a fotografia e a invencao da loucura

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A Fotografia e a invenção da loucura Eduardo Vieira da Cunha Nos últimos anos do século XIX, o famoso hospital de La Salpetrière, era uma espécie de inferno: quatro mil mulheres, tidas como loucas e incuráveis, se aglomeravam nos quartos e corredores daquele manicômio, bem escondidas dos turistas que já começavam a buscar na cidade de Paris traços da belle époque e o surgimento do modernismo no movimento de pessoas nos grandes boulevares . Em um cenário sombrio e escondido da doença mental, entre as paredes do velho hospital, como nos conta Georges Didi-Huberman em um livro chamado A invenção da Histreria, surge a figura clássica de um cientista, um médico chamado Jean-Martin Charcot, que tenta, através da ajuda da fotografia, descobrir causas e manifestações da loucura, mais especificamente do comportamento histérico. A pergunta que fica até hoje é se a fotografia teria mesmo a capacidade de cristalizar em imagens estas atitudes passionais, esses êxtases, ou tudo não passou de um grande teatro, uma grande ficção. Freud, testemunho privilegiado de todos esses acontecimentos, retiraria dessa experiência pseudocientífica um material fascinante para iniciar seus estudos sobre a psicanálise. Uma das conclusões de Freud é a de que a fotografia nem sempre representa a verdade científica do comportamento humano. Trata- se de um primeiro abandono do olhar como método de descrição de sintomas. Imaginemos uma enorme câmera fotográfica colocada em um dos quartos de hospital La Salpetrière, em frente a um doente. O aparato sem dúvida acabaria, antes de tentar reproduzir para entender, ser o próprio vetor que provoca a crise. Para Freud, só as quatro paredes do consultório é que serviriam de um laboratório para a revelação de imagens do inconsciente humano. Quando Freud utiliza o modelo do aparelho fotográfico, é para mostrar que todo o fenômeno físico passa necessariamente por uma fase inconsciente, pela obscuridade, pelo negativo, antes de ascender à consciência, de se revelar na claridade do positivo. Passar das sombras à luz pela fotografia não significa apresentar uma explicação fidedigna de fenômenos, sejam eles científicos ou comportamentais. O físico Heisemberger viria em 1927, com seu princípio da incerteza, impor restrições a todas estas precisões que se poderia esperar de medidas e modelos de imagens simultâneas de uma classe de coisas observáveis e reproduzíveis através

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Eduardo Vieira da Cunha

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A Fotografia e a inveno da loucuraEduardo Vieira da CunhaNos ltimos anos do sculo XIX, o famoso hospital de La Salpetrire, era uma espcie de inferno: quatro mil mulheres, tidas como loucas e incurveis, se aglomeravam nos quartos e corredores daquele manicmio, bem escondidas dos turistas que j comeavam a buscar na cidade de Paris traos da belle poque e o surgimento do modernismo no movimento de pessoas nos grandes boulevares .Em um cenrio sombrio e escondido da doena mental, entre as paredes do velho hospital, como nos conta Georges Didi-Huberman em um livro chamado A inveno da Histreria, surge a figura clssica de um cientista, um mdico chamado Jean-Martin Charcot, que tenta, atravs da ajuda da fotografia, descobrir causas e manifestaes da loucura, mais especificamente do comportamento histrico. A pergunta que fica at hoje se a fotografia teria mesmo a capacidade de cristalizar em imagens estas atitudes passionais, esses xtases, ou tudo no passou de um grande teatro, uma grande fico. Freud, testemunho privilegiado de todos esses acontecimentos, retiraria dessa experincia pseudocientfica um material fascinante para iniciar seus estudos sobre a psicanlise.Uma das concluses de Freud a de que a fotografia nem sempre representa a verdade cientfica do comportamento humano. Trata-se de um primeiro abandono do olhar como mtodo de descrio de sintomas. Imaginemos uma enorme cmera fotogrfica colocada em um dos quartos de hospital La Salpetrire, em frente a um doente. O aparato sem dvida acabaria, antes de tentar reproduzir para entender, ser o prprio vetor que provoca a crise. Para Freud, s as quatro paredes do consultrio que serviriam de um laboratrio para a revelao de imagens do inconsciente humano. Quando Freud utiliza o modelo do aparelho fotogrfico, para mostrar que todo o fenmeno fsico passa necessariamente por uma fase inconsciente, pela obscuridade, pelo negativo, antes de ascender conscincia, de se revelar na claridade do positivo. Passar das sombras luz pela fotografia no significa apresentar uma explicao fidedigna de fenmenos, sejam eles cientficos ou comportamentais.O fsico Heisemberger viria em 1927, com seu princpio da incerteza, impor restries a todas estas precises que se poderia esperar de medidas e modelos de imagens simultneas de uma classe de coisas observveis e reproduzveis atravs da fotografia. E em consequncia derrubar toda uma teoria positivista segundo a qual o movimento dos fenmenos naturais podem ser reproduzido e explicados atravs do uso de imagens. A ciencia no um espetculo visual, como a viam tienne Jules Marey, que dedicou diversas obras sobre o movimento de homens e de animais. A pintura, antes do surgimento da fotografia, representava o galope do cavalo de uma maneira. Era o tempo da pintura. Era como os pintores concebiam o tempo e o movimento. Mesmo que a fotografia desminta algumas premissas tidas como certeza, ela nunca ser cientfica. Pois segundo veio a nos ensinar a fsica quntica, as partculas se comportam de uma maneira quando observadas, e de outra quando no observadas. A fico na arte surge nessas defasagens, nesses hiatos. A imitao do real no nada mais do que um reflexo de seus falsos sintomas.