a invencao do psicologico

156
 imenção do psicológico quatro séculos de subjetivação 1500-1900 7a edição Luís Cláudio Figueiredo escuta

Upload: sauro13

Post on 01-Jan-2016

214 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Invencao Do Psicologico

 imenção do psicológicoquatro séculos de subjetivação

1500-1900

7a edição

Luís Cláudio Figueiredo

escuta

Page 2: A Invencao Do Psicologico

" 1 In I ui'. ( laudio Mendonça Figueiredo

" ■ l>\ I • litili.1 liscu la e E D U C , p ara a ed ição em lín g u a p o rtu g u esa /" nliçAo: s t 'lca ih ro /2007

E d it o r e s

Manoel Tosta Berlinck Maria Cristina Rios Magalhães

C a pa (a r t e f in a l )

Yvoty Macambira, com grafismo de Roberto Loeb

P r o d u ç ã o E d it o r ia l

Araide Sanches

Catalogação na Fonte - Biblioteca Central / PUC-SP

Figueiredo, Luís Cláudio MendonçaA invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação

(1500-1900) / Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : Escuta, 2007.

184 p . ; 21 cm - (Coleção Linhas de Fuga)

Bibliografia.

ISBN 85-7137-054-0 (Escuta)

1. Psicologia - história. I. Título

CDD 19a 150.9

E D IT O R A ESC U TA LTD A .Rua Dr. Homem de Mello, 446 05007-001 São Paulo, SPTelefax: (011) 3865-8950/3675-1190/3672-8345 e-mail: [email protected] www.editoraescuta.com.br

Page 3: A Invencao Do Psicologico

Luís Cláudio Mendonça Figueiredo

A invenção do psicológicoQuatro séculos de subjetivação

1500 - 1900

Page 4: A Invencao Do Psicologico

AGRADECIMENTOS

A elaboração destes ensaios, numa dosagem incomum, envolveu a participação de uma quantidade significativa de colaboradores. Alguns, cientes e voluntários; outros, talvez, não pudessem avaliar o alcance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, Marisa Trench Fonterrada, Marta Gambini, Fábio Caramuru, Yara Caznók e Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para Maria lnês Neves de Oliveira, que datilografou os originais, permitindo as primeiras leituras públicas. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ e a Suely Rolnik que o incluiu em sua coleção ‘Linhas de Fuga’ na Editora Escuta.

E a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com entusiasm o e bom hum or o meu curso ‘A gestação do espaço psicológico’, do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, que eu dedico o trabalho.

Page 5: A Invencao Do Psicologico

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO......................................................................................13

ADVERTÊNCIA......................................................................................... 19

A DES NATUREZA HUMANAOU O NÃO NO CENTRO DO MUNDO.................................................. 21

UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA.................. 27A multiplicação das v o zes..................................................................27A variedade das co isas....................................................................... 32Identidade e conversão........................................................................40

A nostalgia dos anos dourados........................................................47Reform as................................................................................................51Reformadores católicos........................................................................58Uma santa católica na idade da po lifon ia ........................................ 67N o tas .......................................................................................................79

IDENTIDADE E ESQUECIMENTO:ASPECTOS DA VIDA CIVILIZADA......................................................81

A atualidade de Cervantes.................................................................. 81Imagens da civilização........................................................................ 88Subterrâneos da civilização................................................................96

A dupla filiação da psicologia.........................................................100N otas.................................................................................................... 102

A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS............................................105O público e o privado: raízes de uma cisão....................................106A consolidação da privacidade.......................................................108

Page 6: A Invencao Do Psicologico

A privacidade m ilitante..................................................................... 113Do iluminismo ao romantismo:

a floração da privacidade na Alemanha...................................... 118A síntese m esm eriana....................................................................... 123

Os usos da privacidade..................................................................... 126N o tas .................................................................................................... 128

A GESTAÇÃO DO ESPAÇO PSICOLÓGICO NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO, ROMANTISMO EREGIME DISCIPLINAR........................................................................... 129

As vicissitudes do liberalismo e do individualism o.................... 129O romantismo: promessas e realizações......................................... 139O território da ignorância..................................................................146N otas.................................................................................................... 150

PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA APSICOLOGIA.............................................................................................151

O Duque Jean des Esseintes, vida e o b ra ......................................152Estiiismo e excentricidade.................................................................157Para além do es tilo ............................................................................. 161N otas.................................................................................................... 165

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................... 167

Page 7: A Invencao Do Psicologico

APRESENTAÇÃO

A coleção ‘Linhas de Fuga’

O hom em contem porâneo vive um a in tensificação da experiência d e r u p tu r a , ao m e s m o te m p o em q u e se e n c o n t r a em p le n a tra n s fo rm a ç ã o o m o d o co m o e s ta e x p e r iê n c ia o a fe ta . E m o u tra s pa lav ras, é a re lação do hom em com o caos o que está em jo g o nesta transição . D e n ega tivo da o rdem , o caos p assa a ser co n sid erad o em sua positiv idade: e le é a p ro cessua lidade in trín seca a todos os co rpos, e fe ito de seu ine lu tável encon tro com ou tros co rpos - ou se ja , o caos é efe ito da ine lu tável a lte ridade . D e tendênc ia do m undo p ara a m orte (m undo aqui inclu indo, evidentem ente, as form as de ex istência hum ana, ind iv iduais e co letivas), o caos passa a ser considerado com o tendênc ia a um a evo lução co n tínua e irreversível, na qual vão se p roduzindo um a diferenciação e um a com plexificação cada vez m aiores.

E sta d e licad a transição que o homem vem efetuando na con tem po- rane idade não se dá apenas no p lano da consc iênc ia , e sim no p lano do próprio m odo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido com o negativo da o rdem e, po rtan to , com o fatal, to rna-se m enos a terrado r. C om isso, vai deixando de fazer sen tido um a sub je tiv idade co n stitu íd a na base da d isso c iação d a ex p eriên c ia do caos e da ind issoc iáve l id ea ­lização de um a suposta com pletude . E o que vai nascendo é um m odo de su b je tivação co n stitu ído na base da ab ertu ra para o ou tro e, p o r­tanto , para o caos. U m a sub je tiv idade in trin secam en te processual.

R e a liz a r e s ta trav e ss ia , no en tan to , não é tão s im p les a ss im : libertar a sub je tiv idade da tu te la do terro r em re lação ao ou tro e ao

13

Page 8: A Invencao Do Psicologico

caos passa, necessariam ente, pela conquista da possibilidade de experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma, algo em nós e ao nosso redor funciona como força a favor.

A iniciativa da coleção ‘Linhas de Fuga’ visa justamente propiciar a circulação de textos que veiculem afetivam ente esta transição, podendo por isso funcionar talvez como força a seu favor. Textos dessa natureza são produzidos nas mais diversas áreas do conhecimento, em torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos trazerem, direta ou indiretamente, recursos de articulação e elaboração desta travessia, mas, também, e mais fundamentalmente, o fato de que cada um deles, à sua maneira, encarna tal travessia, e assim sendo, mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é com certeza reconhecida e valorizada em termos afetivos, o que faz destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia.

A invenção do psicológico

A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação, de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obra que compartilha estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo da modernidade, processo engendrado a partir do final do século XV, encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua dissolução. Para o autor, a experiência subjetiva no sentido moderno, instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação da vivência da diversidade e da ruptura, que acontece desde o final do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e de costu ra , que vão desem bocar na form ação daquilo que se convencionou chamar de ‘sujeito moderno’. E é este sujeito que, no final do século XIX, vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode, ilusão alicerçada no expurgo do caos. O ‘psicológico’, segundo o autor, teria sido inventado exatamente a partir do que foi expurgado deste

14

Page 9: A Invencao Do Psicologico

sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constituiu no objeto das psicologias.

Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as psicologias, e é na relação que cada uma delas estabelece com este fato que se distinguiriam as diferentes ‘escolas’: de um lado, aquelas que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito (ou seja, salvar o sujeito moderno) e, de outro, aquelas que buscam sustentar a emergência de uma subjetividade indissociável do caos e, portanto, da processualidade. Este último seria basicamente o caso da psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o que realmente se faz, tal prática encontra “dificuldades extremas para a sua própria articulação e consistência” teórica; além disso, para o autor, a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, tende a naturalizá-lo.

Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa do caos, p ro d u z id as entre os sécu los XVI e X IX . Com um a sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de acesso a tais figuras: não só textos, numerosos e variados (de santos a filósofos e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção de slides a cada aula).

Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material esco­lhido sinais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o horror às margens, tanto geográficas como humanas, nutrido pelo ho­mem do século XVI, por não suportar o fato de que nas margens anu- lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar­gens marinhas e dos oceanos, tanto por sua imensidão descontrolada, quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a

15

Page 10: A Invencao Do Psicologico

diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros convertidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados portadores de contágio e de poluição da comunidade, por não possuí­rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização da memória, nas autobiografias quinhentistas, como instrumento mais existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade e perma­nência de sentido; a memória, aqui, portanto, é uma espécie de ‘instru­mento antimistura’. Indício, já num outro momento, desta mesma con­cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem­plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseintes, personagem de um romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um “es­tilo de indisponibilidade”, indisponibilidade para tudo que é do mun­do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem- sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos aqui, dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi­gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer.

O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como o próprio autor aborda o caos em seus comentários: ele parece, às vezes, oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a escolha do objeto de sua investigação constitui, por si só, um sinal evidente de que prevalece no autor a inclinação a reconhecer o caos em sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a gênese de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o próprio au tor, c itando A uerbach , a través de “um iso lam ento atmosférico do acontecimento”, ou seja, através do isolamento daquilo mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado o modo de subjetivação próprio da modernidade e suas fissuras, o autor se propõe cartografar o ‘campo psi’, elegendo como critério para avaliar as várias ‘linhas’ que o atravessam exatamente a presença ou não de uma “disposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças em conflito".

16

Page 11: A Invencao Do Psicologico

Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor em relação ao caos, elas despontam a todo momento e ao longo de todo o livro, por isso não caberia evocá-ias no contexto de uma apresentação, assim como, tampouco, caberia evocar e discutir alguns momentos - muito mais raros, é verdade - em que o autor parece veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe colocar é que tais oscilações fazem pensar que é como se, através da presente investigação, Luís C láudio M. F igueiredo estivesse se desvencilhando das figuras portadoras de uma qualificação negativa do caos e encarnando a presença de uma concepção do caos em sua positividade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano intelectual, as oscilações do texto não dizem respeito a uma falta qualquer de rigor conceituai, provavelmente elas constituem marcas das oscilações deste processo na experiência do autor. Marcas de que, no silêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura.

Suely Rolnik

17

Page 12: A Invencao Do Psicologico

ADVERTÊNCIA

Os textos que se seguem foram redigidos de agosto de 1990 a junho de 1991 na ordem em que estão sendo apresentados. De acordo com o plano original, contudo, eles deveriam figurar como ensaios independentes e não como capítulos encadeados. Ao térm ino da redação, porém, descobri que apenas ‘Uma santa católica na idade da polifonia’ perm anecia naquela condição; os demais acabaram se engrenando numa certa seqüência e, particularmente, os dois últimos formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer que não houve a pretensão de realizar um trabalho exaustivo e sem lacunas (viva a lacuna!). Estes ensaios podem se desdobrar em inumeráveis outros, o que, alias, é meu projeto e meu convite.

Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos cursos de mestrado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia social na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande prazer c que parte do meu esforço foi para transmitir uni pouco deste prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem!

19

Page 13: A Invencao Do Psicologico

A DESNATUREZA HUMANA OU O NÃO NO CENTRO DO MUNDO

Setenta e cinco anos passados, a página com que Lukács abre sua Teoria do romance conserva toda a força evocativa:

Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que lhe são abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cujas vias estão iluminadas pela luz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no entanto, familiar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. O mundo é vasto e nele, contudo, encontram-se à vontade, pois o fogo que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente estranhos um ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que não adquira plena significação e que não se complete nesta dualidade: perfeito em seu sentido e perfeito para os sentidos. ([1914-1915/1920] 1963; p. 19)

Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a experiência do mundo nas ‘civilizações fechadas’ apareça aí idealizada. Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica, a perplexidade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas promessas e muitas ameaças, tempo finalmente imerso num processo aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito durante a Primeira Grande Guerra, o texto de Lukács está impregnado pela atmosfera de “desespero permanente diante da situação mundial” e pela questão de saber “quem salvará a civilização ocidental” , conforme as palavras do autor numa introdução redigida em 1962.

21

Page 14: A Invencao Do Psicologico

Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da modernidade colhe no tem po de Lukács o fruto mais am argo da abertura do mundo, da expansão cósmica das suas possibilidades, da multiplicação infinita dos seus enigmas: a desorientação, o caos, a guerra total.

Houve um tempo, porém, em que a abertura do mundo, embora já revelando perspectivas traum áticas e assustadoras, podia ser acolhida c comentada com orgulho e altivez.

Em 1486, na Oratio de hominis dignitate, Giovanni Pico Delia Mirandola (1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola pitagórico-platônica de Florença, concordava com os que reconheciam o homem com o o mais digno c m aravilhoso de todos os seres. Discordava, contudo, das razões que costumeiramenle eram dadas para esta avaliação.

Ora. enquanto meditava acerca do significado destas afirmações, não me satisfaziam de todo as múltiplas razões que são aduzidas habitualmente por muitos a propósito da grandeza da natureza humana: ser o homem vínculo das criaturas, familiar com as superiores, soberano das inferiores; pela agudeza dos senlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza; intermédio entre o tempo e a eternidade e. como dizem os Persas, cópula portanto, himeneu do mundo e, segundo atestou David. em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas estas, sem dúvida, mas não as mais importantes, isto é, não tais que consintam na reivindicação do privilégio de uma admiração ilimitada. Por que. de fato, não deveremos nós admirar mais os anjos e os beatíssimos eoros celestes? (Mirandola [ 1486] 1989; p. 49)

Não. Não é por ter uma natureza, posto que natureza complexa, que o homem é o mais digno de nossa admiração.

Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e magnitude do mundo por ele criado, não encontrou, segundo Pico Delia Mirandola, uma única criatura a partir da qual o homem pudesse ser modelado, um único lugar que o homem pudesse ocupar definitivamente para daí contem plar o esplendor do Universo. Todos os sítios e possibilidades da natureza já estavam ocupados e preenchidos. Por fim, o grande C riador inventou este ser “a quem nada pertence naturalmente” . Ele recebeu o homem como uma criatura de “natureza indeterminada” para colocá-lo no centro do Universo dizendo:

22

Page 15: A Invencao Do Psicologico

Ó Adão. não tc ciemos nem um lugar determinado, nem um aspecto que ic seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer c a lua decisão. A naiureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determina-la- ás para li. segundo o leu arbílrio. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo que há no mundo. Não te fizemos celeste nem lerreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu. árbitro e soberano, artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até os seres que são as bestas, poderás regenerar-te até as realidades superiores que são divinas, por decisão de teu ânimo. (Ibid.; p. 52)

Convém desde logo assinalar a curiosa concepção dc ‘centro do mundo' expressa neste texlo. Embora numa primeira leitura pudéssemos reco n h ecer nas pa lav ras de G iovann i P ico o an tigo geo e antropocentrismo aristotélico-cristão, o autor, na verdade, destituiu o centro dc sua dimensão ontológica: o centro é agora o lugar daquele que tudo pode mas nada é. o lugar privilegiado do não-ser. O centro está, assim, ocupado pelo não. e esta negatividade estrategicamente localizada acabará desestabilizando todo o Universo e superando a possibilidade dc concebê-lo na forma fechada e perfeita do círculo. Está sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para a extensão metafísica desta astronomia na concepção do Universo infinito de Giordano Bruno (1548-1600). Universo definitivamente descenlrado (cf. Koyrc. 1979). Nas próprias palavras dc Bruno ([1584) 1978):

... existe um campo infinito c um espaço continente que compreende c penetra tudo. Nele sc encontram infinitos corpos semelhantes, não estando nenhum deles mais no centro do universo que os outros, porque o universo é infinito e. portanto, sem centro e sem margens.

O homem, como pura negatividade e possibilidade dc escolha, que nasce sem natureza certa c habita um mundo infinitamente aberto ao seu engenho e arte, deve sc preocupar, desde o momento em que nasce, sobretudo com isso: sua liberdade e sua destinação; deve depender sempre mais de sua “consciência do que do ju ízo dos

23

Page 16: A Invencao Do Psicologico

outros”, mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros para neste confronto construir sua própria identidade.

É este mesmo homem que, embora associado à idéia da posição intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi (1462-1525), da escola aristo télica de Pádua, escreveu, sobre a imortalidade da alma:

O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de uma natureza certa, mas ambígua (...) ele não é puramente temporal nem puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o homem que assim existe como uma média entre as duas, é dado o poder de assumir qualquer natureza que deseje. ([15161 1977; p. 393 - grifo meu)

A ambigüidade da natureza humana implica imediatamente seu d esen ra izam en to do m undo das co isas e seres na tu ra lm en te determinados, “perfeitos em seu sentido e perfeitos para os sentidos”. Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e realizam-se paradigmaticamente nas trajetórias de pensamento e vida de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey [1914] 1978) que afirmou: “Não há fins, termos, limites ou muralhas que nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas” .

Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro, da dúvida e da suspeita.

Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas ameaças. Alguns, “tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, tornam-se quase que só racionais”. Pomponazzi sabe muito bem que estes são raros. “Alguns, pela total negligência do intelecto e se ocupando tão-somente do vegetativo e do sensitivo convertem-se em animais.” Para estes, de fato, o território da liberdade e da virtude está fechado. A grande m aioria, porém , é constituída pelos “homens normais” : "... nem se devotam completamente ao espírito nem se entregam totalmente aos poderes do corpo” . É preciso reconhecer nesta aparen te hesitação do hom em norm al um a certa fide lidade à indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável,

24

Page 17: A Invencao Do Psicologico

im precisa e arriscada tarefa de “viver toleravelm ente segundo as virtudes morais” no solo movediço da ética. Aqui, vive-se apenas toleravelmente porque este é exatamente o terreno das idéias nunca completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, das opções sempre em aberto. Mais que isso. Ao ser colocado fora da natureza, o homem perde a medida que lhe poderia ser imposta pelo reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e ümites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Delia Mirandola, no seu Tratado sobre o regime e o governo da cidade de Florença ([1498] 1991; p. 135) coloca a questão claramente:

De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais insaciável que todos os animais, não lhe sendo suficientes todos os alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não procura satisfazer a sua natureza, mas o seu desejo desenfreado (...) Do mesmo modo supera todos os animais na bestialidade da luxúria, pois, ao contrário dos animais, não observa os tempos nem os modos devidos (...) Também os supera na crueldade... * (Grifo meu )

Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo.

É fácil reconhecer todos estes temas e concepções aflorando regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX. O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo de honra e dignidade tem sido freqüentem ente uma carga a ser suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos liv ra rm os dela . S istem as filo só fico s, d isp o sitiv o s m acro e micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos teológicos, econômicos, políticos e, mais recentemente, científicos e tecnológicos. Freqüentemente, este espaço era reduzido e confinado

* C reio não ser absurdo ver nesta afirm ação de Savonarola um a precisa a n tec i­pação do que a psicanálise reconhecerá como a d iferença específica da sexuali: dade hum ana em relação à vida instintiva dos anim ais.

25

Page 18: A Invencao Do Psicologico

às esferas cada vez mais íntimas da privacidade. Estas esferas iam ganhando, assim, uma densidade e profundidade novas. Experiências radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, h is to ricam en te c o n stitu íd as com o o b je to s de co g itação e conhecim ento. Já pertencem , de fato, ao século XVI inúm eras afirm ações que, com o as do hum anista espanhol de inspiração erasmiana Juan de Valdés (1500-1541), assinalam o privilégio do mundo privado como objeto de pesquisa:

Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros, entra em contato com a mente de seus autores e não com a sua própria. Porém, como é dever do cristão conhecer a si mesmo (...) tenho o costume de dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu próprio livro. (Valdés, 1535; p. 727)

De variadas maneiras, a história dos estudos psicológicos está entrelaçada à história da modernidade e às suas vicissitudes. São múltiplas as relações das ‘psicologias’ com os movimentos de expansão e, principalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o ‘psicológico’.

Os ensaios que se seguem tratam destas questões. M ais particularmente, tratam de compreender alguns momentos do processo histórico que preparou o terreno para a emergência dos projetos de psicologia como área específica e autônoma de conhecimento.

26

Page 19: A Invencao Do Psicologico

UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA

“Não sei como se pode desejar viver, sendo tudo tão incerto.”

Santa Teresa d'Avila

“Non podrio anar plus mau.Nyga Nyga Nyga.”

Canção provença! do século XVI

A multiplicação das vozes

Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos maiores, senão o maior, centro comercial e financeiro da Europa e também ocupava uma posição destacada na produção manufatureira. Em 1560 o diplomata florentino Ludovico Guicciardini (1523-1589) relatou suas observações sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em primeiro lugar, contempla as orientações políticas que permitiram e estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. Aqui, porém, vou inc ater às características socioculturais assinaladas por cie.

Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: “Podem-se ouvir a todas as horas, bodas, festins e danças. Pode-se ouvir em toda parte o som dos instrum entos e o burburinho dos encontros alegres”, (cf. Guicciardini (1567| 1980; p. 189)

Não se trata, porém, apenas de uma sociedade produtiva e diligente, mas também festiva e agitada. Antuérpia é, antes de mais nada, uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. É um núcleo de convergência e difusão das atividades econômicas c financeiras em escala mundial. Vem a scr, igualmente, um campo de experiências culturais extremamente ricas e diversificadas:

27

Page 20: A Invencao Do Psicologico

Direi que na Antuérpia há, em primeiro lugar, além do povo do país que em grande número para aqui vem e habita, e além dos franceses que em tempos de paz vêm aqui diariamente, seis nacionalidades principais que aqui residem tanto na paz como na guerra e que incluem mais de mil comerciantes e seus principais administradores e assistentes. Há alemães, dinamarqueses, junto a mercadores ingleses e portugueses... Todos estes mercadores observam as leis e ordenamentos da cidade; no mais conduzem-se, vestem-se e vivem livremente conforme seus desejos. Na verdade, há na Antuérpia e em todos os países baixos mais liberdade para estrangeiros do que em qualquer outra parte do mundo. É assim maravilhoso ver tal mistura de homens e ainda mais maravilhoso ouvir tal variedade de línguas tão diferentes umas das outras, de forma que, se for do desejo, pode-se aqui, sem viajar, imitar a natureza, modo de vida e costumes de muitas nações. (Ibid.; p. 189)

Os nativos não se fazem de rogados:

Os habitantes desta cidade estão, na maior parte, metidos no comércio (...) Eles são corteses, civis, engenhosos, rápidos para imitar os estrangeiros e para se casar com eles. São capazes de morar e fazer negócios em qualquer parte do mundo. Muitos deles, e até as mulheres (...), sabem falar três ou quatro línguas, para não mencionar os que falam cinco, seis ou até sete. (Ibid.; p. 187)

É esta coexistência de línguas, modos e costumes diversos que me levou a escolher o caso da Antuérpia para nos introduzir numa das principais dimensões da vida quinhentista: a multiplicação das vozes. Outros grandes centros financeiros, comerciais e manufatureiros, como Florença, Veneza ou Lyon, ou centros político-religiosos como Roma, poderiam ter sido escolhidos, igualmente.

De fato, o crescimento das atividades comerciais e os projetos de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no século XIII tinham levado Roger Bacon (1214-1292) a insistir, na sua Opus maius, no estudo das línguas, dando para isso uma grande variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a expansão do comércio ultramarino e a política colonialista de Portugal haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato europeu com a Ásia, África e América, durante muito tempo a cargo

28

Page 21: A Invencao Do Psicologico

de portugueses e, logo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas, trazendo, inclusive, para o português, termos populares como ‘sacana’ e ‘banzé’, importados do Japão (cf. Barreto, 1989).

Não é por acaso que os estudos filológicos e os procedimentos hermenêuticos ganharam enorme relevo na cultura hum anista (cf. Dilthey [1914] 1978). É necessário conviver com outras línguas, sejam as das literaturas antigas, o hebreu, o grego e o latim, sejam as línguas exóticas de outras civilizações, como o árabe e as línguas asiáticas, sejam as dos selvagens africanos e am ericanos. É preciso saber aproximar-se de falantes antigos, remotos e radicalmente distintos, alguns dos quais são mesmo concebidos como não-falantes, dada a sua radical diferença em relação ao europeu (cf. Todorov, 1983; cap. 3).

E preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e extra-européia. A amena convivência da Antuérpia não é a regra e, mesmo lá, está sujeita a reveses motivados pelas lutas religiosas. Os m al-entendidos proliferam e freqüentem ente se transform am em contendas mais ou m enos sérias, tanto nos terrenos teóricos da filosofia, ciências e teologia, como nos terrenos práticos dos costumes, da organização política e religiosa, do comércio etc. O século XVI, sem dúvida, foi um século de guerras, massacres (cf. Davis, 1990, sobre massacre de Lyon; e Partner, 1979, sobre massacre de Roma) e práticas de extermínio, como as efetuadas pelos espanhóis na América (cf. Todorov, 1983; cap. 7).

A multiplicação das vozes e a confusão das línguas encontram uma expressão cristalina na música contrapontista que começou a se desenvolver na Europa desde o século XI e alcançou seu apogeu no século XV, no estilo flamengo da composição polifônica.1 A partir dos países baixos, daquela mesma Antuérpia por onde iniciamos e que na época pertencia ao ducado de Borgonha, a polifonia flamenga (ou escola borgonhesa) difundiu-se pelas cidades e cortes européias.

Em contraposição à música sacra medieval - a voz coletiva, repetitiva, envolvente e funcional do cantochão - , às músicas profanas e danças populares e, finalmente, à música trovadoresca - em que já se reconhece a marca de uma individualidade em canções simples e

29

Page 22: A Invencao Do Psicologico

funcionais que eram, fundamentalmente, suportes sonoros para textos poéticos - , a polifonia flamenga institui a dispersão e a autonomia das vozes (cf. Caznók, 1992). Vozes humanas e instrumentos entoam diferentes m elodias, às vezes com textos d iferentes, sendo uns profanos e outros sagrados, uns cívicos e outros líricos, às vezes em línguas diferentes e... tudo ao mesmo tempo. Há composições escritas para mais de trinta vozes, o que excede em muito a nossa capacidade auditiva.

A polifonia flamenga impõe uma audição horizontal; não há uma clara c permanente segregação de figura e fundo. Todas as vozes re­cebem o mesmo status e o ouvido transita entre elas sem jamais perce­ber que uma se destaca à superfície enquanto as demais acompanham a um nível dc maior profundidade. São vozes não hierarquizadas con­correndo em condições de igualdade pela atenção do ouvinte.

As vozes falam muito, mas pouco se fazem entender em qualquer sentido extramusical. A funcionalidade sagrada ou lírica se perde junto às mensagens dos textos que se tornam ininteligíveis. As vozes, ao se fazerem autônomas instituem a autonomia da música em relação às palavras e da audição m usical em relação às funções sociais e religiosas. O que vale são os sons nas suas móveis e cambiantes harmonias. Há uma ênfase na composição, com tudo que o termo carrega de técnica artesanal c artifício. Há uma preocupação com o deleite sensorial, com o experimental e com o lúdico.

O canto gregoriano tem, enquanto gênero, uma identidade tão bem definida que todos os cantos se parecem uns com os outros; na polifonia da escola borgonhesa, não só d iferentes com positores imprimirão seus estilos pessoais às suas obras, como a identidade foi de tal forma trabalhada que cada composição, no limite, não se parece nem con sig o m esm a, no sen tid o de que as d iv e rsa s vozes autonomizadas não conservam uma relação de pertinência necessária com o todo de que fazem parte. Uma composição escrita para quatro vozes pode ser cantada a três se faltarem os elementos da quarta voz...

Já no fim do período da p o lifo n ia ren ascen tis ta , houve preocupação em codificá-la. ordenando-a segundo determinadas regras de com posição . M esm o aí. contudo , o tem a da variação e da dissonância estará exercendo seu domínio. Os músicos, nos diz Zarlino (1517-1590), “ ... sabem muito bem que a harmonia só pode surgir das

30

Page 23: A Invencao Do Psicologico

coisas que são entre si diversas, discordantes e contrárias e não de coisas que estão em completo acordo...” ([1558] 1965; p. 43).

É interessante acompanhar o argumento de Zarlino:

A verdade e excelência deste conselho útil e admirável são confirmadas pelas operações da Natureza que, ao criar os indivíduos de cada espécie os faz similares no geral e, no entanto, diferentes em aspectos particulares, uma diferença ou variedade que proporciona muito prazer aos nossos sentidos, (p. 45)

Estas palavras, vindas de alguém que preza a unidade, a ordem e a regularidade, tornam-se ainda mais eloqüentes e representativas da sensibilidade quinhentista. Revela-se nelas uma com preensão da natureza como fonte de variações e novidades. Imitar a natureza seria, assim, produzir variações e não representá-la na sua simplicidade, homogeneidade e uniformidade, como se pensará nos dois séculos seguintes.

Heinz Kohut e Sigmund Levarie (1950) em um artigo intitulado On the enjoyment o f listening to music’ sugerem que o prazer obtido

numa audição musical deriva da contribuição da música para a redução ou alívio da angústia produzida pelos ruídos súbitos e disruptivos ou pelos ruídos monótonos e repetitivos. Desde o nascimento, o indivíduo é invadido e perturbado pelo mundo sonoro contra o qual há poucas defesas realmente eficazes. As formas musicais, melódicas, rítmicas e harmônicas seriam defesas, na medida em que são capazes de dar sentido ao mundo dos sons, organizando-o, despojando-o de sua fisionomia ameaçadora, convcrtcndo-o em um ambiente acolhedor, protetor, continente. Dc uma certa forma, é como se a música nos pudesse envolver, reduzindo nossa sensibilidade ao ruído a essa presença invasiva e aterradora do mundo.

Assumindo como hipótese que Kohut e Levarie estejam com a razão, pode-se bem imaginar que mundo era aquele em que o estilo flamengo dc polifonia alcançou seu apogeu e no qual as ‘defesas m usicais’ contra a angústia acústica eram obras que nos séculos seguintes foram muitas vezes condenadas como puro sem sentido. No século XVIII. por exemplo, D ’Alembert não deixa dúvidas sobre como lhe soava o contraponto renascentista “...esta m úsica assustadora [étourdissante] que (...) se assemelha a uma conversa descosida aonde

31

Page 24: A Invencao Do Psicologico

todo mundo fala ao mesmo tempo” (D’Alembert, 1777; apud Bardez, 1980; p. 36).

Ainda agora, ao empreender a redação deste ensaio, algo daquele mundo caótico se tornará presente, impondo-se ao próprio texto como um princípio de (des)estruturação que o converterá, às vezes, numa coleção de notas avulsas.

A variedade das coisas

A multiplicação das vozes nos levou à questão da variedade e da diferença. Poderia prosseguir neste filão comentando textos da época, a começar por aquele, de Girolamo Cardano, que se intitula exatamente De varietate reruni (1556). No entanto, vou reservar a obra deste médico, matemático e homem de letras para um outro momento.

Talvez, mais convincente do que qualquer leitura seria uma visita ao armazém geral português dirigido por João de Barros.

João de Barros (1496-1570), além de ter sido um dos grandes cu ltiv ad o res da h is to rio g ra fia ren ascen tis ta , exerceu funções administrativas e empresariais. Durante alguns anos foi tesoureiro da Casa da índia, Mina e Ceuta.

Neste lapso de tempo lhe passaram pela mão 893:975 $ 235 reais, quantias recebidas dos tesoureiros da Casa da índia, provenientes dos seguros pelos contratadores e mercadores da pimenta e especiarias carregadas para Flandres; provenientes do contrato do coral e pedra hume. Pelas suas mãos passou o algofar aos marcos, almíscar e aljala; quintais de cobre, arrobas de manilhas de latão, peças de escravos, peças de albanil e ayquês, varas de canhamaço, arráteis de marfim, côvados de veludo etc. (Baião, 1552; p. XIX)

Mas deixemos João de Barros entregue às suas contas para entrarmos, finalmente, no grande empório:

Por poderosa que seja a memória, cansa-se em pintar todo esse colorido e multifçrme armazém, único em toda a Europa (...) Que exposição de arte ornamental não tínhamos! Que museu de zoologia, mineralogia e botânica das regiões africanas e asiáticas! Que lindíssimas louças da China! Que esplêndidos contadores marchetados! Que suntuosos troços de marfim! Que ourivesarias nunca vistas...

32

Page 25: A Invencao Do Psicologico

Além destes objetos, creio que muita da população estranhíssima que nossos galeões traziam a Portugal, quer como escravaria, quer como amostra, se havia de topar nas arcadas e vestíbulos daquele palácio de preciosidades: já o Etíope retinto, já o Cafre acobreado, já o índio vestido de sedas, todos aqui desterrados, chorando as lágrimas da nostalgia, tão vendidos entre nós como seus patrícios papagaios, sagüis e elefantes, (Ibid.; p. XX)

Desta assombrosa variedade não fica excluída aquela variedade de línguas, por onde entramos no século XVI.

Antonio de Souza Macedo, espírito arguto e observador, conta ter visto em Lisboa, na Casa da índia, dois moços provindos de certa tribo de Cafre perto do Cabo da Boa Esperança e que muito o espantaram pelo motivo seguinte: na dita tribo ou nação a fala com que os naturais se comunicavam não era a voz, era um sistema especial de estalidos com a língua. (Ibid.; p. XXI)

Nos domínios administrativos de João de Barros temos, assim, não só amostras de todo o mundo vegetal, mineral e cultural em sua exótica variedade, mas temos todos os seres, coisas e homens, extraídos de seus ‘lugares naturais’ - para me expressar na term inologia aristotélico-tomista, perfeitamente adequada, de resto, para representar o universo fechado de identidades estáveis. Agora, destituídos de toda naturalidade, estão ali expostos à convivência uns dos outros sem que nada de orgânico os ligue, mas também sem que nada naturalmente os possa separar; todos reduzidos à condição de mercadoria numa prateleira ou vitrine.

É a v aried ad e em estad o puro , j á que as ‘p e ç a s ’ estão desarticuladas de seus contextos e despojadas de suas ‘razões de ser’. Enquanto m ercadorias, contudo, as peças são subm etidas a um processo de homogeneização que as mistura, confunde e as torna trocáveis umas pelas outras. As grandes questões do século XVI articulam-se em torno das duas tarefas que tanto devem ter ocupado o tesoureiro João de Barros: como manter tantas várias coisas juntas e como impedir que se confundam e misturem?

Há algo de maravilhoso e inquietante na infinitude das variações. O que se pode esperar legitimamente de um mundo infinitamente d iverso e surpreendente? Tudo. A credulidade e a liberdade de imaginação do homem renascentista não devem ser julgadas a partir

33

Page 26: A Invencao Do Psicologico

do modelo de cultura ‘científica’ dos séculos posteriores; elas não são índices de ingenuidade e ausência de espírito crítico. São formas maduras e tolerantes de relação com a diferença, as mais ajustadas a este momento particular de abertura do mundo. É apenas aparente a contradição entre a percepção apurada dos seres, que faz do século XVI um marco na história dos estudos anatômicos como, por exemplo, os levados a cabo por Vesalius (1514-1564) e a imaginação sem freios. A abertura do mundo e a abertura para um mundo em expansão implicam, simultaneamente, a ênfase na observação exata e a liberdade imaginativa. Não seria possível a percepção da diferença se não fosse precedida por uma intensa atividade imaginante. E por isso que as zoologias e botânicas do século XVI trazem, lado a lado, reproduções fiéis de bichos e plantas e as figuras fictícias, mas desenhadas nos mínimos detalhes, de seres quiméricos (cf. Debus, 1981; cap. 3).

Também maravilhosas e inquietantes são as aproximações destes seres no espaço indiferente do armazém e suas transubstanciações no mercado. Seres que se aproximam, misturam e convertem uns aos outros subjazem a muitas crenças e práticas renascentistas. Estão presentes, por exemplo, na galeria dos monstros que povoam o imaginário social e que são concebidos, fundam entalm ente, com o com binações repugnantes, ou perigosamente atraentes, de reinos, gêneros, espécies e sexos. Na verdade, a descoberta de novos seres é explosiva e as tentativas de classificação estão apenas começando; na ausência de sistemas classificatórios estáveis, todas as combinações são igualmente prováveis.

Combinações e misturas estão também sustentando o renovado interesse na química e na magia natural, práticas que mobilizaram indivíduos da melhor formação intelectual (cf. Yates, 1987). A alquimia transformou-se numa influente filosofia da natureza em que o mundo era concebido como vasto laboratório em permanente processo de geração e transformação de seus produtos (cf. D ebus, 1981; caps. 2 e 7). O alquimista, principalmente o médico alquimista que teve em Paracelso (1493-1541) um representante exemplar, tinha como meta o conhecim ento e uso destes processos básicos de com binação e produção de variações. Tal como veremos a seguir, trata-se de opor as com binações regenerativas às com binações degenerativas: a poluição e o contágio.

34

Page 27: A Invencao Do Psicologico

Também nos planos das culturas e civilizações as misturas e transformações estão na ordem do dia. Os limites que separavam a cultura popular e irreverente da cultura elitista e sisuda na Idade Média são transpostos, e disso nos dá testemunho, entre outras, a obra de François Rabelais (1495-1553), conforme a análise de Bakhtin (1987).

Os limites que separam o profano do sagrado são, igualmente, muitas vezes esmaecidos. Casos assim, alguns dos quais também estudados por Bakhtin, foram tematizados por Dámaso Alonso (1960) quando aborda a presença de temas e formas populares e profanas na arte poética de São João da Cruz (1542-1591). Nas ‘poesias ao divino’, a lírica erótica e mundana é transformada mediante, às vezes, simples substituições de algumas palavras ou o acréscimo de uma estrofe, e é elevada ao nível da mais sutil espiritualidade religiosa.

Finalmente, os limites convencionais entre a lucidez e a loucura foram explorados e superados magistralmente na obra de Erasmo (1466- 1536), O elogio da loucura ([1501] s.d.), na qual a própria loucura, em sua forma benigna e sábia, se atreve a afirmar:

No fim das contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e perdurável existiria no mundo sem minha interferência: o povo não agüentaria por muito tempo o príncipe, nem o patrão o seu criado, nem a patroa a criada, nem o amigo ao amigo, nem o mestre ao discípulo, nem o marido a mulher (...) se reciprocamente não se estivessem enganando, nem se adulassem nem fossem, com toda a prudência, cúmplices, condimentando tudo com um grãozinho de loucura, (p. 28)

Não é só a loucura furiosa que traz o orgulho, o fanatismo e as guerras, mas é também o excesso de lucidez - que se revela, enfim, como uma das formas mais desagradáveis da pior loucura - que torna a vida do homem impossível, pois, pergunta a loucura sábia:

Que coisa é, enfim, a vida humana? Como é miserável e sórdido o nascimento! Como é dificultosa a educação! A que grande número de perigos está exposta a infância! Como labuta a mocidade! Como é austera a velhice! Como é cruel a obrigatoriedade da morte! (p. 38)

Para completar, antecipando Nietzsche:

Afirmam os sábios que é um grande mal ficar enganado, eu, pelo contrário, afirmo que não ficar é o pior de todos os males. É uma

35

Page 28: A Invencao Do Psicologico

extravagância sem limites desejar que a felicidade do homem resida na realidade das coisas, quando esta ventura depende tão-somente da opinião que se tem dela (...) Os homens, finalmente, desejam ser iludidos e estão sempre dispostos a abandonar o verdadeiro pelo falso. (p. 57)

Mas o século XVI não foi apenas o século em que as variedades, as combinações e misturas, as transformações, as perdas de identidade e as diluições dos limites puderam ser tolerantemente percebidas, acolhidas e mesmo produzidas deliberadamente. Foi o século do medo das margens e fronteiras e o século da memória.

Quando reinos, gêneros, espécie, sexos, costumes e civilizações se misturam, surgem ameaças de toda ordem, ameaças a toda ordem: surgem a poluição e o contágio.

Os limites da própria civilização ocidental cristã (os limites da cristandade) estavam postos em questão. O inimigo externo mais próximo era o turco-otomano, e uma carta de 1453 do cardeal Bessarion ao Dodge de Veneza, relatando as atrocidades cometidas contra os cristãos na tomada de Constantinopla, traduz-o clima de terror que este acontecimento trouxera ao homem europeu. Embora esta retração da cristandade estivesse sendo compensada pela expansão em direção à África, Ásia e América, também estas fronteiras novas continham inúmeras ameaças, desde os perigos reais e imaginários envolvidos nas grandes navegações até o contato com formas radicalmente distintas de alteridade e, portanto, com realidades imprevisíveis e potencialmente hostis. Estas ameaças externas, porém, podiam ser conjuradas com a força das armas e com a reafirm ação de uma identidade cultural européia, tarefa que coube, principalmente, aos padres.

Muito mais difícil de elaborar eram as relações com as ameaças internas representadas, por exemplo, pelos judeus e mouros (no caso da Espanha), principalmente quando se tratava de judeus e mouros convertidos ao cristianismo, mas de quem se desconfiava continuarem observando crenças e práticas não-cristãs na intimidade do lar. Os conversos foram , assim , um a espécie de fro n te ira in te rio r da cristandade; eles se misturam, confundem e podem agora contaminar. O medo do contágio - esta mistura degenerativa que destrói espíritos, costum es e corpos - está dissem inado no século e se m anifesta particularmente na desconfiança e perseguição aos conversos. O medo aos conversos é equivalente ao medo aos empestados: ambos são

36

Page 29: A Invencao Do Psicologico

p ro p ag ad o res da po lu ição (acerca do m edo no sécu lo XVI, po d e -se consu ltar D elum eau, 1989; caps. 3, 8 e 9).

O contág io é o negativo isom órfico da alquim ia. V ale a pena, neste sen tido , re co rd a r que a m ed ic ina q u ím ica de P arace lso foi de fen d id a na ép o ca com a a leg ação de que as novas d o en ças do sécu lo - em

especia l as doenças co n tag io sas, com o as v enéreas e, em particu la r, a s í f i l i s - e x ig ia m n o v o s t r a ta m e n to s : e n f im , e ra m as m is tu ra s r e g e n e r a t iv a s d o s m in e ra is e v e g e ta is c o m b a te n d o as m is tu ra s degenera tivas dos anim ais (cf. D ebus, 1981).

A s m argens m arinhas e os oceanos, por sua vez, ocupavam , com o se sabe desde a ob ra de C orb in (1989 ; cap. 1), um lugar p riv ileg iad o en tre os ob je to s do m edo . T an to na sua im ensidão d e sco n tro la d a e tem pestu osa , com o no seu ab rigo de seres m onstruosos e desm ed id o s, com o na g eração de odores e c lim as m alsãos, com o no fa to de serem as vias de esvaziam en to da E u ropa c túm ulo indeterm inado dos cristãos n a v e g a d o re s , p o r tu d o isso , as p ra ia s e m a re s a p a re c ia m c o m o a anu lação das form as estáveis, o an iqu ilam en to das m edidas, d isso lução das iden tidades e co rrupção da saúde.

F ina lm en te , a inda neste tem a do p av o r das m argens podem -se inc lu ir os m ov im en to s espon tâneos ou o rgan izados de perseg u içõ es a hereges e a caça às b ruxas. O he reg e é sem pre um tra n sg re sso r de lim ites, é um ser fron teiriço e um potencial con tam inador. A ssim com o se re c e ia q u e o c r is tã o -n o v o não te n h a entrado v e rd a d e ira m e n te , rece ia-se que o velho cristão já tenha saído do cam po d o au tên tico

c ris tian ism o . M u ito m ais p e rig o so que um pag ão ou bárbaro , cu jas id en tid ad es e s tão su fic ien tem en te m arcad as p a ra im p ed ir q u a lq u e r m is tu ra , a s im p les p re sen ça do he reg e po lu i toda a co m u n id a d e e

co m p ro m ete a todos. C o n tra os hereges só o fan a tism o in to le ran te e p u ritano o fe rece so lução eficaz: co n tra a po lu ição , a a ssepsia do fogo, a ex tração c irú rg ica do m au esp írito a través da to rtu ra etc.

Q u a n to à s b ru x a s , o p r im e i ro a s p e c to a r e s s a l t a r é q u e , su p o s tam en te , te riam e s tab e lec id o um co n v ív io p ro m íscu o en tre as c ria tu ras de D eus e o re ino do in ferno - não é à toa que as acusações de p ro m iscu id ad e g en era lizad a este jam quase sem pre aco m p an h an d o ou co rro b o ran d o as acusações de b ruxaria . A lém d isso , as p ró p ria s b ruxas são seres am bíguos: em parte são responsáve is - fizeram um contrato , firm aram um pacto - e em parte são inocentes - são possu ídas

37

Page 30: A Invencao Do Psicologico

pelo dem ônio (o perseguidor, ao m esm o tem po que se defende, pretende e s ta r defen d en d o a sa lvação do pe rseg u id o ). P o r fim , as acusações recaem , costum eiram ente em bora não exclusivam ente, sobre indivíduos m arg inais: tra ta-se de m u lheres - que estão , segundo as concepções da época , no m eio do cam inho en tre a na tu reza e a c iv ilização , en tre a hum anidade e a anim alidade - e de m ulheres velhas, pobres, ignorantes e d e s v a l id a s , m o r a d o ra s de á re a s p e r i f é r i c a s ( e s te p a d rã o de p e rsegu ições não é o único , m as é um dos m ais típ icos; cf. L evack ,

1988). H á, tam bém , ev idênc ias de que grande parte das ondas de caça às b ru x as ab a teu -se sobre reg iões fro n te ir iças em te rm o s é tn ico s e re lig io so s e a sso c iad as à p e rseg u ição a hereges (cf. T rev o r-R o p e r, 1981).

V im o s , p o rtan to , num co n ju n to d iv e rs if ic a d o de s itu açõ es , a p re sen ça do m ed o às fro n te ira s e aos seres fro n te ir iço s e e s tam o s s u g e r in d o a h ip ó te s e de q u e e s ta s in te n sa s re a ç õ e s e m o c io n a is deco rrem da exposição à variedade das co isas, q uando e s ta tende a escap ar ao con tro le , gerando m istu ras e com b inações ex trem am en te am eaçadoras à estab ilidade e à ordem do m undo. É neste con tex to que podem os en ten d e r um ou tro aspec to da exp e riên c ia p sicossoc ia l do século XVI: a valorização de um certo tipo de m em ória .2

É s a b id o q u e to d a s as s o c ie d a d e s i l e t r a d a s r e c o r r e m a d is p o s it iv o s m n e m ó n ic o s p a ra o re g is tro e c o n se rv a ç ã o de su as experiências; a sociedade q u in h en tis ta a inda e ra p red o m in an tem en te iletrada: a a lfabetização era c ircunscrita a m em bros d a e lite , ap esar do grande esforço dos reform adores relig iosos para d issem iná-la . D ito isto, porém , é p rec iso considera r a lgum as questões m ais p articu lares.

Em prim eiro lugar, é p rec iso d ife renc ia r entre a lgum as form as de fu n c io n a m e n to d a m e m ó ria c o le tiv a e in d iv id u a l. Em so c ie d a d e s fe c h a d a s e t r a d ic io n a is , as m e m ó ria s c o le t iv a s - m ito s , le n d a s , narra tivas sag radas, rituais - garan tem a in te rp re tação só lid a e estável do m undo e form am o solo onde se assentam e elaboram as experiências de cada grupo e de cada indivíduo. Q uando as experiências ind iv iduais se d ife re n c ia m m u ito e se d e sv iam do ace rv o co le tiv o , as fo rm as ritua lizadas da m em ória retrocedem e os espaços da im prov isação e da inovação se am pliam . N estas cond ições haverá m ais n ecess id ad e de co n stru ir d ispositivos m nem ón icos que to rnem d isp o n ív e is p ara cad a um os m ateria is de suas ex periênc ias e estudos p articu la res . M as há

38

Page 31: A Invencao Do Psicologico

diversas m aneiras de responder a esta dem anda. O uçam os, po r exem plo, o que en sin a a respe ito um au to r d o sécu lo XII:

Quanto à memória, penso que não se deve esquecer que assim como a inteligência investiga e descobre por meio da divisão, a memória conserva os resultados mantcndo-os juntos (...) Manter juntos consiste em lazer um curto e conciso sumário das coisas que no escrever e dizer são mais prolixas (...) Falo assim porque a memória humana é preguiçosa e se alegra com a brevidade; se dispersa entre muitas coisas, funciona pior. Precisamos, então, em toda aprendizagem recolher algo breve c certo que possa ser escondido nos lugares secretos da memória e do qual, se necessário, todo o resto possa ser derivado. (Hugh o f St. Victor [séc. XII], 1977; p. 573)

M em oriza r, no caso , é tran sfo rm ar as in fo rm ações em sum ários, re su m o s, co n d e n sa ç õ e s . G u a rd a r é co m p reen d e r, e c o m p re e n d e r é m an ter jun to .

Se vo ltarm os agora ao em pório geral d irig ido por João de B arros, ouvirem os B aião d izendo que “ ... po r m ais poderosa que seja a m em ória, cansa-se em p in tar todo esse co lo rido e m ultifo rm e a rm azém ” . D e fato, em um m undo m arcado pe la variedade em estado puro e, o que é. o m ais g rave, pe la p rodução de variedades, há m u ito que ver e con tar, m as não há nada a resum ir. A s ex p e riên c ia s não parecem ser m ais sum arizáve is (o que é a inda ho je p ro b lem a para quem ten ta o fe recer um a v isão de con jun to deste sécu lo end iab rado).

Se as ex p eriên c ias não são sum arizáveis, é p rec iso co n se rv á -la s ta is co m o se dão , e e s ta c o n se rv a ç ã o , m a is q u e u m a n e c e ss id a d e m eram en te co g n itiv a , é um a n ecess id ad e ex is ten c ia l: é p rec iso dar pe rm anênc ia , es tab ilidade e sen tid o aos ob je tos da ex p eriên c ia . É por

isso que não foram os ile trados e p rov inc ianos, m as a lgum as das m ais e levadas e co sm o p o litas m en tes da época , que se ded ica ram à arte da

m em ória - eram os que m ais se expunham à variação.In v e s t ig a n d o em q u e c o n s i s t i a m a lg u m a s d a s t é c n i c a s

m n em ó n icas m ais no táveis - e para isso tem os o liv ro ind ispensável de J. D. S pence (1986) sobre as a tiv id ad es do je s u íta ita liano M atteo R icci (1 5 5 2 -1 6 1 0 ) na C h in a - , v e rem o s que e las v isam fix a r cad a in fo rm ação no seu lugar. N ão se tra tav a de fixá-las em seus iu g a r e s n a tu r a is ’ , m as de lig á -la s e re u n i- la s em lu g a re s m e to d ic a m e n te constru ídos pe la im ag inação (daí a idéia de um ‘palác io da m e m ó ria ’ ).

39

Page 32: A Invencao Do Psicologico

A base da técn ica é o co n tro le m etó d ico da im ag inação , o que nos

rem ete im ed ia tam en te aos Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, a que vo ltarem os m ais tarde. A alocação de cad a lem brança a um c ô m o d o n o ‘p a lá c io d a m e m ó r i a ’ n ã o a p e n a s im p e d e seu

desaparecim en to , ou seja, que e la se desligue e se perca, com o im pede

o que ta lv ez se ja o m ais im portan te - que e las se m istu rem . É um a m an eira de co nge la r a ex periênc ia : nada se ex trav ia , nada degenera .

E stando cada lem brança no seu com partim en to m en ta l, o m em orizado r p ode p a sse a r p o r e las sem se p e rd e r e sem o risco de que e la s se confundam , contagiem , corrom pam .

O b se rv a ç ã o a te n ta d a s v a rie d a d e s , p ro d u ç ã o im a g in á r ia d as

variações, co n v iv ên c ia to le ran te com a d ilu ição dos lim ites , m edo das

m argens e dos seres fro n te iriço s , re ten ção e co n tro le das v ariações

a trav és de técn icas de m em o rização , eis que se vai d e lin ean d o um con jun to , a lgo con trad itó rio m as a rticu lado , de m odos de re lação com o m undo.

Identidade e conversão

Se nos ded icarm os a aco m p an h ar as h is tó rias de v ida do sécu lo XVI, e não apenas as das grandes e no táveis p e rsona lidades, m as, na

m e d id a d o p o s s ív e l , a s d o s h o m e n s c o m u n s e c o le t iv id a d e s , encon tram os re iteradam en te fenôm enos de ruptura: v iagens, encon tros s ig n if ic a t iv o s , d e s a s tre s (n a u f rá g io s , f a lê n c ia s e tc .) , a l te ra ç õ e s sucessivas de m oradia , de so rte (azares e ven tu ras), experiên c ias de exerc íc io e de perda de poder, persegu ições, ex ílios , am eaças de peste, m o rtan d ad es m aciças, guerras, m assacres etc.

H á um conceito que, em bora no sen tido estrito se ap lique apenas à v id a re lig io sa , p o d e se r u sad o p a ra d e s ig n a r e s ta v a r ie d a d e de

m u d an ças de rum o que secc io n am a v id a de cad a um em d iv e rso s

segm entos: conversão.A ép o ca foi, certam en te , de m u itas e d ram áticas conversões no

sen tido re lig io so do term o, o que se en tende d ada a fo rça e am plitude '

dos m ovim en tos de refo rm a pro testan te e refo rm a cató lica.C reio , porém , que as experiências de conversão foram ainda m ais

g en era lizad as e freqüen tes se ace ita rm os o uso do te rm o p a ra fa la r de

40

Page 33: A Invencao Do Psicologico

todos os fenôm enos de torção, que pod iam ocorrer tan to no cam po das c renças (re lig io sas , po líticas, c ien tíf icas) com o no d as p rá ticas e s i tu a ç õ e s e x i s t e n c i a i s d o s in d iv íd u o s e g ru p o s . M u i ta s e ra m c o n v e rs õ e s im p o s ta s , c o n v e rsõ e s so f r id a s p e lo s h o m en s . A es ta s conversões, que se abatem sobre os ind iv íduos e am eaçam ou destroem suas in teg rid ad es fís icas , m o ra is e p s ico ló g icas , p o d em -se o p o r as co nversões v iv idas com o reco n q u ista da in teg ridade , (re )en co n tro do su je ito com seu destino ou sua vocação . D e q u a lquer form a, m esm o n e s te c a s o d e ‘c o n v e r s õ e s r e g e n e r a t i v a s ’ h á u m , ou v á r io s , seccionam entos d a v ida a ex ig ir co stu ra e am arração.

S ã o in ú m e ro s o s te s te m u n h o s d a d i f ic u ld a d e d o h o m e m qu in h en tis ta em dec ifra r a p róp ria exp e riên c ia e d esco b rir ne la um a un idade e um sentido .

P o d e m o s nos in tro d u z ir no te m a a tra v é s d e um s o n e to d o aventureiro , náufrago, poeta etc. Luís de C am ões (1524 [?]-1580):

Soneto 91

Tanto de meu estado me acho incerto Que em vivo ardor tremendo estou dc frio Sem causa, juntamente choro e rio O mundo todo abarco e nada aperto

E tudo quanto sinto um desconcerto Da alma um fogo me sai, da vista um rio Agora espero, agora desconfio Agora desvario, agora acerto

Estando em terra chego ao Céu voando;Nu’a hora acho mil anos; e é de jeito Que em mil anos não posso achar u’a hora

Se me pergunta alguém porque assim ando,Respondo que não sei; porém suspeito Que só porque vos vi, minha Senhora.

A m esm a p e rp lex idade d ian te da d iv ersid ad e e das co n trad içõ es da experiência indiv idual vam os encon tra r em M . de M onta igne (1533- 1592).

41

Page 34: A Invencao Do Psicologico

M o n ta ig n e ([1580] 1987; p. 111) parte d o su p o s to de que os hom ens d iferem entre si, o que j á é um obstácu lo p a ra se fa la r num a ‘n a tu reza h u m an a ’ sem pre igual a si m esm a: “N ão co m eto e sse erro tão com um de ju lg a r os ou tros p o r m im . A cred ito de bom g rado que o que está nos ou tros possa d iv e rg ir e ssen c ia lm en te d aq u ilo que está em m im (...) e concebo mil e um a m aneiras d iferentes de v iver” .

E ssa to lerância com a d iversidade en tre os hom ens não é, porém , o que há de m ais surpreendente em M ontaigne. O que há de m ais grave é que, segundo M ontaigne, os hom ens d iferem , tam bém , de si p ara si:

Os que se dedicam à crítica das ações humanas jam ais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma m esm a luz todos os atos dos hom ens, pois estes se contrad izem com um ente e a tal ponto que não parecem provir de um m esmo indivíduo (...) Nossa maneira habitual de fazer está em seguir os nossos impulsos instintivos para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, segundo as circunstâncias (...) Somos todos constituídos de peças e pedaços ajuntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem, (pp. 159-161 - grifo meu)

Se a a lm a não consegue m an ter a in te ireza ao longo de tan tas e rep e tid as ‘c o n v e rsõ e s ’, o p ró p rio co rp o , ig u a lm en te , não se rá p ara M on ta igne a base de even tua l un idade. O co rpo , ag lo m erad o de peças

e pedaços, está su jeito às to rções e ao despedaçam en to . C o m en tando os in c id en tes nu p c ia is em que o m arid o não co n seg u e c o n su m a r o casam en to porque o pên is não co labora , M o n ta igne adverte:

Quanto aos que sabem ter órgãos obedientes, evitem simplesmente ceder dem asiado à fantasia. Com razão observam quanto este órgão é independente, excitando-se muitas vezes inoportunamente e falhando de outras feitas; colocando-se em oposição direta à nossa vontade.[Mas] pergunto, haverá uma só parte de nosso corpo que não se recuse às vezes a fazer o que deve ou aja contra a nossa vontade? (pp. 53-54)

E a partir desta m elindrosa pergunta, M onta igne en tra a recensear

todos os m ov im en tos invo lun tário s e p arc ia is d o co rpo p ró p rio que

nos rem etem à sua estranheza e a lienação , en tre os quais os d is tú rb io s

d iges tivos são parad igm áticos.

42

Page 35: A Invencao Do Psicologico

N a verdade, conversões de a lm a e conversões de co rpos não são

co m p reen d id o s co m o fenôm enos in d ep en d en tes . A inda não é d este tem po a separação rad ical entre co rpo e m ente. A força da im ag inação ,

po r exem plo , im ita as doenças físicas e pode até p roduzi-las, co m o nos in fo rm a o m esm o autor, a partir do seu caso:

Sou deste sobre os quais a imaginação tem grande domínio. Todos são atingidos por ela, mas alguns há que ela derruba (...) A vista da angústia alheia influi fisicamente em mim e de maneira penosa c não raro sofro de sentir que alguém sofre. Diante de alguém que tosse continuamente sinto igual irritação nos pulmões e nos brônquios (...) Pego a doença que estudo e a semeio em mim. Não acho estranho que a imaginação dê febre e mesmo provoque a morte nos que não a controlam, (p. 51)

E ste trecho dos Ensaios de M o n ta ig n e nos co n d u z à q u estão da

d o e n ç a e à p r e s e n ç a d e s te te m a n a s e x p e r i ê n c ia s e r e l a to s

m em o ria lís tico s d a época . A co m p an h em o s ag o ra a lg u n s trech o s da

au to -ap resen tação de um a singu la r perso n a lid ad e do sécu lo XVI:

Meu estado corporal era enfermo em muitos sentidos: por natureza; como resultado de várias doenças; e em sintomas de fraqueza que se apresentavam por si. Minha cabcça é afligida por descargas congênitas, às vezes do estômago, às vezes do peito e numa tal extensão que mesmo quando me considero no melhor estado de saúde, eu sofro (...) Outro problema é um catarro ou reumatismo nos dentes, pelo que comecei a perdê-los desde 1563 (...) Meu quinhão tem sido indigestão e um estôm ago não muito forte (...) Na ju v en tude fui pertu rbado por palpitações congênitas do coração (...) Também tive hemorróidas e gota, com a qual tanto me acostumei que tenho o hábito de chamá-la de volta mais do que me livrar dela (...) Era meu hábito - e um costume que a muitos espantava - que quando não tinha desculpa para estar doente procurava uma doença, tal como relatei no caso da gota. Por esta razão, freqüentemente colocava-me na situação de provocar um certo mal- estar...Descobri que não suportava muito tempo sem uma dor física pois neste caso uma certa angústia mental se apoderava de mim (...) Por isso elaborei o plano de morder os lábios ou torcer meus dedos ou picar a pele do braço esquerdo até chorar. Sob a proteção deste autoflagelo eu vivo sem sofrimento. (Cardano [1575] 1930; p. 512)

43

Page 36: A Invencao Do Psicologico

O texto acim a é de G. C ardano (1501-1576), m édico, m atem ático e um dos grandes m ágicos do seu tem po (m edicina, m atem ática e m ag ia v inham quase sem pre ju n ta s , reun idas num a fan tasia de on ip o tên c ia e m egalom an ia m uito ca rac te rís tica da trad ição a que tam bém pertencem M ars ilio F ic in o , G iovan i P ico D e lia M iran d o la , C o rn é lio A g rip a e G io rdano B runo) (cf. Y ates, 1987). C ardano escreveu De vita proppria liber, um dos p r im e iro s e x e m p lo s c o n su m a d o s d a e s c r i ta a u to ­b iográfica . O au to r o escreveu já velho, pouco antes de m orre r e pouco depo is de ter sido acusado (e abso lv ido ) pela Inqu isição , o que ocorria freq ü en tem en te com pra tican tes da m agia . É, en fim , um liv ro escrito en tre duas ex periênc ias b astan te p ertu rbado ras de conversão .

O terna da doença parece ter sido de grande in teresse no con tex to da esc rita au tob iog ráfica : C ardano descreveu as suas d e ta lh ad am en te ao se ap resen ta r; C alv ino , de quem fa la rem os m ais ad ian te ,3 escreveu u m a m o n o g ra f ia so m e n te so b re e s te tem a , na q u a l id e n t if ic a o s s e g u in te s m a le s : a r t r i te , c á lc u lo s r e n a is , d e s o r d e n s in te s t in a i s inespecíficas, hem orróidas, hem orrag ias estom acais, febres, nefrite, gota e cãibras m usculares. O objetivo do grande reform ador era o de o ferecer o se u ‘c a s o ’ à f a c u ld a d e d e m e d ic in a d e M o n tp e l l i e r . M a s , in d e p e n d e n te m e n te d e s ta g e n e ro s id a d e ed if ic a n te , nas su as c a rta s pessoa is do final d a v ida há um agudo sen tido de o b serv ação destes p rocessos de co rrupção do co rpo c d esin teg ração do o rgan ism o , que o tran sfo rm am p lenam en te naquele ag lom erado de “partes e pedaços ju n ta d o s de m an eira casual e d iv e rsa” de que nos fa lav a M on ta igne .

E s ta s e n s ib i l id a d e q u in h e n t i s ta ao d iv e r s o d a a lm a e ao esface lam en to do co rpo ta lvez nos ajude a en ten d e r a p ró p ria voga da lite ra tu ra au to b io g rá fica .4 D esde o final do sécu lo XIV com eçaram a ser red ig idos na Itá lia a lguns tex to s nos quais g randes co m erc ian tes reg is trav am suas v idas, seus n eg ó c io s , su as co n v icç õ es p o lític a s e r e l ig io s a s . A o q u e p a re c e , o o b je t iv o d e le s e ra o d e g a ra n t ir a c o n t in u id a d e d a s t r a d iç õ e s f a m i l ia r e s , e s e u s e s c r i to s n ã o se d estinavam à pub licação , m as apenas ao uso e p rove ito dos m em bros d a fa m íl ia e a m ig o s (c f . G u g lie lm in e ti , 1983). N ã o e ram a in d a autobiografias com o as de C ardano e B. Celini (1500-1571), m as já eram d isp o s it iv o s d e s tin ad o s a c o n se rv a r a c o n tin u id a d e do g ru p o num p e río d o em que se g e n e ra liz a v a m as e x p e r iê n c ia s de ‘c o n v e rs ã o ’ (su cesso s e fracassos com erc ia is, tran sto rnos na o rdem p o lítica etc.). A s au tob iog rafias posterio res cen tram -se na v ida do au to r, nas suas

44

Page 37: A Invencao Do Psicologico

características físicas e morais, nas suas doenças e achaques, nas suas crenças e, principalm ente, nas suas realizações. São textos que participam do projeto de conservar a memória e ‘perm anecer na memória’, no sentido de alcançar a fama e perpetuar o nome do autor, segundo as palavras do próprio Cardano.

No conjunto, as autobiografias quinhentistas, bem como as crônicas fam iliares e as crônicas de cidades e povos - que se desenvolveram mercê do esforço de homens como João de Barros e os Guicciardini (o tio Francesco e o sobrinho Ludovico) - , parecem representar um uso específico da memória: a memória destinada a estabilizar, dar permanência, continuidade e sentido a experiências individuais ou grupais sujeitas a sucessivas conversões, torções, adoecimentos e aniquilamentos. Falar de si, falar de suas conversões e de suas doenças seria, então, uma estratégia para reconquistar imaginariamente a unidade da vida e a integridade do corpo.

Em última instância, porém, nenhuma memória humana será capaz de assegurar a unidade de sentido de vidas tão convulsionadas. As memórias se perdem, se embaralham, por mais cautelosos e engenhosos que sejam os dispositivos para conservá-las. O mais sério, contudo, é que a memória conserva e mantém junto o que tende à dispersão, mas não é suficiente para, sozinha, atribuir ou descobrir sentido naquilo que aparentemente não tem nenhum. E neste contexto que se pode, talvez, entender a força de atração da idéia de predestinação, tal como defendida por Calvino (1500-1564), entre outros.

A predestinação faz com que, para além de todas as torções, a vida de cada um tenha um significado consistente e permanente diante da memória de Deus: “Chamamos de predestinação o eterno decreto de Deus, pelo que ele determinou a Si mesmo no que Ele haveria de tornar cada indivíduo da humanidade” (Calvino [ 1537] 1977; p. 711).

As decisões de Deus são tão permanentes e a sua ‘m em ória’ delas é tão fiel que, a rigor, para ele nada é futuro nem passado e tudo é presente, faz sentido, é um passo necessário e inevitável do destino.

Conversões c torções não são apenas objetos de comentários perplexos e jocosos, de observações ‘clínicas’ do próprio adoecimento ou do controle imaginário pela via autobiográfica ou da crença na predestinação.

Conversões e torções estão acusticam ente representadas na música contrapontista e artificiosa do estilo borgonhês, como vimos

45

Page 38: A Invencao Do Psicologico

no início e p lasticam ente represen tadas na p in tura e escu ltura m aneirista (cf. H auser, 1976). Seres contorcidos, m ovim entos apreendidos no exato momento em que os corpos parecem prestes a se desfazer, membros, dorsos e cabeças mantidos numa união precária e num equilíbrio improvável. O estilo maneirista, todavia, é mais que a representação do corpo em vias de se despedaçar. É a representação congelada e congelante, artificial, estilizada, polida, supercultivada, envern izada dos corpos e dos m ovim entos. É, assim , m enos a representação da desintegração do que a representação como defesa contra a desintegração. O estilo do amaneiramento é o da imitação, o da adesão preciosística a modelos, a imagens idealizadas a serem reverenciadas e copiadas como garantias de uma unidade a que nada corresponde no plano da experiência. Pode-se encontrar, nesta medida, um a eq u iv a lên c ia fu nc iona l en tre a e sc rita a u to b io g rá fica , p rincipalm ente nos seus m om entos h ipocondríacos, e o estilo maneirista.5

Na literatura, a linguagem também se contorce e se torna preciosa e rebuscada e talvez o melhor exemplo disso apareça na forma de paródia: são os diálogos ou monólogos de dom Q uixote, de que Cervantes tira um grande partido cômico.

São, todas essas, expressões de experiências de uma desintegração da subjetividade, acompanhadas de uma atenção mórbida em si mesma e do recurso a crenças e técnicas de consolidação e defesa da identidade que se tornou problemática. A cisão interior, as experiências ‘conversas’ e ‘controversas’ da subjetividade ameaçada e ainda os temas da corrupção e do contágio encontram-se reunidos em mais este soneto quinhentista (e maneirista), de Shakespeare, que encerra o item que o soneto de Camões inaugurou:

Soneto 144

Dois amores - de paz e desespero - Eu tenho que me inspiram noite e dia:Meu anjo bom é um homem puro e vero;O mau, uma mulher de tez sombria.

Para levar a tentação a cabo,O feminino atrai meu anjo e vive

46

Page 39: A Invencao Do Psicologico

A querer transformá-lo num diabo,Tentando-lhe a pureza com a lascívia.

Se há de meu anjo corromper-se em demo Suspeito apenas, sem dizer que seja;Mas sendo ambos tão meus, e amigos, temo

Que o anjo no fogo já do outro esteja.Nunca sabê-lo, embora desconfie,Até que o mau meu anjo contagie/’

A nostalgia dos anos dourados

M uitas vezes o renasc im en to foi iden tificado com o um a ‘idade

d o u ra d a ’. U m a co m p reen são p arc ia l d e s ta época p arece a b o n a r tal op in ião que, a liás, foi a de alguns dos m ais renom ados ren ascen tis ta s e con v erteu -se na ‘v isão o fic ia l’ da ren ascen ça depois da ob ra de J. B urckhard t, no final do sécu lo XIX. O s renascen tistas , porém , m esm o quando en tu s ia sm ad o s com sua época , e ram obrigados a p erceb er, ao lado da riqueza m aterial e espiritual que en tão se produzia, fazia c ircu lar e c o n su m ia , a sp e c to s e x tre m a m e n te d c sa le n ta d o re s de c o rru p ç ã o , d egeneração d e costum es, em pobrecim en to , carestia e fom e etc. A ssim é que E rasm o , com um in tervalo de poucos anos, ex a lta e d ep lo ra seu

tem po com as palav ras m ais e loqüen tes.L oys le R oy (1510-1577), no De la vicissitude ou Varietés des

choses en Vunivers ([1575] 1977), após várias pág inas de louvação

d e ta lh a d a ao s a v a n ç o s e c o n ô m ic o s , te c n o ló g ic o s e e sp ir i tu a is do sécu lo , reco n h ece que este é tam bém o sécu lo do a p a rec im en to de novas doenças, p rinc ipalm en te doenças transm issíveis sexualm en te , da frag m en tação d a c ris tan d ad e nas se itas p ro te stan te s e tan to s o u tro s

m ales sociais, com o a inflação, que o levam a dizer:

Assim ninguém poderia imaginar qualquer espécie de infortúnio ou ví­cio que não seja encontrado neste século, ao mesmo tempo que revivem as boas letras c as artes são restauradas. Não existe um só entre os cris­tãos ou bárbaros que não tenha muito sofrido. Nenhuma parte da terra habitável, nenhuma pessoa livre de aflições que aumentam dia a dia e são muito bem conhecidas, para a nossa perda e confusão. ([1575] 1977; p. 91)

47

Page 40: A Invencao Do Psicologico

O c e r to é q u e os v e rd a d e iro s a n o s d o u ra d o s , p a ra m u ito s , parec iam ser aqueles de an tanho , q uando as conversões eram raras, as m arg en s e fron te iras eram n ítidas , as iden tidades du ráveis. A lgo d isso podiam procurar na ressurreição da astro log ia que, para usar m ais um a vez as palavras de Lukács (1963; p. 19) (cf. ‘A desnatureza hum ana ou o não no cen tro do m u n d o ’), parece res tau ra r “ ... os tem pos que podem ler no céu estre lado o m apa das vias que lhe são abertas e que eles devem percorrer” .

E ram estes tem pos que p od iam ser rev iv id o s nas p ág in as dos ro m a n c e s de ca v a la ria , um dos g ê n e ro s m a is b e n e fic ia d o s com a invenção da im prensa. A partir de alguns m odelos já ex is ten tes , com o o Am adis de Gaula, constru íram -se e ed ita ram -se inúm eros rom ances em que os velhos heróis eram p rovados em novas aven tu ras ou novos heró is eram criados. N estas con tinuações e p lág ios a qualidade literária ia s e n d o p ro g r e s s iv a m e n te p e rd id a e os c l ic h ê s d a e s t i l iz a ç ã o

am aneirada iam -se im pondo. Q uando o padre e o barbeiro tentam liv rar dom Q uixote da origem da sua loucura, incineram quase toda a biblioteca do fidalgo m anchego , m as sa lvam o Amadis. C om razão : a inda ho je a le itu ra do Am adis de Gaula vale a pena.

O A m adis n a rra em p e q u e n o s c a p ítu lo s os a n te c e d e n te s , o n asc im en to , os ráp idos anos de fo rm ação , as cen tenas de aven tu ras m ilitares e o am or do filho do rei Perion, de G aula, e da p rincesa E lisena, filha do rei G arinter. H á tam bém diversos capítulos em que brilha G alaor, irm ão do herói.

T oda a h is tó ria - na qual se podem in te rp o la r à von tade novos cap ítu los , m as na qual não é conven ien te que se pule nenhum , po rque q u an d o m enos se esp era reap arecem v e lhos p erso n ag en s - e n v o lv e

c e n te n a s de n o m es e c e n te n a s de v ia g e n s p o r f lo re s ta s d e n sa s , p a lá c io s , e s tra d a s , e n c ru z ilh a d a s e tc . N o e n ta n to , são p o u c o s os personagens e as situações: há os cava le iro s bons, be los, m ui leais, v a len tes , fo rtes, c ris tão s , cad a qual m e lh o r que todos e A m ad is , o m e lh o r d e le s ... H á, p o r ou tro lado , os c a v a le iro s m au s , a rd ilo so s , covardes e tra içoeiros, que não trep idam ao reco rre r aos go lpes baixos da m agia, m enos fo rtes, m enos bon itos e tc. H á m uitas d am as e um a

v e rd ad e ira p ro fu são de d o n ze la s , m u ito in d ep en d e n tes e sa lien te s , sem pre andando de cá p ara lá, levando recados, cu m prindo m issões d ip lo m á t ic a s , e x e c u ta n d o in t r ig a s m i l i ta r e s e a m o ro s a s . C o m o

48

Page 41: A Invencao Do Psicologico

coad juvan les , há g igan tes e anões, m agos , a lguns e scu d e iro s e pouco m ais. T odos se d iv idem en tre bons e m aus. T odos se exp ressam em linguagem elevada, com m uita com postura, m as ainda conservando um a certa na tu ralidade.

A s cenas e s ituações de b a ta lhas se repetem en v o lv en d o m u ita b ravura , m uito sangue e m uitas m ortes , m em bros decepados, cabeças rachadas até o m ax ila r , peitos varados de lado a lado etc. T u d o isso é con tado com im ensa agilidade, com ligeireza e sem m uito dram a.

N a s c e n a s d e a m o r h á m u i ta te r n u r a , r e s p e i to , lá g r im a s (p rinc ipa lm en te A m ad is ch o ra m u ito e quase m orre quando , du ran te um a luta, ao ver O riana “a sem par” , seus o lhos se enchem de lágrim as im pedindo-lhe a visão do oponente). Há, tam bém , m oderadam ente, m as sem d isfa rces , sexo. A s relações sexuais podem oco rre r sem m uitos p reâm bulos. E assim que G alao r é con tem p lad o com um a d o n ze la que se acha na o b rigação de passar com ele a noite, q uando o jo v e m fica hospedado no caste lo de seu pai: tu d o por dev er de co rtesia , em b o ra fique im p líc ita u m a certa sim patia en tre am bos. D a m esm a fo rm a, a

p róp ria re lação de P erion com E lisena foi p reced ida por a lguns o lhares trocados du ran te o ja n ta r que o rei G arin te r o fe rec ia ao fo ras te iro rei da G au la c por a lgum as tram as da d o n ze la da m oça e do e scu d e iro do re i , a p e d id o d o s in te re s s a d o s . N e s ta m e s m a n o ite , A m a d is fo i co nceb ido e, pe lo tom da narra tiva , ac red ita -se que sem pecado . N o d ia segu in te , P erion a rrep ia cam inho , com o se nada fosse. E lisen a dá à luz A m adis, sozinha, discretam ente, sem m uxoxo ou indignação. Só m ais tarde, m as não m u ito m ais tarde, todos acabam se enco n tran d o para form ar um a fam ília bastante feliz.

Em m om en to nenhum Perion é tra tado com o alguém que abusou da filha do rei G arin te r. O rei P erion fo rm a en tre os bons, e os bons são fundam en ta l e v isce ra lm en te leais, sen tem -se co m p ro m e tid o s ,

cum prem re lig io sam en te suas ob rigações, são pessoas com quem se pode con tar. A trav és de a lguns in d íc io s - no caso , um anel e um a esp ad a - , Perion foi capaz de de ix a r m u ito claro para E lisena que , com ele, ela podia contar. E e la acreditou.

T odos v iajam e parecem não sa ir de casa . O s cav a le iro s v iajam sem pre 'a se rv iço ’ p ara cu m p rir suas e levadas ob rigações fam ilia res (paren tes em perigo ) ou ju s tic e ira s (ó rfãs e v iúvas a d esag rav a r, po r

exem p lo ); estas v iagens, con tudo , são freqüen tem en te in te rro m p id as

49

Page 42: A Invencao Do Psicologico

por outras obrigações im previstas e m ais urgentes. O s cavaleiros nunca rejeitam um a tarefa, por m ais b izarra que pareça (e po r isso estão sem pre ca indo em ciladas), nunca re je itam um desafio , po r m ais inopo rtuno e d e sm io lad o que seja: a lg u n s cav a le iro s d e so cu p ad o s , po r ex em p lo , postavam -se no m eio de um a estrada m ovim en tada e ten tavam obstru ir o trânsito pelo sim ples p razer de lu tar com quem não se con fo rm asse- destas lu tas ap aren tem en te d esn ecessá ria s safam m u ito s fe rid o s e ou tros tan to s m ortos! N ossos bons cav a le iro s A m ad is e G alao r não perdem n enhum a opo rtun idade de m o s tra r serv iço ; onde q u e r que se e n c o n tre m e o q u e q u e r q u e fa ç a m , c o n se rv a m se u s v ín c u lo s e com prom issos. P or isso, ta lvez, pareçam nunca te r p ressa em cheg ar a parte algum a, em bora estejam sem pre indo para a lgum a parte.

É um m undo fechado, redondo, no qual v igora um a tem poralidade c ircu lar, e o sen tido da v ida está h o m o g en eam en te d istribu ído : não há reg iões ou m om en tos em que faça m ais sen tido estar. N ão há reg iões ou m om entos sem sentido. N ão há lacunas e vazios. E um m undo pleno, povoado de seres fac ilm en te iden tif icáve is , m esm o se m o nstruosos. N ão a p e n a s p re v a le c e n este m u n d o o bem - q u e m esm o q u a n d o p ro v iso riam en te d e rro tado , rap id am en te se recupera , d esfazen d o de im ediato o suspense; neste m undo prevalece o sentido. C om um m undo assim ta lvez sonhassem os le ito res do sécu lo XVI, q uando o o rig inal espanho l foi traduz ido pela E u ro p a in te ira e o livro lido p o r nobres, re is, bu rgueses, donas-de-xasa e re lig iosos de re fin ad a esp iritua lidade .

A n o sta lg ia com o m undo da cav a la ria foi be lam en te exp ressa p o r C e rv an te s (1 5 4 7 -1 6 1 6 ), no fam oso m o n ó lo g o de dom Q u ix o te (p éro la do estilo am aneirado) d ian te de uns cab re iro s, no cap ítu lo XI. “D itosos e afo rtunados os sécu los aqueles a que os an tigos puseram o nom e de dourados...” , inicia o fidalgo, para p rosseguir na enum eração das van tagens dos tem pos de en tão sobre o seu p róprio tem po . São as m aze las deste seu tem po que to rnam p ara ele im perio sa e u rgen te a

ta re fa de re c o n s ti tu iç ã o d a o rd em d a c a v a la r ia “ ...d e fe n s o ra d as d o n z e la s , a m p a r a d o ra d a s v iú v a s e s o c o r r e d o r a d o s ó r f ã o s e necess itad o s...” para que e la fizesse re to rnar o m undo ao tem po em que “ ...com a verdade e a lhaneza não se tinham ainda m istu rado a

fraude, o engano e a m alíc ia” .

50

Page 43: A Invencao Do Psicologico

Reformas

Se a nostalg ia se expressa costum eiram ente em fantasias escapistas, em dom Quixote encarna-se, também, o espírito da reforma, tão característico do período final do Renascimento. Mas se o esforço de dom Quixote não resultou no renascimento da ordem da cavalaria e no retorno aos ‘ditosos tempos’, ao menos não deu com ele na fogueira, como ocorreu com muitos outros reformadores menos afortunados.

Dois anos antes do rompimento do século XVI, o frade Girolamo Savonarola (1452-1498), depois de ter empolgado o povo, artistas e intelectuais florentinos e assumido o governo de Florença, com um grande projeto de reforma política e moral, foi destituído do poder e queimado.

Cem anos depo is, um ex -frad e dom in icano h e ré tico foi encarcerado por liderar um movimento reformista radical no sul da Itália: chamava-se Tommaso Campanella (1568-1639) e esteve preso por 27 anos.

Um ano depois da prisão de Campanella, um outro ex-dominicano, Giordano Bruno (1548-1600), foi julgado pela Inquisição romana e queimado devido às suas crenças e atividades reformistas no campo das idéias científicas e religiosas.

Entre as fogueiras que consumiram Savonarola e Bruno passaram- se exatamente 102 anos. Neste século muitos reformadores enfrentaram o exílio (como Calvino e M aquiavel), tiveram problem as com a Inquisição (como Santo Inácio e Santa Teresa), perderam, literalmente, a cabeça (como Thomas More) etc. Assim sendo, a morte de dom Quixote na cama de sua casa pode ser considerada um final feliz, apesar de todo o sofrimento que lhe trouxe a lucidez finalmente recuperada.

Tentarei, em seguida, caracterizar sumariamente as condições em que todos os projetos de reforma podem se constituir.

Como motor e condição de possibilidade de todas as reformas, encontraremos sempre a diversificação e complexidade das formas de existências individuais e coletivas, as experiências de dispersão das identidades e as conversões, a variedade e entrechoque de diferenças lingüísticas, religiosas, pessoais etc.

51

Page 44: A Invencao Do Psicologico

Enquanto o mundo se apresenta íntegro e pleno, totalmente preenchido, para não dizer entupido, de significado e valor, e enquanto a vida se desenrola inteiriça e contínua, não há nem necessidade nem possibilidade de empreendimentos reformadores. <

Não há necessidade de reformas, naturalmente, porque não há misturas a separar, torções a endireitar, degenerações a reverter, pedaços descosidos a costurar. É claro que este mundo contém o mal, conhece o medo e já é palco de intervenções corretoras: toda a vida de um cavaleiro, como Amadis, era - imaginariamente - uma perene batalha contra a maldade e a injustiça. O que este mundo não contém é o vazio, a ausência de sentido, a ameaça de aniquilamento e de diluição das identidades. Este mundo não conhece a angústia na amplitude em que tal experiência acomete o mundo renascentista, principalmente neste período avançado do renascimento. Só então os projetos de reforma podem emergir como tarefa de um indivíduo ou de uma coletividade.

Além de não ser necessário, não é também possível colocar-se na posição de reformador antes que a desarticulação da experiência ofereça pontos de vista e perspectivas excêntricos a partir dos quais a vida possa ser criticamente avaliada e corrigida. Não é nunca do centro do mundo que se projeta uma reforma: o reformismo pressupõe um universo descentrado ou policentrado.

O universo dos reformadores é, em relação ao das ‘civilizações fechadas’, mais homogêneo e mais heterogêneo. Mais homogêneo porque não há mais um único centro (político, religioso, cultural) cercado de regiões mais ou menos periféricas e que existem nas/pelas suas relações centrípetas. Agora há outras vozes, outros ângulos a partir dos quais se pode falar do mundo e apreciá-lo. O mundo ficou menos hierarquizado e a distinção clara entre centro e periferia (por exemplo, entre dogma e heresia) tende a se dissolver.

Por outro lado, como se viu ao comentar o Amadis de Gaula, nas ‘civilizações fechadas’ as experiências todas faziam sentido e tinham valor. A partir do centro, valor e significado esparramavam-se homogeneamente sobre as experiências humanas. Agora passam a haver regiões e momentos privilegiados a partir dos quais o homem pode contemplar o mundo, sua época e sua vida e tentar reformá-las.

52

Page 45: A Invencao Do Psicologico

N esta m ed id a , o re fo rm ism o p ressu p õ e , em p rim e iro lugar, a au tonom ização das esferas (po líticas, relig iosas, artísticas etc.). M esm o que o p ro je to de re fo rm a se lance sob re lodo o cam po da ex p e riên c ia hum ana, sem pre o fará a partir de u m a esfe ra p riv ileg iada: M aqu iavel p en sa a re lig ião na Itá lia desde a po lítica ; C a lv ino pensa a p o lítica e a arte em G enebra desde a religião, po r exem plo.

O re fo rm ism o tam bém p re ssu p õ e a p e r io d iz a ç ã o da h is tó ria : apogeu versus d ecadência ; d ecadênc ia versus renasc im en to ou versus re fo rm a ; “N o sso s te m p o s” versus “ tem p o s d a n ta n h o ” ou versus “ tem p o s v in d o u ro s” - onde se in se rem , p o r ex em p lo , os p ro je to s u tó p ico s de T h o m a s M o re (1 4 7 8 -1 5 3 5 ) e C am p a n e lla . E m o u tra s p a la v ra s , os p ro je to s de re fo rm a são a lim e n ta d o s p e la s te n s õ e s e m erg en te s en tre p ed aço s ou p e río d o s do m u n d o e d a h is tó ria , ao m esm o tem po que con tribuem para novos despedaçam en tos . E assim , p o r exem p lo , que a p rópria p ro life ração de re fo rm adores re lig io so s no sécu lo XVI p assa a s in a liza r um a crise de iden tidade do c ris tian ism o a

ex ig ir um novo, e supostam ente defin itivo , p ro jeto de reform a.Sem pre tender en trar em detalham en tos excessivos, p roponho que

se d istingam de início dois tipos de reform a que, não sendo m utuam ente exclusivos, co rrespondem a d iferen tes o rien tações ex is tencia is.

H á re fo rm as que se destinam a reco n stitu ir o tec ido esgarçado d as reg ras , n o rm as e le is cap azes de su p o r ta r id en tid ad es c la ra s e d is tin ta s e c o n fe rir s ig n ificad o s u n ív o co s e d u ráv e is às co isa s e às práticas. Por ou tro lado, há reform as que p rocuram um solo m ais fundo do qual possam em erg ir fo rm as m ais liv res e m enos no rm atizadas de relação do hom em com o seu m undo e com Deus.

Os pro jetos de reform a do prim eiro tipo tendem para a codificação

p rec isa das ex p eriên c ias , para o con tro le m etód ico d a v ida: o q u e e com o fazer, o que e com o pensar, o que e com o com er, com o vestir, o

que e com o falar, com o se ap resen ta r e com o se encob rir, co m o rezar, com o com por, com o can ta r e tc .7

A s cod ificações das boas m aneiras c iv is estavam na ‘o rdem do d ia ’ e receberam um tra tam en to m uito e luc ida tivo na obra de N o rb e rt E lias ([1939] 1973). C om ele, ficam os sabendo que m esm o um esp írito

e levado e aberto com o E rasm o ju lg av a ind ispensável esc rev e r um livro

com o De civilita te m orim Puerilium (1 5 3 0 ) d e d ic a d o à e d u c a ç ã o in fan til, no qual ensina:

53

Page 46: A Invencao Do Psicologico

Não é polido saudar um homem quando urina ou defeca. Faz mal à saúde reter a urina, convém despejá-la em segredo. Alguns recomendam ao jovem reter um peido contraindo as nádegas. Mas não! E errado contrair uma doença por querer ser educado. Se se pode sair, convém o fazer a distância.Caso contrário, deve-se seguir o velho preceito: encobrir o barulho com uma tosse. (cf. Erasmo; apud Elias [1939] 1973)

P rovave lm en te , foi nos cam p o s da teo lo g ia e da o rgan ização das p ráticas re lig iosas que o esp írito co d ificad o r se revelou m ais d iligen te ,

m as tam bém nos cam pos da p o lítica e da e s té tica e le está p resen te ,

com o se verá a seguir.E ntre os projetos de cod ificação , convém d ife renc ia r en tre os que

p rocu ram m odelos an tigos - ou supostam en te an tigos - e os que vão

buscar nas experiênc ias as bases p ara a o rdenação do m undo , o que não exclui a possib ilidade das duas o rien tações estarem presen tes num a m esm a obra reform adora.

H á, po r um lado, um forte e d iv ersif icad o m ov im en to de p rocu ra

de m odelo s nas filo so fias g regas, na filo so fia e o ra tó ria rom anas, nas

c renças e p rá ticas do c ris tian ism o p rim itivo e na filo so fia e re lig ião

e g íp c ia e bab ilón ica , sem pre à busca de no rm as au to rizad as p ara a in te rp re tação d o m undo e con d u ção da v ida. V ai ser, po r exem plo , a p a r t i r d a tra d iç ã o p ita g ó r ic o -p la tô n ic a a s s o c ia d a a u m a s u p o s ta r e d e s c o b e r ta d a r e l ig i ã o e g íp c i a q u e e m e r g e o r a c io n a l i s m o n u m ero ló g ico e h e rm é tic o d a re fo rm a c o sm o ló g ic a d e fe n d id a p o r

G iordano B runo (cf. Y ates, 1987). É curioso ver com o esta tradição ajuda

B runo a o rdenar o cam po de suas ex periênc ias a través de um a técn ica

m nem ón ica bem d ife ren te da que v im os sendo p ra ticad a po r M atteo

R icci. P e la técn ica de B runo , todas as co isas do m undo deveriam ser rep resen tadas e conservadas com o invó lucro c ircu la r de um núcleo de

im agens ce le stia is a rquetíp icas. A m em ó ria não é um palác io , é um a

roda g irando em torno de um eixo m ág ico que con tém em si o m undo

todo e a que se podem ligar todas as coisas do m undo na sua infin idade variada. N ão deixa de cham ar a a tenção o fa to de que o m esm o B runo, que constru iu a im agem de um un iverso sem cen tro e sem lim ites, de um un iverso in fin ito , é levado a lidar com este un iverso m ed ian te o

recurso a um a im agem perfeitam ente circular, concên trica e redutora.

54

Page 47: A Invencao Do Psicologico

Na mesma tradição pitagórico-platônica insere-se a reforma da música proposta pelo nobre florentino Vincenzo Galilei, pai do famoso astrônomo. Convém, quanto mais não seja para conhecer o ambiente em que se criou Galileu - o que nos será útil num próximo ensaio - , que nos detenhamos um pouco na obra do pai Vincenzo ( 1523-1591).

A música a ser reformada, a ser na verdade erradicada pela reforma, é a polifonia flamenga.* Vincenzo Galilei não se conforma com uma música que tenha perdido sua vocação espiritual, o compromisso com a verdade que teria caracterizado a música grega, para se converter num objeto de divertimento e prazer sensorial. Não aceita o caos, a confusão, a desordem das vozes simultâneas. O que há de mal nesta desordem, Galilei concede, não é que ela não possa ser agradável; ao contrário, v problema é que os compositores contrapontistas submetem a razão aos sentidos, a unidade do conceito ao sensorialmente diverso. A música reformada deve refletir não a pura e simples variedade das coisas, mas as proporções matemáticas, as regularidades numéricas que subjazem à diversidade das formas, cores e sons:

Homens sábios e judiciosos, quando vêem as várias formas e cores dos objetos não se satisfazem, como a multidão ignara, no mero prazer que a visão proporciona, mas apenas investigando por detrás a mútua propriedade e proporção destes atributos incidentais e, da mesma forma, suas propriedades e natureza. (Galilei [1581] 1965; p. 118)

Como já estamos aqui distantes daquela concepção da natureza como fonte de variação a ser imitada, que havíamos encontrado em Zarlino. E como esta reforma estética já está próxima à reforma na metodologia científica promovida pelo filho célebre de Vincenzo!9

Como exemplo de reforma que se mantém relativamente afastada de modelos antigos, pode-se mencionar a elaboração da ciência política por M aquiavel (1469-1527). Observando a vida política de seus contemporâneos e desenvolvendo estudos históricos, Maquiavel se propõe reordenar conceituai e praticamente - daí o caráter tecnológico de O príncipe (1513) - a República de Florença e toda a cristandade en v o lv id a neste tem po num p rocesso d o lo ro so de lu tas e desintegração.

Finalmente, a nova astronomia de Nicolau Copérnico (1473-1543) é testemunho de uma complexa proposta de reordenação do cosmos a

55

Page 48: A Invencao Do Psicologico

partir de uma tradição pitagórico-p latôn ica, de uma inspiração heliocêntrica, proveniente, em última instância, do Egito antigo, e de um cuidadoso trabalho com as observações de movimentos celestes, embora o próprio Copérnico tenha sido um observador medíocre (cf. Debus, 1981;Koyré, 1979; Martins, 1990;Yates, 1987).

E a partir desta vertente de neocodificadores que se pode transitar mais facilmente para os reformadores que voltaram as costas para a lei e se apresentaram como vias de libertação de indivíduos e coletividades. Estes reformadores pretendem se enraizar em algo que, para além das diferenças e variações, seria o acervo comum de todos: certos poderes, certos direitos, certas experiências naturais de uma mesma condição humana. E o que sucede, por exemplo, quando se descobre o mesmo espírito religioso - e o mesmo Deus - não só em diferentes versões do cristianism o como até em diferentes religiões. O dom inicano Bartolomeu Las Casas, por exemplo, defendeu diante do rei de Castela os índios americanos contra seus exterm inadores espanhóis, por acreditar que eles eram tão ou mais religiosos - e cristãos, sem o saberem - que os cristãos europeus (cf. Todorov, 1983; Tuchle e Bouman, 1983).

Concepções como esta resultam em perspectivas ultra-relativistas e no campo político, se levadas às últimas conseqüências, em projetos anárquicos como o do jovem Etienne de La Boétie (1530-1563), no Discurso da servidão voluntária - 1548 (cf. Heydorn, 1988).

Mantendo-se afastadas desta radicalização, todas as reformas que caminharam no rumo da crítica às hierarquias, às regras e aos rituais se originam no mesmo terreno. A partir deste tronco, porém, encontram- se muitas variantes.

É possível, por exemplo, identificar uma tradição erasmiana que caminha na direção da moderação e da tolerância, da crítica libertadora equilibrada e sem fanatismo, do respeito às diferenças naturais e do com bate às d iferenças artific ia lm ente constru ídas e de caráter conservador e nocivo. Ecos desta atitude são encontrados em recantos tão aparentemente remotos como nas obras de Rabelais e no teatro de Gil Vicente (1465-1540), caracterizando o que se poderia chamar de ‘reformismo humanista’ (cf. Saraiva, 1963).

O repúdio às constrições artificialmente estabelecidas para a liberdade do homem pode também ser identificado no luteranismo.

Page 49: A Invencao Do Psicologico

M artin h o L u te ro (1 4 8 3 -1 5 4 6 ) d e fen d eu a lib e rd ad e d a e x p e riê n c ia re lig io sa , a libe rdade da fé enquan to v ivência ind iv idual que não se de ix a ap reen d er nem pode ser reg u lad a nas fó rm u las e ritua is de um a

igreja. T odos os teó logos p ro testan tes com o M elanch ton , Z w in g le r e C a lv ino , de um a fo rm a ou outra, in sistem na liberdade com o co nd ição d a e x p e r iê n c ia r e l ig io s a g e n u ín a , q u e só e n v o lv e - m a s o fa z radicalm ente - a intim idade do hom em (cf. D ilthey [1914] 1978; T uchle eB o u m an , 1983).

C on tudo , nenhum dos p ro je to s re fo rm adores de m aio r im pac to na ép o ca pode se d a r ao luxo de d e fen d er a liberdade sem , ao m esm o tem po, estabe lecer seu a lcance e lhe d a r lim ites.

E rasm o - e tam bém M on ta igne que pertence à m esm a trad ição p ro to -ilu m in is ta - , ao m esm o tem po que defende a liberdade p ara o e sp írito crítico e rac ional, a to le rânc ia d ian te das d ife renças e o d ire ito e o d ev er do liv re -a rb ítrio , sugere, com o v im os, reg ras de c iv ilid ad e

que regu lem as fo rm as do in d iv íduo se ap resen ta r em pú b lico e se re lac io n a r com os ou tros nos d ife ren tes con tex to s sociais. M o n ta igne reco m en d a ex p lic itam en te que se acatem e obedeçam aos costum es de

cad a po v o e de cad a época , sem p re co n se rv an d o a d is tân c ia c é tic a d ian te das p re tensões de cad a con jun to de norm as se ap resen ta r com o o m ais verdadeiro ou com o necessário . N enhum con jun to de co stu m es é m ais n ecessário que o outro , m as é necessário que se v iva de aco rdo com um deles, sem ilusões.

L u te ro , se d e fen d e in tran sig en tem en te a lib e rd ad e do hom em interior, d e ix a o hom em ex te r io r para os con tro les socia is e, o que é m ais decis ivo , subm ete o hom em in terio r p lenam ente à vontade d iv ina. E neste co n tex to que se pode con sid e ra r o sign ificado d a n egação do

livre-arbítrio por Lutero ([1525] 1977):

O homem é composto de uma natureza dupla, uma espiritual e uma corporal: quanto à espiritual, que é cham ada de alma, o homem é designado como o novo homem espiritual e íntim o... E certo que absolutamente nada, qualquer nome que se dê, tem qualquer influência na produção da liberdade ou correção cristã, nem na incorreção e escravidão... A alma pode dispensar tudo, salvo a palavra de Deus. (p. 701)

E ainda:

57

Page 50: A Invencao Do Psicologico

Deus prometeu certamente Sua graça ao humilde...Mas um homem não se humilhou suficientemente até que reconheça que sua sa lv ação está co m p le tam en te fo ra de seus p o d eres , discernimento, esforços, vontade e obras, dependendo absolutamente da vontade, discernim ento, prazer e obra de outro, isto é, de Deus somente, (p. 700)

D eve-se reconhecer e re iv in d icar a co m p le ta in d ep en d ên c ia do

hom em in terio r em relação ao m undo , suas leis, au to ridades e ritua is p ara p o d er reco n h ecê -lo m ais p len am en te co m o serv o do S en h o r e ren u n c ia r à c rença na sua liberdade c poder. O h om em in te rio r é livre na e pe la fé, que é um a en trega ilim itada ao arb ítrio divino.

T a lv ez a tese p rinc ipal d este co n ju n to de ensa io s já possa ser enunciada: tão im portan tes ou a té m ais im portan tes do que a ab e rtu ra de espaços de liberdade ind iv idual, com o se vê acon tecendo ao longo do p ro c e s so de d e s in te g ra ç ã o d as ‘c iv iliz a ç õ e s f e c h a d a s ’, são as

ten tativas de circunscrever estes espaços. A ssim sendo, as experiências

sub je tivas no sen tido m oderno do te rm o e que v ieram a se co n v erte r

em ob je to de um saber e de um a in tervenção p sico ló g ico s devem a sua em erg ên c ia tan to às v ivências de d iv ersid ad e e ru p tu ra com o às

te n ta t iv a s d e o rd e n a ç ã o e c o s tu ra , ou s e ja , a to d a s as p rá t ic a s refo rm ista s que im plicavam um a sub je tiv idade ind iv id u a lizad a e um a ten são su s ten tada en tre áreas ou d im ensões de lib erd ad e e á reas ou d im e n sõ e s de su b m issão . A te o lo g ia lu te ra n a é p a ra d ig m á tic a do cará te r au tocon trad itó rio desta experiência . C om o se vê, o ‘in d iv íd u o ’,

ao co n trá rio do que o term o sugere , nasce d a d isp e rsão e traz um a cisão in terio r inscrita em sua natureza.

Reformadores católicos

O padre L uís P alacín , no seu liv ro Santos do atual calendário litúrgico (1982), ap resen ta um to tal de 178 san to s, co rresp o n d en d o aos d ia s do ano m ais s ig n if ic a tiv o s do p o n to d e v is ta d a re lig iã o ca tó lica . São dezenove sécu los de c ristian ism o , j á q u e d ific ilm en te os

nasc id o s no sécu lo XX p o d em fig u ra r n u m a lis ta de c a n o n iz a d o s

pub licada em 1982. D estes 178 santos, 34 v iveram parte de suas v idas

no século XVI, ou seja, 19% do to tal. Se houvesse um a d is tribu ição

58

Page 51: A Invencao Do Psicologico

a lea tó ria dos san to s pelos d ezenove sécu los, te ríam os 8,8 san to s em m éd ia a cada cem anos; ou seja, po r sécu lo , ce rca de 5% do to tal. É c laro que a concen tração de san tos no sécu lo XVI ou nas suas duas

m argens não é casual. D estes san tos, a lguns destacam -se na ex p an são d a c r is ta n d a d e em te rra s a s iá tic a s e am erican as . A m a io ria de les , en tretanto , esteve ligada ao m ovim ento de reform a do cato licism o, tanto nos an o s a n te r io re s co m o nos p o s te r io re s ao C o n c íl io de T re n to

(in ic iado em 1545 e encerrado cm 1563). A lguns fizeram -se cargo das tarefas refo rm adoras propostas pelo C oncílio , com o São P io V c, o m ais

c o n h e c id o , S ão C a rlo s . M u ito s tiv e ra m p a r t ic ip a ç ã o d e c is iv a na

conso lidação do m ov im en to re fo rm ador, com o São Jo ão da C ruz, São F idélis (m assacrado pelos calv in istas), S an ta M aria M adalena de Pazzi,

São L u iz G onzaga, São L ou renço de B rind isi, São R oberto B ela rm ino (que partic ipou nos p rocessos de B runo e G alileu ), S ão P ed ro C an ísio ,

en tre ou tros. O s m ais in teressan tes , no en tan to , fo ram os fundadores, ou se ja , os q u e c r ia ra m n o v as o rd en s e in s ti tu iç õ e s re lig io sa s ou

refo rm aram as já ex is ten tes, dando -lhes um novo fundam ento . N este

caso e s tão S an ta A n g e la de M eric i, que fundou as U rsu lin a s ; São Je rôn im o E m iliano , que fundou a C ongregação dos S ervos dos P obres;

S ão F ilip e N eri, que fundou os O ra tó rio s do A m o r D iv in o ; S an to

A ntôn io M aria Z acarias , que fundou os B arnab itas; São C aetano , que fu n d o u a C on g reg ação dos C lérigos R egu lares; São V icen te de P au lo , que fundou a C on g reg ação das Irm ãs de C aridade ; S ão João L eonard i, que fundou a C o m panh ia dos C lérigos R egu lares d a M ãe de D eus; e, sem esg o ta r a lista , p ara não can sar o leito r, S an to In ác io de L oyo la ,

q u e fu n d o u a C o m p a n h ia de Je su s , e S a n ta T e re sa d ’A v ila , q u e

refo rm ou o C arm elo , fundando os conven to s de C arm elitas D escalças .

N em to d a s as fu n d a ç õ e s o c o rre ra m no s é c u lo XVI. A lg u m a s se

an tec iparam e a lgum as se a trasaram . M as, sem dúv ida , o sécu lo XVI

foi o g rande sécu lo das fundações, e bastavam p ara isso as ob ras de

S an to Inácio e de S an ta T eresa.Q u a s e to d o s o s s a n to s d a é p o c a p a s s a r a m p o r g r a n d e s

t r ib u la ç õ e s : a lg u n s fo ra m m is s io n á r io s e v ia ja n te s , le v a n d o o

c r is tia n ism o p a ra fo ra d a E u ro p a , onde p a ssa ram m u ito s an o s em

re la tiv o ou ab so lu to iso lam en to , ou lev an d o o ca to lic ism o ro m an o

(p ap ista ) a reg iõ es d a E u ro p a do m in ad as pelos p ro te stan te s; nestas

59

Page 52: A Invencao Do Psicologico

circunstâncias, muitos foram martirizados; outros tantos sofreram perseguições por parte da própria hierarquia católica e/ou por parte de grupos rivais dentro do catolicismo; alguns estiveram presos e passaram longos períodos marginalizados; quase todos sofreram uma ou mais experiências de conversão.

Embora as conversões fossem experiências individuais e privadas- a conversão religiosa é, efetivamente, acompanhada de um profundo e nítido reconhecimento do caráter privativo e singular da vocação o converso ou ‘re-converso’ rapidamente buscava o apoio de uma coletividade. Na verdade, uma tendência bastante generalizada entre reformadores católicos foi a de investir na criação de novas formas de vida coletiva. As novas ordens e ‘obras’ do século XVI tiveram um crescimento extraordinário, o que revela uma intensa demanda de congraçam ento. Tudo se passa como se ‘m anter-se unido’ fosse indispensável como forma de conservar e limitar o isolamento e o desenraizamento do mundo produzidos pela conversão.

As novas ordens diferiam bastante entre si, seja nos objetivos específicos, seja nas norm as, seja nas ativ idades privilegiadas, processos de recrutamento etc. É difícil falar de maneira generalizante sobre elas, salvo quando representavam alternativas à corrupção e mundanização da alta hierarquia da Igreja romana. No entanto, tendo que escolher uma delas para exemplo, não há dúvidas que a escolhida deve ser a Companhia de Jesus, aprovada como Ordem Regular Clerical em 1540.

Santo Inácio de Loyola (1491-1556), nobre biscainho, cortesão e militar, passou pela primeira conversão quando estava preso, aos trinta anos de idade. Nos anos subseqüentes, de penitência, peregrinação e orações, reafirmou e deu novos passos na direção de uma conversão mais total e definitiva. Os excessos a que se entregou na época o tornaram alvo das suspeitas da Inquisição, que o confundiu com os místicos ‘alumbrados’, que proliferaram na Espanha à margem da hierarquia católica. Inácio de Loyola partiu, então, para Paris, para estudar e livrar-se da investida inquisitorial.

D urante os m uitos anos de estudo , Inác io se ded icou a arregim entar com panheiros altam ente selecionados, segundo sua compreensão do que seria sua missão: a missão ‘guerreira’ e pedagógica de um cruzado de novo tipo.

60

Page 53: A Invencao Do Psicologico

A religiosidade inaciana é viril, determinada, militar. Seus métodos de recru tam ento e treinam ento são exigentes e rigorosos. Não surpreende que a Companhia, que no início funcionava com base nas deliberações coletivas, tenha, ao se constituir como ordem, adotado o princípio monárquico. Esta decisão foi tomada em conjunto pelos com panheiros e foi p reparada por um a série de in stru çõ es coletivamente estabelecidas (Ravicr, 1982). A conclusão a que se chegou e consta da ata das reuniões prefigura o contrato hobbesiano destinado a assegurar a manutenção de cada um pela manutenção da paz social. Este contrato marcaria a renúncia individual a determinados direitos e a transferência destes direitos - uma alienação definitiva deles- a uma autoridade suprema. No mesmo espírito, diz a ata dos jesuítas: "... é mais conveniente para nós, mais necessário, prometer obediência a um dos nossos”. Este ‘um’, eleito por todos, reinaria vitaliciamente e sem contestação possível. Todos devem obedecer a ele e ao papa, que decidem como, onde e quando cada qual há de servir à causa do cristianismo. A companhia que assim se cria é um comando de guerra teoricamente coeso e pragmaticamente orientado: nenhuma cerimônia de regra, nem coro, nem órgão, nem canto; “em tudo isso, encontramos graves in co n v en ien tes”, lê-se no docum ento que constitu iu a Companhia. Fiquem as cigarras com a música; as formigas e os jesuítas trabalham, e trabalham com espírito pragmático e administrativo.

Determinação, obediência e método são características marcantes dos jesuítas nas suas atividades apostólicas e, em especial, no campo da educação. Os jesuítas fundaram escolas de todos os níveis e em todo o mundo. O mais notável na pedagogia jesuíta era a capacidade de oferecer ao formando um elevado grau de independência ao mesmo tempo em que lhe incutia uma estrita adesão à ortodoxia católica. E isso, talvez, o que há dc mais típico da subjetividade jesuíta: a lealdade inquebrantável à causa - que é a causa de Cristo em geral e a causa da própria Companhia em particular - e a autonomia e auto-suficiência do indivíduo. São elas que podem sustentar física e moralmente estes indivíduos em missões prolongadas, em países remotos, em condições adversas, no meio do isolam ento cultural, lingüístico etc. Esta duplicidade está presente em toda parte do pensamento e da prática de Inácio de Loyola como, por exemplo, nas Regras para sentir verdadeiramente como se deve na Igreja militante, escrito em 1534

61

Page 54: A Invencao Do Psicologico

([1534] 1990), do qual selecionei alguns trechos. Apenas o título do trabalho pode dar matéria para um ensaio inteiro: regras para sentir, Igreja militante!

/ “ regra. Renunciando a todo o juízo próprio, devemos estar dispostos e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, à santa Igreja hierárquica, nossa mãe. (p. 188)

13a regra. Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que o que nos parece branco é negro, se assim o determina a Igreja hierárquica... (p. 191)

Isto quanto à obediência, mas vejamos o que Loyola nos diz sobre o ‘outro lado’:

15a regra. Habitualmente não devemos falar muito de predestinação... (p. 192)

16a regra. Da mesma forma, é de advertir que, por falar muito em fé e com muita insistência (...) não se dê ocasião ao povo de vir a ser negligente e preguiçoso do obrar... (p. 192)17a regra. Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de produzir o veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé da graça (...) mas não de tal forma nem de tais modos, mormente em nossos tempos tão perigosos, que as obras e o livre-arbítrio sejam prejudicados ou mesmo negados, (p. 193)

O que vemos aí muito claramente é a submissão incondicional aliada à valorização do trabalho, do esforço, das obras, da liberdade individual e da responsabilidade de cada um - em detrimento da predestinação, da fé e da graça - na constituição de militante. Santo Inácio está, sem dúvida, se seguirmos a distinção entre os tipos de reforma propostas no item anterior, do lado dos codificadores. Já havíamos visto antes como reformadores que reivindicavam a liberdade estabeleciam também um limite preciso para ela. Vimos mesmo como Lutero defendia a liberdade do homem interior em relação à hierarquia para logo em seguida submeter a vontade humana à vontade divina, negando o livre-arbítrio. Santo Inácio é o contrário absoluto de Martinho Lutero: propõe e exige a submissão total do indivíduo à Igreja hierárquica para que, no contexto desta obediência, ele possa exercer a liberdade e o esforço de vontade. Ambas as propostas contêm uma

62

Page 55: A Invencao Do Psicologico

co n trad ição in te rn a ; am bas atam e libertam o in d iv íd u o ao m esm o te m p o ; a m b a s , f in a lm e n te , c o n tr ib u i r ã o p a ra a c o n s t i tu iç ã o d a su b je tiv idade m oderna en quan to su b je tiv idade cind ida.

E ho ra de d ize r a lgum as p a lav ras sobre o tex to co m p o s to por S a n to I n á c io p a r a o r i e n ta r o c o n v e r s o no c a m in h o d o se u aperfeiçoam ento espiritual e, principalm ente, para preparar com m étodo e segu rança um novo ep isód io de co n v ersão ."1 T ranscrevere i, a seguir, u m a sé r ie de p a s s a g e n s do te x to , a c o m p a n h a n d o -a s d e a lg u n s com entários. Em alguns casos, lim itar-m e-ei a grifar:

Por esta expressão, Exercícios Espirituais, entende-se qualquer modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal ou mentalmente, e outras atividades espirituais (...) Porque, assim como passear, caminhar c correr são exercícios corporais, também se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus... (pp. 11-12)

Para este fim, isto é, para que o Criador e Senhor atue mais certamente na sua criatura, se a pessoa estiver afeiçoada ou inclinada a uma coisa desordenadamente, convém muito mover-se, empregando todas as suas forças em chegar ao contrário daquilo a que se vê afeiçoada, (p. 21)

Exercícios EspirituaisPara o homem se Vencer a Si mesmo eOrdenar a Própria Vida,Sem se Determinar por Nenhuma Afeição Desordenada, (p. 27)

O s do is p rim eiro s trechos pertencem à ap resen tação do trabalho .

O terce iro é o títu lo com pleto dos Exercícios espirituais. C re io que e les falam por si. O s p róx im os trechos constam das in s truções p ara o exam e de consciência cotid iano:

Pela manhã, logo ao levantar, deve-se propor evitar com diligência aquele pecado particular ou defeito que se quer corrigir e emendar.Depois da refeição do meio-dia, pedir a Deus nosso Senhor o que se quer, a saber, graça para se recordar quantas vezes se caiu naquele pecado particular ou defeito e para se emendar para o futuro. Em seguida, faça-se o primeiro exame, pedindo conta a si mesmo daquele ponto particular previsto de que se quer corrigir e emendar. Percorrerá cada

63

Page 56: A Invencao Do Psicologico

uma das horas da manhã, ou cada espaço de tempo, começando desde o momento de levantar até a hora e instante do exame atual. E, marque na primeira linha da letra g = tantos pontos quantas forem as vezes que incorreu naquele pecado particular ou defeito, (pp. 31-32)

Os preceitos básicos estão todos aí: programação minuciosa do dia, das metas, das atividades espirituais; recordação igualmente minuciosa do obtido; comparação do programado com o realizado. Um dos aspectos mais interessantes deste extraordinário protocolo de auto- observação, que não poderia ser mais eficiente se tivesse sido elaborado por um psicólogo behaviorista, é o recurso, de resto tão do agrado da psicologia comportamentalisla, a um gráfico no qual se devem representar os pecados cometidos entre o momento da promessa e o momento do exame. Trata-se de um dispositivo a que santo Inácio dedica várias linhas com a certeza de que a representação dos pecados e, principalmente, a linha descendente dos pecados ao longo dos dias e das horas ajudarão e tornarão mais rápido o processo.

Os exercícios estão programados para ocupar quatro semanas de dedicação exclusiva, em que todas as outras atividades do exercitante estarão interrompidas. Há trabalho dia e noite. Dorme-se planejando o dia seguinte. Acorda-se recordando o prometido. Cada semana é dedicada a um lema ou a uma experiência. Na primeira, por exemplo, o tema são os pecados. Há que recordá-los todos: os pecados dos anjos, os dos nossos primeiros pais c os nossos próprios. Há que se encher de confusão e vergonha por eles. Estas lem branças e reações emocionais de confusão e vergonha são preparadas metodicamente através de um controle preciso de imaginação. Todos os exercícios nesta e nas demais semanas começam com o primeiro preâmbulo:

... é a com posição do lugar. E de notar aqui que, se o assunto da con tem plação ou da m ed itação for um a co isa v isível ( ...) esta “composição” consistirá em representar, com o auxílio da imaginação (...) onde se encontra o objeto que quero contemplar (...) Se o assunto da m editação fo r coisa inv isível, como são nesta os pecados, a composição do lugar consistirá em ver com os olhos da imaginação, e em considerar a minha alma encarcerada neste corpo corruptível, e a mim mesmo, isto é, meu corpo e minha alma, neste vale (de lágrimas) como desterrado entre brutos animais, (pp. 43-44)

64

Page 57: A Invencao Do Psicologico

O 2" preâmbulo consiste em pedir a Deus nosso Senhor o que quero e desejo (...) Na meditação presente pedirei vergonha e confusão de mim mesmo... (p. 44)

A prim eira tarefa será sem pre, assim, imaginar, através de recordação ou imagem mental, uma idéia. Em seguida, pede-se ou evoca- se a emoção adequada. O esquema vai se repetindo e as imagens vão se sucedendo cada vez mais evocativas e graduadas num crescendo:

... a composição do lugar consiste em ver com os olhos da imaginação o comprimento, a largura e a profundidade do inferno (...); verei com olhos da im aginação os grandes fogos e as almas como que em corpos incandescentes (...) Escutarei com os ouvidos, prantos, alaridos, grilos, blasfêmias contra Cristo e contra todos os seus santos (...) Sentirei com o olfato o cheiro do fumo, enxofre, imundície e podridão (...) Procurarei com o gosto saborear coisas amargas, assim como lágrimas, tristezas e remorsos da consciência (...) Tocarei com o sentido do tato estas chamas, sentindo como cias envolvem c abrasam as almas. (p. 54)

Acompanhando os exames e as meditações, vêm as penitências, tanto as interiores como as exteriores. Estas implicam flagelar o corpo de diversas formas. Seus objetivos são três:

O primeiro, para satisfazer pelos pecados passados. O segundo, para vencer-se a si mesmo, isto é, para obrigar o sensualidade a obedecer a razão (...) O terceiro, para solicitar e obter de Deus alguma graça ou dom que a pessoa quer e deseja.

No conjunto, o objetivo das duas primeiras semanas é o de preparar o excrcitante para a ‘eleição’. A ‘eleição’ é uma experiência metodicamente controlada e programada de conversão. Santo Inácio, nesta medida, acrescenta às formas já conhecidas de conversão a conversão sofrida como ‘dissolução de identidade’ e a conversão vivida como a ‘reconquista de identidade’, uma terceira modalidade de conversão. Na verdade, as duas prim eiras formas eram casuais, acidentais, im previsíveis; não se prestavam a uma pedagogia. A conversão prevista e desejada por Inácio de Loyola ao propor os Exercícios espirituais perdeu totalmente o caráter aleatório. Trata-se agora de uma construção de identidade pragmaticamente cronometrada: ao final da segunda semana, o exereitante se coloca na posição de quem

65

Page 58: A Invencao Do Psicologico

elege o que vai ser dali por diante. Trata-sè de uma escolha, mas desta escolha foi retirada toda a contingência: a eleição se confunde com a escu ta de um cham ado; a e le ição c, segundo Santo Inácio , o atendimento a uma vocação. O esforço que exige do optante é o de não se deixar levar pela paixão e pelas afeições desordenadas, e permanecer num estado de perfeita indiferença: nesta condição de equilíbrio, ele opta, ou é ‘optado’, pelo que sente, “... ser para maior glória e louvor de Deus nosso Senhor e salvação da [sua] alma”. Logo em seguida à escolha, deve o exercitante oferecê-la a Deus, para que “... sua divina Majestade se digne aceitá-la e confirmá-la, se ela for para seu maior serviço e louvor”. Eis aí uma nova identidade construída com determinação, método, cautela e segurança.

Na terceira semana, além dos exercícios, Santo Inácio propõe algumas regras para se ordenar a alimentação: o que convém comer e do que jejuar; como comer, no que pensar enquanto come, o que imaginar durante a refeição etc. “Importa, sobretudo, que o espírito não se ocupe totalmente no que comemos e que se evite a sofreguidão do apetite, mas seja senhor de si, tanto na maneira de comer como na quantidade que se toma.”

Na quarta semana, além das meditações e exames, Santo Inácio esclarece a prática da oração, propondo três modos de orar.

Em anexo aos Exercícios espirituais, costumam ser publicadas as Regras: para pensar; para examinar e discernir estados subjetivos (“... sentir e conhecer as várias moções que se produzem na alma: as boas para aceitar e as más para rejeitar”); regras para dar esmolas; regras para entender as ações do diabo e bem lidar com elas; regras para sentir adequadamente. Nada fica de fora do previsto e do programado. A própria graça divina é evocada com determinação, como vimos na experiência da ‘eleição’, em que Deus é convocado sem apelação para dar a palavra final de uma escolha meticulosamente organizada.

Os jesuítas, sem dúvida nenhuma, elaboraram o primeiro sistema completo de construção e administração do psiquismo nos tempos modernos. Este sistema produziu algumas das mentes mais fortes e independentes da modernidade. No século XVII, René Descartes orgulhava-se de ter estudado num dos melhores colégios da Europa, o colégio jesuíta La Flèche. Descartes relata não ter ficado satisfeito em sua necessidade de con v en c im en to e seg u ran ça com os

66

Page 59: A Invencao Do Psicologico

ensinam en tos receb idos. No en tan to , seria d ifíc il en ten d er a independência de espírito, o método e a própria exigência de rigor e autodomínio de Descartes sem considerar o ethos dos Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, tal como é mais difícil entender CJalileu sem a reforma musical proposta pelo seu pai.

Uma santa católica na idade da polifonia11

Na escolha de Teresa Sánchez y Ahumada, aliás, Teresa de Cepeda y Ahumada, aliás, madre Teresa de Jesus, aliás, Santa Teresa d ’Avila (1515-1582) como pivô deste ensaio sobre o século XVI, há uma certa presunção de que ela possa ocupar uma posição exemplar e representativa. É uma presunção arrojada. O século XVI - e esta é uma das idéias básicas deste trabalho - não tem um centro; é, ao contrário, um período que se debate com as glórias e perigos do policentrismo e da descentração.

Não obstante, no contexto das lutas internas do cristianismo, no contexto da expansão da cristandade para as terras do Novo Mundo e no contexto da política e do comércio mundiais as Espanhas ocupavam uma posição destacada. Em particular, a renovação do catolicismo muito deveu à espiritualidade espanhola: a Espanha foi, não por acaso, uma das maiores fontes de santos da época. Dentro das Espanhas cabia, como se sabe, ao reino de Castela a hegemonia política e cultural. No ccntro geográfico do reino está a cidade de Toledo, origem da família paterna de Teresa.

No entanto, ao mesmo tem po que era um centro político e econômico da Espanha, com uma população de cerca de noventa mil habitantes, Toledo também era uma cidade de fronteira. Ex-capital visigoda, Toledo cresceu abrigando cristãos, judeus e mouros, e seus antigos governantes se intitulavam Reis de Três Religiões. A partir das dificuldades de convivência e das perseguições que começaram a ocorrer no final do século XIV, boa parte dos mouros e judeus se converteu ao cristianismo, tornando a cidade ainda mais claramente um espaço fronteiriço.

Na segunda metade do século XV, um dos judeus convertidos era dom Juan Sánchez, casado com dona Inez, da família nobre Cepeda. No final desse século, uma caça aos judeus conversos foi deflagrada

67

Page 60: A Invencao Do Psicologico

pelos reis católicos Fernando e Isabel. Em Toledo, uma entre suas vítimas foi dom Juan Sánchez. Submetido, junto com seus filhos, entre os quais Alonso, a humilhações públicas, dom Juan conseguiu livrar- se do pior, mas passou a assinar Juan Sánchez de Cepeda, e os filhos tenderam desde então a excluir o sobrenome paterno.

Juan Sánchez de Cepeda conseguiu reconstruir sua vida e sua fortuna - era comerciante e financista - ajudado, inclusive, pelo vazio deixado pela expulsão dos judeus da Espanha. Para fac ilita r o esquecimento, transferiu-se para a cidade próxima de Ávila. No início do século XVI, Juan de Cepeda comprou um certificado de nobreza, que atestava suas boas origens e lhe dava uma genealogia tão ilustre quanto falsa.

Os filhos de dom Juan assumiram com total determinação a nova identidade. Isto não impediu que em 1519 (Teresa tinha quatro anos) os Cepeda tenham sido denunciados como falsos nobres. O caso foi ao tribunal e os Cepeda obtiveram um veredicto favorável, isto é, foram reconhecidas como verdadeiras suas falsas origens.

Trata-se, como se vê, de uma família marcada pelas histórias de conversão: a conversão original ao catolicismo, a confirmação da conversão no episódio de Toledo, a conversão de Toledo a Ávila, a conversão de Sánchez a Cepeda e de plebeu a fidalgo.

Desta sucessão de conversões resultou, finalmente, uma identi­dade imaginária, uma memória inventada, mas registrada e reconheci­da, e um estilo amaneirado de vida. Dom Alonso de Cepeda pautou sua existência pelo modelo do cavalheiro: sério, consciencioso, circuns­pecto, digno e suscetível, sumamente preocupado com as aparências, com adornos, jóias e roupas finas, muito generoso e gastador, e inca­paz de trabalhar e ganhar dinheiro - atividades certamente muito terre­nas para este modelo de cavalheiresca e afetada elevação.

Após enviuvar de um primeiro casamento (na peste dc 1507 morrem-lhe o pai e a esposa), dom Alonso casou-se com Beatriz de Ahumada, que tinha apenas 14 anos e com quem teve Hernando, Rodrigo e, a 28 de março de 1515, Teresa (foram ao todo dez partos em 18 anos de casamento - dona Beatriz morreu com 33 anos).

Foi através dessa jovem mãe que Teresa entrou em contato com o sonho em forma literária: as vidas de santos e, principalmente, os romances de cavalaria. Dona Beatriz era grande aficcionada deste

68

Page 61: A Invencao Do Psicologico

gcncro, e ela e os filhos liam escondidos do pai, que condenava esta leitura por considerá-la um tanto imoral. Não obstante, é fácil reconhecer a afinidade espiritual entre o marido, que imita um fidalgo, e a esposa, que se emociona com as peripécias de Amadis de Gaula. Teresa relata que um dia, inspirada nos feitos militares e galantes dos cavaleiros e nas vidas de santos, igualmente estilizadas, empreendeu com o irmão Rodrigo uma fuga de casa rumo à Terra Santa. Um tio os trouxe de volta. Consta também que, com o mesmo irmão, chegou a escrever um romance dc cavalaria, lido pelos parentes.

Este modelo de nobreza e coragem, associado à progressiva ruína da família, está provavelmente na origem dos destinos de muitos dos irmãos de Teresa que, na condição de fidalgos, embarcaram para o Peru, internacionalizando, por assim dizer, o alcance das experiências familiares.

Não é meu ob je tiv o ap resen ta r um a resenha dos dados biográficos dc Teresa e de seus parentes. Estou apenas tentando justificar a escolha, mostrando que muitos dos aspectos da vida qu inhentista d iscutidos nas páginas precedentes - o m edo das m argens e dos seres fron teiriços, as conversões, destru ições e reconstruções dc identidades, o uso identificatório das memórias, o amaneiramento como estratégia de consolidação de uma identidade frágil, os contatos com as regiões do Novo Mundo - estão presentes no ambiente que cercou a formação e a vida de Teresa Sánchez de Cepcda y Ahumada.

Sc nos aproximarmos um pouco mais dela reencontraremos estes e outros temas quinhentistas.

Teresa passou por várias conversões: defrontou-se pessoalmente com a dispersão do catolicismo na figura de confessores e mentores díspares e m utuam ente contraditórios; esteve sob a suspeita da Inquisição, foi denunciada, marginalizada; escreveu uma autobiografia (1562) e, como se fica sabendo por esta obra extraordinária, foi uma das mais interessantes doentes neste século de hipocondríacos.

As d esc riçõ es dc T eresa das suas doenças são de um d e ta lh am en to e v iv ac id ad e assom brosos, p rin c ip a lm en te se considerarmos que as mais completas descrições se referem ao período da juventude e a autobiografia foi escrita aos 47 anos de idade. Diz ela, por exemplo:

69

Page 62: A Invencao Do Psicologico

As dores no coração, das quais me tinha ido curar, cresceram tanto, que me parecia às vezes tê-lo rasgado por dentes agudos. Temeram que fosse raiva. As forças me faltavam, nada comia, apenas bebia um pouco, tudo me causava náuseas e a febre era contínua, o organismo estava gasto em conseqüência de purgativos diários durante quase um mês. Estava tão ressequida que meus nervos com eçaram a se enco lher com dores insuportáveis (...) Neste sofrimento mais agudo estive cerca de três meses. Parecia impossível alguém suportar tantos males juntos. ([1562] 1983; p. 35)

Relata, ainda, que certa ocasião esteve como morta e que só recuperou os sentidos quando já preparavam o enterro . Esteve entrevada um certo tempo:

Após alguns dias de espasmo fiquei encolhida, como que enovelada. Parecia morta, incapaz de mover braços, pés, mãos e cabeça, se outros não me moviam. Ao que me lembro só movia um dedo da mão direita. Não sabiam como tocar cm mim. Sentia tantas dores que não podia suportar (...) Sentia-me aliviada somente quando não se aproximavam de mim. As dores então muitas vezes cessavam. Receava que me viesse a faltar a paciência. (Ibid.; p. 38)

A liviada das dores, ficou então paralítica durante três anos. Louvou a Deus quando começou a engatinhar.

Estas doenças nunca a abandonaram de todo, mas com a sua conversão definitiva e com o seu engajamento na luta para dar à nova vida mística um instrumento organizacional adequado - o convento reformado - foram cedendo. Ela se tornou então capaz dos maiores prodígios, não apenas espirituais, como a levitação, mas também políticos e administrativos.

Griffin (1990), analisando a autobiografia contemporânea de Ch. Colson - um dos homens do presidente Nixon - , identificou dois procedim entos retóricos que garantiam a unidade da vida e a credibilidade do relato. Colson, depois de uma vida de corrupção, convcrtcu-sc. Como confiar nele? Baseado na teoria retórica de K. Burke, G riffin usa os conceitos de ‘forma silog ística’ e ‘forma qualitativa’ em sua análise. A forma silogística mostra a vida, inclusive a conversão, como algo necessário, lógico e, portanto, mais uno e mais crível. A forma qualitativa, ao contrário, enfatiza o contraste e, nesta medida, a autenticidade dos modos de vida. Através da alternância no

70

Page 63: A Invencao Do Psicologico

relato autobiográfico, o escritor consegue produzir um forte impacto emocional no leitor: fica claro que o sujeito viveu aquilo que está contando. Colson é hábil no manejo dos dois procedimentos.

Uma característica da autobiografia de Santa Teresa é o uso predominante e quase exclusivo da forma qualitativa de retórica. Ela insiste nos contrastes: de um lado, os pecados (mais imaginários que reais), o imerecimento, as dores e aflições, as misérias, a ignorância e a própria inferioridade da condição feminina; de outro, as bênçãos e graças, as alegrias e felicidades infinitas, a certeza e a segurança, as maravilhas da união mística. Esta é, sem dúvida, a retórica mais apropriada para o relato de uma existência convulsionada. A garantia de unidade não é procurada naquilo que possa depender diretamente de S an ta T eresa , nem nos d isp o sitiv o s rea sseg u rad o re s do amaneiramento (Santa Teresa não imita), nem nos da administração racional do psiquismo. E verdade que Santa Teresa chegou a descrever e tipificar suas experiências místicas (os graus da oração) e a usá-las como recurso pedagógico; ela, porém, não se propõe a programar o aperfeiçoam ento espiritual de ninguém; quer só mostrar que suas experiências são autênticas e aceitáveis pela Igreja. A procura da garantia para a unidade existencial se desloca, então, do modelo e da razão pragmaticamente aplicada para reivindicação de uma radical veracidade de sua experiência pessoal. Se estas experiências místicas forem verdadeiras, tudo faz sentido, tudo valeu a pena.

Santa Teresa d ’Ávila foi monja longos anos antes de se converter definitivam ente, e, durante certo tempo, viveu os sobressaltos da conversão sem se transformar numa reformadora. No que consistiu esta conversão?

A conversão ocorreu associada e como resultado de episódios místicos em que Teresa se sentia em comunicação direta com Jesus. Havia diferentes níveis de com unicação e foi aos poucos que a comunicação se tornou mais completa e perfeita. A conversão lhe trouxe muita alegria e muita aflição. No que concerne à alegria, selecionei como exemplo o famoso episódio com o anjo.

Aprouve ao Senhor favorecer-me algumas vezes com esta visão. Via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, sob forma corporal (...) Não era grande, senão pequeno, formosíssimo, o rosto tão incendido que

71

Page 64: A Invencao Do Psicologico

deveria scr dos anjos que servem muito perto de Deus, que parecem abrasar-se todos...Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta de ferro julguei haver um pouco de fogo. Parecia algumas vezes metê-lo pelo meu coração adentro, de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-la eu tinha a impressão que as levava consigo, deixando-me toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar os gemidos de que falei. Essa dor imensa produz tão excessiva suavidade que não se deseja o seu fim, nem a alma se contenta com menos do que com Deus. Não é dor corporal senão espiritual, ainda que o corpo não deixe de ter sua parte, e até bem grande. Nos dias em que recebia esta graça, andava como fora de mim (abobada). (Ibid.; p. 236)

Por ou tro lado, a in tensidade d as em oções evocadas pelas v isões e p e la s lo cu çõ e s , ou p e la s im p le s p re se n ç a p re s se n tid a de Je su s , de ixava S an ta T eresa perp lexa e a tem orizada. Estas experiências foram to rn an d o in to le ráv e is p ara e la a v id a m u n d an a tal co m o e x is tia no in terio r dos conven to s carm elitas da regra m itigada. D esde o sécu lo XV, os co n v en to s carm e lita s - o rig in a lm en te v o tados a um severo ascetism o - tinham se transform ado, pela in trodução da reg ra m itigada, quase que em pensionatos em que vocações re lig io sas se confund iam com so lle irice , v iuv ice e o rfandade . C ada m on ja v iv ia con fo rm e suas posses - o que inc lu ía a té d ife ren ças no tam an h o das ce la s (S an ta T eresa d isp u n h a de duas am plas ce las, em que chegou a ab rig ar um a irm ã m ais m oça duran te certo tem po); as m on jas saíam com b astan te lib e rd ad e p a ra v is ita r seus p a ren tes e receb iam v is itas (T eresa foi, d u ran te certo tem po, v is itada por um adm irado r da sua no tável be leza fís ica ). N os anos de m o c id ad e , T e re sa , a p e sa r d as d o e n ç a s que a a to rm en tavam , estava acostum ada a este m odo de vida, em b o ra relate

que não e ra feliz. A s com un icações com D eus tornaram insuportável a regra m itigada, e não tanto po r um m oralism o excessivo , m as po rque o co n v en to da reg ra m itig ad a p ro p ic ia v a a dispersão, se ja p e la su a porosidade (pessoas e notícias en trando e saindo), seja pela d iversidade en tre as fre ira s , que re f le tia a d iv e r s id a d e d o m u n d o lá fo ra . A s expe riên c ias m ísticas são ex trem am en te pertu rbadoras, con fo rm e nos conta T eresa, e têm um efeito m uito desenraizador em relação ao m undo e em relação à identidade convencional do m ístico . E ra preciso ab rigar

estas ex p eriên c ias em algum invó lucro p ro teto r. O co nven to d a reg ra m itigada não e ra capaz de lhe p res ta r este serviço.

72

Page 65: A Invencao Do Psicologico

Em acréscimo, as experiências místicas deixavam Teresa confusa: ela não era tola nem ingênua e sabia que na Espanha havia muitas m ulheres se d izendo c sc acred itando m ísticas, quando eram endem oniadas. Teresa buscou conselhos entre homens, pois não duvidava da suposta inferioridade intelectual e moral das mulheres. Só que os conselheiros eram contraditórios entre si e, com todas as suas doutas erudições, pareciam saber menos do que ela acerca do que se dava na experiência mística. Tentou seguir vários conselheiros, mentores e confessores. Somente alguns, notadamente os jesuítas que estavam abrindo um colégio em Ávila, pareciam entender um pouco destas experiências.

Enfim , os episódios m ísticos, que nunca cessaram mas se tornaram mais raros no final da vida, colocaram para Santa Teresa algumas questões que exigiram dela uma micropolítica, uma psicologia e uma espécie de epistemologia.

A m icropolítica de Santa Teresa se concretiza na tarefa de fundação de conventos de acordo com a regra primitiva: pobreza, sem mortificação desnecessária, e absoluta clausura. Qual o sentido deste fecham ento e deste desapego? O de assegurar p riva c id a d e e liberdade. A verdadeira experiência espiritual não pode se converter num espetáculo milagroso ou ritualizado. Deve ser preservada dos o lhares indiscretos do mundo; os êxtases e arrebatam entos, as levitações e transes podem muito facilmente virar objeto de falação e de escândalo. A clausura garante a privacidade de uma experiência que é da ordem da intimidade inviolável. Por outro lado, é necessário romper com as obrigações e, em particular, com as obrigações com familiares: “Fico pasmada de ver o prejuízo que resulta do trato com os parentes” ([15831 1979).

Compreende-se o que Teresa quer dizer levando-se em conta a escravidão a que a mulher ficava reduzida na família, na condição de filha ou esposa. Para ela - e Teresa o explicita várias vezes - , romper com as obrigações com os parentes é uma via necessária para a liberdade feminina. Também em relação aos confessores, a clausura pode oferecer uma certa proteção, à medida que o confessor puder ser bem escolhido e só a ele as monjas prestarem conta. Mas a principal proteção contra confessores ineptos reside na própria profundidade

73

Page 66: A Invencao Do Psicologico

da experiência pessoal de cada monja e esta só é beneficiada pela maior privacidade c pela maior liberdade que o convento fechado oferece.

A clausura é a proteção da vida, é o território privilegiado da alegria, das núpcias; é o espaço da poesia, que Teresa compôs para suas freiras, da música e das danças a que elas se entregavam nas horas de recreio coletivo.

S an ta T eresa não defendeu a c lau su ra por ser auste ra , aprisionante, nem pelo seu aspecto disciplinar; ela sempre condenou a tristeza e considerou a melancolia uma doença, condenou os flagelos e as provações excessivas, condenou a regulação in telectual e racionalista da vida interior.

Esta valorização do claustro como continente privativo da vida e da liberdade não implicava uma desqualificação do mundo lá fora e daqueles cuja m issão era atuar neste mundo. Aos pregadores e teólogos católicos compete a tarefa de enfrentar no mundo as forças do demônio, isto é, os hereges protestantes. Devem viver no mundo, conformar-se, cm parte, com os modos do mundo, com os ambientes palacianos etc. As freiras enclausuradas cabc, por sua vez, a tarefa de conservarem , no espaço livre do convento, a au ten tic idade da experiência cristã na sua radical intimidade com Cristo. As carmelitas descalças devem dar re taguarda ao exérc ito de C risto . São o complemento feminino da subjetividade jesuíta.

Teresa sabe, porém, que a clausura não é tudo:

Desprendidas do mundo e dos parentes, enclausuradas aqui nas condições acima referidas, parece que está ludo feito e não há contra quem lutar. O minhas irmãs, não vos deis por seguras, nem vos deiteis a dormir. Será como quem deita bem sossegado, trancando muito bem as portas por medo dos ladrões e os deixa dentro de casa. Ficamos nós mesmas e bem sabeis que não há pior ladrão. ([ 1562] 1983)

Os muros do convento podem abafar a confusão das vozes do mundo, mas ficam outras vozes que é preciso conhecer e discriminar. Isto exige algumas idéias acerca de algo que poderíamos designar como o ‘psico lóg ico’. Em diversas ocasiões, Santa Teresa enfatiza a necessidade de autoconhecimento como, por exemplo, quando diz: “Não é pequena lástima e confusão não nos entendermos a nós mesmos, por nossa culpa, nem sabermos quem somos”. ([1577] 1982; p. 20)

74

Page 67: A Invencao Do Psicologico

O Castelo interior é a alma, e na concepção de Santa Teresa ela se assemelha a um palmito cuja medula saborosa é a morada de Deus. Os aposentos deste castelo, contudo, não devem ser percorridos aleatoriamente e, nos adverte ela, “... é muito bom, é sumamente bom entrar primeiro no aposento do conhecimento próprio, antes de voar aos outros” ([1577] 1982; p. 31); embora o autoconhecimento só se complete com o conhecimento de Deus.

O que há de mais valioso no campo do psicológico não é nem o intelecto nem a memória nem a imaginação: é a vontade, quando esta é a vontade da união perfeita, de absoluta paz, de alegria ilimitada, que só se satisfaz no amor de Deus.

Santa Teresa não oferece nenhuma receita para regular o espírito; procura apenas as condições que permitam atender a esta demanda im periosa da vontade de união, que é como uma ânsia dolorosa, motivada pela ausência de Deus e descrita cm termos que lembram os usados para descrever as doenças: [Nestes ímpetos] “O corpo fica despedaçado, incapaz de mover os pés e os braços (...) Nem o peito pode respirar à vontade” ([1562] 1983; p. 235). E ela pergunta:

Quando, Deus meu, chegarei enfim a ver a minha alma unida e entregue aos vossos louvores, de modo que todas as faculdades se regozijem em Vós? Não permitais, Senhor, que ela seja assim despedaçada; parece- mc ver os seus pedaços dispersos por todos os lados. ([1562] 1983; p. 246)

E possível, muitas vezes, deixar as demais faculdades da alma livres para o exercício cotidiano de seus afazeres, conservando a vontade também livre para a união desejada.

Produz-se, neste caso, uma certa cisão:

Assim está simultaneamente exercitando a vida ativa e contemplativa: ocupa-se de obras de caridade, trata de negócios concernentes ao seu estado e pode ler, ainda que não esteja de todo senhora de si. Bem percebe que a melhor parte de si mesma está cm outro lugar. É como se estivéssemos falando com uma pessoa, e outra nos falasse de outro lado: nem bem estaríamos com uma, nem bem com a outra. ([1562] 1983; p. 130)

Somente nos grandes momentos todas as faculdades sucumbem e a vontade reina sozinha:

75

Page 68: A Invencao Do Psicologico

Estando assim a alma a buscar a Deus, sente-se quase desfalecer completamente, numa espécie de desmaio com grande e suave ternura. Vê que lhe vão faltando as forças corporais, que nem pode menear as mãos a não ser com muito custo. Os olhos fecham-se involuntariamente, ou, se conservados abertos, a pessoa nada enxerga. Se lê, não acerta com as letras, nem atina em reconhecê-las; vê os caracteres, mas como o intelecto não ajuda, não consegue ler ainda que queira. Ouve, porém não entende o que ouve, de modo que os sentidos de nada servem. Antes, procuram estorvar esta felicidade. É impossível falar: não atina com uma palavra e ainda que atinasse não teria alento para pronunciá-la. Toda força exterior se perde e se concentra nas da alma. ([1562] 1983; p. 139)

A p o sta r tudo na vontade de un ião e nas experiênc ias da un idade, im ob ilizando ou neu tra lizando o in te lec to , a m em ó ria e a im ag inação , traz co n s ig o um in ten so tem or: co m o sab e r que não se e s tá sendo e n g a n a d o ?

E ste tem o r é a lim en tad o p o r m uitas das vozes do m undo que

parecem e s ta r convencidas de que tais expe riên c ia s são fo rjadas pe la im ag inação d esen freada ou produzidas pelo d iabo. A von tade de un ião não tem nenhum a das garan tias ex te rnas que podem ser o fe rec idas po r um m odelo consagrado, po r um ritual ou por um dogm a.

E aqui que em erge o em pirism o radical de S an ta T eresa . Em d iv e r s a s p a s s a g e n s e la n o s e s c l a r e c e d e o n d e fa la : e la f a la ex c lu s ivam en te da experiênc ia , a pa rtir dela , sobre ela. É com base na sua ex p eriên c ia que e la en fren ta os con fesso res , que e la se ap resen ta

à h ie ra rq u ia ca tó lica e à Inqu isição ; é esta ex p eriên c ia que e la observa com um a a tenção quase c lín ica , lançando -se a a lgum as teo rizações a

seu respeito . T rata-se de um a experiência não program ada e d ificilm ente

re latável e, de início, até indese jada . M as ab so lu tam en te convincente. N ão há p ara S an ta T eresa nada nos liv ros eru d ito s d a teo log ia , nas b elas pa lav ras dos p regado res , nos m étodos e ritua is que p o ssa te r m ais fo rça que a sua própria experiência .

A e x p e r iê n c ia co m tal p o d e r de c o n v e n c im e n to n ão é u m a ex p eriên c ia com im agens e rep resen tações . N ão são as rep resen tações

de Jesus ou dos anjos que lhe chegam nas v isões e locuções, são eles mesmos. P o r isso, m ais co nv incen tes que todas são as aparições em

que n ada aparece , em que a p re sen ça é v iv id a co m o c o n v icç ão de

76

Page 69: A Invencao Do Psicologico

presença pura e simples. Esta é a base da ‘epistemologia’ teresiana: a abolição do intervalo entre ela e Deus que seria preenchido pela imagem.

No entanto, sobre esta forma de presença pesa uma permanente suspeita e é necessário distinguir entre o verdadeiro e o falso, o confiável e o ilusório. Para Santa Teresa há duas fontes de ilusão e uma só de verdade. As fontes de ilusão são o demônio e o nosso próprio intelecto (a imaginação). A fonte de verdade é Deus. O que diferencia as visões c locuções puramente imaginadas das outras é, exatamente, que elas não passam de representações e, assim sendo, não produzem efeitos. O que vem do diabo produz efeitos nocivos e efêmeros e a efemeridade é a prova de que são ilusórios. Quando provém de Deus, os efeitos são bons e permanentes: eles transformam quem os sofre e, nesta medida, são sinais indiscutíveis de presença. Não poder duvidar é o único critério c se confunde com a própria noção de verdade. O indubitável não pode ser forçado ou induzido pela autoridade de quem quer que seja: é uma propriedade exclusiva da experiência pessoal. A verdade não é a verdade por correspondência de uma representação, mas a de uma presença que age, reúne, solda e dá vida numa união que dissolve e funde irresistivelmente. Desta experiência de verdade, ela diz: "... c um glorioso desatino, uma celestial loucura, onde se aprende a verdadeira sabedoria” ([1562] 1983; p. 123).

É neste sentido que as palavras de Deus “não são palavras, são obras” : elas não contam a verdade para Santa Teresa, elas tornam verdadeira a vida de Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada e fazem dela madre Teresa de Jesus, a Reformadora.

Porque aqui se dá a grande surpresa - é-se tentado a dizer: o milagre. Tendo vivido estas experiências, tendo-as elaborado na sua história de vida (escrita no mesmo ano em que funda o primeiro convento com a regra primitiva), madre Teresa de Jesus já pode dispensar a clausura. A saúde melhora e ela reconhece: “Depois que deixei de ser tão cuidadosa c mimada, sou muito mais sadia” ([1562] 1983; p. 95).

Desde então, durante vinte anos, ela transitou por toda a Espanha, correspondeu-se com religiosos, fidalgos, reis, freqüentou palácios, meteu-se cm intrincados negócios imobiliários, administrou bens e finanças, engajou-se em articulações diplomáticas, aliciou, convenceu

77

Page 70: A Invencao Do Psicologico

e deixou plantados conventos femininos e masculinos. Durante todos esses anos ela enfrentou sérias oposições, esteve marginalizada, foi perseguida pela Inquisição. No entanto, sua experiência pessoal não lhe faltava. A ela continuou dedicando suas observações e todos os livros que escreveu partem daí.

O século que sucedeu ao de Santa Teresa foi m uito pouco teresiano. Esta busca de uma verdade para além da representação esteve às margens das correntes dominantes da cultura ocidental para só vir emergir, sob uma forma não-religiosa, quando a confiança nas regras, nas convenções e nas representações parece entrar em colapso, abrindo o amplo espaço do ‘psicológico’ em que estamos ainda hoje imersos.

Neste final do século XX, tenho às vezes a impressão de estarmos mais próximos daquele século XVI do que de alguns que vieram depois. Sem dúvida, foi isso que me levou a começar por ele esta ‘história do psicológico’. Mas é pura coincidência terminar este ensaio em um 15 de outubro.12

78

Page 71: A Invencao Do Psicologico

Notas

1. A proliferação das línguas e, mais que tudo, o encontro e confronto das vozes umas com as outras criaram também as condições sociológicas indispensáveis para o desenvolvimento do gênero literário essencialmente polifônico e ‘orquestral’ que é o romance moderno, cujos momentos inaugurais foram as obras de autores quinhentistas como Rabelais e Cervantes, de quem voltaremos a falar mais à frente. Uma análise extraordinariamente aguda das relações entre as novas condições socioculturais e o plurilingüismo romanesco foi realizada por Bakhtin (1990) a quem remeto o leitor interessado.

2. A idéia de que a memória possa assumir diferentes funções sociais e psicológicas em diferentes contextos sociais não é nova. Jean Pierre Vemant (1990), por exemplo, realizou uma rica análise dos usos da memória entre os gregos e seria interessante confrontar estes usos estudados por Vernant com o uso que está sendo identificado no presente texto.

3. Uma extraordinária análise da vida e da obra de Calvino e, simultaneamente, uma compreensão ampla da problemática cultural e existencial do século XVI podem ser encontradas em Bowsma (1988). Esta é uma leitura muito recomendável para o aprofundamento nestas questões, inclusive pela coincidência dos referenciais e concepções de Bowsma com os do presente trabalho.

4. A tese aqui desenvolvida se aproxima das apresentadas por Gusdorf (1980) acerca das autobiografias e por Weintraub (1975) acerca das conversões. A articulação destas teses já foi efetuada por Griffin (1990) na análise de uma autobiografia contemporânea, a de um ex-assessor do presidente Nixon.

5. Para uma compreensão mais rica das relações entre o estilo maneirista e o amaneiramento enquanto fenômeno psicopatológico, o leitor deve consultar a obra de L. Binswanger (1977) que, a partir de um referencial fenomenológico-existencial, me parece mais elucidativa que a de Hauser.

6. Dispomos de duas ótimas traduções do soneto 144, a de Ivo Barroso, a escolhida, e a de Jorge Wanderley. Prefiro a de Ivo Barroso (cf. Shakespeare [1606] 1991), tanto por razões estéticas como pelo resgate que faz da problemática do contágio por doenças venéreas (em inglês, fire out, num contexto repleto de insinuações sexuais).

79

Page 72: A Invencao Do Psicologico

7. O livro de Baldassari Castiglione (1478-1529), O cortesão (1528), é o mais famoso guia das boas maneiras de todo este período.

8. O contraponto foi com batido tam bém pelos reform adores religiosos protestantes e católicos (representando o espírito do Concílio de Trento). Em todos estes casos, o contraponto era condenado por ser imprestável ao serviço religioso. Na verdade, o que não se admitia era a autonomia da música e da estética em relação ao serviço religioso e à teologia. Calvino ([1543] 1965), por exemplo, após reconhecer a eficácia da música na condução dos sentimentos humanos, conclui que “...desta maneira, devemos ser cuidadosos em dirigir (ou regrar) a música de forma a que nos seja útil e de forma alguma perniciosa”.

9. O controle da imaginação artística através da imitação dos antigos e da imitação da natureza racionalizada, que aqui estamos apreciando no campo da música, foi enfocada com muita riqueza de detalhes por Costa Lima (1984 e 1988) nos campos da literatura e das artes plásticas renascentistas, nos quais geraram uma espécie de ‘veto ao ficcional’.

10. Os Exercícios espirituais, enquanto texto, mereceram uma excelente análise de Roland Barthes (1990), a que o leitor interessado é rem etido para completar as observações que se seguem. Há, também, um livro de Roberto Gambini (1988), em que este texto e as cartas dos jesuítas que no século XVI catequizavam os índios brasileiros foram submetidas a uma análise baseada no referencial da psicologia analítica de C. G. Jung. Este livro Irata especificamente das relações do europeu com os americanos, no que se aproxima, apesar das diferenças teóricas e metodológicas, do livro exemplar de Tzvetan Todorov (1983).

11. Os dados biográficos sobre Santa Teresa foram obtidos em duas biografias recentes, uma publicada em 1982, a de Stephcn Clissold, e uma publicada originalmente cm 1983 e editada no Brasil em 1988, a de Rosa Rossi. Esta, particularmente, é muito elucidativa e deve ser consultada. E indispensável, naturalmente, que se leia também o próprio Livro da vida de Santa Teresa ([1562] 1983).

12. Santa Teresa morreu a 4 de outubro de 1582. No entanto, neste ano a mudança do calendário determinada pelo papa Gregório XIII fez com que o dia 4 passasse a ser 15 e é o dia 15 de outubro que veio a ser o dia de Santa Teresa.

80

Page 73: A Invencao Do Psicologico

IDENTIDADE E ESQUECIMENTO: ASPECTOS DA VIDA CIVILIZADA

A atualidade de Cervantes

A adesão a modelos é, conforme se sabe, um ingrediente universal dos processos de constituição de identidade. Há casos, contudo, em que esta adesão se converte em im itação preciosística, em cópia estilizada, ‘excessiva’ e empolada de um modelo sumamente idealizado. Neste caso, é lícito falar em amaneiramento como uma das possíveis estratégias de auto-identificação. Não me deterei aqui em recordar as condições existenciais em que a estratégia de amaneiramento pode d om inar um p ro je to id en tif ica tó rio nem no seu s ig n if icad o antropológico.1

Meu interesse se dirige à análise dos procedimentos acionados no amaneiramento, vale dizer, dos procedimentos de construção e manutenção de uma identidade que se constitui e se esgota na e pela coincidência com uma imagem.

A literatura de transição do século XVI para o XVII nos propor­cionou o mais cabal exemplo desta estratégia na figura de dom Quixo- te de La Mancha. Desde o primeiro capítulo do romance ([1605/1947] 1981),* Cervantes nos põe em contato com a pessoa pacata, tímida e retraída de um fidalgo ocioso e sonhador que se encanta e deixa cati­var pela onda da literatura cavaleiresca. Após anos de leitura, quando dom Quijada ou Quesada ou Quijana - o verdadeiro nome é incerto, como que a testemunhar o quanto há de problemático em sua identi­dade ‘oficial’ - saiu furtivamente pela porta dos fundos de sua casa

81

Page 74: A Invencao Do Psicologico

para assombrar o mundo com suas façanhas e proezas, levava consi­go uma imagem absolutamente nítida e completa de quem era e de como devia se portar; em todos os momentos suas reflexões, decisões e ações estarão pautadas por esta imagem. Diante de qualquer dilema ou sur­presa, ele recorrerá à famosa questão: o que faria um cavaleiro andan­te em circunstância semelhante? Para responder a esta questão, ele pas­sa em revista as vidas de seus heróis: nada ele se permite que não esteja autorizado por algum modelo exemplar; por outro lado, tudo que estes modelos exibem de mais significativo, ele trata de imitar, incluin­do aí os dissabores, as desgraças, os furores e desesperos etc.

Esta adesão estrita e irrestrita é sem dúvida a principal tática de dom Quixote para construir e manter a sua identidade em meio a percalços e colisões.

No entanto, a imitação não lhe serve de muito, enquanto não for reconhecida e confirmada. Nesta medida, ele deve ser capaz de tornar a sua imitação a mais evidente possível, deve exibi-la de forma exagerada e assim obter do mundo o reconhecimento que lhe faz falta. E em busca de uma imitação que supere seus modelos, por exemplo, que ele decide “enlouquecer de saudades e ciúm es” , embora não houvesse m otivos para tan to . C on tudo , segundo a lóg ica do amaneiramento, imitar o modelo na ausência da ocasião adequada é ainda melhor do que fazê-lo quando há boas razões para um dado comportamento. Esta ‘imitação no vácuo’ como que purifica a exibição e obriga a um reconhecimento ainda mais indiscutível. Só assim, pensa ele, é possível conquistar fama e deixar um nome na história; só assim a imagem se completa e conserva.

Imitação e procura de reconhecimento já estão presentes no momento em que, dispondo-se a cair no mundo das aventuras para nele se elevar pela força do braço e do caráter, o fidalgo Quijana, ou que outro nome tivesse, dedica vários dias às operações de batismo. Ao cabo de intrincadas cogitações, sempre conformadas pelos modelos ilustres, toma o nome de Quixote e, seguindo a praxe, acrescenta o ‘de la Mancha’; problema tão sério quanto esse é o nome a dar a seu cavalo, finalmente escolhido: Rocinante; outro tanto ele investe na invenção do nome e da personagem Dulcinéia dei Toboso. Dar nomes aos homens e mulheres e às mais diversas coisas do mundo será uma das

82

Page 75: A Invencao Do Psicologico

ativ idades pred ile tas de dom Q uixote. D iante daqueles que se acostumaram a chamar estes mesmos seres pelos outros nomes - os habituais esta atividade será uma das principais evidências da loucura do herói.

Além dos nomes - o próprio, o do cavalo e o da amada - a apresentação de dom Quixote exige a fixação e estrita observância dos seus modos. Através deles, do modo de vestir, do modo de gesticular, do modo de pensar e de falar etc., o cavaleiro dá-se a conhecer. Dom Quixote, mesmo em situações extremas, escangalhado de pauladas ou confinado numa jaulinha, por exemplo, mantém a pose. A pose é o congelamento da ação.1 Falas, gestos e movimentos, enquanto pose, a inda que pareçam em ce rta s c ircu n s tân c ias flu en te s e até excessivamente elaborados, estão a serviço da fixação de uma imagem, são ingredientes de uma representação e, nesta medida, são formas congeladas e congelantes de relação com o mundo e consigo mesmo. C om o os com portam en tos e as fa las de dom Q uixo te visam exclusivamente à construção e à manutenção de sua identidade, sob a dominância das imagens idealizadas e sob o controle dos espelhos humanos em que busca a confirmação, perdem todo o contato com a dimensão experimental e funcional de existência.

Vale a pena investigar, agora mais de perto, como operam e de que natureza são as defesas e garantias da identidade imaginária do fidalgo manchego.

A primeira garantia é uma defesa contra a contingência, ou seja, contra a aparente arbitrariedade e fragilidade de toda a construção. Esta defesa consiste na crença em uma necessidade real de cavaleiros andantes no m undo confuso e d eg radado no qual v ive. E sta necessidade ‘objetiva’, posto que imaginária, não resolve tudo; afinal, por que logo ele seria a resposta às demandas de ordem, caráter, nobreza e coragem? Neste momento intervêm as idéias de inclinação para o manejo das armas (já ‘demonstrada’ no gosto pela caça) e de predestinação. Dom Quixote se apresenta como um messias, e esta vocação messiânica é o que parece fundamentar sua crença na própria identidade: ‘Eu sou o que é preciso que seja’.

A segunda g a ran tia é um co n ju n to de de fesas co n tra a experiência. Todos os cavaleiros andantes, sabe dom Quixote, possuem

83

Page 76: A Invencao Do Psicologico

alguns privilégios: alguns não podem ser facilmente feridos, outros não podem ser encantados. Dom Quixote reconhece que não está livre de ferim entos e encantam entos, em bora em últim a instância possa sobreviver a eles. Na verdade, o privilégio de dom Quixote é também uma forma de imunidade. Ele é imune às experiências. Em muitas ocasiões parece evitar deliberadam ente os testes funcionais que poderiam destruir as imagens. Uma segunda m aneira de evitar a eventualidade da irrupção da experiência no campo do imaginário constitui-se na permanente, incansável e irresistível elaboração de imagens. Dom Quixote não dá folgas à imaginação; ela trabalha metodicamente e vai longe, principalmente quando se alia a uma atividade de auto-exibição e convencimento. Os melhores momentos do romance, como se sabe, são os diálogos ou os monólogos diante de uma platéia. Em particular, nos diálogos com Sancho Pança, a im aginação sistem ática ganha um a am plitude e deta lham ento extraordinários, antecipando provas de consideração, antevendo conquistas, prêmios, honrarias, ternos sentimentos compartilhados com damas da mais alta linhagem ctc.

Além de evitar os resultados adversos e imaginar resultados favoráveis, a mais eficaz das defesas contra a experiência é a desqualificação de resultados experimentais mediante interpretações racionalizantes. Nestas interpretações, a figura do encantador ocupa uma posição estratégica: são os encantadores que, supostamente, estariam por detrás de todas as decepções; são eles que, deliberadamente, contrariam as expectativas de dom Quixote. Nesta medida confirmam-se as crenças deste, já que as práticas de magia dirigidas contra ele reforçam sua identidade de um justiceiro digno destes poderosos inimigos. A crença na ação dos encantadores não apenas torna a experiência compatível com a identidade imaginária, mas faz da experiência negativa uma instância positiva e ultraconfirmatória: T udo que me dá errado, prova que estou ccrto’.

De todas as garantias, porém, nenhuma se compara cm eficácia e engenho àquela que produz e determina a existência de Dulcinéia dei Toboso. A existência de Dulcinéia, contestada, discutida e qualificada em muitos momentos do romance, é objeto de alguns argumentos cuja lógica convém averiguar. Já no momento de compor sua personagem dom Quixote se coloca a questão de Dulcinéia:

84

Page 77: A Invencao Do Psicologico

Assim, limpa as suas armas, feita do morrião celada, posto o nome do rocim e confirmando-se a si próprio, julgou-se inteirado que nada mais lhe faltava senão buscar uma dama dc quem se enamorar; que andante cavaleiro sem amores era árvore sem folhas e frutos e corpo sem alma. (p. 31)

E mais adiante, no contexto de um diálogo:

Digo que não pode haver cavaleiro andante sem dama, porque tão próprio e natural assenta nos que o são serem enamorados como no céu ter estrelas; e onde, com efeito se viu nunca história de cavaleiro andante sem amores. Se os não tivesse, não fora tido por legítimo cavaleiro, senão por bastardo... (p. 75)

Já bem adiantado nas aventuras, no segundo livro, em conversa com os duques que o acolhem em estilo de farsa, dom Quixote é ainda mais preciso na argumentação:

... tirar a um cavaleiro andante a sua dama é tirar os olhos com que vê e o sol com que se alumia e o alimento que o sustenta. Muitas vezes o tenho dito e agora o torno a dizer, que um cavaleiro andante sem dama é como árvore sem folhas, o edifício sem cimento e a sombra sem o corpo que a produza, (p. 443 - grifo meu)

Parece-me que a idéia de Dulcinéia ocorre a dom Quixote um pouco como, alguns anos depois, a idéia de Deus viria a ocorrer a Descartes. A idéia de um amor puro e perfeito impõe-se a dom Quixote, segundo o modelo cavaleiresco, como uma evidência indiscutível. Esta idéia não se completaria (e a completude é um atributo da perfeição) sem um objeto adequado. Dulcinéia existe porque não poderia ser de outra forma e isso independe de qualquer prova experimental. É uma idéia que se impõe porque já está inscrita na mente e na sina de um cavaleiro andante, e acreditar nela é inevitável desde que se confie na própria cogitação. Dom Quixote acredita em Dulcinéia porque não pode duvidar sem duvidar da própria existência.

No entanto, à medida que as aventuras se acumulam e vão, segundo dom Q uixote, confirm ando sua identidade, D ulcinéia reaparece. Só que agora é com o o corpo que eu pressuponho necessariamente quando vejo a sombra. Na conversa com a duquesa, já transparece a concepção de Dulcinéia como uma realidade que sustenta o mundo das sombras em que existe dom Quixote. Numa outra

85

;

Page 78: A Invencao Do Psicologico

passagem, argumentando com Sancho que volta e meia expressa suas dúvidas, dom Quixote é mais claro quando afirma:

Não sabeis vós, mariola, faquim, biltre, que se não fosse pelo valor que ela infunde no meu braço eu por mim nem matava uma pulga? Dizei-me socarrão de língua viperina, quem julgais que foi o conquistador deste reino, e o que decepou a cabeça deste gigante, e vos fez a vós marquês (que tudo isso o dou eu já como feito e processo findo), se não é o valor de Dulcinéia fazendo de meu braço instrumento de suas façanhas? Ela peleja em mim; eu vivo e respiro nela, nela tenho vida e ser. (p. 179)

Dulcinéia é aqui apresentada, antecipando em duzentos anos a defesa que Kant faz da ‘coisa em si’, como condição de possibilidade da experiência-, e não apenas das experiências já sucedidas, mas daquelas que necessária e indiscutivelmente poderão suceder, como a conquista do reino e do título de marquês para Sancho.

Como condição de possibilidade da experiência cavaleiresca de mundo em sua universal necessidade, Dulcinéia nunca fará, ela mesma, parte da experiência de dom Quixote. Dela, ele pode formar uma idéia, mas não a poderá ver, cheirar ou amar concretamente. Pode, contudo, por ela morrer de saudade, a ela pode dedicar suas vitórias etc. Para conservá-la nesta posição transcendental é preciso guardar uma certa distância e prudentemente evitar certos testes. Quando o argumento transcendental começa a perder a força diante de algumas experiências suspeitas, a lucidez retorna e dom Quixote adoece e morre.

Contudo, mesmo antes da desilusão final abater-se sobre o fidalgo Quijana, há algo no personagem e na escrita de Cervantes que faz do romance muito mais que a história engraçada de um louco simpático.

Dom Quixote não é apenas cuidadoso e metódico na construção e na manutenção de sua identidade. Ele é capaz de revelar uma extrema lucidez, trazendo à luz os processos envolvidos.

Tomemos como exemplo algumas palavras acerca de Dulcinéia; o primeiro trecho pertence a um diálogo com Sancho:

Assim, Sancho, para o que eu quero a Dulcinéia dei Toboso, tanto vale ela como a mais alta princesa do mundo. Olha que nem todos os poetas que louvam damas debaixo de um nome que eles arbitrariamente lhes

86

Page 79: A Invencao Do Psicologico

põem as têm na realidade. Pensa tu que as Amarilis, as Fílis, as Sílvias, as Dianas, as Galatéias, e outras quejandas de que andam cheios os livros, os romances, as lojas de barbeiros, os teatros de comédias, foram realmente damas de carne e osso, e pertencem àqueles que as celebram e celebraram? Decerto que não. As mais belas inventaram-nas eles para assunto dos seus versos, e para que os tenham por enamorados, e homens de valia por serem. Segundo isso, basta-me também a mim pensar e crer que a boa da Aldonça Lourenço é formosa e honesta. Lá a sua linhagem importa pouco; não hão de ir tirar-lhe as inquirições para dar-lhe algum hábito; para mim faço de conta que é a mais alta princesa do mundo. Porque hás de saber, Sancho, se o não sabes, que há duas coisas só que mais que todas as outras incitam a amar: são a formosura e a boa fama; e ambas estas coisas são em Dulcinéia extremadas, porque em lindeza nenhuma a iguala, e em boa nomeada poucas lhe chegam; e para acabar com isto, imagino eu que tudo que te digo é assim, sem um til de mais nem menos; pinto-a na fantasia como a desejo assim nas graças como no respeito... (p. 145)

E quando a duquesa argumenta que no primeiro livro ficava claro que dom Quixote nunca havia visto Dulcinéia, que ela era dama fantástica, gerada no entendimento dele e pintada com as perfeições que ele nela desejava, ele retruca:

Deus sabe se há ou não Dulcinéia no mundo, ou se é fantástica ou não; nem são coisas em cuja averiguação se leve até o fim. Nem eu gerei a minha dama, ainda que a considere como dama que em si contém todos os predicados que a podem distinguir entre as outras, a saber: formosa sem senão, grave sem soberba, amorosa com honestidade, agradecida, cortês e bem criada e finalmente de alta linhagem, (p. 443)

Ora, a revelação destes procedimentos constitutivos de Dulcinéia e a elucidação do seu status de ‘idéia reguladora’ são, em outras palavras, a exposição hilariante da raiz demasiadamente humana deste universo sublime de representações de si e do mundo em que dom Quixote vive. Nesta medida, a novela de Cervantes vai muito além da ridicularização da literatura cavaleiresca e de seus leitores ingênuos ou am alucados. C ervantes faz a crítica an tecipada de todas as sublimidades da vida civilizada e das suas representações e já denuncia a origem e a d in âm ica ‘p s ic o ló g ic a s ’ de todas as su p o stas transcendências m obilizadas para garantir e defender o reino das

/

Page 80: A Invencao Do Psicologico

representações. De fato, como veremos, os modelos cavaleirescos foram deixados de lado, mas os procedim entos constitutivos de identidades imaginárias em grande medida perduram. O que vamos assistir, porém, é o radical esquecimento daquilo que gera e conserva as representações na sua aparente autonomia.

Já não há mais razões hoje em dia para continuarmos rindo de Amadis de Gaula, de seus leitores e imitadores. A graça do Quixote, contudo, permanece, porque ainda há muito que rir dos homens da corte de Luís XIV, dos heróis de Racine, de Descartes e de Kant, e de toda uma maneira de pensar e fazer psicologia que se desenvolveu a partir desta tradição.

Imagens da civilização

Dois personagens fictícios e de grande impacto na história ocidental vieram à luz no século XVII: os sujeitos purificados do conhecimento e da paixão. Tanto o sujeito epistêmico como o sujeito ético-passional foram gerados através de operações de cisão e expurgo; ambos constituíram-se em processos de ascese.

O sujeito epistêmico é uma criação do ‘método científico’, tanto na sua versão baconiana como na cartesiana. Em que pesem as profundas diferenças entre o empirismo de Francis Bacon (1561-1626) e o racionalismo de René Descartes (1596-1650), em ambos os projetos epistemológicos a meta é uma ‘cura da mente’, o que implica a cisão da subjetividade: de um lado, a subjetividade confiável, regular, porque sempre idêntica a si mesma, e comunicativa, porque sempre a mesma em todos os homens; de outro, a subjetividade suspeita, volúvel, inconstante, imprevisível, diferente e, em última análise, isolada e privatizada.

O método, seja o da observação pura, precedida pela denúncia e superação dos “ídolos do conhecimento”, seja o da intuição das idéias claras e distintas, preparada e conduzida pela dúvida metódica, é o que deveria garantir a cisão; mais que isso, deveria garantir a autonomia e dominância do idêntico sobre o diferente, do genérico sobre o particular, do com unicável sobre o privado. Só assim teríam os plenam ente constituído o sujeito epistêmico como condição das representações verdadeiras do mundo.

Page 81: A Invencao Do Psicologico

O que deveria ser excluído é o sujeito enquanto fonte de variação, fonte de opiniões, tendências, viéses, desejos, movimentos passionais e instintivos etc. Toda a confiança moderna nas crenças científicas, à falta de um vínculo com as tradições e de um a obed iência às autoridades, viria, desde então, repousar na autonomia deste sujeito epistêmico e na eficácia dos procedimentos constitutivos. A medida, porém, que estes procedimentos se estabilizam e tece-se com eles uma rotina metodológica, eles tendem a perder a dimensão instrumental e fica ressaltada a sua natureza ritualística e sacrifical: esquecidas suas condições e seus limites, o método tende ao formalismo e, muitas vezes, vai im portar menos o conhecim ento supostam ente objetivo que propicia do que o sacrifício imposto à subjetividade particular, privada e variável.

Nestes momentos, em que o método é convertido em fetiche, fica mais clara a dupla face da exclusão que promove: ao mesmo tempo que constitui o reino de uma identidade ficcional - o sujeito do conhecim ento purificado consagra o reino das experiências subjetivas, idiossincráticas, variáveis e ilusórias. Este reino, todavia, é tanto consagrado como desqualificado: não só não é confiável como suporte de uma atividade cognitiva - já que não pode ser o espelho plano e homogêneo da natureza4 - , como também não presta como objeto do conhecimento, pois carece de ordem e da regularidade pressuposta pelas ciências exatas e naturais. Mais vale esquecer este reino, deixá-lo aos poetas, artistas e músicos. Mas será que eles o querem?

Se lançarmos os olhos para o que produzem e para o que teorizam poetas e músicos da época, veremos que não.5 É claro que a eles cabe a imitação (representação) e a excitação (controlada) das paixões. No entanto, as paixões representadas, por exemplo, pelos heróis de Racine (1639-1699) são tudo, menos inconstantes, variáveis e arbitrárias. O sujeito ético-passional da tragédia francesa é, ele também, uma ficção: ele representa a paixão purificada, desligada, refinada, sublimada, operando poderosa e incontestavelmente. São paixões idênticas a si mesmas e universais. O sujeito trágico goza de completa imunidade contra tudo o que, vindo do corpo ou das fraquezas da alma, possa amesquinhar ou desviar a marcha da ação passional. A arte poética da tragédia francesa, definindo as regras do estilo elevado e superando

89

Page 82: A Invencao Do Psicologico

n a im itação seus p ró p rio s m o d elo s an tigos, o p e ra um a c isão e um

ex p u rg o sem elhan te ao que v im os o m étodo c ien tíf ico op eran d o na co n stitu ição da iden tidade do conhecedor.

A es té tica m usical, igualm en te , av an ça n essa ép o ca nos passos d a razão g a lila ico -cartesiana .6 D ando con tin u id ad e a um m ov im en to p u rific a d o r e in te lec tu a lis ta in ic iad o no sécu lo XVI - que tev e em V incenzo G alilei um dos seus m aio res expoen tes (cf. cap . 1) e resu ltou

na co n so lid ação do ‘estilo rep resen ta tiv o ’ - , a ‘m ú s ica ca rte s ian a ’ vai

se ca rac te riza r pela o rdenação m atem ática do u n iverso sonoro , pe la

o rd en ação m atem ática dos m ov im en tos pass iona is e, a inda, o que é o d ec is iv o , pe la p ro cu ra ou p o s tu lação de c o rre sp o n d ên c ia s en tre as duas séries. A ‘teo ria dos a fe to s’, que dom in o u a p ro d u ção m usica l no sécu lo XVII e parle do sécu lo XVIII, p re tendeu ser, e fe tiv am en te , u m a c iênc ia experim en ta l e racional da m úsica , e resu ltou , inc lusive ,

num a ta re fa tecno lóg ica : a da con stru ção de in s tru m en to s m u sica is

m atem aticam en te conceb idos e perfe ito s e da cod ificação das técn icas d a execução vocal e instrum ental.

Ora, as paixões que se prestam a este gênero de conhecimento e a este nível de imitação e de evocação já não se parecem em nada às paixões que perturbam e obstruem a m archa da razão ou que comprometem os sistemas representacionais. São paixões expurgadas de seu potencial mais am eaçador, são paixões essencialm ente representáveis.

Na verdade, os procedimentos de exclusão, seja nos campos da ciência como no das artes, constituem as identidades imaginárias do conhecedor ou do homem ético-apaixonado, na exata medida em que forçam o esquecim ento de tudo que possa denunciar a natureza artificial destas subjetividades; em última análise ficava de fora, irrepresentável, o corpo humano nos seus usos e funções, nos seus automatismos e na sua impulsividade e, ainda, a alma e seus caprichos, suas ambigüidades, suas caraminholas e invencionices. Ficava de fora, enfim, o ‘natural’ pré-civilizado, ao mesmo tempo que se passava a acreditar que a ‘verdadeira natureza humana’ só podia se realizar e dar a conhecer no campo da vida civilizada e sob a forma de representações claras e distintas. Aliás, não só a natureza humana, mas toda a natureza ficava assim subm etida ao representacional, e o jardim francês,

90

Page 83: A Invencao Do Psicologico

geometricamente desenhado, seria, nesta ótica, uma manifestação da natureza mais ‘natural’ do que uma floresta virgem.

Não por acaso, a sensibilidade literária, artística e filosófica da época repudiava as obras de Cervantes, Rabelais ou Shakespeare, vendo nelas apenas mau gosto e indecência. São obras que têm o inconveniente de nos fazer lembrar o que deve ser esquecido, o que se, por acaso, aparece por debaixo das máscaras merece apenas a condenação moralizante e uma acusação de hipocrisia, como nas comédias de Molière, sem que jam ais a natureza fictícia de todas as identidades, inclusive a dos acusadores, pudesse ser revelada.

Auerbach (1971; p. 335) aproxima a poesia trágica francesa do ambiente laboratorial. Diz ele:

Dentro desta sublimidade segregadora e isolante, os príncipes e princesas trágicos entregam-se às suas paixões. Somente as considerações mais importantes, livradas da confusão do cotidiano, purificadas do cheiro e do gosto do cotidiano penetram em suas almas que, desta forma, estão livres para as maiores e mais fortes emoções. O poderoso efeito das paixões nas obras de Racine, e já de Corneille, baseia-se, em boa parte, no isolamento atmosférico do acontecimento, tal como acabamos de descrevê-lo; é comparável à preparação isolante das condições propícias, tal como é usual na realização das modernas experiências.

Parece claro que a teoria do conhecimento científico, a poesia trágica do classicismo francês e a teoria matemática da música ajudam a construir e habitam os espaços do laboratório com suas análises e combinações sob medida, aplicadas a objetos puros em condições ideais.

A vida, porém, tende a misturar o que os laboratórios separam: mistura a razão às paixões e ambas aos poderes do corpo e às fraquezas do espírito. Isto é o que ocorre a menos que fortes, penetrantes e abrangentes dispositivos socioculturais ordenem a vida segundo os mesmos modelos já identificados no pensamento epistemológico e estético. Exemplos de dispositivos desta natureza foram as artes práticas da etiqueta cortês e da oratória religiosa.

Norbert Elias (1985) descreveu o processo histórico que levou à form ação das grandes cortes européias ao mesmo tempo em que limitava a autonomia das casas senhoriais e cortes de província.7 Foi

91

Page 84: A Invencao Do Psicologico

este o movimento fundador dos Estados Nacionais, que pôs cobro ao excesso de conflitos políticos e religiosos que marcaram o século XVI e parte do XVíI e deu início à unidade cultural e administrativa dos países. Os nobres de tradição foram sendo trazidos para a tutela do rei e uma nova nobreza ia sendo criada sob a orientação e a serviço da casa real. O exemplo paradigmático era Versailles nos tempos de Luís XIV (1643-1715; assumiu o trono em 1661).

Nessa vida cortês, a dependência quase absoluta da nobreza em relação à vontade do rei, que manejava habilmente na formação e na administração dos conflitos, engendrou uma hierarquia sutilíssima e altamente diferenciada. Nela, a posição de cada um não dependia apenas do nascimento e da tradição, mas de fatores conjunturais.

Elias descreve como se deu a ritualização laicizada de todas as relações corteses, resultando no império da etiqueta, a que o próprio rei devia se curvar. A etiqueta era, conforme a apreciação de Elias, um sistema de auto-apresentação da corte, um dispositivo representacional mediante o qual se construíam as identidades através de trocas altam ente codificadas de gestos, falas e o lhares, m odos de se apresentar e interagir. O domínio das regras de convivência, a habilidade em transmitir e decifrar mensagens tornaram-se essenciais para garantir e manter o sucesso na corte para toda a nobreza ociosa e parasitária. A vida cortês transformou-se aos poucos num grande espetáculo no que se exibiam e defrontavam identidades claras e distintas.

O que Elias explora em profundidade são as conseqüências sociopsicológicas do regime em termos de incremento na capacidade de contenção dos impulsos, modelação de condutas, autodomínio, auto-observação e observação dos outros. O nobre, com o rei em primeiro lugar, deve ser um exímio manipulador de aparências e um arguto ‘psicólogo’ para transpor as dissimulações alheias. A vida na corte ensina um certo jeito de ‘fazer psicologia’: a observação atenta dos indivíduos atuando nos jogos da etiqueta propicia o conhecimento sistem ático, científico-m oralizante, dos homens. D isso nos dão testemunho as caracterologias elaboradas, por exemplo, por La Bruyère (1645-1696) e por La Fontaine (1621 -1695).

Segundo a lógica da etiqueta, os maiores pecados sociais seriam a perda do autocontrole e a revelação da ‘carne’ por debaixo da máscara. Auerbach, por exemplo, mostra que a dignidade exige que se

92

Page 85: A Invencao Do Psicologico

escondam ao máximo as funções e as atividades profissionais. Caso contrário, o cortesão e o burguês honesto perm itiriam a invasão (humilhante) do seu espaço representacional pelo reino da privacidade, da particularidade, da espontaneidade e da necessidade. Era como perder o domínio dos recursos expressivos civilizados, na sua pretensa universalidade - o francês era, aliás, a língua da civilização em todas as cortes européias, e a sua pureza era resguardada pela Academia, recentemente fundada com este propósito - , passando a exibir a face sem p o lim en to dos b ru tos, dos bárbaros ou das c rian ças . O ‘esquecimento’ eficaz do que se dava para além ou para aquém da representação era a primeira obrigação social do indivíduo bem- sucedido, cuja principal virtude era a capacidade de sentir vergonha.

Talvez porque este esquecimento não possa ser completo, salvo nas condições quase laboratoriais de uma corte - e mesmo aí é duvidoso que o seja - , era necessário reforçá-lo pelo escárnio aos que se deixavam apanhar na condição de hipócritas. Nisso reside a função conservadora da comédia de Molière: tornavam a vergonha de alguns um incentivo à representação bem-sucedida de todos. Convinha, ainda, uma ajuda na ordenação da vida pública e privada; nessa direção militavam os grandes oradores sacros, que em alguns casos se tornaram as estrelas da época. Assistiam-se aos sermões como se assistem aos grandes eventos e espetáculos culturais, artísticos e políticos.

A figura do pregador não é uma novidade ou um privilégio do século XVII. No entanto, o prestígio dos pregadores nesse período da vida européia tinha algo de especial. Entre eles haviam alguns portugueses, e a análise que se segue focaliza a obra de um deles: o padre jesuíta Antônio Vieira (1608-1677).

Seria bom principiar opondo a pregação à confissão como duas modalidades dc produção da subjetividade. Na confissão, fala o crente no espaço privado do confessionário acerca do que não pode ser falado em público, do que não pode nem deve ser incorporado às suas representações sociais. Na confissão, sussurra-se, articula-se mal, duvida-se, pede-se socorro e perdão. O confessor ouve, orienta e, principalmente, absolve da culpa. No sermão, fala o pregador no espaço público acerca do que pode e precisa ser falado em público para que cada fiel, em tese, sinta nessa fala alusões oblíquas à sua intimidade. O sermão deve dirigir o olhar de cada um para dentro a partir do mundo

93

Page 86: A Invencao Do Psicologico

das representações. Nas palavras do padre V ieira, proferidas no merecidamente célebre Sermão da sexagésima ([1655] 1987), a que voltarei várias vezes, define-se a conversão como o objetivo da oratória sacra: “Que cousa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro de si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho...” (p. 98 - grifo meu).

O objetivo deste espelhamento é fazer com que os homens caiam em si a partir do reflexo que encontram nos outros, no caso, nas palavras do pregador. Num a outra passagem , adm oestando os pregadores que se tornam excessivamente visíveis, perdendo a função espelhante que lhes cabe, diz Vieira:

Semeadores do Evangelho eis aqui o que devemos pretender de nossos sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si: não que lhes pareçam muito bem os nossos conceitos; mas que lhes pareçam mal os seus costumes; as suas vidas, os seus pecados, (p. 123)

Trata-se de arrependimento, mas, aparentemente, não se trata de culpa, mas de vergonha.8 O pregador ensina a cada um envergonhar- se de si para consigo para que não se vá depois envergonhar diante dos outros. A pregação, muito mais que a confissão, parece a forma adequada de auxiliar na produção de identidades que se constituem e procuram se esgotar na coincidência com uma imagem.

A questão da representação não está presente apenas na função de espelho atribuída ao pregador e na incorporação da vergonha íntima entre as habilidades do fiel. O manejo das representações é o recurso básico do bom pregador. É na exploração deste aspecto da arte retórica que o Sermão da sexagésima mais nos pode valer. Trata-se de um sermão acerca de como se pode e deve escrever e ‘interpretar’ (no sen tido m usical ou teatral da palavra) um bom serm ão: é um metassermão.

O pregador talentoso tem como tarefa ensinar, emocionar e fascinar sua platéia de forma a conduzi-la ao arrependimento pela vergonha.

O ensinar implica o uso adequado de palavras claras e distintas na análise e subdivisão racional dos assuntos, na argum entação cerrada e nas conclusões lógicas e convincentes:

94

Page 87: A Invencao Do Psicologico

Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. (p. 107)

Há de tomar o pregador uma só matéria: há de defini-la: para que se conheça; há de dividi-la: para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com a causa, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir; com os inconvenientes que se deve ev itar: há de responder às dúvidas, há de sa tisfazer as dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência os argumentos contrários; e depois disto há que colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar, (p. 110)

No que tange à emoção, é preciso despertá-la de forma intensa e controlada, e esta é tarefa para imagens e não para simples palavras. As obras que devem acompanhar as palavras são mais fortes que estas porque são visíveis; as palavras para emocionar devem deixar de ser apenas audíveis e fazer ver: “...a relação do pregador entrava pelos ouvidos: a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem Padres Pregadores por que fazem pouco abalo nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos” (p. 104).

Finalmente, o pregador deve saber se apresentar, saber ler e interpretar, deve ter estilo.

Ora, os recursos representacionais ameaçam a todo momento ganhar uma grande autonomia diante da finalidade, que seria, como se viu, a de conduzir a audiência ao arrependimento pela vergonha. O padre Vieira escreveu em parte o Sermão da sexagésima exatamente para condenar a excessiva teatralização da pregação que, ao que parece e é bastante compreensível, era uma forte tendência na oratória sacra da época. Não sei o quanto o padre V ieira foi bem -sucedido na distinção que propunha entre o sermão verdadeiramente religioso e o sermão teatral e, segundo ele, quase farsesco. O fato, porém, é que os próprios sermões de Vieira podem ser ainda hoje lidos e apreciados como exemplos m agistrais da arte da representação sem que nos sintamos movidos na direção de qualquer arrependimento. É mais do que provável que fosse o caráter espetacular dos serm ões deste período que levasse multidões às igrejas, gerando disputas e filas para

95

Page 88: A Invencao Do Psicologico

a ocupação dos melhores lugares e não qualquer tendência masoquista de uma audiência supostamente ávida de conselhos e admoestações.

Subterrâneos da civilização

O caráter fictício, artificial, e ao mesmo tempo necessário da vida civilizada esteve no foco da filosofia política de Thomas Hobbes (1588- 1679). Porém , ao defender o m undo das represen tações e das identidades ficcionais, Hobbes aponta para o que existe por detrás da civilização: uma natureza tão intolerável quanto indispensável e preciosa.

Como se sabe, Hobbes no Leviatã (1651) faz uma defesa da civilidade em que, na rigorosa explicitação de argumentos convincentes, ele se torna antipático e indiscreto. Indiscreto porque expõe sem d isfa rce s a se lv ag eria natu ral do hom em , seu ego ísm o, sua destrutividade, a vontade de poder e seus excessos. Antipático, naturalmente, porque esta não é uma imagem lisonjeira para ninguém. Não espanta que Hobbes pudesse incomodar seus contemporâneos.

E a se lv ag eria que im põe a todos, por um a q u estão de sobrevivência, o estabelecimento de um contrato básico pelo qual cada um ren u n cia a de term inados im pulsos e poderes e tran sfe re determinados direitos aos representantes dos interesses de todos: o soberano.'' O soberano, na qualidade de representante, legisla, executa e se defende de qualquer contestação à sua soberania como forma de defender e garantir a coesão social, a paz entre os homens e as condições mínimas e básicas para que cada um sobreviva e persiga seus interesses particulares.

De fato, mesmo depois de os homens terem, mediante o ‘contrato social’, se constituído como súditos, instituindo um só como soberano, superando assim o estado de guerra que reina na natureza, permanece o núcleo selvagem e impulsivo gerando uma duplicidade íntima: o soberano e seus súditos - enquanto tais - agem estritamente no campo da civilização e segundo a lógica da representação, mas continuam abrigando em si suas pessoas naturais, prontas para agir enquanto forças da natureza.

É claro que esta natureza comporta ingredientes disruptivos e dissolventes e é contra ela, exatamente, que a civilidade deve ser

96

Page 89: A Invencao Do Psicologico

exercida; é ela que justifica e dá caráter de necessidade ao mundo das identidades fictícias do soberano e dos súditos. No entanto, sem os impulsos, sem os apetites, sem as aversões, sem a esperança e sem os medos os homens seriam ingovernáveis. As ferramentas de controle social dependem disso para serem eficazes.

A rigor, na ausência da natureza impulsiva do homem não haveria nada a governar, não haveria ação, não haveria pensamento, não haveria discurso. São os apetites e aversões que introduzem movimento e ordenr, são eles que põem para funcionar e organizam as faculdades cognitivas do homem. Na ausência de apetites e aversões, as idéias não se articulariam na formação do pensamento, as palavras não se organizariam na formação de discursos, a vida mental não se elevaria às formas da prudência e do cálculo racional.

Nesta medida, não seria possível nem seria desejável expulsar o reino natural de impulsos e desejos ou separar de forma radical a natureza da civilização, ou, em outras palavras, o domínio das forças do das representações. É preciso, contudo, regular, coibir os excessos e confinar a vida pulsional. Estas não são maneiras ascéticas de lidar com os poderes anti-representacionais, como víramos ocorrer na tragédia e na epistem ologia racionalista. Regulando, coibindo e confinando está se conservando algo. A civilidade, efetivamente, existe tanto como instrumento repressivo quanto como defesa do homem natural. As identidades fictícias dos súditos e do soberano, que ocupam e se m ovim entam nos espaços púb licos, garan tem a sobrevivência e dão perspectivas de desenvolvim ento aos seres naturais, que se recolhem ao campo da privacidade, dos interesses e negócios particulares, das opiniões pessoais, das associações ou sistemas privados, desde que legítimos.10

Hobbes incomoda mais pela sua indiscrição do que pelo, muitas vezes mal compreendido, autoritarismo. O incômodo não se deve, principalmente, ao fato de ele ter sido, supostamente, um defensor do Estado absolutista. Na verdade, ao separar tão nitidamente a pessoa artificiai da pessoa natural do soberano e exigir obediência absoluta apenas à prim eira, mas não à segunda, Hobbes coloca-se a uma considerável distância da filosofia social do Estado absolutista que, ao contrário, identificava estas duas dimensões do personagem real. No entanto, mesmo com preendendo mal a defesa hobbesiana da

97

Page 90: A Invencao Do Psicologico

‘soberania representativa absoluta’, não seria isto a fonte do mal-estar. Hobbes incomoda porque ele faz lembrar ao homem pretensamente civilizado o monstro que carrega consigo, a sua divisão interna, a sua natureza intolerável e querida, motor e justificativa do mundo das representações, mas que também é para este mundo uma constante ameaça e, secretamente, seu maior valor. Se o homem natural é ‘o lobo do homem’, a civilização não o transforma em cordeiro nem em lobo realmente domado: continuamos feras, prudentes apenas o bastante para escolher viver sob a tutela de um domador, no abrigo de nossas jaulas.

Se Hobbes expõe sem dissimulações o homem-lobo atocaiado nos espaços da privacidade, algo deste m esm o hom em vai se manifestar sublimada e disfarçadamente na leitura proto-romântica que circula nos ambientes corteses. Foi Norbert Elias (1985) que, no contexto do seu estudo sobre a vida na corte francesa, modelo das cortes européias, analisou a estilização da vida pastoril que encantava boa parte da nobreza no século XVII. No sexto capítulo, ‘Curialização e romantismo aristocrático’, Elias mostra como as capacidades que a corte desenvolve nos homens podem se voltar contra ela na forma de uma nostalgia de índole crítica ao mundo civilizado. Nestas fantasias, opõe-se o autêntico, sincero, humano e sim ples da natureza ao rebuscamento, fingimento e dissimulação do regime das representações civilizadas. Observa-se, em decorrência, a valorização da vida campestre e a voga da literatura pastoril, em que as velhas e idealizadas virtudes fidalgas - independência, rude sinceridade etc. - , que já não se podem encarnar no cortesão submisso ao rei e cativo das regras da etiqueta, ex p ressam -se pelas bocas e stiliz ad as de p asto res e pasto ras apaixonados. Nada mais distante desta visão bucólica da natureza do que o estado de guerra retratado por Hobbes. Este proto-romantismo sentimentalóide não tem nada, também, da virulência revolucionária do romantismo dos séculos XVIII e XIX. Não obstante, também nele transparece algo daquilo que a vida civilizada ambiguamente defende e condena ao esquecimento.

P odem os, a inda, su rp reen d er o hom em pré ou an ti- representacional numa forma de religiosidade que obteve um razoável sucesso na corte e que operava em rigorosa oposição à religiosidade

98

Page 91: A Invencao Do Psicologico

dos pregadores, em especial à dos pregadores jesuítas, como o já citado padre Antônio Vieira. Trata-se do jansenismo.

Cornélio Jansen (1585-1638), teólogo flamengo, desenvolveu, em oposição à interpretação oficial do catolicismo (oriunda do Concílio de Trento), idéias freqüentem ente condenadas como heréticas e ‘protestantes’. A principal querela dizia respeito ao peso da vontade humana versus o da fé e o da graça divina na salvação das almas. Jansen tinha do homem uma visão muito sombria e pessimista e, contrariando principalmente os jesuítas, reduzia ao mínimo o peso da vontade e de seus rebentos: o discurso racional, a retórica, o método. Acentuava, ao contrário, a fragilidade e a dependência, a submissão e a entrega absoluta diante de Deus, a esperança na graça.

Q uando o jansenism o chegou à França, conduzido por um agostiniano designado como Saint-Cyran, conquistou a abadia de Port- Royal, em torno da qual se constituiu uma pequena comunidade de nobres que - praticamente ao lado da corte - condenavam a vida cortês e se dedicavam à oração, à meditação, ao estudo, à vida simples e pura do autêntico cristianismo. Se os pregadores apelavam para a experiência da vergonha e ensinavam a vergonha de si, os jansenistas enfatizam a culpa; culpa que, de tão grave e sem remissão humanamente possível, dependia exclusivamente da graça divina para obter o perdão. Os jansenistas, neste século em que a vida civilizada se impunha em todos os terrenos, subsistiram como o ‘recalcado da corte’ e foram finalmente condenados e dissolvidos. Antes disso, contudo, juntou-se a eles uma das mais notáveis personalidades do tempo: o físico e matemático Biaise Pascal.

Pascal (1623-1662) é um homem dividido. Nisto ele não se diferencia de nenhum outro. No entanto, ele se torna um caso mais interessante e surpreendente quando faz da divisão um dos seus principais temas de reflexão. Este tema é retomado e explorado de diversos ângulos: o da guerra entre espírito e corpo, ou entre instinto e experiência, ou, ainda, entre razão e paixões; o da duplicidade das vias do conhecimento: o espírito geométrico versus o espírito d efinesse; o da variedade das tendências e qualidades de cada homem, o da sua inconstância etc.

O resultado é uma idéia de homem como quimera, como monstro, com o feixe de con trad ições. D aí resu lta , do m esm o m odo, a

99

Page 92: A Invencao Do Psicologico

impossibilidade de representar o homem em uma imagem única que o identifique.

É preciso, inclusive, suspeitar de todas as identidades que o homem toma para si e mostra aos outros. Por detrás dessas imagens, Pascal encontra, apenas, ‘amor-próprio’, interesses e uma profunda aversão à verdade." E o que cie afirma, de maneira lapidar:

O homem não é, portanto, senão disfarce, mentira e hipocrisia consigo mesmo e para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade. Evita dizê-la aos outros. E todas estas atitudes, tão afastadas da justiça, têm uma raiz natural no seu coração. ([1670] 1978; p. 56)

E, ainda, sob o título:

O eu é odioso:(...) Numa palavra, o eu tem duas qualidades: 6 injusto, pois se faz o centro de tudo; e é incômodo aos outros, porque os quer subjugar. Porque cada eu é inimigo e quer ser o tirano de todos os outros, (p. 186)

Esta violência contra o ‘eu’ e a desmistificação de toda identidade não excluem a exaltação do que o homem pode ter de sublime, de racional, de elevado; apenas contribuem para a insistência pascaliana nas incongruências e contradições do homem consigo mesmo. A própria valorização do coração - “que tem razões que a razão desconhece” (p. 121)-, como via única de conhecimento de Deus, não implica a renúncia ou a desvalorização da razão. Trata-se sempre de acentuar a divisão dos campos, os limites de cada um, as oposições en tre e les, m uito p a rticu la rm en te a im p o ss ib ilid ad e de um a representação clara e distinta de uma suposta identidade individual.

As meditações de Pascal, ao contrário de suas obras científicas e matemáticas, permaneceram no estado de fragmento. Creio que o fragmento, esta escrita imprevisível, surpreendente e guerrilheira, era a melhor via para que o ‘recalcado da corte’ pudesse atravessar e emergir dos sistemas reprcsentacionais dominantes.

A dupla filiação da psicologia

A inda está longe do século XVII o m om ento em que, já razoavelm ente constituído, o espaço psicológico com eçará a ser

100

Page 93: A Invencao Do Psicologico

ocupado pelos diversos projetos de psicologia, como área específica de conhecimento e de práticas sui generis. Ainda assim, já é possível vislumbrar a dupla filiação das psicologias contemporâneas.

Na tradição civ ilizada e civ ilizatória , vamos encon trar as psicologias que se levam a sério como conhecimento objetivo dos caracteres, ou seja, das identidades substantivadas nos diversos ‘tipos psicológicos’; teremos, também, as psicologias que se voltam para o estudo analítico-funcional dos processos cognitivos (na esteira da moderna epistemologia) ou das paixões e demais ‘estados subjetivos’.

Em contraposição, as tradições de Erasmo, Montaigne (cf. cap. I), Rabelais, Shakespeare, Cervantes, e ainda de Hobbes e Pascal, entre outros, resu ltarão em projetos de psicologia concebidos como desvelamento de ilusões, como genealogias de identidades civilizadas, como desconstrução das identidades fictícias.

Ao contrário das primeiras, que reificam seus objetos, estas psicologias promovem uma certa dissolução do psicológico e nos rem etem às dim ensões biológica, política, re lig iosa e é tica da experiência.

São formas de fazer e pensar a psicologia que, mesmo quando assumem a gravidade das máximas de La Rochefoucauld (1613-1680), nos convidam a rir. Elas incomodam quando fazem lembrar. Nisto reside e deveria talvez se esgotar toda a sua pretensão à ‘verdade’.

101

Page 94: A Invencao Do Psicologico

Notas

1. Remeto o leitor interessado à obra de Binswanger (1977) que me serviu de referencial teórico na organização deste item.

2. As três datas referem-se, respectivamente, à da publicação original, à da edição em espanhol na qual li o texto, e à da edição brasileira de que me servi para as citações. Além da leitura de Cervantes, vali-me livremente das interpretações que Salvador de Madariaga (1961), E. Auerbach (1971) c A. Schütz (1983) propõem para a análise de aspectos notáveis da estrutura, do estilo e da representação/constituição da realidade no Quixote.

3. Acerca da ‘pose’ enquanto categoria da análise existencial de pacientes psicóticos, ver de Waelhens (1990) e, principalmente, H. Maldiney (1973 e 1991).

4. A expressão ‘espelho da natureza’ e análises similares acerca da constituição do ‘mental’ na filosofia moderna foram encontradas em Rorty (1979).

5. Para a redação deste parágrafo e para o desenvolvimento de algumas idéias centrais deste item, de muito me valeu o capítulo de Auerbach (1971) sobre os autores do classicismo francês e as análises de N. Elias (1985) sobre a arte na corte de Luís XIV...

6. O próprio Descartes na juventude redigiu um texto sobre música ( 1618) e o racionaiismo cartesiano foi referência obrigatória da teoria musical nesta época.

7. Além do livro de Elias, recomendo a leitura do texto de E. Auerbach ‘La cour et la ville’, em que o autor analisa especificamente as conseqüências do regime absolutista na composição, nos hábitos e no gosto do público teatral. Em acréscimo, podemos encontrar em Auerbach uma descrição do processo de elaboração dos modos civilizados franceses, desde antes da corte de Luís XIV, no salão de madame Rambouillet.

8. A distinção entre civilizações de culpa e civilizações de vergonha foi introduzida por antropólogos americanos, como R. Benedict, e retomada por E. R. Dodds (1988) em seu estudo sobre as diversas fases da cultura grega.

9. Antes de Hobbes, os jesuítas do século XVI já haviam chegado à mesma conclusão, com argumentos semelhantes, e dado à Companhia de Jesus sua estrutura monárquica (cf. cap. 1 ).

102

Page 95: A Invencao Do Psicologico

10. R. Kosellek (1972) é quem mais se detém na questão da articulação do público com o privado na filosofia de Hobbes. Voltarei a ele em próximo ensaio.

11. A denúncia do amor-próprio, da vaidade, do orgulho, dos interesses como verdadeiros ‘obstáculos epistemológicos’ para o conhecimento de si e dos outros e como fatores de dissimulação esteve também na alça da mira do duque de La Rochefoucauld.

103

Page 96: A Invencao Do Psicologico

A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS

É comum encontrarmos em autores que tratam da gênese da modernidade européia uma clara distinção entre o movimento iluminista, ou ilustração, e os movimentos românticos. Esta distinção costuma ser assinalada seja no plano das idéias sobre a natureza, o homem e o conhecimento, seja no plano dos valores, seja em termos das formas dominantes de subjetivação. E neste último sentido, por exemplo, que Simmel (1971) teoriza acerca das ‘duas revoluções individualistas’: a do individualismo ilustrado, em que se enfatizam a igualdade de direitos e a liberdade individual, e a do individualismo romântico, em que a ênfase recai na diferença qualitativa e na singularidade individual. Supõe-se, freqüentem ente, que tenha havido uma sign ifica tiva diferença quanto às épocas em que as duas tradições se tornaram dominantes, com o movimento romântico vindo a suceder claramente o iluminismo.

G. G usdorf está entre os autores que mais exploraram os confrontos e mais insistiram na oposição radical entre estes dois conjuntos de idéias e orientações axiológicas. No entanto, foi ele um dos que mais documentos coligiu e organizou para desfazer a crença, que também tinha sido sua, de uma mera sucessividade histórica entre os dois ideários.1 No volume de sua obra enciclopédica dedicada à história das idéias modernas, intitulado La nciissance de la conscience romantique au siècle cies lumières (1976), Gusdorf mostra como o século dos espíritos esclarecidos foi também o das almas sensíveis. N esta m edida, as duas revoluções ind iv idualistas foram m ais

105

Page 97: A Invencao Do Psicologico

sim ultâneas do que sucessivas. Em alguns ensaios deste livro indispensável, Gusdorf revela como algumas das personalidades mais notáveis da época parecem como que cindidas entre o iluminismo e um rom antism o avant la lettre. E stas fo rm as com plexas e aparen tem ente contrad itó rias de subjetivação , porém , não são suficientes para Gusdorf abandonar de vez o discurso dicotômico (e fortemente inclinado para a posição romântica).

Foi com a leitura de uma tese no campo da filosofia política elaborada pelo sociólogo alemão Reinhardt Koselleck (1972) que encontrei algumas boas pistas para a compreensão das relações entre ilu stração e rom antism o e dos p rocessos de co n stitu ição da subjetividade moderna no século XVIII. No presente ensaio tratarei de seguir estas pistas e o texto poderá ser lido como uma longa resenha e glosa da tese alemã.2

O público e o privado: raízes de uma cisão

Os movimentos de reforma e contra-reforma e a efervescência política e cultural dos fins do renascimento geraram um estado de instabilidade social caracterizada pela eclosão de uma série de ‘guerras de consciência’. Sem desprezar os m otivos e condicionam entos econômicos, o fato é que partidos, facções, igrejas, seitas e bandos se organizavam e com batiam na defesa consciente de convicções religiosas e éticas. Na verdade, o adensamento do ‘foro íntim o’, conseqüente à dissolução das antigas crenças e lealdades e à expansão dos espaços da liberdade individual e a adesão reativa, muitas vezes fanatizada, às ‘razões de consciência’ resultaram , num prim eiro momento, numa condição anômica e ameaçadora (cf. cap. I).3 A lenta, mas firm e, elaboração das teorias (M aquiavel e B odin) e dos dispositivos do Estado absolutista responde à demanda de ordem e coesão social emergente do caos das lutas políticas e religiosas. Os monarcas conquistaram progressivamente o monopólio da força e terminaram por obter - ou extorquir - de seus súditos, ou da maioria deles, uma obediência mais ou menos consentida.

O ra, esse co n sen tim en to p ressu p u n h a a re so lu ção das contradições eventuais entre os im perativos de uma consciência

106

Page 98: A Invencao Do Psicologico

individual relativamente amadurecida e as exigências de uma cega obediência à autoridade. O súdito estava submetido a dois regimes inconciliáveis de culpabilização: ou podia se tornar culpado diante do rei, quando aderia às razões interiores; ou diante de si mesmo, quando se curvava às razões de Estado. A resolução desta contradição encontrou sua forma típica na crescente cisão entre as esferas da privacidade particular e as da publicidade comum.

No campo da privacidade - o dos negócios particulares, o das relações e atividades domésticas e familiares e, em especial, o das convicções éticas e religiosas - há uma garantia de liberdade sob um regime de tolerância moderada e vigiada. No campo público, o das ações políticas, imperam a ordem absolutista e a obediência ao soberano.

Thomas Hobbes (1588-1679) é o grande teórico desta separação entre o ‘interno’ e o ‘externo’, entre os domínios da consciência e das opiniões e os domínios da ação. “Assim o homem em Hobbes se desdobra em dois, vem dividido numa metade privada e numa metade pública: as ações e as obras são incondicionalmente subordinadas às leis do Estado, as opiniões, ao contrário, são livres ‘em segredo’.” (Koselleck, 1972; p. 37)

Nesta condição, porém, o próprio campo da consciência era atravessado por uma contradição interna: era o campo da liberdade, vale dizer, das possibilidades, da pujança, mas era, também, o campo da privação; como diz Koselleck, “... os juízos privados são privados de efeito po lítico” . Há nesta dupla e contraditória valoração da privacidade/privação um germe do desenvolvimento subseqüente da filosofia política e de todo o movimento cultural que marcou o século XVIII na Europa.

A trajetória da cultura ocidental setecentista, em que dominou sem exclusividade o que se entende corriqueiramente como iluminismo, passa pela consolidação da autonomia relativa das duas esferas, pelo fortalecimento da esfera da privacidade em todas as dimensões da vida social e pelas variadas formas de ‘exteriorização’ do privado. A conquista dos espaços e meios de publicidade por parte daquilo que estava privado dos meios legítimos de representação e expressão ganhará contornos mais ou m enos disruptivos dependendo das

107

Page 99: A Invencao Do Psicologico

c o n ju n tu ras p o líticas e so c ia is em que se p ro cessav a o desenvolvimento cultural. De todos os modos, tanto a articulação de ideário iluminista como a longa gestação do pensamento romântico são diferentes versões do mésmo processo de constituição da subjetividade moderna através das lutas e acomodações entre as esferas públicas e privadas.

A consolidação da privacidade

A separação diplomática entre as duas esferas em Hobbes não impede que subjaza a esta solução de compromisso um potencial de conflitos e que, em última instância, sob o domínio do medo, a opção prudente deva ser pela ordem pública e pela obediência, em detrimento da liberdade de opinião, que pode ser mantida apenas ‘em segredo’. A civilidade hobbesiana (cf. cap. 2) é um dispositivo indispensável para o assujeitamento do indivíduo natural, mecanismo a ser preservado sem qualquer hesitação, ainda que - ou principalmente porque - trate-se de uma defesa que finalmente assegura as condições de sobrevivência àquele mesmo indivíduo. Da mesma forma, a obediência à autoridade deve prevalecer, se necessário pela força, sobre a liberdade de opinião, mesmo que ao fim e ao cabo a meta seja a de assegurar aos indivíduos o espaço privado de liberdade.

A R evolução Burguesa de 1638 na Inglaterra, criando as condições para uma monarquia constitucional e assegurando às classes produtoras emergentes instrumentos de poder, permitiu ou não exigiu que a ordenação político-juríd ica da nação se desse através da concentração do poder real como a verificada, por exemplo, no Estado ab so lu tis ta francês du ran te o longo re inado de L u ís X IV . Paradoxalmente, foi no seu próprio país que Hobbes parecia ter sido mais rapidamente superado pela história.

A filosofia política de J. Locke (1632-1704) responde a uma situação histórica na qual, aparentemente, os conflitos entre natureza e c iv ilid ad e podiam desaparecer, dando lugar a um a suposta complementaridade e harmonia. O Estado civil para Locke não se contrapõe a um Estado natural de guerras e violências desordenadas, comandadas pelo egoísmo irracional e selvagem. Em Locke a natureza

108

Page 100: A Invencao Do Psicologico

é ‘naturalmente’ racional e o egoísmo é um princípio de racionalidade e promotor da vida social. O Estado é concebido como uma garantia das leis, dos deveres e, principalmente, dos direitos naturais de cada indivíduo, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade.

O que estava mais ou menos implícito em Hobbes, ou seja, o fato de que a civilidade defende a natureza contra seus excessos (e para Hobbes a natureza é ‘naturalmente’ excessiva), ainda quando parece apenas combatê-la, está explicitado em Locke. A principal e quase exclusiva função do Estado constitucional será a de preservar as leis e direitos naturais. Nesta medida, a principal tarefa da ordem pública e jurídica será a de garantir os espaços da privacidade (nos negócios, na família etc.). Onde quer que se insinue um conflito, ele deve ser resolvido a favor da liberdade e da privacidade e é, portanto, necessário dar a elas os instrumentos de uma democracia liberal. Tais instrumentos terão com o função conter dentro de lim ites m uito estre itos as intervenções do Estado e a penetração da ordem pública no campo dos assuntos particulares. Esta é a fórm ula básica do liberalism o clássico: a limitação dos poderes do Estado.

Locke inaugura o iluminismo entendido aqui como o movimento otimista que deliberadamente traz à luz o que sob o Estado absolutista ficara privado dos meios representacionais e expressivos, mas que fi­cara, ao mesmo tempo, relativamente protegido do controle estatal. O iluminismo lança uma luz benévola sobre os avessos da representa­ção. Nesta acepção ampla, pertencem certamente ao pensamento ilus­trado todas as ousadias filosóficas, científicas, literárias e políticas vol­tadas para a exploração destes avessos mediante procedimentos em­píricos e racionais. No entanto, as florescências dos chamados pré- romantismos também brotam no mesmo terreno das experiências pri­vadas e, até então, privadas dos meios expressivos. E isso que torna certos autores do período, como Rousseau, de difícil classificação nos termos em que tradicionalmente se coloca a oposição entre iluminismo e romantismo. De acordo com a nossa compreensão de uma base co­mum a iluminislas e românticos, figuras como Rousseau saem da mar­ginalidade para se converterem no que de mais representativo o sécu­lo XVIII nos legou. Os motivos do esclarecimento e os da expressão autêntica reúnem-se na crítica às representações convencionais tanto

109

Page 101: A Invencao Do Psicologico

nas suas propostas políticas (uma forma de democracia direta), como nas pedagógicas (a educação pela experiência viva), como nos escri­tos autobiográficos (as confissões).

A descendência em linha reta de Locke na própria Inglaterra, como se sabe, foram os mestres empiristas George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776). Ambos dedicaram-se a destroçar a amena superfície das representações do senso comum, revelando por detrás delas os segredos da experiência privada. As representações do mundo com a sua aparente estabilidade e formando uma trama convincente e ‘objetiva’ são apenas os produtos de experiências subjetivas e hábitos bem-estabelecidos. E, enfim, a fábrica psicológica do mundo que fica assim desvendada: associações arbitrárias, mas regulares entre idéias sensoriais, ou impressões, geram o mundo supostamente objetivo e autônomo, ou melhor, nossa experiência e conhecimento dele. O ‘psicológico’ invade os territórios da epistem ologia e mesmo da ontologia (“ser é ser percebido”). Berkeley reduziu o físico ao semiótico, e o mundo subsiste apenas como um sistema de signos, repousando em processos e mecanismos da experiência privada. Hume recua diante desta forma de idealismo subjetivo. Sua investigação põe em questão o status do nosso conhecimento, mas não a objetividade do mundo. Em compensação, ele investe contra a própria identidade individual que é então reduzida à condição de um fenômeno imaginário, fruto da regularidade das impressões e do costume. Em Hume, portanto, a exploração dos processos privados do sujeito destrói a crença na sua representação pública, a identidade do indivíduo e a sua presumível indivisibilidade.

A tradição Locke-Berkeley-Hume é geralmente reconhecida como formando o eixo do iluminismo tanto na Inglaterra como na França; mesmo na A lem anha, onde se elaborou uma versão original do iluminismo, a filosofia inglesa era um marco e um parâmetro: Leibnitz responde a Locke, Kant responde a Berkeley e a Hume.

Contudo, foi um outro inglês, aluno direto de Locke - por quem sempre conservou muita estima e admiração que, também ancorado nas águas da experiência privada, introduziu na cultura seiscentista os novos temas que no século seguinte viriam a engrossar o movimento

110

Page 102: A Invencao Do Psicologico

rom ântico : S haftesbu ry . A nthony A shley C ooper, conde de Shaftesbury (1671 - 1713), originário da aristocracia liberal a que Locke estava ligado, manteve durante toda a vida a postura política do mestre. Na verdade, embora suas idéias se afastem das dos empiristas, crescem no m esm o terreno que o liberalism o valoriza e protege: o das experiências privatizadas. Shaftesbury, cujas principais contribuições se deram nos campos da estética e da ética, volta-se para o íntimo, para a privacidade, para as evidências que se dão ao ‘olho interior’ (inward eye) como antídoto contra o intelectualismo racionalista e contra o m undo das representações convencionais. Serão estas evidências interiores que devem servir de base ao conhecimento ético e estético. As medidas do justo e do belo não se aprendem pela imitação de um modelo ou pelo hábito, mas pela intuição, uma espécie de rememoração platônica das formas. Estamos aqui tão distantes quanto possível da trad ição em p iris ta e em pleno cam po do neoplatonismo. No entanto, num caso como no outro, a ética e a estética são concebidas a partir de suas bases nas experiências ‘interiores’; ambas as tradições contribuíram para a demarcação de uma dimensão ‘psicológica’ nos campos da teoria do conhecimento, da ética e da estética. Ambas as tradições fertilizaram o canteiro da subjetividade privatizada, embora cada uma o faça à sua maneira.

P ara le lam ente à eclosão destes frutos da p rivacidade no pensamento filosófico, a Inglaterra ofereceu à civilização ocidental uma série de invenções e dispositivos sociais que se constituíram em espaços, tempos, modos e personagens institucionalizados em que se concentrou o cultivo da experiência privada (cf. Gusdorf, 1976; e Sennett, 1978).

A Inglaterra inventou c exportou um tipo de jardim - o inglês - que se contrapunha ao jardim francês do século anterior. O jardim francês era geométrico, racional, espetacular, feito para ser visto e reconhecido como a natureza reduzida à sua essência matemática e à sua identidade civil. O jardim resume um modo de vida e uma forma de subjetivação. No caso do jardim inglês, trata-se de uma reserva da natureza, autêntica e dócil, não para ser vista, mas para ser freqüentada, um recanto acolhedor e privativo das casas e cidades, propício aos passeios, às meditações, aos encontros e conversações íntimas.

111

Page 103: A Invencao Do Psicologico

Na Inglaterra, igualmente, começa a voga dos espaços públicos, em que pessoas das mais variadas origens e categorias podem se encon trar e conversar independen tem ente de suas posições e identidades: os pubs e cafés. Reina aí, entre desconhecidos, um regime de liberdade de opinião na exata medida em que há pouca exposição e comprometimento pessoal das identidades públicas dos interlocutores. O princípio representacional que operava na teatralização da vida na corte - o sistema da etiqueta estudado por Elias (1985) - fica liberado na vida urbana dos constrangim entos impostos pela convivência cotid iana entre pessoas m uito conhecidas umas das outras. As grandes cidades reúnem desconhecidos que podem com mais liberdade representar uns para os outros. Além da maior liberdade, Richard Sennett (1978) argumenta que a necessidade de se apresentar e definir identidades diante de uma platéia de estranhos incrementa e expande o uso teatral dos modos, dos gestos, das falas e das roupas. Nesta medida, a própria separação entre vida privada e vida pública, muito mais acentuada nos ambientes urbanos do que nas cortes, propicia, de um lado, a mais completa dominância do princípio representacional e, de outro, uma ampliação dos espaços de liberdade e privacidade.

Também é invenção inglesa o clube masculino, que, na mesma época, reúne pessoas selecionadas num clima de maior intimidade c de maior exposição pessoal, mas que, mediante o compromisso de sigilo, garante para todos a liberdade de consciência. Apesar das práticas de conversação serem muito diferentes nos dois ambientes (cf. Sennett, 1978), em ambos as experiências e opiniões de cada um podem ser expressas com relativa autonomia em relação às regras e convenções da sociabilidade pública; é o anonimato, num caso, e a intimidade, no outro, contribuindo para a consolidação dos espaços da privacidade.

Outra característica da cultura inglesa é a valorização da vida rural e das suas atividades econômicas e, mais ainda, esportivas, como as caçadas. Tais ambientes e atividades são percebidos como redutos de uma liberdade e autenticidade naturais, impossíveis nas cortes e nas cidades. Ao cam po, à natureza e aos esportes é reservado um importante papel nas práticas sanitárias, morais e ‘psicológicas’. São remédios contra a melancolia, o tédio, o spleen (a doença inglesa por

112

Page 104: A Invencao Do Psicologico

excelência, tematizada por filósofos, educadores e médicos desde o século XVII). A Inglaterra também inventou um certo gênero de turismo. As viagens turísticas são recomendadas e procuradas como antídoto contra ‘the english malady’; nelas a vítima do spleen adota uma relação com o mundo em que se afrouxam os vínculos convencionais da cotidianeidade para se abrir um espaço às experiências individuais, subjetivas e privadas do ‘cientista amador’ ou do ‘esteta diletante’ (cf. Corbin, 1989).

Finalmente, convém recordar que a Inglaterra legou à civilização ocidental os grandes painéis da privacidade doméstica, fam iliar e afetiva que são os romances de Richardson, Fielding, Smollet e Stern (Allen, s.d.). Em 1719, D. Defoe havia inaugurado a era dos grandes romances com o protótipo do individualism o burguês: Robinson Crusoé, o náufrago que reconstrói uma civilização em miniatura a partir de sua própria força, coragem, engenho e trabalho.

M uitos dos rom ances que se seguiram , na Inglaterra e nas ‘imitações’ francesas e alemãs que proliferaram no século XVIII, vieram na forma de cartas trocadas entre os personagens, acentuando a vinculação desta grande literatura épica com a tarefa iluminista de trazer à luz a experiência privada e, nos seus momentos críticos, desmascarar a hipocrisia das identidades públicas; ao mesmo tempo, há uma forte marca da tarefa romântica, que é a de dar meios expressivos às vivências mais íntimas e singulares dos indivíduos ao longo de suas histórias de vidas; estes são os momentos sentimentais e lacrimogêneos que, se bem equilibrados aos de crítica e esclarecimento, dão toda a força de envolvimento a essas obras.4

A privacidade militante

Sem dúvida foi o fato de uma revolução burguesa e liberal ter assegurado na Inglaterra as condições propícias ao cu ltivo da privacidade que fez da cultura inglesa um verdadeiro celeiro de d isp o sitiv o s so c ia is , form as de ex is tên c ia e in stru m en to s de representação e expressão da subjetividade privada.

Esses espaços, tem pos, figuras e idéias tendenc ia lm en te ind iv idualistas, em que se entrelaçam m otivos ilum inistas aos

113

Page 105: A Invencao Do Psicologico

românticos, podiam, na Inglaterra, funcionar à luz do dia como os bastiões da privacidade, em contraposição tanto aos antigos padrões corteses - que lá não haviam se imposto como no continente - como aos novos padrões m etropolitanos que dom inavam os espaços públicos. Estes padrões, tão bem descritos por Sennett, eram marcados pela teatralização da vida social urbana, que estendia e dava novas possibilidades ao princípio representacional dominante nas cortes (cf. cap. 2). A rigor não se tratava de uma contraposição pura e simples, já que a liberdade individual que se conquista quando a teatralização abarca um grande centro urbano em que se defrontam desconhecidos é um ingrediente da própria privacidade (a liberdade de dissimulação é a mãe de todas as liberdades...). De qualquer forma, o que mais interessa ressaltar é a possibilidade conquistada com a Revolução Burguesa e com a ideologia liberal de um cultivo da privacidade que pode ser exercido de forma não contestatória. A liberdade de opinião, a atenção das alm as sensíveis aos seus estados de esp írito , a elaboração de formas de cuidado de si e de singularização estavam autorizados pela cisão harmoniosa entre as esferas públicas e privadas. Os movimentos de exteriorização do privado não se constituíam em ameaças à ordem, necessariamente; ao contrário, eram elementos desta ordem. Assiste-se então à peculiar aliança inglesa entre lei e decoro, de um lado, e liberdade e privacidade, de outro.

Também na França foram se constituindo novos espaços, tempos e meios para as experiências da privacidade. Cabe ressaltar, inclusive, algumas contribuições francesas específicas. Por exemplo, em toda a Europa desse período ocorreu um movimento no sentido de maiores investimentos na vida doméstica e familiar, com a sobrevalorização dos personagens mais representativos da privacidade, como a mulher e a criança, com as transformações resultantes na arquitetura da casa de fam ília (separação e valorização dos espaços privados) e com a invenção de modos e roupas de estar em casa. Coube, porém, à França dar a estas roupas e modos de estar os nomes que os consagrariam internacionalmente até os dias de hoje: o deshabillée e o negligé são os termos que realçam o valor da naturalidade privada em detrimento das falsas representações públicas.

114

Page 106: A Invencao Do Psicologico

Não obstante, o Estado absolutista francês era mais forte do que jamais tinha sido na Inglaterra, e assim permanecia mesmo depois de Luís XIV. Neste contexto, todos os movimentos literários, filosóficos, científicos e religiosos e todos os novos costumes e dispositivos sociais em que se traduziam os motivos iluministas e românticos adquiriam muito rapidamente uma conotação política contestadora. As experiências da consciência livre, a razão autônoma, as observações independentes e os sentimentos autênticos serão as instâncias críticas diante das convenções, das representações obsoletas e das práticas de censura e opressão. É na França, por exemplo, que a revelação da intimidade reúne o erotismo exibicionista e voyeurista aos motivos iluministas e desm istificadores na voga da literatura pornográfica produzida por alguns dos melhores filósofos e literatos da época, como D iderot (Les b ijo u x ind iscre ts), M irabeau (E ro ú ka B ib lion ), Montesquieu (Le teinple de Cnide, Cartas persas) etc., para não falar de Sade, que foi além do que a permissividade de então admitia (cf. Goulemot, 1991).

A rápida passagem da defesa e valorização da privacidade e, principalmente, do movimento de exteriorização da experiência privada para a crítica cultural e política pode ser acompanhada, também, na q u e re la acerca da m úsica e da ópera (cf. F ub in i, 1971). Os enciclopedistas - m uitos dos quais, com o D iderot e R ousseau, concentravam em si tendências iluministas e românticas - combateram com tenacidade a música francesa. Por música francesa entendiam tanto o estilo cortês de Lully como o estilo racional-cartesiano de Rameau. Não agradava aos enciclopedistas nem a secura convencional da elegância da corte nem o artificialismo e a dominância do princípio imitativo-representacional da música matematizada. Suas preferências iam para a música italiana, em particular para ópera italiana e para a tradição do bei canto. O melodrama italiano na sua grandiloqüência é paradigmático de um projeto exteriorizante que estimula e facilita a expressão e representação pública dos sentimentos e emoções íntimas e naturais; a música italiana satisfaz uma sensibilidade que aprecia o espontâneo, o infantil, o popular. São as experiências privadas e íntimas que movem a ação melodramática e que são trazidas à luz através do ‘veículo privilegiado do coração’: a voz humana. Supunha-se que a

115

Page 107: A Invencao Do Psicologico

voz, mais que qualquer instrumento, expressasse e representasse a subjetividade e alcançasse diretam ente a intim idade do ouvinte, comovendo, fazendo-o transbordar, ajudando, portanto, a ele expressar publicamente suas experiências (as platéias de teatros e casas de ópera eram espaços de exercício e exteriorização da liberdade de consciência, da liberdade de gosto).

Em contraposição a esses momentos em que motivos iluministas e românticos se reúnem para exercer a crítica cultural à luz do dia - o combate à música francesa para os enciclopedistas fazia parte do combate ao ancien régime - , foi também na França, embora não apenas lá, que m ais se fez notar a ligação estre ita , mas nem sem pre considerada, entre privacidade e segredo.

Além dos cafés, salões literários, clubes, cartas pessoais e partic ipações na im prensa, em que pessoas privadas trocavam livremente opiniões, ou das platéias de espetáculos em que essas opiniões podiam se expressar diretamente em aplausos, vaias, gritos e lágrim as, o século XV III assistiu ao grande florescim ento das sociedades secretas. Nessas sociedades, mais talvez que na própria família, a privacidade era garantida e defendida contra seus eventuais inimigos. Dessas sociedades secretas, a mais conhecida foi a franco- maçonaria, mas outras existiram, e os clubes masculinos continham também obrigações de sigilo.

A sociedade secreta condensa motivos iluministas e românticos dando-lhes uma forma institucional precisa, posto que sincrética. O sigilo é, primeiramente, a garantia da liberdade de consciência; é ele que cria do m esm o m odo um am biente onde certas d iferenças individuais e hierárquicas perdem validade, em que as identidades públicas se dissolvem, deixando lugar para uma igualdade básica e para uma reconstrução de hierarquia baseada apenas no saber e nas virtudes de cada um. Da dissolução das identidades públicas, com suas marcas particularizantes, emerge ainda o horizonte do internacionalismo e do universalismo da razão. Nesta medida, a sociedade secreta é uma estufa apta a fazer amadurecer e ganhar corpo a experiência pessoal da ilustração com todo o seu potencial de crítica política e cultural. Por outro lado, o sigilo faz com que essas sociedades assumam um caráter esotérico e iniciático, ou seja, passam a valorizar o oculto em si

116

Page 108: A Invencao Do Psicologico

mesmo e a dar aos iniciados o status já não mais de iluministas, mas de iluminados, no sentido romântico da palavra, detentores de uma ciência exclusiva, mas entre eles partilhada. Reforçam-se, assim, os vínculos pessoais de solidariedade comunitária ao mesmo tempo em que se elaboram os d iscursos rac ionalistas e tendencia lm ente individualistas da ilustração.

A m açonaria, desta forma, ocupa uma posição duplam ente intermediária: tanto ela fica entre a esfera privada, que ela constitui e protege, e a esfera pública, em que os maçons pretendem intervir conservando-se à sombra, como entre a tradição iluminista (diversos iluministas notáveis eram maçons) e as tendências românticas em engendramento.

Aparentada à vida política e filosófica confinada às sociedades secretas pelo tema da ecclesiola in ecclesia está uma manifestação da religiosidade da época (cf. Gusdorf, 1976). Este não é um fenômeno genuinamente francês, mas na França assumiu uma fisionomia de clandestinidade e contestação. As figuras de madame de Guyon (1648- 1717) e do sacerdote Fénelon (1657-1757) estão associadas a uma religiosidade mística, interiorizada e independente das representações oficiais do catolicismo, e que freqüentemente habita em sigilo alguns espaços da religião institucionalizada. E certam ente necessário distinguir entre a interioridade da religiosidade quietista e a revelada nas obras teatrais, melodramáticas e romanescas do século XVIII. Em am bas reinam os sentim entos e afetos, estes dois g igantes da privacidade. No entanto, a religiosidade quietista pretende apostar tudo na experiência privada, em oposição às formas públicas de religiosidade, mas, ao mesmo tempo, destituir a privacidade da experiência religiosa das suas vinculações com o indivíduo concreto humano. E preciso que o espaço interior se converta em pura receptividade, em puro amor a Deus.

A religiosidade quietista foi considerada herética, foi perseguida e viveu numa certa clandestinidade dentro dos confins do Estado absolutista e do seu braço clerical, a Igreja católica francesa. Assim, embora se posicionasse contra a índole individualista das variadas versões em que se manifestavam os motivos iluministas e os românticos, a exploração quietista dos espaços privados, à revelia dos dogmas,

117

Page 109: A Invencao Do Psicologico

ritos e disciplinas, pertence ao contexto das práticas de cultivo da intimidade em oposição às esferas públicas.

Do iluminismo ao romantismo: a floração da privacidade na Alemanha

Saindo agora dos espaços culturais inglês e francês em direção ao alemão, precisaremos recorrer, sem dispensar a estrutura básica oferecida por Koselleck, à obra de Norbert Elias ([1939] 1973); em particular, aos dois capítulos introdutórios nos quais ele analisa a gênese e os usos dos conceitos de ‘civilização’ e ‘cultura’ na Alemanha e na França. Só assim poderemos entender as versões do iluminismo e do romantismo que se desenvolveram na Alem anha setecentista, ligando-as à problemática do público e do privado, tal como estive fazendo nas páginas anteriores.

A A lem anha não vivia sob um a m onarquia constitucional modelada por idéias liberais, como a Inglaterra, onde o respeito ao privado, em todas as suas dimensões, estava relativamente assegurado pela força econôm ica e política da burguesia, que defendia seus espaços e impunha um limite ao poder do Estado. Era isso que garantia na Inglaterra a compatibilidade das esferas numa articulação altamente funcional da privacidade com o decoro, da liberdade individual com a ordem pública.

A Alemanha tampouco vivia sob um Estado nacional absolutista, forte e, nos termos da época, racional, capaz de dar estabilidade adm inistrativa e garantir o desenvolvim ento do com ércio e das indústrias, reunir nobres e burgueses e, finalm ente, pro teger o florescimento das artes, da música e da literatura. Já vimos que esse aparato absolutista ao se tornar inútil e supérfluo será contestado de múltiplas formas, mas sempre por aqueles que cresceram e se educaram sob a sua guarda. Há elegância e medida, há todas as marcas do refinamento civilizado mesmo nos que combatem a civilização e defendem a espontaneidade e a naturalidade como Rousseau: o mítico ‘bom selvagem’ possui as virtudes sem sofrer os ‘estragos’ da vida civilizada.

118

Page 110: A Invencao Do Psicologico

As cortes alemãs na época não conseguiam nada de parecido em termos de integração, racionalidade, desenvolvimento, proteção. E, pior, caracterizavam-se por uma atitude fundamentalmente imitativa dos modos e vernizes franceses. O francês era a língua oficial das cortes, a língua dos civilizados e cultivados. Os dialetos alemães eram deixados para o povo e para a pobre e fraca burguesia, excluída da grande política e da ‘civilização’. E destas camadas que serão extraídos os membros da in te llig en ts ia , que já nasce com o c rític a e em o p o sição (politicamente ineficaz) ao ancien régime alemão. Neste contexto, ao mesmo tempo que o termo ‘civilização’ adquiria para os nobres da corte um valor de distinção, para todos os demais significava falsidade, hipocrisia, superficialidade. Diante da civilização alçavam -se os valores genuínos da cultura, a au ten tic idade, a cria tiv idade , a profundidade etc. Estes valores em choque darão uma coloração especial ao iluminismo e, principalmente, ao romantismo alemão. Mais que isso, como observa Elias, na luta entre os valores da civilização e os da cultura expressa-se tanto a oposição entre classes sociais como a oposição do ‘verdadeiro espírito alemão’ ao espírito (degenerado) francês e inglês.

Leibnitz (1646-1716) é um filósofo de corte e quando não escreve em latim usa o francês. No entanto, ele já elabora uma versão do iluminismo contraposta à de Locke pela ênfase na auto-atividade do esp írito , na espon taneidade endógena das idéias. E stas, com o capac idade de pensar, são as cond ições de p o ss ib ilid ad e do conhecimento. Aquém do conhecimento atual, condicionando-o, há um conhecimento virtual, ou seja, um conhecimento que opera como uma disposição inconsciente para a descoberta das verdades necessárias da matemática e da metafísica e para o estabelecimento das razões dos fatos. As razões dos fatos não são encontradas nas experiências, mas derivam daquilo que o sujeito traz consigo na forma de uma capacidade automovida para representar, ‘produzindo’ verdades necessárias e ‘descobrindo’ verdades empíricas.

No século seguinte, agora em contraposição a Berkeley e a Hume, Kant (1724-1804) - que por sinal já escreve em alemão - retoma o veio alemão do iluminismo. Ele postula o conhecimento apriorístico como condição de possibilidade da experiência: as formas a priori da sensi­

119

Page 111: A Invencao Do Psicologico

bilidade (espaço e tempo) e as categorias do entendimento condicio­nam e limitam as formas e o alcance das nossas experiências e dos nossos conhecimentos empíricos. Kant revela os limites do mundo das representações e mostra o que há por detrás: uma subjetividade criati­va. Não se trata de subjetividades empíricas, históricas, sociológicas e psicológicas, como as reconhecidas na tradição empirista inglesa. Na verdade, foi contra a tendência relativista e cética dos ingleses que Kant erigiu seu dique filosófico. Era preciso fazer a crítica ao mundo das representações denunciando suas pretensões abusivas (a preten­são de alcançar as coisas em si mesmas), mas restabelecer a sadia con­fiança no conhecimento. É assim que Kant, como todos os iluministas, investigou os limites da representação e elucidou seus avessos; como Leibnitz, ele atribuiu à subjetividade, às faculdades do espírito e às operações ‘inconscientes’ uma função criativa e constitutiva do mun­do das experiências e do conhecimento; por outro lado, porém, ele des­naturalizou, ‘desistoricizou’ e ‘despsicologizou’ a subjetividade. O su­jeito de que trata é o sujeito transcendental, na sua universalidade, condição de toda experiência, mas ele mesmo fora do âmbito do expe- rimentável, fora, portanto, do reino da natureza.

Por outro lado, na ética e na política Kant dá lugar para a manifestação e para a ação direta desta subjetividade transcendental, incondicionada e absolutamente condicionante. Esta subjetividade é livre, na exata medida em que não pertence ao campo dos fenômenos naturais. No entanto, ela não é arbitrária. Há uma ordem, embora não seja a ordem da natureza. Os seres morais exercem sua plena liberdade conformando-se aos imperativos da razão (o dever), escapando aos condicionamentos naturais (as causas históricas e psicológicas) e v ivendo de acordo com um a lei por e les reco n h ec id a com o universalm ente válida. Convém a estes seres organizarem a vida político-administrativa segundo normas condizentes com as leis da ética e por eles mesmos formuladas e reconhecidas como justas, realizando desta maneira uma condição de absoluta ‘autonomia’. Kant é assim um representante do iluminismo, capaz de incorporar motivos (como a espontaneidade do espírito, a liberdade e a autonomia) que tiveram livre curso no pensamento romântico, mantendo-se sempre fiel ao ponto de vista liberal.

120

Page 112: A Invencao Do Psicologico

Foi no romantismo, porém, que a problemática política, social e cultural da Alemanha emergiu com mais nitidez e força. Aqui, a valorização da ‘cultura’ e dos temas da espontaneidade criativa, da expressão autêntica, do autodesenvolvimento da personalidade, da exteriorização de uma interioridade profunda que se identificava, no plano individual, na figura do ‘gênio’ e, no plano coletivo, com o ‘esp írito do povo’, assum iu uma intensidade explosiva. Sob o romantismo não se tratava de limitar as pretensões da representação, como em toda a filosofia crítica de Locke a Kant, nem de apenas elucidar os avessos da representação, como já fora feito por Hobbes e se fizera daí por diante em todos os iluminismos. A intenção dos românticos é a de transpor a problemática da representação nos planos cognitivo e político, instalando em seu lugar a problem ática da expressão. Nos dois casos, convém recordar, há experiências privatizadas sendo mobilizadas para entender e contestar, de uma forma ou de outra, o mundo das representações. Só os românticos, contudo, abriam mão do representacional (ou representativo) em nome de uma exteriorização mais direta da subjetividade individual ou coletiva. Para eles o reino das representações é um reino de dissimulação e falsidade que - e aí está a grande diferença em relação ao liberalismo inglês - não garante os espaços para o cultivo da privacidade. Não se forma desse modo a aliança inglesa entre boas maneiras e liberdade, entre decoro e privacidade. Na Alemanha é isto ou aquilo, e os valores burgueses, cujas bases econômicas e sociais se fortaleciam ao longo do século XVIII, tiveram de assumir no plano filosófico e literário, já que no po lítico estavam bloqueados, um a feição d isrup tiva e revolucionária para poderem romper a casca da civilização afrancesada.

Em uma esfera, todavia, a experiência privada já tinha um espaço reconhecido e legítimo na Alemanha, a da vida religiosa. As igrejas protestantes, e o luteralismo em primeiro lugar, desde o início do século XVI (cf. cap. 1) haviam consagrado a liberdade do homem interior. Nesta medida, o movimento pietista significou mais um recrudescimento desta tendência interiorizante e da separação entre a religiosidade íntima e a pública do que uma oposição às práticas oficiais, como ocorria nas relações do quietism o francês com a Igreja católica. O pietism o contribuiu assim para a formação relativamente pacífica do que veio a

121

Page 113: A Invencao Do Psicologico

se conhecer como o ‘verdadeiro espírito alemão’. No bojo do pietismo engendraram-se os valores e fortaleceram-se as tendências que mais tarde puderam emergir com muito mais turbulência na filosofia e na literatura românticas.

Convém assinalar, finalmente, o florescimento na Alemanha de uma literatura paracientífica voltada para o ‘psicológico’ (cf. Gusdorf, 1976). Talvez, na origem deste gênero de pesquisa - a investigação escrupulosa dos movimentos afetivos, intelectuais e volitivos no espaço interior tenha sido predominante a influência pietista; ela induzia os homens, com razões religiosas, a voltar suas atenções para suas experiências privadas. Sob influência pietista foram redigidos inúmeros textos memorialísticos e autobiográficos. Já escapando ao campo religioso, mas ainda sob seu impulso, situam-se as obras de Lavater, Jung-Stilling e Moritz.

Moritz (1757-1793) fundou cm 1783 uma Revista de Psicologia E xperim ental ou ‘Conhece a ti m esm o’ destinada a alargar os conhecimentos sobre as experiências pessoais e íntimas. Neste órgão ele publicou uma espécie de autobiografia romanceada com o título ‘Fragmentos da biografia de Anton Reiser’. Além deste texto, a revista imprimiu documentos da privacidade na forma de trechos de memórias, observações ‘clínicas’, trechos autobiográficos etc.

Outra autobiografia de relevo foi a do iluminado, mago e ocultista Johan Heinrich Jung (1740.-1817), autor de A juventude de Heinrich Stilling - História verdadeira. Trata-se do próprio Jung, desde então designado como Jung-Stilling. Em todos esses casos os escritos autobiográficos visavam realm ente dar publicidade ao privado, conceder às experiências privadas o espaço público da representação. É sempre difícil num caso destes separar o motivo ilum inista de esclarecer o que se passa por detrás das superfícies públicas e o motivo romântico de encontrar meios expressivos autênticos para a privacidade singular.

Esta mistura ainda é mais nítida nos escritos do pastor J.C. Lavater (1741-1801). Além de haver redigido ao longo de toda a sua vida um diário secreto, para seu próprio uso, proveito e aperfeiçoamento moral, Lavater criou uma nova ciência, a ‘fisiognomia’. Ora, além do caráter iluminista de um projeto científico no século XVIII, a natureza mesma

122

Page 114: A Invencao Do Psicologico

da fisiognomia toca diretamente na questão das relações entre público e privado que estamos acompanhando. A fisiognomia pretende nada mais nada menos que estabelecer a correlação entre formas corporais (o domínio público) facilmente reconhecíveis e características espirituais (o domínio privado). O fisiognomista não apenas acredita que estas co rre laçõ es ex is tiam , m as se e sfo rça em e x p lic itá - la s . As particularidades do caráter, as peculiaridades da personalidade teriam no próprio corpo seu meio expressivo mais autêntico, direto e incapaz de dissimulações. Por outro lado, ao observador externo instruído pela fisiognomia o corpo alheio poderia ser tomado como a representação e desmascaramento do íntimo e via de acesso à privacidade.

A síntese mesmeriana

Talvez uma das mais curiosas sínteses setecentistas, reunindo traços iluministas e românticos uns aos outros e ambos a uma forte presença do ancien régime que, salvo na Ing laterra, ainda era politicamente a dominante, possa ser encontrada na vida e na obra de Franz Anton Mesmer ( 1734-1815).

Este médico suíço, formado em Viena, dedicou-se a estudos científicos dentro do que lhe parecia a melhor tradição do seu tempo e teve a pretensão de ser o ‘Newton da m edicina’.5 Paralelamente, formulou e praticou técnicas curativas que lhe granjearam um imenso sucesso, uma fabulosa fortuna e lhe deram uma velhice sossegada, m esm o depois do seu desm ascaram ento e queda no ostracism o. Mesmer foi, de início, médico bem-sucedido na corte austríaca. Após um primeiro fracasso e de desavenças conjugais mudou-se para Paris, onde durante alguns anos recebeu uma excelente acolhida e onde desenvolveu novas técnicas. Após algum tempo, dois acontecimentos m arcaram seu fu tu ro : co n segu iu vender a p a ten te de seus procedimentos terapêuticos a um grupo de interessados em fundar um verdadeiro sistema nacional de saúde mesmeriana - as Sociedades da Harmonia pelo que recebeu muito dinheiro; no entanto, na mesma época, o rei criou uma comissão de cientistas que submeteu o trabalho de Mesmer a um rigoroso exame, tendo concluído que ele não tinha

123

Page 115: A Invencao Do Psicologico

base científica. M esm er saiu então de Paris e viveu retirado da medicina, dos negócios e das cortes numa cidade suíça.

O primeiro aspecto a destacar na obra e no pensamento de F.A. Mesmer é o de seu compromisso com o iluminismo. Desde sua tese de doutoramento, sobre a influência dos planetas na saúde do homem, Mesmer julgava-se participante de um movimento científico capaz de trazer à luz o oculto, da mesma forma que Newton havia enfocado e representado matematicamente as ‘forças ocultas’ da gravitação. O magnetismo animal postulado por M esmer seria o equivalente das ou tras forças ocultas e s tudadas c ien tificam en te por fís icos e astrônomos. E certo que a esta idéia básica Mesmer acrescenta outras que não teriam ocorrido a astrônomos e físicos; por exemplo, a de que a doença é produzida por um desequilíbrio na corrente magnética e que a saúde pode ser restabelecida mediante a imposição da mão de um médico magnetizador ou pelo contato com alguma substância previamente magnetizada. Esta última suposição levou Mesmer a criar p rocedim entos co letivos de cura nos quais grupos de doentes entravam em contato simultâneo, através de hastes, com um recipiente de água magnetizada. Uma outra idéia curiosa é a de que espelhos refletem e amplificam os fluxos energéticos, contribuindo para as curas. Da m esm a form a agiriam os sons produzidos por instrum entos magnetizados. Muitas dessas idéias podem nos parecer bizarras (ou nem tanto, já que muitas das práticas terapêuticas lançadas a cada ano no ‘mercado de consumo psicológico’ guardam uma surpreendente semelhança com os procedimentos mesméricos ...). De qualquer forma, importa ressaltar que mesmo que não nos pareçam científicas elas participam, talvez como paródias não intencionais, do projeto iluminista de esclarecimento do que opera no âmbito da privacidade - no caso, no interior dos corpos - gerando doenças e promovendo curas. E este compromisso iluminista que tornou Mesmer vulnerável à comissão instituída pelo rei para avaliar seu trabalho. Se M esm er não se apresentasse como cientista, se ele permanecesse na condição marginal à ciência e à religião, que era a de outros magos e hipnotizadores da época, não poderia ser desmoralizado e humilhado como de fato ocorreu. No entanto, quando homens como B enjam in Franklin, Lavoisier e Guillotin concluíram não haver sombra de magnetismo

124

Page 116: A Invencao Do Psicologico

animal, M esmer perdeu seu status e, aos poucos, o m esm erism o começou a perder seu mercado.

Tão importantes quanto os compromissos iluministas de Mesmer eram os traços românticos de alguns aspectos da sua doutrina e, principalm ente, das relações que estabelecia com seus adeptos e clientes. Há uma marca romântica muito clara na valorização da ‘crise’ como momento e ingrediente do processo terapêutico. Toda cura devia começar com uma crise, que tanto podia ser um recrudescimento da doença como uma espécie de transe histérico com convulsões e desmaios. A crise é uma testemunha da operação de forças ocultas; na verdade, é uma expressão autêntica - e por isso não convencional e irracional - dessas forças: mais que tudo é uma evidência do poder de uma personalidade ímpar e carismática, o magnetizador. A crise, em que o paciente entrega-se de corpo e alma ao poder de Mesmer, é a contrapartida da crença inabalável na força de uma personalidade singular, em comunhão direta com as energias e fluídos da natureza. A legenda de Mesmer o apresenta como um personagem genial, menos pelo seu domínio intelectual da natureza do que pela sua capacidade de mobilizá-la, apaziguá-la ou intensificá-la sem mediações racionais, dirigindo-a a seu bel-prazer. Nisto reside a base do caráter sigiloso e iniciático da terapêutica mesmeriana. A doutrina de Mesmer deve ser tratada como um corpo de conhecimentos científicos - portanto, de domínio público - e como um segredo bem guardado. Sabe-se, por exemplo, que suas teorias chegaram a ser divulgadas em forma cifrada para impedir seu entendimento por leitores não-autorizados.6

Outro traço romântico das práticas de M esmer é a ênfase na relação pessoal, íntima e potencialmente erótica (de acordo com o veredicto da Comissão Real) que se estabelecia entre médico e paciente. Há descrições de tratamentos individuais em que o magnetizador se liga corpo contra corpo à pessoa m agnetizada para nela efetuar m anipulações que não excluem - antes privilegiam - as partes pudendas. Em outras palavras, a relação terapêutica assume com M esmer a função de transgredir as regras da sociabilidade pública, abrindo um espaço novo para contatos íntimos e personalizados. Mesmer propicia, desta forma, uma experiência inaudita de incremento e legitimação da privacidade no contexto de um exercício profissional,

125

Page 117: A Invencao Do Psicologico

vale dizer, na esfera pública. O sucesso financeiro de Mesmer atesta, sem dúvida, uma nova modalidade de subjetivação e uma nova forma de relacionar as esferas privadas e públicas.

F inalm ente , a te rap ia m esm eriana conserva os traços da representação cortês e metropolitana, levados ao extremo de uma teatraiização completa da cura. Deixando-se de lado as doutrinas - de índole iluminista - e as formas de relação instauradas entre o médico, a natureza e seu cliente - de índole romântica - , ambos os aspectos relativos aos avessos da representação, o que chama a atenção é exatamente a mise-en-scène. Os ambientes recobertos de espelhos e o fundo m usical, às vezes executado pelo próprio M esm er na sua ‘Harmônica de vidro’ magnetizada, os aparelhos exóticos, os gestos teatrais do magnetizador e as cenas de crise coletivas fazem da cura um verdadeiro espetáculo de salão e dão ao mesmerismo o seu ar ancien régime,7

Mesmer se acreditava médico. Contudo, ele hoje faz parte da história da psiquiatria e da psicologia profunda (cf. Ellemberger, 1976). Há nisso um evidente anacronismo. Hoje, certamente, o material com que Mesmer lidava, os fenômenos que produzia e mesmo as curas que eventualmente promovesse pertencem ao campo ‘psicológico’. Para ele, ao contrário, tratavam-se de forças da natureza tão pouco psíquicas quanto a força da gravitação. Na verdade, mesmo quando nessa época a dimensão ‘psicológica’ era reconhecida como tal, não se criava uma psicologia tal como hoje a entendemos. Suspeito ver uma boa razão para que, ainda quando o iluminismo e o romantismo tenham tanto con tribu ído para o desvelam ento da privacidade , não tenham propiciado a elaboração de um conhecimento psicológico autônomo. Sobre esta questão voltarei no item a seguir.

Os usos da privacidade

As experiências privadas, dissociadas das esferas públicas, que cresciam sob a proteção do regime liberal na Inglaterra, dos novos espaços e tempos privilegiados para cultivo da subjetividade, do anonimato das grandes cidades, dos clubes e sociedades secretas, da vida doméstica e das formas intimistas de religiosidade pietista, foram

126

Page 118: A Invencao Do Psicologico

aos poucos reconquistando os espaços públicos. As novas formas literárias - o romance e os dramas burguês e musical (o melodrama) a filosofia do iluminismo e os pensamentos e estilos românticos foram trazendo para fora, represen tando e expressando, o que ficara provisoriamente privado de meios e efeitos públicos. A escavação desses avessos da representação e sua exteriorização, contudo, colocavam em questão - salvo na Inglaterra, onde era possível uma boa solução de compromisso - a velha ordem pública. A privacidade mesma não era questionada; ao contrário, a liberdade da consciência, a independência da razão e a autenticidade dos afetos e sentimentos eram as próprias instâncias críticas do mundo das representações políticas e cognitivas. O desvelamento desta dimensão, a qual hoje nos habituamos a incluir no campo do psicológico, estava a serviço não da constituição de um saber psicológico sui generis e autônomo, mas de projetos culturais e políticos. A experiência privatizada era a plataforma a partir da qual podiam ser efetuadas revoluções na teoria do conhecimento, na estética e na ética, revoluções nas artes, na música e na literatura, revoluções políticas e sociais. O ‘psicológico’ não era um objeto, ou, ao menos, não era primordialmente um objeto de investigação. Para tornar-se algo assim era preciso que, ao lado do fortalecimento da privacidade, esta entrasse em crise e se convertesse em objeto de suspeitas e cuidados especiais. Ora, nessa época da qual estive falando, a privacidade está em plena curva ascendente, sendo ativamente elaborada e projetando-se em movimentos de exteriorização nos campos diversos da vida social e cultural. O iluminismo do século XVIII e os movimentos proto-rom ânticos do mesmo período são diferentes versões desse movimento. Nesta medida, a privacidade é para eles menos um objeto do que um instrumento crítico; eles abrem espaços ao ‘psicológico’, mas de forma a fecundar e transformar a sociedade e a cultura, e não para converter o próprio psicológico num campo de investigação sui generis.

127

Page 119: A Invencao Do Psicologico

Notas

1. Também E. C assirerem Filosofia de la ilustración (1984), principalmente no capítulo dedicado às idéias estéticas, dedica uma especial atenção aos elementos românticos no ideário setecentista. Este livro, o de Gusdorf e o de Gay (1977) foram as mais im portantes fontes sobre concepções e perspectivas culturais do século XVIII.

2. Vali-me, ainda, do texto de J. Habermas, Miulança estrutural da esfera púhlica (1984), que, por sua vez, muito deve à obra de Koselleck.

3. Este estado de coisas e seus produtos políticos e ideológicos na Inglaterra do século XVII foram o tema do clássico de C. Hill, O mundo de ponta- cabeça (1987).

4. Embora os romances ingleses da época sejam os modelos e exemplares mais bem-acabados do novo gênero, a difusão do romance alcançou a literatura francesa e alemã; a adoção do estilo epistolar, por seu turno, foi mais do que mera ‘im itação’, e algumas das obras-primas da literatura universal seguiram este modelo, como As ligações perigosas de C. de Laclos (1782), na França, e Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe (1774), na Alemanha.

5. As análises desenvolvidas a seguir apóiam-se, mas não coincidem, com as de Ellemberger (1976) e de Van Den Berg ( 1974).

6. Convém recordar que Mesmer era membro de uma loja maçónica e que a maçonaria, apesar de combatida durante o tempo da im peratriz M aria Tereza, havia prosperado, fazendo adeptos no Império Austro-húngaro, entre burgueses, intelectuais artistas e mesmo clérigos e aristocratas. Consta que o próprio imperador José II, que sucedeu Maria Tereza, aproximou- se desta sociedade secreta.

7. O ancien régime foi em toda a parte um grande gerador de espetáculos, e a versão austríaca do absolutismo, que se consolidou no século XVIII e sobrev iveu ao abso lu tism o francês, n o tab ilizou -se pela ên fase na teatralidade, no feérico, no ilusionista. Por outro lado, a reunião mesmeriana de elementos iluministas, românticos e ancien régime esteve presente, também - mas aqui num equilíbrio sublime - , na música do classicismo austríaco, composta por Haydn e por Mozart, este, por sinal, maçom e amigo de Mesmer, na casa de quem encenou pela primeira vez a ópera Bastien e Bastienne (cf. Brion, 1991; e Caznóck, 1992).

128

Page 120: A Invencao Do Psicologico

A GESTAÇÃO DO ESPAÇO PSICOLÓGICO NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO,

ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR

O século XIX pode ser e tem sido caracterizado como o do apogeu do liberalismo e do individualismo como princípios de organização econômica e política (cf., p. ex., Polany, 1980). É sabido, também, que no campo das artes e da filosofia o século XIX assistiu ao pleno desabrochar dos movimentos românticos (cf., p. ex., Gusdorf, 1982 e 1984). Finalmente, desde Foucault (1977) o mesmo século pode ser identificado como o do início de uma sociedade organizada pelo regime disciplinar. Poderíamos pensar que uma destas caracterizações deva prevalecer sobre as demais, ou ainda que elas se apliquem a diferentes nações ou subculturas, ou, finalmente, que correspondam a momentos distintos da história do Ocidente. Meu objetivo neste capítulo será o de defender a tese de que as três formas de entender o século XIX são legítimas simultaneamente, embora, está claro, contraditoriamente. Os destinos do liberalismo, do romantismo e das práticas disciplinares foram bastante diversos; no entanto, nenhum deles perdeu de todo a vigência até os nossos dias, em que pesem as transformações porque passaram e os diferentes pesos que foram assumindo na cultura contemporânea. Pretendo ainda sugerir - deixando o desenvolvimento dos argumentos para uma outra ocasião - que o espaço psicológico, tal como hoje o conhecemos, nasceu e vive precisamente da articulação conflitiva daquelas três formas de pensar e praticar a vida em sociedade.

As vicissitudes do liberalismo e do individualismo

O liberalismo na sua versão original, formulada em suas linhas básicas por John Locke (1632-1704), sustentava a tese dos direitos

129

Page 121: A Invencao Do Psicologico

naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o alcance e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário), distribuí-los regionalmente (conforme o preconizado pela doutrina federalista) e valorizar, à medida do possível, as tradições locais e as experiências particulares, com ênfase na jurisprudência e na consideração de casos concretos, em detrim ento de leis gerais e racionalm ente construídas. Nem todas estas decorrências estavam previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao individual.

Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada, em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de trabalho. O liberalismo econômico (cf. Lukes, 1975; e Polany, 1980) defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica, confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como as condições suficientes para o progresso e para a estabilidade da vida social. Ora, somente no final do século XVIII e no início do XIX a doutrina do liberalismo econômico e a aulo-regulação da sociedade pelo mercado vieram à luz.

No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava ao lib e ra lism o um novo rum o que, p ro g ressiv am en te , o foi

130

Page 122: A Invencao Do Psicologico

descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham (1748-1832), o criador do ‘utilitarismo’. De uma certa forma, pensar em termos de eficiência, interesse e utilidade pertencia também à tradição liberal. Contudo, o utilitarism o irá substituir a crença e a defesa intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional da felicidade. Em outras palavras, a índole empirista do liberalismo vai ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado já não se mantém nos lim ites de suas antigas funções, mas vai gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração da vida social. “A missão dos governantes consiste em promover a felicidade da sociedade, punindo e recompensando” (Bentham [1789] 1989; p. 19).

Há, ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata de derrubar leis e tradições que obstruem a livre ação individual, a defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades. Todavia, mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas das leis e das ações que propiciam ou proíbem. “O objetivo geral que caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em aumentar a felicidade global da coletividade” (Ibid.; p. 59).

Por aí se vê que não apenas a ênfase na garantia de direitos é substituída pela ênfase nas conseqüências, como estas são avaliadas em termos de ‘coletividade’, de forma a, supostamente, favorecer a maioria, mesmo que em prejuízo de alguns indivíduos. Trata-se, efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o que traduz uma posição predominantemente individualista - , o que importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço coletivo da soma total de felicidade:

A com unidade constitui um corpo fic tíc io , com posto de pessoas individuais (...) Qual é nesse caso o interesse da comunidade?É inútil falar do interesse da comunidade se não se compreender qual é o interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um indivíduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a aumentar a soma total dos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (Ibid.; p. 4)

131

Page 123: A Invencao Do Psicologico

Bentham não fica, como se sabe, na formulação das questões meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para a estimativa da soma total de felicidade.

Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir direitos - como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são sensíveis às conseqüências do que fazem: “A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como determinar o que na realidade faremos” (Ibid.; p. 3).

As leis devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das oportunidades de condutas recompensadas.

Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási­cas da ação e são deixados ‘livres’ para escolher entre castigos e re­compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti­va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva­ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen­tos individuais, instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for­ma acabada e sofisticada de benthamismo será desenvolvida no século XX, na ‘engenharia comportamental’ de B. F. Skinner.1 Já o próprio Bentham, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro­gramação de ‘contingências ambientais’, como as industry-houses e, cabe recordar, foi dele a invenção do panopticon, consagrado por Fou­cault (1977) como emblema do regime disciplinar.

Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas, sanitárias e militares assumem novas funções; da mesma forma, a família deixa de ser o espaço da liberdade privada, em contraposição às regras dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a, simultaneamente, individualizar e normatizar suas crianças, jovens e adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no

132

Page 124: A Invencao Do Psicologico

anonimato das cidades do que dentro de qualquer coletividade regida pelo princípio utilitário.)

Por tudo isso, Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não está absolutamente livre da marca utilitária, procura restaurar o valor da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais comprometidos com o liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de elementos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray, 1988; e Hayeck, 1967).

Estas transform ações do velho liberalism o no utilitarism o disciplinador no século XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida social como uma tendência dominante, foi vivida na pele por um dos grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill (1806-1873).2

O pai de Stuart Mill, James Mill (1773-1836), foi o principal discípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus filhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo, desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada impediu, contudo, que ele viesse a sofrer durante a adolescência e início da idade adulta uma série de crises existenciais. Queixava-se ele de um vazio, de uma aridez, de uma falta de sentido e de valores autênticos que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos românticos ingleses e alem ães, alguns dos quais se tornaram seus grandes inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em torno dos quais elaborou sua versão do liberalismo.

Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista: por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção científica, elementarista e mecanicista da mente. Concebeu, igualmente, a criação da etologia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual que de alguma forma se aproxima da fisiognomia de Lavater (cf. cap. 3) e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito

133

Page 125: A Invencao Do Psicologico

de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio para Gall e os comportamentos para Stuart Mill) e, em contrapartida, permitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré de Balzac (1799-1850) as três abordagens são m obilizadas na caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart Mill - mas se refere profusamente aos outros dois - , Balzac concebia sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mill.

Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno filho precoce do regime disciplinar.

No seu clássico On liberty (1859), que traz como epígrafe um tre­cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti­co, Stuart Mill formula uma proposta de metas e formas de vida social e política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos valores românticos. Decerto que as marcas da disciplina e da doutrina utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa- ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com marginais e criminosos que põem em risco os direitos alheios.

Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade, em contraposi­ção ao indivíduo, só tem interesse indireto, supondo-se mesmo que te­nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (...) Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa­mento, de sentimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento em todos os assuntos práticos e especulativos, científicos, morais e teo­lógicos (...) Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja (...) Em terceiro lugar, da liberdade de cada indivíduo resulta a liberdade, dentro de certos limites, de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer fim que não envolva danos a terceiros. (Stuart Mill, 1963;p. 15-grifo meu)

134

Page 126: A Invencao Do Psicologico

É interessante observar no trecho acima como, de permeio aos velhos temas liberais da ‘liberdade negativa’ (a liberdade exercida no espaço esvaziado de controles sociais, ou seja, a liberdade na área da não-interferência; cf. Berlin, 1981; p. 136), já se insinua um tema novo: o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de ‘caráter individual’ se expressa a crença em diferenças qualitativas entre indivíduos, ou seja, em diferenças de personalidade, e na noção de ‘projeto’ a liberdade se identifica com a autonomia e com o autodesenvolvimento.

No capítulo 1 (introdução) de On liberty, Stuart Mill deixava muito claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo am eaçadas pelo “fortalecim ento da sociedade”, o que em nossa linguagem se expressaria como a expansão do regime disciplinar. O segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e, apesar de interessante, não é onde se revela a maior originalidade do autor. Já o terceiro capítulo intitula-se ‘Da individualidade como um dos elementos do bem-estar’ e é aí que aflora o ideário romântico: a ênfase na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade dos indivíduos; por exemplo:

A natureza humana não é máquina que se possa construir conforme um modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem um ser vivo. (Ibid.; p. 67)

Há aí uma valorização e interpretação da vida para romântico nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo associacionista ou da psicologia dos castigos e recompensas num texto como o que transcrevo a seguir:

Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o entendimento (...) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos (...) Contudo, desejos e impulsos formam parte do ser humano perfeito, tanto quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos quando não convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos e inclinações adquire intensidade, enquanto outros, que com eles devem coexistir, permanecem fracos e inativos (...) Impulsos fortes nada mais

135

Page 127: A Invencao Do Psicologico

são que o outro nome para a energia (...) Aqueles cujos impulsos e desejos são próprios, conforme desenvolvidos e modificados pela cultura que lhes é peculiar - diz-se possuir caráter (Ibid.; p. 68)

Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável que esta ‘energética’ e esta concepção não-disciplinar do controle dos impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal, traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a lembrança de Skinner.

É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe ao calv in ism o e à sua ênfase na contenção dos im pulsos e na obed iência , para conclu ir: “Não é desgastando no sen tido da uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os seres humanos se tornam objeto de contemplação, nobre e belo” (Ibid.; p. 71).

O reconhecimento e a valorização das diferenças individuais acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias.

O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final reafirma as mesmas teses no contexto de alguns exemplos práticos.

O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto da disciplina utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e as m alhas finas da opinião pública, tenta d e fe n d e r os espaços ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do liberalismo.

No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu considerável influência sobre Stuart M ill, que trata das mesmas questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética) inigualáveis. Refiro-me a A democracia na América ([1835-1840] 1987), de Alexis de Tocqueville (1805-1859).

Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro

136

Page 128: A Invencao Do Psicologico

con tem algum as passagens an to lóg icas. N o entanto , com o verem os, o ind iv idua lism o segundo T ocquev ille não consiste apenas na separação e a u to n o m iz a ç ã o d o s in d iv íd u o s , no seu v ir tu a l is o la m e n to d a s co le tiv idades e das trad ições, no investim en to m aciço de cada um em si m esm o e na própria independência. O individualism o sim ultaneam ente c o n s titu i, v a lo r iz a e e n fra q u e c e o in d iv íd u o , d á -lh e m a is sta tu s e responsab ilidades e lhe traz m ais am eaças e desam paro . T a lvez o que haja de m ais instigan te nas análises de T ocquev ille sejam as re lações que e s tab e lece en tre u m a cu ltu ra in d iv id u a lis ta e as novas fo rças e fo rm as do despo tism o . E le observa tanto um cresc im en to dos espaços de ind iv iduação com o dos poderes das agências governam en ta is e da op in ião pública , os quais tendem a invadir p rogressivam en te as esferas da privacidade . São os próprios ind iv íduos livres, m as apequenados, que se en treg am a es te s nov o s d é sp o ta s , v ig ilan tes e m e ticu lo so s , o rgan izado res deta lh is tas das crenças, das condutas e dos sen tim en tos com uns.

É assim que, depo is de ena ltecer a pretensão de cad a am ericano ju lg a r-se capaz de form ular seus p róprios ju ízos e defender com bravura a independência de pensam ento e expressão , T ocqueville (1987; p. 326) nos alerta: “N os E stados U nidos a m aioria encarrega-se de fo rnecer aos ind iv íduos um a in fin idade de op in iões com pletas e assim os a liv ia da obrigação de fo rm ular opiniões que lhes sejam próprias” .

D a m esm a fo rm a q u an to aos sen tim en to s; em b o ra os h om ens num a cu ltu ra ind iv idualis ta voltem para si todos os seus sen tim en tos, re co n h ecen d o q u e não devem e sp e ra r dos d em ais m u ita a te n ç ã o e apoio ,

... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no meio do abatimento universal. E para ele que as suas necessidades e sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da fraqueza individual. (Ibid.; p. 515)

E ste se r im en so tan to pode se r o E stad o nap o leô n ico co m o a grande burocracia estatal de um E stado dem ocrático “... e o b raço deste E stado vai procurar cada hom em em particular no meio da m ultidão (Ibid.; p. 447); ou seja, exerce sobre cad a ind iv íduo aquele p oder co tid iano e invisível que ao m esm o tem po con tro la e individualiza.

137

Page 129: A Invencao Do Psicologico

Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os menores cidadãos e a conduzir sozinho cada um deles, nas menores questões (...) Não só o poder do soberano é amplo, como acabamos de ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à independência individual (...) Asseguro que não há país da Europa onde a administração não se tenha tornado não só mais centralizada, mas também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais além que outrora nos afazeres privados; regula à sua maneira mais numerosas ações e ações menores, e estabelece-se em melhor posição todos os dias, ao lado, em volta e acima de cada indivíduo para ajudá-lo, aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (Ibid.; pp. 522-523)

O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais nítida do que 135 anos depois Foucault viria ‘descobrir’ com grande estardalhaço: o regim e d iscip linar com toda “ ... a m inúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo...” (Foucault, 1977; p. 129).

Curiosamente, Tocqueville não é citado por Foucault. T ocq u ev ille está p erfe itam en te c ien te de que o p róp rio

desenvolvimento da economia e da sociedade burguesa e industrial exigem maiores intervenções do Estado, maiores investimentos, mais regu lam en tação e m ais adm in istração . A n tecipa-se nesta sua compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem mais às dem andas de uma sociedade burguesa, que assistia aos repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação, do que a um complô antiliberal, tal como os próprios liberais costumam entender a história do liberalismo (Polany, 1980).3

No entanto, o que me parece ainda mais original e revelador na análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo Estado em atenção às demandas da economia e da grande política, mas é com o que so lic itad a pelos ind iv íduos au tônom os e liv res. Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos; liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais perversas do que poderia parecer à primeira vista:

Procuro descobrir sob que traços novos o despotism o poderia ser produzido no mundo: vejo uma m ultidão inum erável de hom ens

138

Page 130: A Invencao Do Psicologico

semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os, mas não os sente, existe apenas em si c para si mesmo...Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de garantir o seu prazer e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando (...) Trabalha dc bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro exclusivo; provê a sua segurança, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes inteiram ente, senão o incôm odo de pensar e a angústia de viver? (Tocqueville, 1987; pp. 531-532)

Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais, do que nos Estados Unidos e na Inglaterra. PoT outro lado, mais que cm qualquer outra parte, a ditadura da opinião pública seria poderosa nos Estados Unidos, onde inexistiam tradições culturais fortes o suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias.

E um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar. C abe-nos apenas observar a inexorável expansão da sociedade administrada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto apenas aparen tem en te d isso n an te com o ap ro fundam en to do individualismo c com as repetidas ressurreições do ideário liberal.

Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do pensamento de Sluart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jeremy Bentham: a vertente romântica.

O romantismo: promessas e realizações4

As relações dos movimentos românticos com o pensamento liberal e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda, com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de

139

Page 131: A Invencao Do Psicologico

franca exposição . C ontudo , tan to o rom an tism o com o o ilum in ism o no sécu lo X V III co rre sp o n d e ram a m o v im en to s de ex te r io r iz a ç ã o das experiências privatizadas; po r exem plo, na F rança e na A lem anha foram p la tafo rm as criticas às convenções, regras e p roced im en tos de contro le absolutistas im postos às esferas públicas (cf. cap. 3). N ão só pela origem com um , m as pela conv ivênc ia de tem as ilum in istas e rom ân ticos em d iversas obras do sécu lo X V II im põe-se a necessidade de com preender ilum inism o c rom antism o de form a m enos d ico tôm ica e m ais articulada. F inalm en te, a versão do libera lism o de S tuart M ill, que acabam os de re sen h ar, m o s tra com o em p leno sécu lo X IX o p en sam en to liberal p recisou reco rre r ao ideário rom ân tico para se fo rta lecer na sua luta con tra os avanços do reg im e d isc ip linar. C om o todas estas ev idênc ias não nos devem im pedir de tam bém reconhecer o conflito entre ilum inism o e rom antism o, a tarefa da análise deve ser, exatam ente, a de revelar com o se constitu i este cam po em que ilum in ism o e rom antism o se reúnem e se sep a ram co m o in g red ien tes m u tu am en te in d isp en sáv e is de um a m esm a configuração ideológica. As relações do pensam ento rom ântico com o regim e disciplinar, entretanto , poderiam airrda nos parecer m enos com plexas, reso lvendo-se na fo rm a de pura oposição . T am bém aqui, porém , a rea lidade não se m o stra tão sim p les, e um a das tarefas da análise se rá a de expo r os v íncu los m enos ev iden tes que conduzem as águas rom ânticas para o m oinho d a sociedade ad m in is trada .5 D eixarei para um a ou tra ocasião a ou tra face do p roblem a, ou seja, a que nos re v e la o s a v a n ç o s d o re g im e d is c ip l in a r e n g ro s s a n d o as á g u a s rom ânticas.

C om ecem os acom panhando a expansão do pensam ento rom ântico com o c rítica ao ilum in ism o , ao lib era lism o e ao in d iv id u a lism o da i lu s t r a ç ã o . C o u b e , sem d ú v id a , a o s a r t is ta s , m ú s ic o s , p o e ta s e pensadores rom ân ticos pô r em questão as perspectivas do ilum in ism o com o princípio civilizatório. T anto a ep istem ologia ilum inista - em pírica e racional - com o os valores liberais de independência ind iv idual, e a co n ju g ação destes traços num a in te rp re tação ind iv id u a lis ta da v ida socia l (a qual in c lu ía tan to a noção de um c o n tra to f irm ad o en tre ind iv íduos livres para a institu ição da sociedade com o a articulação dos átom os econôm icos através dos m ercados e de suas leis im pessoais) foram rejeitados. O próprio term o - ‘ind iv idualism o’ - nasceu na F rança com o conseqüência de um a reação negativa do pensam ento conservador

140

Page 132: A Invencao Do Psicologico

romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975) e com este sentido pejorativo o termo invadiu outros ares culturais.

Os m ovim entos rom ânticos, na sua dim ensão po lítica , se apresen taram ora com o uma face n itidam ente conservadora e tradicionalista, buscando em formas arcaicas de organização social uma saída para os im passes do ind iv idualism o, ora com um a face revolucionária, lançando-se, então, na direção do futuro para a superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer forma, am bas sem pre corresponderam a um pro jeto de restauração . Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre eles e o mundo físico e histórico que trariam de volta a integridade, a espontaneidade e a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta m ed ida, os rom ânticos criaram , eles tam bém , um a noção de individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido pelo isolamento e pela privacidade nem pela identidade social, mas pela capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições. E stas, por sua vez, tam bém eram concebidas sob a form a da personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do que m atrizes de exp eriên c ias , rep resen taçõ es, sen tim en tos e possibilidades existenciais.

Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa - a liberdade exercida no terreno da não-interferência - para uma versão m oderna na lib erd ad e po sitiv a - com o ‘a u to n o m ia ’ c auto- engendramento - , processos estes que implicam tanto a transformação dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma personalidade singularizada), como na permanente perda de suas identidades convencionais: o ‘tornar-se o que verdadeiramente se é ’ contrapondo-se ao ‘conservar os papéis e as máscaras socialmente convencionadas’.

E sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas contra os ‘filisteus’, contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa rom ântica das paixões, dos im pulsos, dos estados alterados da

141

Page 133: A Invencao Do Psicologico

consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo, das experiências mediúnicas e êxtases etc.); a defesa da absoluta liberdade de criação e transfiguração - o culto romântico de Dionísio , a valorização da alienação, da loucura, dos desdobram entos da personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos); o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a procura de participação nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso faz sen tido no bojo das grandes prom essas re s tau rad o ras do romantismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf., a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5).

Trata-se, é claro, de uma restauração paradoxal, que pode passar pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância. A fragmentação da identidade, de uma certa forma, é a condição e a conseqüência de um processo de crescim ento e florescim ento da personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. E típica do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que se recorde a respeito a obra m usical de Schum ann. Q uanto à extravagância, Binswanger (1977) ensina que se trata de uma posição existencial insustentável; na extravagância, o sujeito “que foi além de todo limite razoável” coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado, sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da hum ana conv ivência . Os que se fragm entam ou ex travagam enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de diversos românticos notáveis.

O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi mais que uma coisa de ‘eleitos’. Aliás, sua força se nutria exatamente da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No entanto, a música composta pelos românticos, a poesia escrita por eles e os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar.

142

Page 134: A Invencao Do Psicologico

Em formas e versões menos contundentes e dissonantes, as idéias e m odos rom ânticos podem ser perfeitam ente assim ilados pelo liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio deixado pela redução da vida social ã dimensão puramente instrumental, racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da liberdade positiva, tal como aparece na idéia de um projeto de vida que permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo lado da energética e dos desejos).

Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste critério para avaliar, tomai- decisões e participar da vida em sociedade e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha também a sublinhar a inviolabilidade do privado, conduz a uma perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade que passam a se elevar como organizadores e juizes da vida pública. Desta maneira, estaríamos diante de uma decorrência ‘natural’ do desinvestimento do social e do superinvestimento do privado de que já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão, e, talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas românticas com a sociedade administrada.

Sabe-se, por exemplo, que as intervenções estatais visando limitar a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho foram promovidas por políticos conservadores, aderidos às críticas românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey, 1970). Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora na verdade estas in tervenções respondessem a dem andas de ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham

143

Page 135: A Invencao Do Psicologico

beneficiado as perspectivas tecnocráticas (Polany, 1980). As idéias e iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na segunda metade do século XIX, tanto no campo das forças de ‘esquerda’ como nas de ‘direita’, devem, desse modo, mais ao ideário romântico que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase sempre desapercebida.

Não só no terreno das leis e da grande política a coalizão antilibe- ral pode ser reconhecida. A personalidade carismática, capaz de exer­cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai­xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do gênio romântico.

Uma novela de Balzac (Ursula Mirouet, 1841) relata uma história passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho c ien tis ta , an tic le rical, am igo pessoal e aliado dos ilum in istas revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou: desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73) nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade rom ântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena reproduzi-lo:

Naquele momento, exibia-se em Paris um homem extraordinário. Dotado, pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive, não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis, mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A fisionomia deste desconhecido, que diz não depender senão de Deus e comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços, singularmente delineados, têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra no ouvinte por todos os poros.

144

Page 136: A Invencao Do Psicologico

Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennett analisa o poeta Lamartine ‘enrolando’ a multidão) e no regente de orquestra, outro emblema do romantismo.

Dos músicos e regentes, nenhum como W agner (1813-1883) personificou tão bem e deliberadam ente o carism a e o projeto restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43) lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas menções à natureza subjugante desta música:

Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece, às vezes, ao escutarmos esta música ardente e despótica, que reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas, dilacerado pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu)

O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura de Wagner todo o ideário romântico, e por isso vale a pena reproduzi- lo um pouco mais:

Já observamos, creio, dois homens em Richard Wagner, o homem da ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado, do homem de sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de Lohengrin (...) O que me parece, portanto, antes de mais nada, marcar de maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a violência nas paixões e na vontade (... ) Tudo que implicam as palavras: vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem quer que seja ao afirmar que vejo aí as principais características do fenômeno que denominamos gênio. (Ibid.; p. 93)

Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de

145

Page 137: A Invencao Do Psicologico

arte totais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e conduzem emoções e vontades despoticam ente. M uitas das obras românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista (que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos a uma concepção ordenada e subjugante da vida comparável à de Wagner; contudo, mesmo aí não se encontram os efeitos despóticos das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta intenção profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém, ressalta , com o se viu no d iscurso de B audelaire, a v inculação subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal, o caso de Wagner), com a docilização dos homens subjugados pela exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire, inclusive, com a finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam para nada na apreciação de sua música, observa, en passant, que W agner chega a P aris a conv ite de Luís N apoleão e reve la , candidamente: “O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na França, a ordem de um déspota para fazer executar a obra de um revolucionário” (Ibid., p. 47).

O território da ignorância

No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em suas diversas versões e o regim e disciplinar, este acom panhado progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais de extração rom ântica e outros de extração utilitária. Falar em convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos conceber a formação de um novo território no qual as experiências individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido. Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo

146

Page 138: A Invencao Do Psicologico

w

Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ‘eu’ soberano com identidades nitidam ente delim itadas, autocontidas, autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do tempo e das condições. Temos, ainda aqui, uma clara separação entre as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dominam as leis, as convenções, o decoro e o princípio da racionalidade e da funcionalidade; à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida como território livre da interferência alheia.

Ao pólo R, de rom antism o, pertencem os va lo res da espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas, porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e da história, que se fazem ouvir de ‘dentro’ e não são impostas pelos hábitos e pelas conveniências civilizadas. A potência destas forças promove uma restauração do contato do homem com as origens pré-pessoais, pré-racionais e pré-civilizadas do ‘eu’, com os elementos da animalidade, da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma espécie de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação, adoecimento, loucura e morte.

Finalm ente, ao pólo D, de discip lina, pertencem as novas tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora, funcional e administrativa, como as que se abatem sobre identidades debilm ente estru turadas e passíveis de m anipulação m ediante a

147

Page 139: A Invencao Do Psicologico

evocação calculada de forças suprapessoais encarnadas em figuras carism áticas ou p ro je tadas em lendas e m itos saudo sis tas ou revolucionários.

Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os dois a dois correspondem às suas mais ou menos dissimuladas relações de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar estas superfícies com o nome de alguns dos personagens da história. Teríamos, assim, uma superfície Bentham ligando o liberalismo ao regime disciplinar. Nesta superfície os procedimentos disciplinares encontram- se com seus objetos precípuos - os indivíduos livres - e, na direção oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios. Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo ao romantismo pode ser designada como superfície Stuart MilL Nela os ingredientes rom ânticos alim entam os p ro jetos de vida dos indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias. Novamente, aqui, todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner. Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade (tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de controle carismático e docilizadores da disciplina.

Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo que entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre si os três pólos, há outras sinalizando a sua mútua rejeição. Rejeição, porém , não consum ada num a separação efetiva. D esta tensão persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome.

É da na tu reza deste espaço que ele se ja um espaço de desconhecim ento. As relações de coalizão e de conflito que o constituem sobrevivem numa certa clandestinidade. Em particular, a superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as afin idades en tre libera lism o e rom antism o, de um lado, e os procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição cognitiva. As vidas vividas no interior deste espaço são vidas cindidas, sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento.

148

Page 140: A Invencao Do Psicologico

As diversas versões contem porâneas da psicologia, que se estabelecerão nesse território no final do século XIX c início do XX (quando o território da ignorância sofrer algumas transform ações decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies. Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os comportamentalismos disciplinadores. Há outras mais próximas da superfície Stuart Mill\ penso, aqui, como exemplo, em algumas leituras americanas da psicanálise, como a ‘psicologia do s e l f , de Kohut. Há, finalmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias, expressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos os ‘gurus’, bruxos e ‘fazedores de cabeça’, quase que indepen­dentemente de suas idéias, se é que as têm.

Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenciar as escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo. Por exem plo, sobre a superfície Stuart M ill podem os s ituar a ‘psicanálise do ego’ próxima ao vértice liberal e a ‘terapia não-diretiva’ de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esta maior proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente aceito e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner (recorde-se, porém, os ‘espetáculos de não-diretividade’ em que Rogers exibia seus ‘solos’ de compreensão empática diante de uma platéia de discípulos ‘semimesmerizados’). Em contrapartida, também quem se aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham: os pressupostos funcionalistas e a índole adaptativa da psicanálise do ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados.

Algumas destas psicologias parecem perfeitamente satisfeitas consigo mesmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio processo constitutivo do território que ocupam. É realmente difícil para quem se situa muito próximo a uma das superfícies adm itir seus compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no entanto, é um elemento constitutivo do seu território. Outras, no entanto, parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender a recordação como tarefa crítica conservando-se no lugar do psicólogo?

149

Page 141: A Invencao Do Psicologico

Notas

1. A conexão entre Bentham e Skinner é praticamente óbvia para quem conheça os dois autores. Para os que não conhecem o pensamento skinneriano, sugiro a leitura de qualquer texto de Skinner que trate da análise ou do delineamento de sociedades e culturas como, por exemplo, os artigos sobre o tem a publicados em Contingências de reforçamento e o romance utópico WaldenII. Uma excelente análise do pensamento político do autor foi realizada por Maria Amália Pie Abib Andery (1990).

2. De muito me valeu, entre outros, o trabalho de 1. Berlin (1981) sobre Stuart Mill no contexto da história do liberalismo.

3. A estas razões seria também necessário acrescentar as oriundas de uma nova conjuntura política em que a classe operária, através de sindicatos e partidos de massa, começa a ter uma presença política substancial e que exige uma mais eficiente e organizada presença política e repressiva do Estado burguês.

4. Nesta interpretação do romantismo, além do contato com as obras literárias e musicais de autores da época e dos elementos oferecidos por Gusdorf (1982 e 1984), tirei grande proveito do livro de Morse Peckham, Beyond the tragic vision. The questfor identity in tlie nineteenth century. Este ensaio de Peckham, ao menos entre nós muito pouco divulgado, será tam bém uma fonte indispensável para o próximo capítulo.

5. Esta questão recebeu um tratamento original por Sennett (1978), em que me inspirei para a presente análise.

150

Page 142: A Invencao Do Psicologico

PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A PSICOLOGIA

No capítulo IV deste livro formulei a tese de que ao longo de todo o século passado os processos de subjetivação enraizaram-se em um território triangular balizado pelos valores e procedim entos iluministas, pelos modos românticos e pelas novas práticas de exercício de poder, que, no con jun to , constituem o reg im e d isc ip lin a r radiografado por Foucault (1977). Vimos, então, como estes três vértices criam entre si vínculos complexos, marcados por mútuas afinidades e mútuas oposições. O caráter constitucionalmente conflitivo deste espaço o tornaria um território de desconhecim ento, já que qualquer posição dentro dele contem em si aspectos interditados à consciência reflexiva.

Ora, o que vai caracterizar a segunda metade do século XIX, prolongando-se numa trajetória sinuosa, mas reconhecível ao longo do século XX, são algumas alterações nos pesos específicos, nas formas de manifestação e modos de operação daqueles pólos. Em linhas gerais, expandiram-se e aprofundaram-se as práticas disciplinares à medida que se foi configurando o que alguns autores denominam de sociedade administrada ou capitalismo tardio (Habermas, 1978 e 1981). Os procedimentos de exame, avaliação, programação e controle foram invadindo de forma insidiosa todos os refúgios em que os indivíduos procuravam se abrigar do liberalismo e em que procuravam se nutrir e desenvolver com espontaneidade as personalidades românticas. Com isso, a separação entre esferas pública e privada perdeu muito da sua

151

Page 143: A Invencao Do Psicologico

vigência efetiva, embora imaginariamente ela possa parecer mais forte e valiosa que nunca. De fato, o liberalismo e o rom antism o não morreram, estão sempre retornando com novas faces e novas funções. Enfim: o próprio território triangular do desconhecimento não se desfez. Ao co n trá rio , parece ganhar em d en sid ad e e vo lum e a cada remanejamento de suas forças constitutivas. Algumas das camadas d este te rren o serão ex p erim en tad as e reco n h ec id as com o o ‘psicológico’, dotado de especificidade e disponível como objeto de saber e intervenção. Estas áreas nascem, por assim dizer, dos escombros do liberalismo e do romantismo triunfantes, embora subsistam em um terreno formado e adubado por estes mesmos ingredientes, só que agora condenados a uma existência problemática, insegura e defensiva.

O significado existencial do ‘psicológico’ e o das posições das diversas psicologias, que, de uma forma ou outra, o têm como campo próprio de investigação e atuação, poderão ser melhor esclarecidos mediante a análise de uma figura representativa de um dos limites do ‘campo psi’ e cujos fracassos existenciais nos levam diretamente para o meio deste campo. Refiro-me ao homem de estilo que no final do século encarnou-se em personagens ‘reais’, como Oscar Wilde ( 1854- 1900), ou ‘fictícios’, como o protagonista do romance Às avessas (1884) de J.-K. Huysmans (1848-1907). (As aspas simples em ‘reais’ e ‘fictícios’ devem-se à impropriedade desta distinção nos casos em exame.)

O Duque Jean des Esseintes, vida e obra

Na ‘Notícia’ que antecede o romance, somos apresentados ao jovem duque Jean, franzino, anêmico e nervoso, último rebento de uma antiga e gloriosa família. Jean jamais teve dos pais senão o mais frio e distante tratamento. A mãe vivia acamada e prostrada e assim morreu. O pai raramente o via. ‘Sua família se preocupava pouco com ele.’ Enquanto estava viva, a mãe estava geograficamente mais próxima (o pai vivia em Paris), mas ‘... sua presença não tirava a mãe de seus devaneios; ela mal se dava conta dele...’ Huysmans nos transmite claramente a idéia de que Jean nunca soube exatamente quem era seu pai, enquanto a mãe de Jean nunca soube exatamente quem era seu filho. Sentiu-se mais bem acolhido no colégio jesuíta no qual, contudo, tinha um desempenho irregular, marcado por uma certa teimosia e calada

152

Page 144: A Invencao Do Psicologico

indisciplina. Ao final da adolescência, entra em contato com um primo e com sua família. Neste meio só encontrou “... saraus opressivos onde parentes tão antigos quanto o mundo entretinham-se com quartéis de nobreza, luas heráldicas, cerimoniais cediços”. Outros ambientes sociais foram sc revelando um a um igualm ente estúpidos, m onótonos, destituídos de espírito. Aproximou-se, então, dos homens de letras: “ ... foi outro m alogro; revoltou-se com os ju ízos rancorosos e mesquinhos deles, com sua conversação tão banal quanto uma porta de igreja, com seus discursos enfadonhos”. Penetrou, também, para logo sair com repugnância, no círculo de livre-pensadores que defendem a sua liberdade de “estrangular as opiniões alheias”. “Seu desprezo pela humanidade aumentou; compreendeu enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de sacripantas e imbecis.” Do mesmo modo, o contato com as mulheres, que por um momento o empolgara, desgasta- se rapidamente e ele sente que se aproxima a impotência. A isto ele contrapõe, duran te um tem po, o desejo e a prá tica de am ores excepcionais, mas sem sucesso. Nas práticas extravagantes de uma boémia romântica, gastara muito da sua fortuna. “Suas idéias de afastar- se para longe do mundo, de fechar-se num retiro, de abafar (como se faz para certos doentes cobrindo a rua de palha) o alarido rolante da vida inflexível, se revigoraram.”.

Diante de um mundo despojado de todo valor positivo restava, enfim, a excentricidade, a saída do centro, o isolamento, a reclusão. Neste espaço periférico, des Esscintes projeta uma vida absolutamente dominada pela obsessão do estilo. Aqui começa o romance.

Cada capítulo de Às avessas relata um momento e um aspecto do meticuloso proceder de des Esseintes na produção de sua identidade singular. Os primeiros capítulos dedicam-se à própria construção do espaço, que deveria ser confortável, acolhedor, absolutamente original e protegido. Deve ser um ambiente completamente artificial e imune às irrupções da sociedade e da natureza. Dentro deste espaço deve vigorar uma rotina planejada até nos mínimos detalhes e observada de forma quase religiosa ou quase científica. Por fim, des Esseintes programa para si uma existência experimental perfeita; não há nada que seja deixado ao acaso, não há brechas pelas quais as presenças da natureza ou da sociedade possam se infiltrar. As diversas e infinitamente variadas sensações (sonoras, visuais, olfativas, palatais

153

Page 145: A Invencao Do Psicologico

e intelectuais) não estão, contudo, excluídas deste mundo. Elas estão, no entanto, sob o controle total de des Esseintes, que programa seu espaço de forma a fil tra r e ilosar estas experiências, de acordo com suas necessidades e possibilidades. O que se evita é o turbilhão das experiências demasiadas; o que se persegue são as condições para discrim inar e classificar as sensações. Há cm tudo um senso de medida que se pareia ao dos mais sofisticados laboratórios de psicologia da época (cinco anos antes, convém recordar, Wundt fundara o primeiro laboratório de psicologia, em Leipzig). Trata-se, além disso, de um laboratório totalitário, no qual uma existência inteira deveria decorrer. Através do artifício, des Esseintes era capaz de se propiciar experiências ilusórias tão convincentes ou mais do que as experiências reais; por oxemplo, havia um cômodo decorado como a cabinc de um navio e nele, com seus diversos dispositivos c com um certo treino de concentração, des Esseintes podia realizar viagens transatlânticas sem os riscos do naufrágio e os aborrecimentos inevitáveis de quem se afasta do lar. A medida certa dc experiências variadas, mas sempre regradas e controladas, era a única maneira de ir vivendo e ao mesmo tempo defendendo sua pele fina, sua sensibilidade excessiva, seu receio perm anente de invasão c desin tegração (des E ssein tes era um hipocondríaco) das misérias e agressões do mundo ao redor.

Os capítulos posteriores vão recenseando um a um os gostos, preferências e antipatias de des Esseintes no campo das artes, da literatura, da vida religiosa (ele era ateu), das artes plásticas. Em todos estes setores, des Esseintes preferia o rebuscado, o estiloso, o artificial, o que constrói c define sua identidade a partir do vazio ou da degeneração das tradições, o que se identifica pela negação, pelo contra. As avessas. Ir contra o mundo e suas tendências, constituir- se na recusa às solicitações mundanas era para des Esseintes a única forma de identidade possível: o estilo, para ser individual e subsistir num estado de tensão sustentada com o mundo à sua volta, deveria ser o estilo da indisponibilidade. Neste modo, o ornamental, o inútil, o leimoso e o indiferente seriam as marcas da identidade. Pequenos episódios, seguidos de muitas reflexões, que Huysmans distribui ao longo dc todo o texto, vão reforçando e revelando novas facetas do estilo dc des Esseintes; alguns dos mais famosos são o trabalho de ourivesaria que ele manda realizar no casco de uma tartaruga, para

154

Page 146: A Invencao Do Psicologico

torná-la um objeto decorativo (o animal morre), o plano para transformar cientificamente um pobre rapaz num libertino e num criminoso, e a aquisição de dezenas de plantas exóticas que não parecem plantas, parecem animais, minerais ou coisa nenhuma (as plantas também morrem). Em todos estes acontecimentos traduz-se a mesma vontade de submeter o natural ao artifício, de separar-se da natureza, de expô- la em suas formas menos naturais e mais bisonhas, de convertê-la em objetos de luxo, de inutilizá-la, de torná-la indisponível.

Nenhuma dessas operações consegue, ao fim e ao cabo, livrar des Esseintes do tédio e da hipocondria. Após uma das crises, ele tenta uma viagem à Inglaterra, mas desiste poucas horas depois de sair dc casa quando num restaurante freqüentado por ingleses, ainda na França, ele descobre que o essencial da viagem à Inglaterra já se tinha realizado. Nesse episódio, farto c saturado dc si mesmo no seu estilo, cie, fora de casa e perdido na cidade, sente provisoriamente a felicidade de misturar-se à vida comum sem identidade alguma, no completo anonimato. Além desta mistura no mundo social, a viagem iniciada num dia chuvoso é também a oportunidade para que ele se m isture à natureza: é invadido pela umidade, é ensopado pela chuva, afunda na lama, é sufocado pelos odores. Tudo isso lhe faz bem, mas o bem não dura c ele retorna ao seu estilo, aos seus contornos, aos seus limites, rotinas, programas e proteções. Depois da malograda viagem, depois da dissolução dc fronteiras experimentada, a organização metódica da vida, a estilização total da existência lhe parecem ainda mais valiosas. E aqui que brotam os seus mais ardentes elogios ao ‘decadentismo’, à literatura tardo-romântica dc Baudelaire, Verlaine, Edgard Allan Poe, e à suprema poesia nova de Stéphane Mallarmé. Com eles, des Esseintes podia identificar-se, porque neles sentia o mesmo repúdio a

... esse sentimentalismo imbecil combinado com uma ferocidade prática Ique] representava o pensam ento dom inante do século; as mesmas pessoas que teriam vazado o olho do próximo para ganhar dez tostões, perdiam toda a lucidez, lodo o faro, diante dessas taverneiras equívocas que os im portunavam sem piedade e os exploravam sem trégua. Indústrias trabalhavam, famílias se extorquiam mutuamente a pretexto de comércio, a tim de empalmar dinheiro para seus filhos, os quais, por sua vez, deixavam-sc intrujar por mulheres que esfolavam, em última instância, os amantes por amor. (p. 206)

155

Page 147: A Invencao Do Psicologico

M as tam bém o en tu s ia sm o por aqueles que pelo estilo de v ida e de esc rita recusavam a v ida com um não durou e a d o en ça vo ltou a se a b a te r so b re d e s E s se in te s . N e s te m o m e n to , e le se re c o rd a co m no sta lg ia de a lgum as ex p eriên c ia s en tre os je su íta s . T a lv ez as m ais m arcan tes de las fossem as aud ições de can to g reg o rian o com seu poderoso un íssono , suas h arm on ias so lenes e m aciças com o p e d ra s” . E m com paração com esta m úsica , quase tudo o m ais lhe desgostava . A penas alguns m úsicos rom ânticos, com o Schum ann, podiam satisfazê- lo, desde que ouv idos longe d a tu rba de m e lôm anos . C om o não p o d ia en tra r em con ta to com e s ta m úsica , e p rin c ip a lm en te com a m ú sica do “ p r o d ig io s o W a g n e r ” s e m se m i s tu r a r à s a le g r ia s d a “ tu r b a in co n sc ien te” , des E sse in te s op tou por d e ix a r a m ú sica de lado . M as enquan to ia assim rem em o ran d o suas expe riên c ias m u sica is , o estado do personagem p io ra v a . F in a lm e n te , um d ia p e d iu a o c r ia d o um esp e lh o , o qual em seg u id a lhe to m b o u das m ãos: “m al co n se g u ia reco n h ece r-se” .

Só en tão , d epo is d essa ex p eriên c ia de p e rd a de iden tidade que e m e rg ia ao c a b o d e m e se s e a n o s d e d ic a d o s c u id a d o s a m e n te à fab ricação e à ob se rv ân c ia do seu estilo, des E sse in tes reso lve ch am ar um m édico. Este o exam ina, propõe-lhe um a dieta e receita: “ ... era m ister ab an d o n ar aquela so lidão , vo lta r a P aris, re in g ressa r na v ida co m u m ” (p. 254).

N o cap ítu lo segu in te , des E sse in tes p assa em rev is ta todas as suas lem branças d aque la v id a com um que o m éd ico lhe receitara : são algum as pág inas da m ais v io len ta condenação do sécu lo X IX , o sécu lo d a m e s q u in h e z , d a f a l s id a d e , d a a v id e z , d o e s p í r i t o p r á t ic o am erican izad o , da fu n c io n a lid ad e e s tú p id a . N en h u m a c la s se soc ia l p a rece te r se p re se rv ad o d essa im en sa b a lb ú rd ia e d e te r io ra ç ã o de va lo res . M as não há sa ída . O ro m an ce te rm in a co m des E sse in te s p reparando -se para a ‘c u ra ’:

Dentro de dois dias estarei em Paris: vamos - disse consigo - está tudo acabado mesmo; como maremoto, as vagas da mediocridade humana elevam-se até o céu e vão engolir o refúgio cujas barreiras eu mesmo abri, contra minha vontade. Ah! a coragem me falta e o coração me arrasta! — Senhor, tem piedade do cristão que duvida, do incrédulo que desejaria crer, do forçado da vida que embarca sozinho, de noite, sob um firmamento que não mais ilumina os consoladores finais da velha esperança, (p. 254)

156

Page 148: A Invencao Do Psicologico

Estilismo e excentricidade1

O exp erim en ta lism o ex is tenc ia l de des E sse in tes nos o ferece um detalhado e extenso panoram a da estilização com o m odo de vida. T rata- se, em todos os aspectos da ex is tênc ia , de e lab o ra r um estilo p ró p rio que se d ife ren c ie de todas as m ed idas cen tra is : a m éd ia , a m ed ian a e a m oda. H á um a in ten ção p e rm an en te de se r o rig in a l, de o c u p a r um e sp a ç o e x c ê n tr ic o , ta n to no s e n tid o g e o m é tr ic o co m o no se n tid o ex istencial do term o.

B in sw an g er (1977) id en tif ica na ex cen tric id ad e um m odo de ser co m p o sto pelas d iversas versões da indisponibilidade. O excên trico co loca -se na p osição dc recu sa a ‘fun c io n a r c o m ’, a ‘fun c io n ar ju n to a ’, to rna-se im prestável; escapa dos c ircu itos funcionais e, d esse m odo, c o n q u is ta e m a n té m u m a id e n t id a d e a b s o lu ta m e n te s in g u la r , d e se n ra iz a d a , e n c a p s u la d a , f e c h a d a ao m u n d o d o s o b je to s e ao conv ív io social. O excên trico organ iza-se em torno de um tem a, de um p rin c íp io , de um s is tem a que garan te sua co m p le ta un idade ao longo do tem po e, sim ultaneam en te , o to rna im perm eável a tudo que lhe vem ao encon tro desde o m undo físico e social. C om o esta sin g u la rid ad e in te iriça e res isten te c o b tid a m ed ian te um con jun to de m eticu lo so s cu idados dc si e do m undo - a estilização da v ida co loca , e fe tivam en te , a ex is tên c ia com o ob je to de um a técn ica so fis ticad a e in flex ível - , o estilo do excên trico reúne a s ingu laridade iden tifica tó ria a um a espécie dc im p e sso a l id a d e m a q u in a l; a p a r t ir de u m a su rp re s a in ic ia l , o excên trico tende a se to rnar ex trem am ente p rev isível.2

C re io q u e não p o d e m h a v e r d ú v id a s de q u e a s d e s c r iç õ e s fenom eno lóg icas de B insw anger, e labo radas à luz de alguns caso s de psicose, a justam -se m uito bem a des E sse in tes e, para além dele , a toda

um a m an e ira dc ser que H u y sm an s en ca rn a em seu p erso n ag em : o m o d o de sc r ‘d ec a d e n te ’, co m o era d esig n ad o ao final do sécu lo X IX (ho je não há um a d e s ig n ação co n sag rad a , em b o ra o fen ô m en o não ten h a desaparec ido ). N o en tan to , a tese que p re tendo d e fen d er é a de que, apesar de ser um excên trico g eog ráfico (des E sse in tes m on ta seu refúgio num a região iso lada na periferia dc Paris) e de ser um excêntrico e x is te n c ia l, a f ig u ra do e s t i l is ta e s tá r ig o ro sa m e n te no c e n tro d o te r r i tó r io t r ia n g u la r fo rm a d o p e lo s v é r t ic e s d o l ib e r a l is m o , d o rom an tism o e da d isc ip lina : o te rritó rio do desconhec im en to . P re tendo m o s tra r , ta m b é m , q u e e n q u a n to o c u p a e s te lu g a r , m a lg ra d o seu

157

Page 149: A Invencao Do Psicologico

centralíssimo, no espaço existencial disponível, des Esseintes está fora do alcance da psicologia; o seu é exatamente o lugar da resistência. O ‘psicológico’ se constituirá daquilo que deste lugar central se torna invisível.

O estilismo em des Esseintes leva às suas últimas conseqüências o desejo de privacidade peculiar ao liberalismo. A procura dc um espaço privado, seja o da casa e nela o dos aposentos íntimos, seja o do jardim inglês, o do clube masculino ou o da sociedade secreta, testemunhou desde o século XVIII a necessidade de locais privilegiados para o cultivo dc si (cf. cap. 3 deste livro). Des Esseintes pertence a esta mesma tradição, mas a leva adiante. Seus cuidados para reduzir, filtrar, dosar c, quando possível, impedir a presença do mundo no interior de seus aposentos vai ao ponto de encadernar as paredes, substituir janelas reais por fictícias, que se abrem para as paisagens programadas, conservar os cômodos invulneráveis à luz e ao ar naturais etc. Neste ambiente hermético, des Esseintes vive sozinho e se comunica com os criados através de bilhetes, sem nunca os ver. A privacidade para ele, contudo, não é uma garantia de liberdade. Ao contrário, o refúgio de des E ssein tes é uma espécie de prisão-m odelo na qual tudo é programado, segue rotinas, obedece horários etc. Seu cardápio diário, por exemplo, é decidido com meses de antecedência, item por item. Não só de liberdade ele está privado; está privado também da propriedade. Esta afirmação requer maiores esclarecimentos, já que a casa é um verdadeiro museu em que o dono conserva toda sorte de raridade. Contudo, a acumulação de objetos preciosos, quadros, livros raros em edições exclusivas, dispositivos especialmente fabricados para produzir sensações palatais, frascos de perfumes sutis, plantas exóticas etc. tudo isso lhe é de muito pouco ou de nenhum proveito. Exatamente como peças de museu, estas coisas estão ou vão ficando fora de circulação. No mundo dc des Esseintes, abarrotado de coisas, não há produção e mesmo o consumo é restrito, quando mais não seja por falta de apetite. Vez por outra ele se cncanta com seus livros, por exemplo, para logo se embrenhar cm divagações, para se enfastiar, para adoecer e para fazê-los retornar à condição de fetiches estéreis. Temos, assim, na identidade decadente um rebento exangue do liberalismo: privacidade sem liberdade e propriedade esterilizada e sem uso.

A presença do rom antism o é fácil de lo ca liza r desde as preferências literárias e artísticas do personagem. Na verdade, sua

158

Page 150: A Invencao Do Psicologico

recusa da sociedade burguesa, pragm ática, calculista, hipócrita e mesquinha está toda ela calcada na tradição romântica antiliberal e antidisciplinar. É nitidamente romântica, ainda, a aspiração a uma forma de identidade absolutamente singular e única, radicalmente diferenciada de todas as demais. No entanto, ficam excluídos do projeto de des Esseintes os impulsos espontâneos no rumo do autodesenvolvimento c qualquer esperança restauradora. No lugar de impulsos, tédio mortal e falta de apetite, impotência; no lugar da espontaneidade, a estilização m inuciosa; no lugar da restauração, a resignação a um estado de desenraizamento absoluto: nem a integração a uma comunidade mítica, nem a integração a uma natureza matricial (não há como retornar a um seio acolhedor e a própria perspectiva do retorno lhe é nauseante).

Finalmente, apesar de toda a sua deliberada imprestabilidade, do seu ódio aos valores do cálculo e da eficiência, do seu desprezo pelo espírito pragmático, des Esseintes monta para si mesmo um mundo completamente submetido ao controle de uma férrea disciplina. Trata- se, contudo, de uma disciplina para ociosos, de uma disciplina que se consagra à inutilidade, ao supérfluo, ao ornamental, ao antifuncional, ao indisponível.

Como se vê, a reunião exata de liberalism o, rom antism o e disciplina, no centro geométrico do triângulo, se faz através de uma sucessão de exchisões. Ao se reunirem a privacidade, a singularidade e a disciplina em suas formas puras e absolutas constitui-se, através de múltiplas e simultâneas negações, uma identidade exemplarmente resistente. Dela excluem-se a liberdade e os usos, os impulsos e a funcionalidade. Neste ponto central em que está postado, des Esseintes está paralisado. Todos os seus esforços dirigem-se para a conservação desta identidade, o que também significa a manutenção das cisões que lhe deram origem. Enquanto se mantém no equilíbrio instável deste centro, enquanto conserva o estilo próprio, enquanto, enfim, resiste, ele na sua excepcionalidade rebuscada não será, de fato, nem o homem m édio nem o hom em da m oda. No en tan to , e segu ram en te a contragosto, na sua raridade ele se toma o exemplar mais representativo do próprio mundo em que ‘sobre-vive’. É nele, inclusive, que se concentra a maior dose de ignorância acerca de si: no mundo que constrói para viver, des Esseintes procura exatamente a liberdade, o bom uso de si e das suas coisas, a satisfação plena de seus apetites, a

159

Page 151: A Invencao Do Psicologico

máxima funcionalidade do ambiente em relação às suas necessidades. Mas estes, como vimos, são tudo aquilo a que des Esseintes deve renunciar para manter sua identidade. Trata-se, dessa maneira, de uma identidade que se constitui na e como pura ilusão. O que ela nega, entretanto, não tarda a rcaparccer.

Efetivam ente, a m anutenção do estilo não é tarefa fácil. O romance de Huysmans, todo leitor o percebe, não tem enredo. É um rom ance em que nada ou quase nada aco n tece . O ra, o ‘não acontecim ento’, a ausência de história são os testemunhos de uma severa perturbação da temporalidade. A exclusão da liberdade, dos impulsos, dos usos e da funcionalidade retira os motores da história pessoal de des Esseintes. A partir de sua mudança para a casa nos arredores de Paris, parece que todo o esforço do personagem se volta para a conservação, com exceção do episódio da frustrada viagem à Inglaterra, que na sua própria frustração reforça o caráter conservador de todo o projeto. No entanto, o que foi excluído da identidade estilizada e excêntrica não foi por isso abolido, retorna como elemento potencialmente desagregador. No caso de des Esseintes, creio que suas doenças, que são tanto doenças de nervos como doenças físicas, resumem o sentido do tempo que deixou de ser história humana para ser apenas um tempo natural, o tempo da deterioração, da perda de controle, do aniquilamento. Pois bem, é tudo aquilo que este excêntrico excessivamente centrado em si mesmo e no seu mundo sofre, é este seu padecimento, que, ao contrário de tantas coisas que ele conserva, escapa ao seu domínio, e o expulsa finalmente de onde estava alojado, de volta ao turbilhão das forças, das pressões e das demandas da natureza e da sociedade.

Se des Esseintes tivesse vivido cinqüenta anos depois, não resta dúvida, ele sairia dessa experiência fracassada de centramento para se entregar aos cuidados de quem, supõe-se, é o especialista cm ‘homens que perderam o estilo ’ e se sentem imersos nos conflitos desse território em que todos vivemos e no qual agem livres, para alem da consciência integradora das identidades, as forças subm ersas do ‘psicológico’.

Talvez seja o momento de recordar que ao final do século XV Picò delia Mirandola situava o homem no centro vazio do mundo para que de lá ele tudo pudesse ver e tudo pudesse escolher para si.

160

Page 152: A Invencao Do Psicologico

Quatrocentos anos depois, ao final do século XIX, des Esseintes, deliberadamente excêntrico, mas também ele no centro do mundo, pouco vê e nada pode. Parece que se vai fechando assim o ciclo da modernidade. Mas não sem sofrimento e dores. Neste solo nasce a psicologia tal como a conhecemos.

Para além do estilo

Para encerrar, caberiam agora algumas poucas considerações visando situar os diversos projetos contemporâneos de psicologia no solo em que estão ainda plantados, procurando, também, dar um fecho às observações que foram sendo feitas ao longo destes ensaios. Todos estes pro jetos referem -se, de um a form a ou de outra, ao que, simultaneamente, se localiza no campo das experiências possíveis, mas está fora do alcance de uma consciência integradora, fora do âmbito da identidade, para além do estilo. Na verdade, creio que para as psicologias a identidade é um conceito-limite e o ‘psicológico’ vem a ser exatam ente o que condiciona/pressiona/estru tura/destroça as identidades.

Para além do estilo como identidade há diversos processos de dissolução, que resultam, por sua ve/,, em novos estilos.

O estilo da identidade é, paradigm aticam ente, o da suposta soberania do eu de des Esseintes no casulo de sua estrita e confinante privacidade. As dissoluções do estilo, por outro lado, são os processos que im põem a esta unidade de si para consigo os reveses do ‘adoecimento’; são as explosões c implosões do casulo sob o impacto das aspirações de liberdade, das exigências de funcionalidade e dos extravasamentos pulsionais.

Neste contexto, a oposição entre esferas pública e privada, ainda tão cara ao imaginário social, não tem mais nenhuma vigência efetiva. Não era dentro de casa que des Esseintes podia ser livre, satisfazer seus d ese jo s , sac ia r seus ap e tite s e se o rg an iza r de fo rm a funcionalmente confortável, embora fossem estes os seus propósitos. Não era, obviamente, fora de casa que isto poderia ter ocorrido. Tanto no público como no privado ele estaria, como identidade-estilo, igualmente submetido às mesmas restrições. Aquilo de que ele carece, por ter sido negado com o condição de em ergência de si com o

161

Page 153: A Invencao Do Psicologico

identidade, não lhe está disponível em parte alguma. Somente saindo de si cie poderia reintegrar algo do excluído, mas isto, naturalmente, à custa da própria unidade.

Os movimentos artísticos c literários desde o final do século XIX até os d ias de hoje testem unham , de va riad as m an eiras , o destroçamento do f « e a problematização do sujeito individual pela autonom ização daqueles elem entos que operam no reg istro do excluído.5 A saída dc si no campo das artes e da literatura foi buscada tanto na direção das formas funcionais, como no da expressão autêntica das forças pulsionais, com o na liberação do jugo da identidade convencional, conveniente e soberana. É possível reconhecer nestas orientações, cada uma das quais adm itindo uma am pla gama de efetuações, por exemplo, a arquitetura funcional, as artes plásticas e a música expressionistas e os surrealismos, entre outros. Há, em todas estas manifestações artísticas, uma ruptura radical com o princípio da estilização identificatória. Cada uma delas, contudo, arrisca-se a, rapidam ente, converter-se também em estilo. Talvez este destino ‘estiloso’ do nosso tempo se deva a que a incorporação dos elementos excluídos seja sempre parcial: o outro de si que a identidade incorpora é sempre apenas um dos outros; vale dizer, cada descentramento parece repetir também uma exclusão. Cada estilo novo segrega, ele mesmo, o seu im pensável, o seu próprio inconsciente. Isto não nos deve surpreender se nos lembrarmos da natureza genuinamente conflitiva do espaço da contemporaneidade, que o torna por isso mesmo um território de desconhecimento. A outra consideração pertinente é a de que a sobrevivência neste espaço exige form as de subjetivação inevitavelm ente ilusórias e resistentes. Em últim a instância, há, inclusive, que saber respeitar este ingrediente essencial de ignorância.

Se formos agora do plano das tendências literárias e artísticas para o dos p rocessos de su b je tiv ação e ‘d e s -su b je tiv a ç ã o ’, encontraremos os mesmos movimentos, só que realizados à revelia. Os elementos excluídos c tornados independentes do eu retornam como irrupções indesejáveis e incontroláveis, na com pulsiv idade dos sintomas ou num difuso e inexplicável mal-estar. Retornos como esses tiraram o excêntrico des Esseintes de seu centro na forma de doenças de causas desconhecidas; o adoecer é uma experiência modelar de alienação: as forças e pressões alienadas da funcionalidade, dos

162

Page 154: A Invencao Do Psicologico

impulsos, da liberdade e usos de si e das coisas disputam entre si o sujeito supostamente indiviso e soberano e desmantelam o seu estilo.

O espaço do ‘psicológico’ será exatamente o que abriga as forças alienadas do eu, os elementos dos três vértices do espaço triangular expulsos da identidade-estilo, as relações entre eles e os processos de subjetivação/‘des-subjetivação’ que promovem incessantemente.

Há diversas maneiras de pensar e fazer psicologia, porque há diversas possibilidades de lidar com estes elementos, sua estrutura e dinâmica. É possível, por exemplo, privilegiar um, dois ou os três vértices. Se a psicanálise freudiana é ainda hoje um m odelo de teorização - independentemente de aceitarmos as teorias propriamente ditas - é, creio, pela sua disposição em acolher e lidar com um complexo sistema de forças em conflito, embora isso lhe traga dificuldades extremas para a sua própria articulação e consistência.

Por outro lado, é possível pensar a psicologia como um recurso de uma estratégia a serviço da ‘reidentificação’, vale dizer, da integração dos elementos alienados em formas mais ou menos centradas e flexíveis de identidade. Ou então, ao contrário, pode-se colocar a psicologia a serviço da desidentificação, dando-lhe uma tarefa em inentem ente analítica, crítica, desilusionadora e desconstrutiva. Novamente, aqui, a psicanálise freudiana é um modelo seminal em que pesem leituras da psicanálise que enfatizam os processos integrativos e regeneradores, seja no vértice romântico da restauração, seja no vértice disciplinar da adaptação funcional.

Enfim, a psicologia nasceu e sobreviveu numa encruzilhada: há maneiras nostálgicas e reparativas de fazer psicologia; são formas comprometidas com a modernidade e com a soberania do sujeito; são estas psicologias que, independentemente de escolas, pertencem ao campo do humanismo moderno; elas militam para restabelecer para o homem os privilégios que lhe atribuía Pico delia Mirandola. Há, por outro lado, psicologias que ajudam a tirar o sujeito do centro do mundo, da posição de fundamento do saber e de foco de irradiação das escolhas e ações. Estas psicologias já não cabem na Idade Moderna. Elas não têm nada a ver com o humanismo.

Seria excessivamente simples declinar agora minhas preferências. Penso, na verdade, que em qualquer destas alternativas a posição do psicólogo seria como a de alguém que recebe uma carta anônima com

163

Page 155: A Invencao Do Psicologico

revelações importantíssimas, mas cuja validade não pode ser estimada porque se desconhece sua procedência. Acreditar ou jogá-la no lixo dependeria, desta maneira, de uma decisão bastante arbitrária do leitor. Da mesma forma, escolher entre as psicologias hoje disponíveis é um ato de pura arbitrariedade enquanto não entendermos a proveniência de nossos ‘objetos’, enquanto não compreenderm os a história do ‘psico lógico’ e, portanto, a pré-história das posições da própria psicologia no século XX. Isto, creio eu, a psicanálise, também ela, não logra com preender, ten d en d o a n a tu ra liz a r seus o b je to s e a desconhecer a conjuntura em que o ‘psicológico’ se oferece como campo sui generis dc saber e intervenção. C reio, enfim , que a compreensão de que falo não se pode elaborar na posição de psicólogo, ou psicanalista, enquanto um especialista no psicológico. Ela deve partir, quem sabe, deste lugar-nenhum em que os saberes ‘psi’, a história, a filosofia e as artes se encontram e se perdem no exercício do mero pensar.

164

Page 156: A Invencao Do Psicologico

Notas

1. A análise que faço do personagem de Huysmans beneficiou-se da leitura de Eugen Weber (1988) para situar o tipo em sua época; do capítulo XVII, entre outros, do texto de Morse Peckham ([1962] 1981) para compreensão do estilismo, e do cap ítu lo X de F red e riek G arber (1982) para a com preensão da experiência de autonom ia de se lf e laborada por des Esseintes, e de suas vicissitudes. Creio, porém, que é original a sugestão de compreender a excentricidade como ocupando uma posição central no te rritó rio do desconhecim ento , ou seja, com o sendo um a form a de subjetivação representativa da contemporaneidade, apesar de infrequente.

2. No capítulo 2 deste livro tratei do am aneiram ento como estratégia de construção de identidade e, à primeira vista, o estilo amaneirado pode ser confundido com o estilo da excentricidade de que estou tratando agora. Realmente, nos dois casos trata-se de uma construção de identidade em condições precárias de existência, em condições nas quais as ameaças de desintegração rondam permanentemente o sujeito. No entanto, conviria agora enfatizar as diferenças entre estes dois estilos. No caso de dom Quixote, por exemplo, há nitidamente uma adesão a modelos idealizados e uma procura de confirm ação em relações especulares; daí a ânsia de reconhecimento que dá o tom das falas e dos gestos do personagem. Na mesma medida, os nobres da corte, o rei inclusive, sobrevivem inseridos num vasto sistema social cm que cada um devolve ao próximo sua imagem e sua identidade. Não é por acaso que as cortes se organizam num sistema altamente codificado - a etiqueta - e que no mesmo período os espelhos tenham se tornado uma peça indispensável dos interiores mundanos. Já no caso de des Esseintes, a identidade prescinde e recusa qualquer modelo; o e s tilism o ex cên trico p rocu ra e la b o ra r um a id en tid ad e o rig in a ) e absolutamente singularizada. De outro lado, a confirmação pelos outros não c necessária e até pode ser arriscada. Na verdade, quando um espelho é introduzido na história é para revelar exatamente a diferença, ou seja, o fracasso de todo esforço de estilização identificatória. E interessante lembrar que também as relações do Dorian Gray, de W ilde, com sua imagem especular são relações conflituosas e marcadas pela diferença entre as duas imagens; ele será sempre o contrário do que o famoso retrato mostra.

3. As rapidíssimas observações acerca das quebras e restaurações de estilo na virada do século e nos primeiros anos do século XX encontram apoio, penso eu , em análises com o as d esen v o lv id as por C ari S chorske ([1961 ] 1983), principalmente nos capítulos 1, 5, 6 e 7.

165