a formação do estado no brasil - uma abordagem teórica da historiografia

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Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007. 1 Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade A formação do Estado no Brasil: uma abordagem teórica da historiografia Maria Fernanda Vieira Martins FFP/UERJ/FAPERJ * Maria Letícia Corrêa PPGH/UERJ/FAPERJ ** Em uma perspectiva de longa duração, partindo-se da história do Brasil após a Independência, é notável a persistência, na historiografia, de interpretações baseadas em uma noção reificada de Estado, como aquela presente nas análises informadas pela hipótese da modernização conservadora ou da modernização autoritária. Nesse quadro, marcos importantes, como a manutenção da unidade nacional/territorial e a construção de uma autoridade central, no século XIX, ou a modernização urbana e econômica e a ampliação da cidadania, no século XX, passam a ser considerados como conseqüências da ação de uma elite homogeneizada e treinada para esse fim ou de lideranças competentes, que integram e dirigem, por sua vez, os diversos órgãos da burocracia de governo. Ao partilharem uma representação da política tal como esta se apresenta, por vezes, nas próprias fontes, tais análises arriscam deixar de lado dinâmicas importantes sobre o processo de expansão do governo direto, como a oposição entre público e privado, a diversidade e conflitos de interesses entre os setores dominantes e as relações entre esses grupos, dentro e fora do próprio Estado 1 . Malgrado a contínua ampliação do campo da pesquisa em História que caracterizou a maior parte do século XX, autores de distintas filiações têm indicado a pertinência do tema da construção do Estado e da nação, ainda nos dias atuais. Assim, se o século XIX os consagrou como objetos por excelência da prática historiográfica – razão pela qual a constituição da disciplina científica teria guardado um caráter extremamente politizado, como o demonstra a própria origem “estatal” da profissão de * Professora recém-doutora no Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da Uerj e bolsista da Faperj. ** Professora recém-doutora no Programa de Pós-Graduação em História da Uerj e bolsista da Faperj. 1 Charles Tilly. Coerção, capital e estados europeus, 1990-1992. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ed. da USP, 1996. p.76.

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Page 1: A Formação Do Estado No Brasil - Uma Abordagem Teórica Da Historiografia

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007.

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Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia

brasileira e modernidade

A formação do Estado no Brasil: uma abordagem teórica da historiografia

Maria Fernanda Vieira Martins FFP/UERJ/FAPERJ∗ Maria Letícia Corrêa

PPGH/UERJ/FAPERJ∗∗

Em uma perspectiva de longa duração, partindo-se da história do Brasil após a

Independência, é notável a persistência, na historiografia, de interpretações baseadas em

uma noção reificada de Estado, como aquela presente nas análises informadas pela

hipótese da modernização conservadora ou da modernização autoritária. Nesse quadro,

marcos importantes, como a manutenção da unidade nacional/territorial e a construção

de uma autoridade central, no século XIX, ou a modernização urbana e econômica e a

ampliação da cidadania, no século XX, passam a ser considerados como conseqüências

da ação de uma elite homogeneizada e treinada para esse fim ou de lideranças

competentes, que integram e dirigem, por sua vez, os diversos órgãos da burocracia de

governo. Ao partilharem uma representação da política tal como esta se apresenta, por

vezes, nas próprias fontes, tais análises arriscam deixar de lado dinâmicas importantes

sobre o processo de expansão do governo direto, como a oposição entre público e

privado, a diversidade e conflitos de interesses entre os setores dominantes e as relações

entre esses grupos, dentro e fora do próprio Estado1.

Malgrado a contínua ampliação do campo da pesquisa em História que

caracterizou a maior parte do século XX, autores de distintas filiações têm indicado a

pertinência do tema da construção do Estado e da nação, ainda nos dias atuais. Assim,

se o século XIX os consagrou como objetos por excelência da prática historiográfica –

razão pela qual a constituição da disciplina científica teria guardado um caráter

extremamente politizado, como o demonstra a própria origem “estatal” da profissão de

∗ Professora recém-doutora no Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da Uerj e bolsista da Faperj. ∗∗ Professora recém-doutora no Programa de Pós-Graduação em História da Uerj e bolsista da Faperj. 1 Charles Tilly. Coerção, capital e estados europeus, 1990-1992. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ed. da USP, 1996. p.76.

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historiador e o pragmatismo da escrita da História no oitocentos2 –, um abandono

radical dessa reflexão, por outro lado, como anunciado na perspectiva pós-moderna,

acarretaria um esvaziamento dos pressupostos essencialmente políticos do exercício da

disciplina3.

Uma avaliação bastante pertinente das diversas interpretações sobre o tema da

construção do Estado e da nação tem sido proposta por Richard Graham, que indica

corretamente a percepção, por parte dos proprietários de terras nas diversas regiões do

país em meados do século XIX, de que o fortalecimento da monarquia e a formação do

governo central se revelavam tanto apropriados como úteis a seus fins pessoais, sendo

esse o fundamento do sentimento da solidariedade nacional. Nesse processo, se o

Estado fomentou a emergência de uma nação única, diferentemente do que ocorrera nos

novos estados que emergiram na América de colonização espanhola, esse mesmo

sentimento comunitário, por outro lado, fortalecia também o Estado, desenvolvendo-se

entre ambos – Estado e Nação – uma relação antes dinâmica do que de determinação do

primeiro sobre a segunda.

Diversamente ao que é proposto por Graham, a interpretação nacionalista na

historiografia brasileira – pela suposição de que a nação existia antes mesmo da

Independência, o Estado emergindo inexorável e logicamente da nação e em harmonia

com o desejo nacional4 – teria como conseqüência política mais direta a própria

legitimação do Estado central e das ações de repressão às rebeliões e dissidências

regionais, bem como o reforço dessa mesma autoridade5.

2 Stefan Berger, Mark Donovan &, Kevin Passmore (Eds.). Historians and the nation-state. In: Writing national histories. London: Routledge, 1999. p. 281-304; Georg G. Iggers. Nationalism and historiography: 1789-1996. In: Stefan Berger, Mark Donovan &, Kevin Passmore (Eds.). Writing national histories. London: Routledge, 1999, p. 15-29. 3 Gertrude Himmelfarb. Is National History obsolete? In: The new history and the old. 6th printing. Cambridge, Massachusetts/London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 1995. 4 Para uma nova leitura da perspectiva nacionalista da historiografia brasileira sobre a independência, ver Ilmar R. Mattos. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense, revista eletrônica, maio de 2005: 8-26. Disponível em: http://www.almanack.usp.br/neste_numero/index.asp?numero=1. Acesso em 20 jun. 2007. 5 Segundo Graham: “Não é por acidente que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838, por D. Pedro II, endossou tal visão da precedência da nação. É uma interpretação que permeia livros escolares usados pelas crianças brasileiras até hoje. É irônico que José Honório Rodrigues, que se considerava um reformador anti-establishment e era tido por outros como um populista perigoso, teria defendido a tese que existia uma nação única e unida desde os tempos coloniais, ao invés de concluir que a nação resultou do exercício da autoridade de um estado baseado numa aliança de elites classistas.” Richard Graham. Construindo uma nação no Brasil do século XIX: Visões novas e antigas sobre classe, cultura e Estado. Traduzido do artigo em inglês: Constructing a Nation in Nineteenth-Century Brazil: Old and New Views on Class, Culture, and the State. The Journal of the Historical Society, v. 1, no. 2-3, p. 17-56, 2001, e publicado com permissão.

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Embora reapresentada em novos termos, quando nos debruçamos sobre a

história brasileira no século XX, a interpretação predominante sobre o processo de

construção do Estado e da formação da nação traz implicações políticas igualmente

importantes. Assim, embora a consolidação da unidade política e a formação territorial

tenham sido alcançadas ao longo do oitocentos, a historiografia política brasileira

estaria marcada sobretudo pela percepção de um impasse, relativo à separação entre

Estado e nação, a qual se expressa na afirmação da distância entre o alcance efetivo da

representação política e o desenvolvimento econômico e social, ou ainda na separação

entre classes e política. O mesmo impasse é denunciado sobretudo como uma falta, ou

como um processo político sempre incompleto, ainda por ser concluído.

A idéia de que a formação da nação era um processo ainda incompleto estava

presente, por exemplo, na conhecida análise de Sérgio Buarque de Holanda em 1936,

tendo o autor atribuído o mesmo impasse ao caráter patrimonial do Estado originado da

colonização portuguesa, com destaque para a prevalência, neste, dos interesses e laços

privados. Na formação da sociedade brasileira:

O quadro familiar torna-se, assim tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundamentadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades6.

Assim, para Sérgio Buarque, nem a Revolução de 1930, nem a Constituição de

1934, resultando de uma “revolução horizontal” que respondia apenas a uma nova

alternância entre as facções no poder, não teriam logrado uma efetiva expansão da base

de representação política que pudesse responder efetivamente aos anseios da nação.

A interpretação que ressalta o caráter patrimonial do Estado brasileiro, bem

como a ênfase nas raízes ibéricas dessa formação, seriam retomadas no estudo clássico

de Raymundo Faoro, publicado pela primeira vez ao final da década de 1950 e ampliado

nos anos 1970, em um momento igualmente difícil da história política brasileira e

iniciado também –como aquele vivido por Buarque de Holanda, na década de 1930 –

por um movimento que se apresentava como uma “revolução”. Incorporando o novo

contexto da “política de massas” e da crescente importância política dos grupos que

emergiam da industrialização do país, cuja participação era, entretanto, duramente

Disponível em: <http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol5_mesa1.html>. Acesso em 20 jun. 2007. Sem indicação de páginas na versão eletrônica. 6 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p.50.

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cerceada ou controlada, a leitura de Faoro mantinha-se, como não podia deixar de ser,

extremante pessimista:

O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência, se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, o que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das massas sem participação política e a nacionalização do poder [...]. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou.7

Ao lado da leitura patrimonialista sobre a formação do Estado no Brasil, uma

outra perspectiva, pautada pela mesma ênfase no impasse entre Estado e nação, teria se

desenvolvido a partir das análises das relações entre Estado e economia, tomando-se

esses enquanto campos distintos e independentes. Nesse caso, além das análises do

quadro político, sublinha-se sobretudo o caráter incompleto do desenvolvimento

econômico brasileiro – ou da revolução burguesa no Brasil – devendo ser destacados,

os estudos vinculados à chamada “teoria da dependência”, ressaltando-se o papel dos

Estados nacionais e das políticas de governo e sua repercussão sobre a economia dos

Estados latino-americanos, na economia política da Cepal. Como havia ocorrido

também no caso das análises sobre a formação da nação no século XIX, ganham ênfase,

na nova perspectiva, as diferentes estratégias adotadas pelas elites ou por frações das

classes dominantes, internamente, e sua inserção no contexto maior do capitalismo,

como condição para a melhor compreensão do seu próprio desempenho econômico,

instaurando-se, novamente, como questão nuclear para o entendimento da transição

capitalista nesses países, o estudo dos processos históricos de constituição dos Estados

nacionais8.

Essa nova abordagem teve o mérito de denunciar como falso o suposto caráter

progressista ou mesmo nacional das elites e frações de classes dominantes locais, e

também o de questionar o caráter democrático de alianças por vezes classificadas como

“populistas”, apoiadas pelos partidos comunistas latino-americanos desde os anos 1930.

Articulava-se, por esse motivo, uma dura crítica à estratégia da revolução democrático-

burguesa proposta por essas lideranças, que se manteve em grande parte inalterada até o

início do ciclo dos regimes militares no continente, nos anos 1950. De qualquer modo,

7 Raymundo Faoro. Os donos do poder. Porto Alegre/São Paulo: Globo/Edusp, 1975. v. 2, p. 748. 8 José Luis Fiori. De volta à questão da riqueza de algumas nações. In: José Luis Fiori (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 28.

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tornaram-se bastante influentes na década seguinte sobretudo as análises histórico-

comparativas sobre trajetórias e padrões de industrialização e modernização política,

como os trabalhos de Alexander Gershenkron e Barrington Moore Jr., que indicavam a

multiplicidade dos caminhos percorridos na formação dos Estados9, o que teria

acarretado, por sua vez, o surgimento de uma “dúvida radical” com relação às previsões

e otimismos evolucionistas e lineares sobre a expansão do capitalismo e a

transformação institucional e política das sociedades tradicionais.

No debate teórico latino-americano, a contribuição mais importante proviria da

identificação de um novo paradigma ou via tardia de industrialização e modernização

conservadora, semelhante ao que Engels e Lênin tinham identificado para a Alemanha

do século XIX como via “pelo alto” ou “prussiana”, reunindo burguesias frágeis e

internacionalizadas com burocracias estatais fortes e militarizadas, num contexto

agrário de lenta mercantilização e repressão de mão-de-obra, e no urbano, de

industrialização acelerada a partir de objetivos militares e de potência estatal, proposto

nos estudos de Martins, Reis, Velho e Werneck Vianna10.

Na década de 1970, a tese sobre a viabilidade do desenvolvimento capitalista a

partir de condições iniciais de dependência teria um outro desdobramento teórico e

político, através dos estudos centrados nos aspectos políticos e autoritários do

desenvolvimento brasileiro, o que se articulava, por sua vez, então, à crítica da política

econômica do regime militar e à formulação de um projeto de reforma do

desenvolvimentismo brasileiro, o qual se tentou implementar, em parte, depois de 1985,

com o fim da ditadura militar11.

É notável, entretanto, que o esforço por marcar a especificidade da

modernização brasileira, mesmo quando objeto de uma sofisticada abordagem como

aquela proposta por Florestan Fernandes, ainda nos anos 1970, mais tarde retomada em

estudos sobre o desenvolvimento econômico12, seria forçada a sublinhar, mais uma vez,

9 Alexander Gerschenkron. El atraso económico en su perspectiva histórica. Barcelona: Ediciones Ariel, 1968; Barrington Moore Jr. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 10 Luciano Martins. Pouvoir et développement économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil. Paris: Anthropos, 1976; Elisa Pereira Reis. Elites agrárias, state-building e autoritarismo. Dados, 25 (3), 1982. pp. 331-348; Elisa Pereira Reis. The agrarian roots of authoritarian modernization in Brazil (1880-1930). Massachusetts: Phd Dissertation to Massachusetts Institute of Technology, 1979; Otávio Guilherme Velho. Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo: Difel, 1975; Luiz Werneck Vianna. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 11 José Luis Fiori. Op. cit. p. 29. 12 Sônia Draibe. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da

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aquele mesmo caráter incompleto do processo de formação das instituições políticas e

do próprio Estado brasileiro apontado em interpretações de filiações teóricas bastante

distintas daquelas desse autor, como nos textos de Sérgio Buarque de Holanda e

Raymundo Faoro, acima citados, dessa vez pelo recurso à categoria de estamento, ao

lado do Estado patrimonial. Assim, para Florestan Fernandes:

Em uma sociedade estruturada estamentalmente, não só o poder de competir é regulado pelas diferenças de níveis sociais. Ele não pode ser aplicado nem livremente, nem irrestritamente, mesmo nas “relações entre iguais”, sem pôr em risco as bases do equilíbrio social e a continuidade da ordem social. [...] [Nessas condições] resguardava-se a sociedade do corrosivo espírito burguês, fortalecendo-se os laços que prendiam os homens aos seus níveis sociais, aos correspondentes códigos de honra e ao mito de que o Brasil é ingovernável sem a versão autocrático-paternalista do despotismo esclarecido.13

Do ponto de vista teórico, a superação do impasse indicado nessas

interpretações, no que se refere à compreensão da formação do Estado nacional no

Brasil, acreditamos ser necessário considerá-la como um processo contínuo e

permanente, imbuído do caráter dinâmico que o próprio termo sugere na acepção

proposta por Norbert Elias, isto é, como algo que confere continuidade às

descontinuidades, e cujo sentido não está dado natural e intencionalmente, a priori, mas

se constrói permanentemente; trata-se de compreender o processo não como evolução,

mas como história14.

Dada essa perspectiva, primeiramente deve-se considerar que se verificou no

Brasil após a Independência foi o início de um processo de formação do Estado no

sentido clássico, compreendendo alguns aspectos básicos inerentes à constituição e ao

desenvolvimento dos estados nacionais: a centralização do poder, que engloba a

unificação e consolidação das fronteiras territoriais; a superação de conflitos via

controle de poderes paralelos e manutenção de hierarquias sociais pré-estabelecidas; a industrialização no Brasil, 1930-1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Ver também Marcelo de Paiva Abreu (org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1989. O tema da modernização autoritária foi retomado recentemente por Boris Fausto em seu perfil biográfico de Getúlio Vargas, referindo-se o autor ao período do Estado Novo (1937-1845). Cf. Boris Fausto. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Deve ser destacado, por sua vez, que coletâneas recentes sobre história do Brasil no século XX não encaminharam uma discussão sobre essas visões tradicionais acerca da formação do Estado. Cf. Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (org.). O Brasil republicano: o tempo da experiência democrática. Da democratização de 1945 ao golpe civil militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 13 Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Apud. Gabriel Cohn. A revolução burguesa no Brasil. In: Lourenço Dantas Mota (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 4ª. ed. São Paulo: Senac, 2004. v. 1. p. 403. 14 Norbert Elias. Processes of State formation and Nation building, In Transactions of the 7th World Congress of Sociology 1970, p. 274-284. Disponível em: < http://www.usyd.edu.au/su/social/elias/state.htm>. Acesso em 20 jun. 2007.

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constituição de um aparato jurídico visando a normatização de sua ação legal; a

formação de uma estrutura burocrática para garantir a administração; e a transferência

dos serviços básicos do poder privado para o poder público. Em conjunto, são esses

aspectos que possibilitam a construção de uma autoridade central.15

Tanto a transferência da Corte portuguesa quanto o processo de Independência

de 1822 – este acompanhado pela opção ao constitucionalismo, que refletia as

aspirações liberais expressas na Carta de 1824 –, representaram marcos irrefutáveis no

que se refere à história política brasileira, no sentido de que, naquele momento,

iniciava-se a construção formal das instituições que integraram a monarquia brasileira, a

qual, entre avanços e recuos, seguiria o já consolidado padrão europeu do Estado-nação.

Mas não se tratava, contudo, da simples importação de um modelo. Sua compreensão

não deve excluir toda a dinâmica da vida político-administrativa colonial, suas relações

com a metrópole portuguesa, bem como as práticas e ideais das elites que aqui

vivenciaram e deram forma a esse processo.

Nessa etapa, estruturantes da autoridade central eram as práticas de negociação e

as redes de relacionamentos:

A transição para um governo direto deu aos governantes livre acesso aos cidadãos e aos recursos que eles controlavam, através de tributações de família, conscrição de massa, censos, sistema de polícia, e muitas outras invasões da vida social em pequena escala. Mas isso foi feito à custa de uma resistência multiplicada, de extensa negociação e da criação de direitos e compensações para os cidadãos. Tanto a penetração quanto a negociação criaram novas estruturas de Estado, inchando os orçamentos do governo, o quadro de pessoal e os diagramas organizacionais.16

Havia, entretanto, um longo caminho a percorrer até a constituição de um

governo direto. O que se deve ressaltar é que estudos recentes têm demonstrado que o

processo de centralização e a própria formação do Estado se deram antes pela busca do

consentimento político e pelo desenvolvimento de relações permanentes com as elites

locais/regionais, do que pela coerção militar ou mesmo por inovações burocrático-

institucionais, ou seja, pela ação de uma burocracia formada e vinculada exclusivamente

15 Os aspectos que envolvem a formação do Estado nacional, aqui considerados, estão baseados principalmente em Charles Tilly. Coerção, capital e estados europeus, 1990-1992, cap. 1; e Charles Tilly, Reflections on the history of european state-making. In: Charles Tilly (org). The formation of national States in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. 16 Ibidem, Coerção, capital e estados europeus. p. 74.

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aos interesses do Estado.17 Até o século XIX, a relação com as elites incluía a

distribuição de títulos e honrarias, a concessão de privilégios, a representação nos

conselhos e órgãos da administração central e, principalmente no início, a transferência

dos mecanismos fiscais para particulares, ou seja, uma certa privatização de serviços na

ausência de um aparelho burocrático capaz de dar conta das atividades inerentes ao

novo Estado centralizado.18

Assim, partindo-se do pressuposto de que um Estado não se constrói

independentemente da sociedade, sem expressar os interesses e retratar os conflitos que

nela se apresentam, deve ser notado que o sentido da centralização não partiu única e

exclusivamente do Estado, mas foi ainda desejado e buscado por esses grupos sociais,

até porque poucas ameaças são mais sentidas pelas elites do que aquelas dirigidas à

hierarquia social e à ordem estabelecida, mais temidas em momentos de convulsões

sociais de qualquer natureza.19

É cômodo demais estudar a formação dos Estados como se fosse uma espécie de engenharia, onde os reis e seus ministros seriam os engenheiros projetistas. Quatro fatos comprometem a imagem do atrevido projeto: 1. Raramente príncipes europeus tiveram em mente um modelo do tipo de estado que estavam produzindo, e mesmo raramente ainda agiram com eficácia para produzir esse modelo de estado; 2. Nenhum deles projetou os principais componentes dos estados nacionais – tesouros, tribunais, administrações centrais etc. Habitualmente foram constituídos mais ou menos como produtos secundários involuntários dos esforços para cumprir as tarefas mais imediatas, especialmente a criação e manutenção das forças armadas; 3. Outros estados – e eventualmente todo o sistema de estado – influenciaram intensamente a trajetória de mudança seguida por algum estado em particular; 4. A luta e a negociação com classes diferentes da população moldaram de forma significativa os estados que emergiram da Europa.20

No que se refere ao processo de formação da burocracia, cabe ressaltar que

também apresentava um duplo caráter, no sentido de que não servia unicamente à ao

governo central, nem representou uma força autônoma, desvinculada das elites

tradicionais. Ao contrário, os cargos encontravam-se mais fortemente vinculados às

elites locais e regionais, em um longo processo de integração territorial que se ampliava

17 Entre os diversos autores que partilham de abordagens nessa linha pode-se citar Charles Tilly, Antônio Manoel Hespanha, Xavier Gil Pujol, José Subtil, Nicholas Henshall, Pedro Cardim, Heinz Duchhardt, Ronald G. Asch, José Antônio Maravall e Ernst Hinrichs. 18 “Longe de ser imposto de fora, o poder estatal era inseparável da ordem social em qualquer nível e estava imbricado em uma complexa rede de valores e relações sociais. Era o produto de um processo em duas direções”. Nicholas Henshall, El absolutismo de la edad moderna 1500-1700: realidad politica o propaganda?, in Heinz Duchhardt e Ronald G. Asch (eds.), El Absolutismo, un mito? Barcelona: Idea Books, 2000. p. 66-70. 19 Ver principalmente Xavier Gil Pujol, Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope, no 6, 1991, p. 125, e Heinz Duchhardt e Ronald G. Asch. Op. cit., p. 13. 20 Charles Tilly, Coerção, capital e estados europeus, 1990-1992, op. cit., p. 75-76.

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desde o século XVIII. Somente nesse contexto alcança o seu pleno sentido o aspecto,

apontado em geral na historiografia, de que a sociedade brasileira valorizava e mesmo

se estruturava com base nas relações pessoais, o que por si só trazia grandes obstáculos

para a constituição de uma burocracia profissional independente, que pudesse ser

identificada simplesmente às instituições governamentais.21

Quanto aos Estados americanos, formados no início do século XIX, finalmente

seria preciso considerar o fato fundamental de que as elites nessas regiões já contavam

com modelos de Estados nacionais plenamente constituídos, e dispunham de amplo

conhecimento de sua história e funcionamento. Tais elites, portanto,

Tentaram conscientemente criar estados nacionais. Não que os resultados se assemelhassem necessariamente aos planos, mas o fato de os governantes estarem tentando criar estados ao invés de apenas reagir a necessidades prementes, criou uma diferença quanto àquilo que os dirigentes fizeram e ao modo como o justificaram para aqueles que forneceram os meios para a criação do Estado. Depois de constituído o sistema europeu de estado, o ambiente internacional que moldava os estados americanos emergentes também era diferente do que havia sido na época inicial em que os estados europeus se estavam formando. Simplesmente para obter reconhecimento diplomático dentro do sistema internacional estabelecido, os dirigentes dos estados emergentes tiveram de adotar formas organizacionais identificáveis a estados nacionais.22

Entretanto, havia espaço ainda para lidar com especificidades locais, da mesma

forma que havia tanto tradições quanto conjunturas que impunham soluções novas e que

não permitiam a importação e a colocação em prática de um modelo fechado. Essas

características específicas possibilitariam, por exemplo, desde as primeiras décadas do

século XIX, a opção brasileira pela monarquia em uma América progressivamente

republicana, a elaboração de uma Constituição que, em linhas gerais, seguia

pressupostos liberais – sob os quais deveriam conviver o modelo dos três poderes e a

adoção inédita do Poder Moderador, o sistema representativo e o voto excludente, o

liberalismo e a escravidão –, bem como o desenvolvimento de práticas e estratégias

políticas para manter essa mesma monarquia irremediavelmente submetida à Carta

constitucional, seguida pela experiência do federalismo na República Velha.23

21 Na prática, “em uma administração em que os cargos públicos – com freqüência e como norma geral – eram contemplados como propriedade de seus donos, e na qual estes ainda os possuíam em propriedade privada dos meios objetivos da administração, a burocracia constituía mais um impedimento do que um eficiente instrumento de poder para a imposição da política monárquica”. Heinz Duchhardt e Ronald G. Asch, op. cit., p. 39. 22 Karl Monsma, Apresentação, in Charles Tilly, op. cit., p. 29-30. in Coerção, capital e estados europeus. 23 Angela Alonso. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 33. Citando Charles Tilly, (Contentious repertories in Great Britain, 1758-1834. Social Science History, v. 17, n. 2, 1993).

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Visto por esse prisma, observa-se que a dinâmica da política desde a

Independência caracterizou-se pela negação do confronto e do conflito – o que deu

origem, por sua vez, a formulação de uma interpretação específica sobre a história da

formação do Estado – com o que se visava a impedir a execução das mudanças

estruturais necessárias e o enfrentamento direto dos principais problemas que afligiam o

país. Como ciência, tanto no nível da ação do Estado, bem no que diz respeito aos

pressupostos de sua legitimação, o que se acreditava, desde então, era que a política

precisava ser pragmática, objetiva. Tratava-se, inquestionavelmente, de uma postura

conservadora, no sentido da manutenção de uma hierarquia social excludente. Esse foi o

sentido da ação política, que se justificava no discurso administrativo por excelência, no

ilimitado amparo da lei, nos esforços de aproximação das dissidências, na prática quase

cotidiana de negociação, nas alianças que obedeciam a uma estratégia maior de

segurança e estabilidade.

Paradoxalmente, embora alcançassem sucesso na obra de centralização,

fundamental no caminho da consolidação de um Estado nacional, este sucesso limitava-

se, em geral, à própria organização e racionalização da estrutura político-administrativa

e ao controle dos poderes paralelos, transferindo-se lentamente as funções

administrativas para o poder central. A negação do confronto tornou mais lenta a efetiva

publicização das instituições, o que seria esperado em um processo de formação de um

Estado moderno, no sentido de uma real ampliação da participação, da superação

definitiva de uma prática política baseada nas relações pessoais, ou mesmo a abertura da

máquina administrativa. Esse era, de fato, um jogo complexo, onde interesses pessoais

ou de grupos moldavam-se a interesses coletivos que se estabeleciam no

desenvolvimento de uma ação pública do Estado. A eterna negociação e administração

dos conflitos, o permanente adiamento das reformas substanciais, com a ampliação da

representatividade, tendiam a manter o poder nas mãos da esfera privada, demonstrando

que as permanências características dos tempos iniciais desde a Independência não

puderam ser totalmente superadas.

Considerada a formação do Estado e da nação enquanto um processo, o

predomínio das relações pessoais teria continuidade no período republicano, com as

trocas clientelares ainda envolvendo a distribuição de favores e privilégios. Entretanto,

tornava-se fundamental a conciliação entre esses espaços e os novos interesses que

começam a se fazer sentir na medida em que avançava o governo direto, o Estado

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Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007.

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constituindo-se como tal, como instância do público, inclusive pela progressiva

especialização de funções e atribuições que caracteriza um Estado nacional moderno.