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62 CARTACAPITAL.COM.BR Plural O “tambor da selva’’ convoca à dança as tribos reunidas no Club Homs A força da gafieira MÚSICA À meia-luz, o gênero dançante resiste e atrai profissionais como Hamilton de Holanda, virtuose do bandolim POR ANA FERRAZ ••CCPluralAbreSamba804ok.indd 62 12/06/14 14:09

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O “tambor da selva’’ convoca à dança as tribos reunidas no Club Homs

A força da gafieiraMÚSICA À meia-luz, o gênero dançante resiste e atrai profissionais como Hamilton de Holanda, virtuose do bandolim POR ANA FERRAZ

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“Digo que Duke Ellington foi meu pai, não no sentido estrito da palavra. Mas foi ele quem

começou a me mostrar o que era sua música e o que dizem que é jazz, mas não é, e o que deveria ser”

CHARLES MINGUS(Em Música com Z – Artigos, Reportagens, Entrevistas, 1957–2014, de Zuza Homem de Mello, Editora 34)

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O sapato bicolor, preto e branco, mandou fazer na Vila Matilde. O chapéu--panamá foi comprado no Largo do Paissandu. O ter-

no sóbrio ficou mais distinto com o cole-te preto. Aos primeiros acordes, enlaçou a dama e com elegância evoluiu de modo suave pelo salão. Sem malabarismos, en-trelaçaram as pernas numa poesia sen-sual e se moveram em sinuosa sintonia. Fábio e Cátia Santana, de 35 e 34 anos, fariam bonito nas míticas gafieiras pau-listanas dos anos 1960, templos como Som de Cristal, Amarelinho ou Sandália de Prata.

Mais de 50 anos se passaram desde o au-ge do gênero surgido na alvorada do século XX entre negros e mesti-ços pobres em busca de ascensão social. “Tais eram os pequenos equí-vocos de etiqueta come-tidos que um cronista chamaria pela primei-ra vez esses tipos de clu-be de gafieiras para ex-pressar, sob esse neolo-gismo, a verdadeira enfiada de gaffes que neles sempre ocorria”, descreve o pesqui-sador e crítico musical José Ramos Tinho-rão no livro Os Sons Que Vêm da Rua.

Os tempos de apogeu da gafieira fi-caram no passado, mas o gênero sobrevi-ve com força, mesmo que à meia-luz. En-tusiastas como os Santana peregrinam com devoção por salões onde o famoso estatuto da gafieira com regras estritas de (bom) comportamento ainda vigora. E seguem à risca os mandamentos, a in-cluir capricho no vestuário e contenção nos modos. “Quem inventou essa histó-ria de jogar mulher pra cima, essas firu-

da a princípio resistiu à ideia da grande festa dançante. “Valeu a pena ter encara-do, porque virou um sucesso. Quem vai sempre volta, é um ambiente agradável onde quem manda é o ritmo.” No palco, é acompanhado por Eduardo Neves (so-pros), Guto Wirti (baixo), Xande Figuei-redo (bateria), Rafael dos Anjos (violão) e Thiago da Serrinha (percussão). “To-dos na banda são improvisadores natos. O povo dança e a gente improvisa. E co-mo cantamos, vira um karaokê coleti-vo. Tem muita energia em jogo. A músi-

ca é infinita e me dá a possibilidade de levar o público a entrar não só na minha viagem, mas cada um na sua e se ale-grar, requebrar.”

O bandolinista pro-dígio que começou a tocar aos 5 anos se en-tusiasma com o fato de esse formato, um dos muitos a que se dedica, permitir in-tercalar músicas in-terpretadas somen-te por instrumentos. “No meio da festa em

que tocamos Pixinguinha, Aldir Blanc, João Bosco, Dorival Caymmi, Chico Bu-arque, Arlindo Cruz, colocamos sete ou oito composições instrumentais. É ga-fieira e muito mais.”

Idealizador do bandolim de dez cordas, o tradicional tem oito, artifício que encon-trou para expressar melhor ideias polifô-nicas, o instrumentista nascido no Rio de Janeiro e criado em Brasília planeja plas-mar em DVD a alegria contagiante da ga-fieira do Almeidinha (apelido do artista nos tempos de adolescente), com lança-mento previsto neste semestre. “A sensa-ção de que você está fazendo uma coisa que transmite felicidade dá motivo para viver.”

las, foi o teatro de revista, ao glamouri-zar a gafieira”, afirma Osvaldinho da Cuí-ca, primeiro Cidadão Samba Paulistano, historiador diletante do samba paulista e testemunha da trajetória da gafieira dos primórdios até o que considera a estili-zação do gênero. “Havia o cantor, o con-junto. Era MPB, não batucada, perdeu-se a tradição”, analisa o compositor, autor com o crítico e pesquisador André Do-mingues do livro Batuqueiros da Pauli-ceia (Barcarolla) e com CD novo na pra-ça, O Velho Batuqueiro.

Assíduos nas salas de dança, Márcia Val e o namorado, Alexandre, enfrenta-ram uma sexta-feira fria e chuvosa pa-ra conhecer o Baile do Almeidinha, ini-ciativa do bandolinista e compositor Ha-milton de Holanda, que há dois anos lota o Circo Voador, no Rio de Janeiro. Virtu-ose do bandolim habituado aos teatros com público sentado em silêncio, Holan-

A vertigem da alegria. Mattoli, do Clube do Balanço, e Holanda, do Baile do Almeidinha: samba-rock e gafieira com direito a música instrumental de qualidade

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Do ponto de vista histórico, o trom-bone com o fraseado que favorece o deslizar do corpo ajudou a consolidar a gafieira como gênero. Profissional há dez anos, Allan Abbadia bebe da fonte da tradição, desenvolveu carreira com base na linguagem do “trombonista de ouro” Raul de Barros e integra a ban-da Segura o Tombo, que acompanha Germano Mathias em shows e em seu novo CD, Meu Samba É de Futebol, com lançamento na sexta-feira 13 no Sesc-Pompeia. “Quando o Mathias fala que é o último dos moicanos é verdade, ninguém canta sincopado como ele”, constata. “O samba de ga-fieira é mais elaborado, com di-visão marcante. O pagode é mais fácil, é liso”, ensina Ma-thias. Malandro icônico, daque-les de protagonizar cena seme-lhante à narrada no clássico Pis-ton de Gafieira (Billy Blanco) ao se enrabichar por uma dama, le-var uma cadeirada do acompa-nhante da moça e acordar no hospital, estranha as baladas “em que se fica com o copo na mão e quase não se dança”. Aos 80 anos, viveu o ápice dos tem-pos dourados da ginga e lembra com detalhes a indumentária que era pré-requisito para o salão: “Sa-pato bicolor de bico fino, terno amigo da onça, calça com 18 centímetros de boca, chapéu ou topete”.

Abbadia multiplica-se para levar a ga-fieira a muitos rincões. Apresenta-se com a banda Universo Gafieira no Zais, casa dançante da Vila Mariana. Toca ao lado de Toninho Ferragutti (acordeão) e outros bambas no Baile do Ribeiro, re-alizado no JazzB, Centro. E se apresen-ta no concorrido Ó do Borogodó, na bo-êmia Vila Madalena.

Enquanto a gafieira mantém a força de forma quase sempre discreta, o sam-

lembra Marco Mattoli, que aglutinou os músicos para recriar ao vivo o delicio-so pandemônio sonoro que os DJs dos anos 1960 e 1970 promoviam. “Era uma discotecagem muito rica, que mesclava repertório popular e sofisticado.”

Em um ano, o Clube do Balanço (Mattoli, Tereza Gama, Edu Salma-so “Peixe”, Gringo Pirrongelli, Mar-

celo Malta, Fred Prince, Tiqui-nho e Reginaldo 16) fez a traves-sia da periferia à Vila Madalena. “Ninguém fora do circuito sabia o que era samba-rock. Lotamos o Grazie a Dio em 2000 e 2001 e tocamos lá por anos. A coisa pe-gou porque era música para dan-çar que fugia do estereótipo do sambão, do pagode romântico. Era uma redescoberta do Brasil.”

Mattoli vê semelhanças na for-ma como gafieira e samba-rock nasceram e evoluíram. “Nos anos 1960, quando a onda da cul-tura americana chegou aqui, o negro paulistano interpretou o swing. Ele ouvia aquilo, mas também Elza Soares e Moreira da Silva, então criou essa dança peculiar de São Paulo. Os profes-sores de dança de salão costu-mam dizer que o samba-rock é a

gafieira paulistana.” A explosiva com-binação da vertigem do rock à sensua-lidade do samba de gafieira infiltra-se por lugares como a Casa de Portugal, na Liberdade, o Círculo Militar, no bairro do Paraíso, e salões mais modestos. Re-des digitais ajudam na divulgação, mas o forte é o que Mattoli e sua turma cha-mam de “tambor da selva”. Essa convo-cação “primitiva” se dá por meio de flyers distribuídos em salões de cabe-leireiro e em lojas de disco. Nas festas, os DJs anunciam os próximos encon-tros e tudo conspira para que as tribos se encontrem em contagiantes rituais de culto à dança. •

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“Em 2000, ninguém fora do circuito sabia o que era samba-rock”, diz Mattoli

Abbadia leva a gafieira a muitos rincões

ba-rock esparrama-se, espalhafatoso, em bailes de alta combustão energética. Em maio, uma grande festa do gênero levou cerca de mil convidados ao tradi-cional salão do Club Homs. Aos pares ou em coreografias conjuntas, dançantes de idade e compleição altamente variá-veis tomaram a pista. Eram fãs e aman-tes do samba-rock atraídos pelo lança-

mento do quarto CD do Clube do Balan-ço, Menina da Janela (ybmusic). A ban-da, criada em 1999 para uma despreten-siosa festa realizada na Cohab Artur Alvim, zona leste, nunca mais saiu de cena. “Aquele foi um baile mítico”, re-

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