Vinci, a colagem que

    Deleuze faz no pensamento dos outros deve agir como um duplo, e comportar o

    mximo de modificao prpria ao duplo.3 E essa ideia de duplo sem

    semelhana tambm est presente quando, estabelecendo uma analogia com o

    teatro, ele diz que essa relao entre filsofos uma espcie de teatro filosfico.

    O que significa dizer que Deleuze funciona como um dramaturgo que escreve as

    falas e dirige a participao de cada pensador em sua filosofia. E, para fazer

    isso, ele utiliza um procedimento de colagem que faz aparecer, sob a mscara de

    Scrates, o riso do sofista, ou faz com que Duns Scot receba os bigodes de

    Nietzsche, mas um Nietzsche fantasiado de Klossovski ou de Blanchot.

    A est por que Deleuze no pode ser considerado propriamente um

    historiador da filosofia. Para ele, repetir o texto no buscar sua identidade, mas

    afirmar sua diferena. A leitura dos filsofos e no filsofos que ele realiza

    age, atua, interfere com o objetivo de produzir um duplo. E justamente a

    compreenso da amplitude e do modo de funcionamento desse procedimento

    que modifica o texto, produzindo um duplo sem semelhana atravs de pequenas

    ou grandes tores, que possibilita explicitar o diferencial prprio ao

    pensamento de Deleuze, o que constitui sua singularidade.

    *

    2 Dialogue, Paris, Flammarion, 1977, p.22 3 Cf. Diffrence e rptition, Paris, PUF, 1972, p.4.

  • 6 O que possibilita Deleuze estabelecer duas orientaes bsicas do

    pensamento e apresentar uma delas como uma resistncia, uma alternativa

    radical? Ou melhor, qual o critrio que lhe permite isolar duas vertentes na

    histria da filosofia e, de modo ainda mais geral, no pensamento , consider-

    las antagnicas e escolher uma delas para situar seu prprio pensamento? A

    resposta pode ser dada imediatamente: a filosofia de Nietzsche.

    A filosofia de Nietzsche , em sua inspirao fundamental, uma tomada

    de posio a respeito da prpria filosofia. No Crepsculo dos dolos, por

    exemplo, Nietzsche assinala, de modo lapidar, as grandes etapas de sua histria

    Plato, a filosofia crist, Kant, o positivismo , define-as como o platonismo

    da filosofia e se insurge contra toda a orientao do pensamento filosfico desde

    Plato.4 A filosofia de Nietzsche , como ele mesmo a denominou, um

    platonismo invertido (umgedrehter Platonismus). Pois justamente essa

    temtica, interpretada como crtica da filosofia da representao e denominada

    s vezes subverso, s vezes perverso do platonismo, que constitui o centro

    a partir do qual gravitam as anlises histrico-filosficas de Deleuze e inspira

    toda a elaborao de seu pensamento filosfico.

    A dualidade entre dois tipos de filosofia tem, por conseguinte, Nietzsche e

    Plato como polos opostos. Num extremo, Plato, com quem nasce a imagem do

    filsofo como ser das ascenses, como aquele que sai da caverna, se eleva e se

    purifica na medida em que se eleva em direo ao Bem e Verdade. Plato, para

    quem, segundo Deleuze, a clebre dualidade entre sensvel e inteligvel que d

    incio metafsica existe em funo da distino entre a boa cpia, a cpia

    bem fundada, que uma imagem dotada de semelhana, e a m cpia, o

    simulacro, que uma imagem sem semelhana. Se Plato um filsofo da

    representao porque sua postura metafsica privilegia a imagem fundada pela

    semelhana interna com a identidade superior da Ideia em detrimento da

    imagem sem semelhana, o simulacro. No outro extremo, Nietzsche, o anti-

    4 Nietzsche, Crepsculo dos dolos, Como o mundo verdadeiro acabou convertendo-se numa fbula.

  • 7 Plato, aquele que mais radicalmente duvidou dessa orientao pelo alto, em

    direo da identidade do modelo, aquele em quem se nota de maneira mais

    radical o exerccio de um pensamento que afirma a diferena. Como? Segundo

    Deleuze, por ter pensado a vontade afirmativa de potncia como sendo a

    diferena e o eterno retorno como o pensamento capaz de criar a vontade de

    potncia como afirmao, porque torna possvel pensar diferencialmente a

    diferena, isto , o eterno retorno como revir, retorno da diferena.

    Nietzsche essencial para a compreenso do procedimento deleuziano de

    crtica da filosofia e busca de um espao alternativo, ou, mais precisamente, de

    crtica da filosofia da representao e constituio de uma filosofia da diferena.

    H, porm, uma diferena importante no modo como Nietzsche realiza uma

    genealogia e Deleuze uma geografia do pensamento. que Nietzsche

    praticamente no reconhece aliados. Ele pensa sua problemtica como

    radicalmente diferente da de qualquer outro pensador, e sempre procurou, em

    sua trajetria filosfica, intensificar essa diferena para no ser contaminado

    pelo niilismo do pensamento. A caracterstica marcante de Nietzsche, e da sua

    situao singular na histria da filosofia, que, para ele, mais do que para

    qualquer outro pensador, pensar afirmativamente acarreta necessariamente

    pensar contra tudo o que foi pensado desde Plato.

    Deleuze no. Deleuze um filsofo da aliana. Partindo de Nietzsche

    como critrio de avaliao, o estilo filosfico deleuziano consiste em lhe

    encontrar aliados em graus diferentes, estabelecendo conexes entre conceitos

    de filsofos que merecem figurar no espao de uma filosofia da diferena. A

    problemtica nietzschiana de inverso do platonismo interpretada, como disse,

    como crtica da filosofia da representao, e denominada "subverso" ou

    perverso do platonismo constitui o centro a partir do qual gravitam as

    anlises histrico-filosficas de Deleuze. ela que permite esclarecer a situao,

    no texto deleuziano, de determinados filsofos e de determinados conceitos

    elaborados por esses filsofos ou reelaborados, a partir deles, por Deleuze,

    conceitos que apontam na direo de uma atividade filosfica diferente do estilo

  • 8 de filosofia majoritrio desde Plato. Isto significa que Deleuze tem o

    sentimento nietzschiano de um niilismo do pensamento que domina, entre outros

    setores, a filosofia. Mas, diferentemente de Nietzsche, esse sentimento no

    total, visto que seu projeto de uma geografia do pensamento busca justamente

    contraexemplos ou tentativas de escapar do niilismo da histria dos saberes.

    Deste modo, elaborar ou reelaborar uma filosofia da diferena significa

    estabelecer uma ponte, um canal, uma ligao entre Nietzsche e os que podem,

    de um modo ou de outro, mais ou menos, ser aproximados de sua filosofia.

    *

    Assim, segundo a geografia deleuziana do pensamento, existem, por um

    lado, filsofos que, de um modo geral, esto excludos do espao em que

    Deleuze pretende situar seu pensamento. o caso sobretudo de Plato,

    Aristteles, Descartes, Hegel, os grandes representantes da imagem tradicional

    da filosofia considerada como filosofia da representao, isto , como aquela

    que reduz a diferena identidade, pois isso que significa representao para

    Deleuze.

    A crtica deleuziana da representao, no entanto, s adquire todo o seu

    significado em funo do projeto de elaborao de uma filosofia da diferena.

    Em termos nietzschianos, eu diria que ela como um no decorrente de um

    sim, ou de uma afirmao fundamental. Isso porque a questo central da

    filosofia de Deleuze, o exerccio do pensamento, tem insistentemente como

    resposta um pensamento que afirma a divergncia e a disjuno, ou que

    estabelece a relao entre termos, ou entre sries, como a de uma diferena que

    rene imediatamente o que distingue.

    Nota-se isso em sua anlise dos estoicos, que, para mostrar como eles

    realizaram a primeira grande subverso do platonismo, privilegia dois conceitos

    de sua filosofia o corpo e o incorpreo e a relao entre eles. A idia geral da

    anlise a seguinte: Os estoicos viam os corpos como nica realidade,

    deslocando a noo de ser do inteligvel para o corpreo, e considerando a Ideia

    um extra-ser impassvel. O incorpreo, ou a Ideia, no uma causa

  • 9 transcendente, mas um efeito superficial. O que uma subverso do platonismo.

    Alm disso, esses nveis fsico e lgico relacionam-se atravs da tica. Isto ,

    entre uma lgica da superfcie, que diz respeito ao incorpreo, e uma fsica da

    profundidade, que diz respeito s misturas de corpos, h uma tica que relaciona

    o acontecimento puro, ideal, incorpreo, e a profundidade dos corpos, por um

    movimento ou um processo de encarnao, efetuao, incorporao. O sbio

    estoico algum que compreende o acontecimento puro em sua verdade, e, ao

    mesmo tempo, quer sua efetuao em um estado de coisas e em seu prprio

    corpo.5

    Nota-se isso tambm em sua anlise de Bergson, que considera a

    intuio bergsoniana como um mtodo que tem dois momentos fundamentais.

    O primeiro produz o que Deleuze chama dualismo reflexivo, e decompe um

    misto impuro, emprico, espaciotemporal em dois tipos de multiplicidade

    qualitativamente diferentes: fundamentalmente a durao e o espao. A durao

    uma multiplicidade interna, no numrica, simples, contnua, heterognea, que

    compreende todas as diferenas de natureza, todas as diferenas qualitativas, e

    para quem a diferena uma alterao com relao a si mesma. O espao uma

    multiplicidade de exterioridade, numrica, descontnua, homognea, que

    apresenta exclusivamente diferenas de graus, diferenas quantitativas, e para

    quem a diferena apenas aumento ou diminuio. A est a diviso, to

    utilizada por Deleuze, entre o virtual e o atual. O outro momento do mtodo de

    intuio gentico, e diz respeito relao desses dois termos fundamentais.

    Agora, o mtodo parte de uma unidade virtual e a diviso, ou o dualismo

    gentico que ele produz, proveniente da diferenao (diffrenciation), ou da

    atualizao dessa virtualidade, segundo linhas divergentes que diferem por

    natureza. No h, portanto, semelhana entre o virtual e o atual. Ao atualizar-se,

    o virtual se diferencia. A diferenao justamente a atualizao de uma

    virtualidade que persiste atravs de suas linhas divergentes atuais. Ela explica,

    5Os textos de Deleuze sobre os estoicos encontram-se em Logique du sens, sries 2, 10, 18, 19, 20, 23, 24.

  • 10 desenvolve por linhas divergentes o que estava envolvido. E, na filosofia

    bergsoniana, o clebre conceito de impulso vital (lan vital) que designa essa

    atualizao do virtual por linhas de diferenao to importante para a

    concepo deleuziana da gnese como processo de atualizao.

    Nota-se isso ainda em sua anlise de Espinosa, que privilegia a relao

    entre a substncia e os modos atravs dos atributos, ou, mais precisamente, a

    partir da teoria da univocidade dos atributos. Os atributos so formas de ser

    unvocas que no mudam de natureza ou de sentido quando so afirmados da

    substncia e dos modos. A univocidade dos atributos no significa que a

    substncia e os modos tenham o mesmo ser. A substncia em si, os modos so

    na substncia como em outra coisa e, assim, no se dizem no mesmo sentido; no

    entanto, o ser ou as formas unvocas de ser que so os atributos se dizem no

    mesmo sentido do que em si e do que em outra coisa. Portanto, devido aos

    atributos, que constituem a essncia da substncia e contm a essncia dos

    modos, h, ao mesmo tempo, identidade de forma e diferena de essncia entre a

    substncia e os modos.

    Deleuze aprofunda essa problemtica da univocidade, explicitando, a

    partir da, uma dupla gnese caracterstica da ontologia espinosista: primeiro, a

    gnese no sentido de constituio lgica da substncia, que se elabora atravs de

    uma teoria da distino formal, ou da distino real no numrica, e explica a

    passagem das primeiras proposies da tica, que demonstram a existncia de

    uma substncia por atributo, s proposies que afirmam haver apenas uma

    substncia para todos os atributos; segundo, a gnese no sentido de produo

    fsica dos modos, atravs de distines modais intrnsecas e extrnsecas que

    dizem respeito s quantidades intensivas e extensivas contidas no atributo e que

    so partes da essncia ou potncia da substncia. E, se a teoria da univocidade

    do ser pensada, na anlise de Espinosa, como teoria da univocidade do atributo

    e da causa to importante para a elaborao da filosofia de Deleuze, pela

    possibilidade que ela oferece de afirmar uma sntese disjuntiva, ou o carter

  • 11 sinttico, e no analtico, da disjuno, com a divergncia e o descentramento

    que ela acarreta.

    Mas a concordncia de Deleuze com esses filsofos de modo algum

    total, no sentido de que ele no vai com eles at o fim, ou considera que eles no

    vo at o fim. assim que, analisando como o incorpreo submetido a uma

    dupla causalidade que, por um lado, remete aos corpos, que so suas causas, e,

    por outro lado, remete a outros incorpreos, que so sua quase causa, Deleuze

    abruptamente se afasta dos estoicos por no terem pensado essa relao entre

    incorpreos como uma pura relao de expresso.6 assim tambm que Le

    bergsonisme assinala uma ambiguidade na crtica que Bergson faz da

    intensidade, e Diffrence et rptition, radicalizando a divergncia, considera a

    crtica bergsoniana pouco convincente, por conceder s qualidades o que

    pertence intensidade, fazendo com que esta aparea como um misto impuro, o

    que arruna a prpria ideia de gnese.7 assim, finalmente, que a concepo da

    univocidade, segundo a qual o ser se diz em um mesmo sentido de tudo aquilo

    de que ele se diz, exigindo, segundo Deleuze, que a substncia seja afirmada dos

    modos, e no o inverso, o afasta de Espinosa e o faz buscar em Nietzsche a

    subverso categrica pela qual o ser se diz do devir ou a identidade se diz do

    diferente.8 Da por que, como j sugeri, na anlise de Nietzsche, considerado

    como um pensador ontolgico, que Deleuze encontra com mais radicalidade o

    exerccio de um pensamento que afirma a diferena.

    *

    Plato significa o nascimento da filosofia da representao. Nietzsche o

    pice do anti-platonismo ou da filosofia da diferena, onde tambm se situam os

    estoicos, Espinosa, Bergson, Foucault... Mas se, no nvel molar dos sistemas

    filosficos ou da orientao geral de um pensamento, a delimitao dos dois

    espaos da representao e da diferena ntida, no nvel molecular dos

    elementos ou dos conceitos componentes, a comunicao entre esses espaos

    6 Cf.Logique du sens, Paris, Munuit, 10/18, 1969, 24 srie, p.235. 7 Cf. Le bergsonisme, Paris, PUF, 1968, p.93, Diffrence et rptition, p.308-309.

  • 12 frequente. Isto significa que at mesmo filsofos que esto situados no espao

    da representao so objeto, por parte de Deleuze, de um roubo de conceitos

    que desfaz a teia conceitual em que esto inseridos ou desconsidera algumas das

    consequncias que acarretam nas teorias filosficas em que foram produzidos.

    Livros como Diffrence et rptition, Logique du sens, Lanti-Oedipe, Mille

    plateaux, Quest-ce que la philosophie? fazem isso o tempo todo. Perante esses

    filsofos, a posio de Deleuze quase sempre a de um sim... mas, bastante

    caracterstico do procedimento de colagem9.

    O filsofo que mais serve a Deleuze neste sentido, e que portanto ocupa

    uma posio bastante singular em seu pensamento Kant. Por um lado, seus

    livros esto cheios de virulentas crticas a Kant, que consistem em explicitar as

    razes pelas quais sua filosofia situa-se no espao da representao, isto , est

    subordinada aos postulados da recognio e do senso comum. Por outro lado, a

    filosofia de Kant ocupa uma posio privilegiada entre os instrumentos

    conceituais que permitem compreender a elaborao e a estruturao de seu

    pensamento filosfico. E isso possvel porque vrios elementos conceituais da

    filosofia de Kant apontam na direo de uma filosofia da diferena.

    O que Kant significa para Deleuze? Em primeiro lugar, a descoberta da

    diferena transcendental, ou o fato de o sujeito ser constitudo por duas formas

    irredutveis que fazem com que ele seja receptivo, afetado, e determinante,

    espontneo. Se Deleuze se aproxima de Kant pela novidade kantiana de

    considerar o conhecimento a partir de uma diferena de natureza, e no apenas

    de grau, entre a sensibilidade, faculdade de intuies, e o entendimento,

    faculdade de conceitos, ou de considerar o conhecimento como sntese do

    heterogneo. E se Deleuze privilegia em suas anlises o paradoxo do tempo,

    segundo o qual o eu penso s determina minha existncia eu sou sob a

    8 Cf. Diffrence et rptition, p.59. 9 Com relao a Leibniz, essa posio evidente em livros como Diffrence et rptition, Logique du sens, Spinoza et le probleme de lexpression, mas no mais em Le pli. Leibniz et le barroque, onde, mudando de perspectiva, Deleuze apresenta Leibniz como um filsofo da diferena,com o qual seu acordo seria total se no fosse o ltimo pargrafo do livro em que, apesar de se considerar leibniziano

  • 13 forma de um eu passivo no tempo, a valorizao da diferena, no interior do

    sujeito, entre o eu transcendental e o eu fenomenal, a partir da forma vazia do

    tempo evidencia, mais uma vez, que Deleuze sempre interpreta Kant na

    perspectiva da questo da diferena e de sua relao com o pensamento. Assim,

    quando pensa o paradoxo kantiano do tempo, a partir da questo central de sua

    filosofia, o que orienta a toro caracterstica de sua tcnica de colagem o

    interesse em conceber o tempo como diferena transcendental que introduz uma

    fissura, uma rachadura no sujeito.

    Mas o acordo est longe de ser total. E a principal crtica deleuziana

    filosofia de Kant diz respeito ao fato de a relao entre as faculdades ser um

    acordo harmonioso, ou uma colaborao sob a forma do mesmo. Considerando

    esse princpio do senso comum um dos postulados da representao, Deleuze

    vai, ento, seguir dois caminhos que lhe permitem extrair da questo kantiana da

    relao das faculdades uma filosofia da diferena. O primeiro percorre as trs

    crticas kantianas para dar conta do deslocamento, com o sublime, na Crtica da

    faculdade do juzo, da questo da condio de possibilidade para a questo, mais

    fundamental segundo ele, da gnese. No caso do sublime, o desacordo entre a

    imaginao e a razo o princpio gentico do acordo das faculdades; trata-se,

    portanto, de um acordo engendrado no desacordo.

    O segundo caminho privilegia os ps-kantianos Salomon Maimon e

    Herman Cohen, por haverem formulado um mtodo de gnese interna no nvel

    da prpria Crtica da razo pura. O que Deleuze ento procura com a ajuda dos

    ps-kantianos criticar as ideias de que a diferena entre conceito e intuio

    seja externa ou extrnseca e de que um termo se adapte ao outro por meio do

    esquema da imaginao, que criaria uma harmonia entre termos exteriores, e,

    principalmente, exigir um princpio de diferena ou de determinao interna. E

    isso o leva, finalmente, a se afastar no apenas de Kant, mas at mesmo dos ps-

    kantianos, ao propor uma teoria da ideia, considerada como multiplicidade

    por causa da teoria da dobra, coloca reticncias, apontando as mudanas que o leibnizianismo teria sofrido.

  • 14 diferencial que percorre todas as faculdades, e do dinamismo espaciotemporal,

    ou esquema ideal, com o objetivo de mostrar que a intensidade considerada

    como princpio da gnese ou do processo de atualizao a potncia da

    diferena, de que a noo kantiana de esquema no d conta.

    *

    Essa constituio de dois espaos antagnicos do pensamento tambm

    exposta de um ponto de vista sistemtico, isto , independentemente da leitura

    de um filsofo ou no filsofo determinado, sob a forma de uma doutrina das

    faculdades, em vrios livros de Deleuze, sendo o principal deles Diffrence et

    rptition. E o que se nota, ento, uma espantosa correspondncia entre as

    anlises monogrficas e esse novo tipo de abordagem da questo da diferena e

    da representao que chamo de doutrinria para salientar o quanto ela central

    no pensamento de Deleuze.

    O que Deleuze critica na filosofia da representao? Seu principal

    pressuposto, o postulado segundo o qual o pensamento um exerccio natural de

    uma faculdade, naturalmente bem dotado para possuir a verdade, enquanto o

    erro, considerado como o negativo do pensamento, vem de fora, produto de

    mecanismos externos. E seu objetivo, nesse caso, demonstrar que essa

    concepo implica, subjetivamente, a unidade, ou a identidade do sujeito

    pensante como fundamento da concordncia, da harmonia entre as faculdades, e,

    objetivamente, a unidade, ou a identidade do objeto como submetendo a

    diversidade dada.

    E o que Deleuze prope como alternativa representao? Um

    empirismo transcendental10 expresso que j uma colagem de Hume e

    Kant que considera o pensamento como involuntrio e inconsciente e se define

    como uma teoria do uso paradoxal das faculdades. So trs os aspectos mais

    importantes dessa teoria. 1) Cada faculdade tem um objeto prprio, especfico,

    singular; cada faculdade s apreende o que a concerne exclusivamente,

    diferencialmente, e no pode ser objeto de nenhuma outra. 2) A relao entre as

  • 15 faculdades do tipo de um esforo divergente, de um acordo discordante, o

    que faz com que seja o encontro contingente e violento com o que fora a pensar

    que produz a necessidade de um ato de pensamento. 3) As ideias so uma

    multiplicidade, uma coexistncia virtual das relaes entre elementos

    diferenciais intensivos que referem o diferente ao diferente e se atualizam, se

    encarnam, se efetuam por um processo gentico de diferenao

    (diffrenciation) qualitativa e quantitativa.

    Nessa sistematizao dos princpios da filosofia da diferena, atravs de

    uma doutrina das faculdades, em correspondncia com os estudos monogrficos,

    est, mais uma vez, o mago da filosofia de Deleuze, que inclusive permaneceu

    invarivel no fundamental, apesar das modificaes terminolgicas e at mesmo

    conceituais que sofreu.

    *

    Para concluir, gostaria de fazer trs observaes. A primeira diz respeito

    natureza e extenso das anlises de Deleuze. Privilegiei, na interpretao de

    seu pensamento, sua leitura dos filsofos. Entre outras razes porque considero

    Deleuze, antes de tudo, um historiador da filosofia que ousou pensar

    filosoficamente, ou que encontrou no discurso filosfico os conceitos a partir

    dos quais foi possvel estruturar sua filosofia como um pensamento diferencial.

    Mas esse privilgio que descortino em suas anlises dos filsofos quando se

    trata de explicitar o modo de funcionamento de seu pensamento no significa

    ignorar seus importantes estudos sobre domnios exteriores filosofia. A relao

    entre saberes sempre foi muito intensa no procedimento filosfico de Deleuze,

    no sendo, de modo algum, lateral ou circunstancial, visto que, como esclareci,

    o objetivo principal de sua filosofia investigar o que pensar, e o pensamento

    no exclusividade da filosofia, mas uma propriedade de todo tipo de saber.

    Da por que, ao tematizar o discurso cientfico ou as expresses artsticas

    ou literrias, ele jamais tem por objetivo fazer filosofia das cincias, das artes ou

    da literatura; est sempre criando conceitos a partir do que foi pensado, com 10Diffrence et Rptition, p.186, 187.

  • 16 seus prprios elementos, em outros domnios, est sempre transformando em

    conceitos o exerccio no conceitual de pensamento existente nesses outros

    domnios. Deste modo, ao pensar as cincias, a literatura e as artes, Deleuze est

    realizando seu projeto filosfico de constituio de uma filosofia da diferena

    sem que haja uma diferena essencial entre esses estudos e os estudos dos textos

    tecnicamente filosficos. Neste sentido e para dar um nico exemplo , a

    interpretao deleuziana da Recherche du temps perdu, de Proust, como uma

    busca inconsciente e involuntria da verdade, eminentemente filosfica no s

    porque a considera como um sistema de pensamento, mas tambm porque a

    contrape filosofia da identidade e da representao, tornando-a um

    instrumento da formulao de sua prpria filosofia da diferena, pela maneira

    como considera o signo, o sentido e a relao entre eles. Pois a importncia que

    Deleuze d aos signos e depois dar intensidade deve-se a que so eles

    que foram o pensamento a pensar em seu exerccio involuntrio e inconsciente,

    isto , transcendental, fazendo-o buscar o sentido, ou a essncia considerada

    como diferena ltima e absoluta. Mas essa hiptese poderia ser facilmente

    confirmada com relao aos outros estudos de Deleuze sobre literatura, cinema,

    pintura.

    *

    A segunda observao que no penso que haja vrias filosofias de

    Deleuze, ou que, depois de Lanti-Oedipe, e de seu encontro com Felix Guattari,

    sua filosofia tenha mudado radicalmente. verdade que privilegiei neste artigo

    seus escritos dos anos sessenta, entre outras razes porque so dessa poca seus

    principais estudos sobre filsofos, que, segundo minha interpretao, so mais

    importantes para compreender sua prpria filosofia do que seus estudos sobre

    literatos e artistas, alm de que tambm dessa poca o livro que expe com

    mais densidade o mago de sua filosofia: Diffrence et rptition. Mas no me

    parece que haja ruptura entre os estudos dessa poca e os trabalhos posteriores

    de Deleuze. Para dar alguma credibilidade a minha posio, darei dois

    exemplos.

  • 17

    Um o de seu livro sobre Foucault, o primeiro que escreveu sobre um

    filsofo depois de Lanti-Oedipe e outros livros escritos com Guattari. Segundo

    Deleuze, a questo central da filosofia de Foucault o que o pensamento, o

    que significa pensar. S que a especificidade de Foucault no mbito dessa

    questo que norteou Deleuze em todos os seus estudos est na existncia de trs

    eixos, trs direes, trs dimenses do pensamento, que constituem uma

    arqueologia do saber, uma estratgia do poder, uma genealogia da subjetivao.

    Para meu objetivo basta seguir as duas primeiras direes.

    O saber constitudo por dois elementos ou duas formas, uma forma de

    contedo e uma forma de expresso: a visibilidade e o enunciado. E essa

    interpretao bastante original se completa pela afirmao de que entre esses

    elementos constituintes do saber h diferena de natureza ou heterogeneidade,

    relao disjuntiva e primado do enunciado. Ento, apesar das diferenas

    evidentes que ele reconhece, Deleuze conclui por um neokantismo de

    Foucault,11 no sentido de que o saber constitudo pelo entrelaamento de

    enunciados determinantes e visibilidades determinveis que so heterogneos,

    mas cuja heterogeneidade no impede sua mtua insero. J o poder uma

    relao de foras, um diagrama de foras, e a fora, um poder de afetar outras

    foras ou de ser afetado por elas. Alm disso, as relaes entre poder e saber tm

    trs caractersticas, que so do mesmo tipo que as existentes entre os elementos

    do saber: 1) diferena de natureza, no sentido de que, enquanto o saber diz

    respeito a formas, o poder informe, intensivo; 2) pressuposio recproca,

    imanncia mtua, no sentido de uma relao do tipo virtual-atual; 3) primado do

    poder sobre o saber, no sentido de que a relao de foras condio gentica

    ou dimenso constituinte das relaes de formas.

    Essas relaes entre poder e saber levam Deleuze a, mais uma vez,

    aproximar Foucault de Kant. S que, nesse caso, a analogia, ou melhor, a

    ressonncia entre eles diz respeito ao diagramatismo de Foucault e ao

    11 Foucault, Paris, Minuit, 1986, p.67.

  • 18 esquematismo de Kant, responsveis nas duas filosofias por uma coadaptao

    entre formas de espontaneidade e de receptividade. Com a diferena de que, se,

    para um, a imaginao uma ponte, ou uma mediao, e, para o outro, o poder,

    considerado como relaes intensivas de foras, um elemento informe de

    diferenao (diffrenciation), a distncia que os separa grande. Da por que,

    enquanto Kant , em ltima anlise, situado pela geografia de Deleuze no espao

    da representao, a ontologia de Foucault , antes de tudo, uma filosofia da

    diferena que se expressa pela disjuno das formas do saber que tem o poder

    como condio gentica funcionando como diferenciador da diferena.

    E para que tambm no se pense que a teoria das faculdades que tem sua

    formulao mais brilhante em Diferena e repetio um pensamento depois

    abandonado, gostaria de mostrar que a relao disjuntiva entre elementos que

    lhe essencial pode ser encontrada na relao entre os elementos constituintes

    do pensamento filosfico tal como formulada em O que a filosofia?, o

    ltimo grande livro de Deleuze, escrito com Guattari.

    Essa concepo do pensamento filosfico explica-se a partir de trs

    elementos diferentes por natureza: o conceito, o plano de imanncia e o

    personagem conceitual, que correspondem, no pensamento cientfico, funo,

    ao plano de referncia e ao observador parcial e, no pensamento artstico,

    sensao, ao plano de composio e figura esttica.12

    O conceito um todo fragmentado, uma multiplicidade de componentes,

    eles mesmos conceituais, heterogneos, mas inseparveis, intrinsecamente

    relacionados, agrupados em zonas de vizinhana, ou de indiscernibilidade.

    Como, por exemplo, o conceito cartesiano de eu ou de cogito "penso, logo

    sou" , que tem trs componentes: duvidar, pensar, ser. Mas Deleuze no reduz

    a filosofia ao conceito, ou melhor, no considera o conceito o nico elemento da

    filosofia. Se ele define em seus ltimos escritos sua filosofia como um

    construtivismo, no sentido de que, se os conceitos precisam ser criados, a

    12 A exposio mais sinttica dessas trs grandes formas do pensamento est em Quest-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, 1991, p.186.

  • 19 criao de conceitos uma construo sobre um plano, ou filosofar, alm de

    criar conceitos, tambm traar um plano.

    O plano de consistncia, ou de imanncia dos conceitos um todo no

    fragmentado, aberto, informe, ilimitado, que o suporte onde os conceitos, que

    o preenchem, se repartem, se distribuem. Os conceitos existem relativamente ao

    plano sobre os quais eles se delimitam, aos problemas que eles devem

    responder. O plano a prpria imagem do pensamento, a imagem que a filosofia

    cria do que significa pensar. E, a esse respeito, o exemplo de Deleuze tambm

    retoma uma ideia de Diferena e repetio: para Descartes, todo mundo sabe o

    que significa pensar, todo mundo tem a capacidade de pensar, todo mundo quer

    a verdade.13 Assim, mesmo se o plano nico no mbito de uma filosofia, cada

    grande filsofo traa um novo plano, mudando o que significa pensar.

    Mas para haver filosofia necessrio que, alm o conceito e o plano de

    imanncia, haja um terceiro elemento, que ocupa uma posio intermediria

    entre os dois primeiros, criando uma coadaptao entre eles. preciso um

    personagem conceitual tanto para criar conceitos quanto para traar o plano. Os

    personagens conceituais so personagens intrnsecos ao pensamento, uma

    categoria transcendental que a prpria condio do pensamento. Potncias de

    conceitos que operam sobre um plano de imanncia, eles so as condies sob as

    quais cada plano preenchido por conceitos. Por exemplo, Deleuze considera

    que o personagem conceitual do kantismo o juiz, o legislador, no sentido de

    que Kant faz do filsofo um juiz e da razo um tribunal onde se julga o que cabe

    de direito ao pensamento. Assim, mesmo se o personagem conceitual no

    aparece explicitamente, ele est presente em toda filosofia, pois o verdadeiro

    sujeito de uma filosofia, o verdadeiro agente de enunciao: o intercessor do

    filsofo.

    *

    A terceira observao que, ao apresentar sucintamente as grandes

    articulaes das leituras que Deleuze realiza dos filsofos, no estou

  • 20 evidentemente querendo sugerir que elas pretendam reduzir os vrios filsofos,

    ou no filsofos, ao mesmo, no sentido de encontrar uma identidade que os

    assimile. Cada interpretao deleuziana sistemtica, sempre pretendendo dar

    conta, de modo global, dos princpios constitutivos de um pensamento. No

    entanto, se as repeties do exerccio do pensamento dos vrios filsofos e no

    filsofos agenciados pelo procedimento de colagem constituem um sistema,

    um sistema aberto que no totaliza, no sentido de que no possvel estabelecer

    uma correspondncia biunvoca entre termos de provenincia diferente.

    O desfile das leituras deleuzianas dos filsofos que acabo de promover

    mostra justamente que a diferena entre eles persiste, ou que cada um conserva

    sua singularidade. Alm disso, Deleuze no se identifica com nenhum deles

    totalmente, nem mesmo com Nietzsche, sua inspirao fundamental, aquele que

    atingiu o pice de uma filosofia da diferena. Sua leitura de Nietzsche a

    criao de mais uma mscara, de um duplo sem semelhana, e, neste sentido,

    no s a leitura dos outros filsofos incide sobre o seu Nietzsche, mas tambm a

    dos comentadores, que tm grande importncia nas interpretaes deleuzianas.

    Como o caso de Klossowski e Blanchot.

    Por outro lado, a relevncia e a constncia em seu pensamento de

    conceitos como sntese disjuntiva, diferenciador da diferena, gnese,

    intensidade... evidenciam como o objetivo principal da filosofia de Deleuze

    sempre o estabelecimento de relaes diferenciais. esse invariante nas

    variaes dos autores e dos conceitos estudados que , inclusive, o diferencial de

    sua filosofia. Meu objetivo foi apresentar esse invariante, essa homologia

    estrutural.

    13 Quest-ce que la philosophie?, p.43, 60.