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A FITOGEOGRAFIA URBANA E SUA INSERÇÃO NA ANÁLISE DE RISCOS DE DESASTRES OCASIONADOS POR FITOCÍDIO
Ivan de Matos e Silva Junior1
RESUMO
A biogeografia compreende um dos campos científicos de notável relevância na análise físico-natural quanto socioambiental, uma vez que ajuda a descrever e explicar o peso dos organismos vivos, sobretudo, do componente antrópico nos processos físicos que constituem e dinamizam as paisagens. A análise empreendida pela fitogeografia, um dos grandes campos de investigação da biogeografia, que tem as coberturas vegetais como objeto de pesquisa, vem incorporando os espaços antropizados, especialmente urbanos, na compreensão das derivações antropogênicas desencadeadoras de desastres, especialmente relacionados à supressão de cobertura vegetal. Essa notoriedade da fitogeografia na análise de risco de desastres está vinculada ao peso da flora nos sistemas ambientais, especialmente em seu papel de controle dos processos erosivos. Diante dessa problemática, o presente artigo assinala a importância dos estudos fitogeográficos na análise socioambiental e apresenta o conceito de fitocídio e sua inserção no planejamento e gestão da arborização urbana. Por fitocídio urbano, compreende-se toda e qualquer ação de natureza antropogênica que venha comprometer diretamente ou indiretamente as condições ecológicas de coberturas vegetais nativas ou não, suprimindo-as parcial ou totalmente em espaços urbanos. Dentre os resultados dessa reflexão, pode-se afirmar que, ao mesmo tempo em que as sociedades humanas são vítimas de eventos desastrosos, associados à supressão vegetal, também são condicionantes para o agravamento de tais eventos, decorrentes geralmente da ausência de políticas públicas, o que demonstra a natureza social dos desastres. Além disso, constata-se uma carência de estudos de fitogeografia urbana relacionados às análises de risco de desastre; urgindo, nesse sentido, a necessidade de problematizar o papel ecológico, estético e social das coberturas vegetais, a fim de instrumentalizar políticas públicas de ordenamento territorial que venham prevenir riscos socioambientais, o que traduziria em melhoria das condições de vida e menos gastos na esfera pública.
Palavras-chave: Fitogeografia. Fitocídio. Riscos de desastres. Problemática socioambiental urbana.
1 INTRODUÇÃO
A abordagem do desastre, fundamentalmente, constitui-se como objeto de interesse
social, sendo, desse modo, um constructo sociocultural. Nesse sentido, é conveniente afirmar
que a apropriação conceitual da ideia de desastre no campo científico, costuma-se empregar o
termo desastre natural, atribuindo peso aos fenômenos cíclicos da natureza, especialmente em 1 IFBA – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, Professor de Geografia, [email protected]
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linhas de trabalho que conferem visibilidade das análises científicas de cunho físico-natural.
Os movimentos cíclicos da natureza são necessários para sua evolução e seu equilíbrio, o que
pode ocasionar, por vezes, desastres em razão do nível de exposição de determinas sociedades
a essas ameaças. Além disso, tal fato corrobora a necessidade de estudos analíticos que
incorporem o componente antrópico e seu peso na aceleração de desastres que comumente são
qualificados como naturais, encobrindo, por vezes, derivações antropogênicas responsáveis
por esses eventos. Outra questão que se coloca é o fato de que, ao mesmo tempo em que as
sociedades humanas são vítimas dessas derivações, também são condicionantes para o
agravamento de tais eventos, decorrentes, geralmente, de ausência de políticas públicas
continuadas na educação preventiva de riscos de desastres (VEYRET, 2007).
Nessa linha argumentativa, torna-se apropriada a noção de risco e desastre resgatada
por SORIANO & VALÊNCIO, 2009), em que: Os riscos, relação entre ameaça e vulnerabilidade, são a potencialidade de ocorrência de algum evento desastroso. Estes eventos se mostram cada vez mais comuns e podem ser de várias formas: naturais, tecnológicos, sociais, etc. Já os desastres são a materialização da potencialidade dos riscos, através da disrupção social de uma racionalidade anteriormente estabelecida, cujas consequências envolvem a perda de bens materiais e, para que se confirme um desastre, a perda de vidas humanas. Trata-se de um processo de ruptura que se caracteriza por duas variáveis: a primeira é a espacialização do evento desastroso e a segunda como fenômeno social, ou seja, os desastres são referidos espacialmente e socialmente através de diferentes níveis de vulnerabilidade (p. 146).
Desse modo, é possível afirmar que todo fenômeno, seja natural ou induzido pela
sociedade, que venha causar algum tipo de dano material, moral e psicológico, caracteriza-se
como desastre. Sendo assim, a ideia de desastre faz parte do imaginário como algo que é fruto
de algum tipo de ameaça às sociedades potencialmente afetadas. A extensão espacial de um
fenômeno natural ou induzido, bem como sua intensidade e temporalidade, aliada à percepção
de risco e das condições de vulnerabilidade das sociedades, constituem-se como instrumentos
analíticos para a compreensão da natureza dos desastres.
O conceito de risco natural, apesar de sua forte filiação com os fenômenos extremos
da natureza, deve ser compreendido sob um ponto de vista que remete à noção de risco
ambiental. Nesse sentido, esses riscos passam a ser compreendidos, também, como
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fenômenos sociais, já que atingem comunidades socioeconomicamente vulneráveis, o que
confere e justifica uma abordagem perceptiva dos riscos (DOUGLAS & WILDAVSKY,
2012).
Essa abordagem dos riscos ambientais enquanto fenômeno percebido surgiu na
geografia na década de 1960 nos Estados Unidos e, em pouco tempo, passou a existir um
arcabouço teórico capaz de estimular pesquisas em outros países, especialmente no Brasil, por
conta da necessidade de estudos e estratégias contínuas voltadas à prevenção de acidentes
(SOUZA; ZANELLA, 2009). Tal abordagem oferece a oportunidade de compreender como se
dá a relação do sujeito e seus espaços de convivência imediata, sobretudo aqueles espaços que
venham ocasionar algum tipo de ameaça. Essa discussão sobre a noção de risco, como objeto
social (VEYRET, 2007), é vista e definida como algo que remete à ideia de perigo, que, por
sua vez, é qualificado por um indivíduo ou por uma coletividade que atribui significado e
adota práticas ou não de convivências diante da ameaça.
Desse modo, a temática dos riscos de desastres, especialmente em sua vertente
socioambiental e, sobretudo, no campo da fitogeografia urbana, traduz a possibilidade e
potencialidade de aproximações cada vez mais significativas e necessárias com o
planejamento e a gestão urbana, sobretudo em trabalhos colaborativos com outros campos do
conhecimento técnico-científico, além da geografia, como a biologia, a engenharia ambiental
e o urbanismo.
A problematização da temática acerca do fitocídio, entendido como toda ação ou
prática lesiva às coberturas vegetais nativas ou não, sugere um escopo de investigação, uma
análise ampla, em que os conceitos clássicos da fitogeografia (aplicada geralmente em
espaços naturais ou pouco modificados pelo componente antrópico) sejam incorporados e
adaptados aos espaços densamente antropizados, a fim de compreender o peso das atividades
humanas nos processos biogeográficos emergentes nas cidades, que condicionam, por sua
vez, riscos de desastres.
Essa análise que conduz à fitogeografia peso importante na análise de risco de
desastres se justifica pela sua importância no redesenho das atuais concepções de gestão e a
forma de manejo de coberturas vegetais em espaços urbanos. A natureza dos riscos de
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desastres, em termos biogeográficos, está intrinsicamente ligada à intensidade das
intervenções técnicas sobre a biota, por sua vez, estimuladas por práticas institucionalizadas
de fitocídio, ou práticas indiscriminadas de supressão de cobertura vegetal.
2 A FITOGEOGRAFIA NA ANÁLISE URBANA
A distribuição geográfica das coberturas vegetais e da fauna demonstra o resultado
evolutivo de processos interativos de atributos geoecológicos entre si e, sobretudo, de suas
respostas aos atributos de natureza antrópica. Sua manifestação espacial pode revelar
condições pretéritas ainda presentes, como é o caso, por exemplo, da ocorrência atual de
coberturas do Cerrado (tipicamente do Brasil Central) no interior de coberturas vegetais
amazônicas, conforme assinala a teoria dos refúgios pleistocênicos ou teoria dos refúgios
ecológicos. Assim, a interação de processos climáticos, pedológicos, geológico-
geomorfológicos entre si tem condicionado componentes da biota aos inúmeros processos de
extinção e adaptação de organismos animais e vegetais.
Na atualidade, frente aos inúmeros processos de natureza antrópica, assistem-se
inúmeros processos de extinção e adaptação da biota numa escala histórica jamais vista.
Assim, “o que preocupa hoje é o fato de se anunciarem extinções em massa causadas pela
ação do homem, em particular pela demanda crescente de energia. Esse quadro, iniciado há
menos de trezentos anos, só tem se agravado” (BARROS, 2011, p. 19). De forma recíproca, a
vida vegetal, em especial, tem condicionado inúmeros processos de natureza física, o que
demonstra a natureza integral, temporal e dinâmica dos processos distributivos dos aspectos
geoecológicos.
Nesse sentido, a biogeografia é um desses ramos do conhecimento científico que
apresenta várias abordagens que, de alguma forma, convergem para o diálogo com a
geografia, a ecologia e demais campos que tenham interesse pelas questões do ambiente.
Tradicionalmente, costuma-se subdividir os estudos e as análises biogeográficas, sob o viés
físico-natural, em dois amplos campos de tratamento: a Biogeografia Ecológica e a
Paleobiogeografia ou Biogeografia Histórica. Segundo Cox e Moore,
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[...] A biogeografia ecológica, portanto, aborda questões que envolvem períodos de curta duração, em áreas internas a habitats e ou continentes e, essencialmente, com espécies e subespécies de animais e plantas vivos. A biogeografia histórica, por outro lado, aborda questões diferentes [...] A biogeografia histórica, dessa maneira, aborda questões que envolvem períodos de longa duração, intervalos de tempo evolucionários, em grandes áreas, frequentemente globais, com taxa em nível superior ao de espécie e taxa que estão extintas (2011, p.15).
Somando a essa abordagem físico-natural dos processos biogeográficos, de natureza
ecológica e histórica, torna-se imperativo, na análise biogeográfica, a vertente socioambiental
urbana, como forma de problematizar as derivações antropogênicas sobre os aspectos
geoecológicos, especialmente sobre os organismos da fauna e flora (Figura 1)
Figura 1: A biogeografia e suas abordagens Fonte: Elaboração do autor
A leitura que endereça aos aspectos antrópicos, peso fundamental nas análises da
natureza, demonstra a necessidade de estudos sistemáticos dos novos processos
biogeográficos induzidos em ambientes urbanos, leitura que agrega uma das mais recentes
linhas de investigação científica, comumente conhecida como biogeografia urbana, dentro de
uma abordagem socioambiental.
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A biogeografia urbana e, por extensão, a fitogeografia urbana auxiliam na
compreensão da análise acerca de novos processos biogeográficos de cosmopolitismo,
vicariância e endemismo em espaços urbanos; sendo um dos seus procedimentos de
investigação, identificar e mapear espécies nativas e exóticas, entendendo seus padrões de
distribuição geográfica em áreas urbanas. Além disso, é da alçada desse ramo da biogeografia
estudar o comportamento reprodutivo das espécies vegetais e sua interação com a fauna, bem
como reconhecer a adaptabilidade e os impactos e riscos dessas espécies em espaços urbanos,
assim como o componente antrópico interfere em sua espacialização. O estudo dos modelos
de arborização, sejam eles ecossistêmicos ou aleatórios, fazem parte do escopo de
investigação também da biogeografia urbana (SIQUEIRA, 2012). Ainda assim, como afirma
Siqueira, [...] Pensar hoje uma biogeografia adaptada à realidade do espaço urbano em que vivemos é um desafio. Se de um lado temos um distanciamento entre a vida urbana e as unidades ecossistêmicas que integram um determinado território, por outro, evidenciamos, com a crescente conscientização ambiental da sociedade, uma dupla preocupação. A primeira consiste em preservar os parcos fragmentos de áreas verdes ainda existentes em nossas cidades, agregando valores culturais e científicos a essas representações simbólicas e dando às mesmas dimensões sócio-educativas (2008, p. 196).
Inseridas as questões de fitogeografia urbana, é imprescindível resgatar algumas
considerações sobre o peso do processo de urbanização nos sistemas geoecológicos e,
sobretudo, apresentar as reais necessidades que orientam políticas públicas de arborização
urbana, acompanhadas, contraditoriamente, com ações de supressão vegetal, sob a
justificativa, por vezes, relacionada à possibilidade de riscos de desastres. É sabido que o
processo histórico de ocupação do território brasileiro se definiu à custa de modificações
importantes na geografia física, intensificando ou atenuando processos de entrada e saída de
matéria e energia.
Nesse contexto de busca do equilibro dinâmico, cada componente do meio físico
ajusta-se às novas condições geoambientais, que podem conduzir processos de degradação
ambiental, gerando irreversibilidade de determinados sistemas ecológicos; como pode,
também, ocasionar processos de resiliência, reajustando seus componentes frente às novas
situações geoecológicas postas pelos sistemas técnico-antrópicos. Em termos fitogeográficos,
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especialmente em espaços urbanos, é perfeitamente possível atingir uma ou outra situação
(irreversibilidade e resiliência), desde que considere a intensidade destes sistemas técnicos em
sua dimensão espaço-temporal.
Outro aspecto que se coloca à fitogeografia urbana traduz-se pelo questionamento
acerca de como explicitar a importância da fitogeografia no ordenamento territorial,
especialmente no planejamento e na gestão da arborização urbana, uma vez que seu escopo de
investigação sempre esteve ligado às abordagens físico-naturais, por vezes, excluindo o
homem dessas abordagens? Esse questionamento é apropriado, pois a arborização constitui-se
como uma linha de atividade que compreende tanto o planejamento quanto a gestão das
coberturas vegetais em espaços antropizados. Obviamente, as atividades de planejamento e de
gestão apropriam-se do conhecimento acumulado sobre coberturas vegetais no âmbito das
ciências naturais, da geografia e da própria ecologia. Dessa forma, é possível corroborar a
ideia de que existe uma apropriação de conhecimentos acerca da repartição geográfica da
flora e de seus condicionantes no âmbito do planejamento e da gestão urbana, o que torna
conveniente a inserção de várias pesquisas de fitogeografia em consonância com os
instrumentos legais de planejamento e gestão.
A fitogeografia urbana traduz esse desejo que incluir a sociedade como componente
importante no desenho das coberturas vegetais, colocando o componente antrópico tanto
vítima quanto agressor do meio ambiente. O homem assume, nesse contexto, capítulo
importante como fator ambiental. Como afirma Santos, A história do homem sobre a Terra é a história de uma ruptura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para tentar dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na história humana da natureza. [...] O homem se torna fator geológico, geomorfológico, climático e a grande mudança vem do fato de que os cataclismos naturais são um incidente, um momento, enquanto hoje a ação antrópica tem efeitos continuados, e cumulativos, graças ao modelo da vida adotado pela Humanidade (2008, p. 17).
Desse modo, atendendo às novas demandas de pesquisas orientadas por abordagens
integradas, incluindo o homem em sua análise, é possível, atualmente, vislumbrar análises das
coberturas vegetais, agregando aspectos físico-naturais e socioculturais, por entender que
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Juntamente com o relevo, o clima, a rede hidrográfica e os solos, a vegetação compõe o meio físico de uma região, país ou continente. A vegetação interage com todos esses elementos da paisagem e, quando em relação com o homem e suas atividades, ela é também integrante do meio ambiente. Entretanto, de todos esses elementos fisiográficos, é ela a mais vulnerável às ações antrópicas, podendo, rapidamente, perder sua composição e sua estrutura originais (PEREIRA, 2004 -2005, p. 107).
Corroborando a ideia de que é o componente vegetal que mais apresenta
vulnerabilidade às derivações de conteúdo antropogênico, justifica-se, pois, a inserção do
debate sobre a temática da supressão vegetal, sobretudo dos critérios que orientam e que
justificam práticas de retirada desse elemento da paisagem tão importante para a qualidade
ambiental.
Atendendo à qualidade ambiental, a inclusão de coberturas vegetais, especialmente
arbóreas, em espaços urbanos, está ligada, dentre outros aspectos, à tentativa de recomposição
da flora regional ou local. No entanto, de forma contraditória, as práticas de arborização ou de
manejo da vegetação são acompanhadas de ações de fitocídio ou supressão irresponsável das
fitofisionomias originais e/ou exóticas. Além disso, as práticas de recomposição da vegetação
nativa ou inserção de espécies exóticas, aparece com o intuito de garantir um arranjo do homem com o ambiente natural, afim de desfrutar seus principais benefícios inerentes ao bem-estar que estão diretamente vinculadas ao componente vegetal, atendendo ao aspecto cultural e psicológico do ser humano. Ela é representada por conjuntos arbóreos de diferentes origens e que desempenham diferentes papéis e tem desempenho no restabelecimento da relação entre o homem e o meio natural, garantindo melhor qualidade de vida (LIMA NETO, E. M. de; MELO & SOUZA, R., 2009, p. 56).
Além dessa dimensão psicológica, estética e cultural, as coberturas vegetais
desempenham, no meio físico, importante função no controle de processos erosivos,
atenuando processos de assoreamento de cursos fluviais, além de reduzir o efeito splash sobre
o solo, uma vez que a interceptação das águas pluviais nos galhos e folhas reduz a velocidade
desse agente erosivo na superfície. Assim, a introdução do verde em espaços urbanos justifica
por essas características socioambientais, como bem assinala Resende; Melo & Souza (2009): O verde urbano, representado pelo extrato arbóreo e pela vegetação rasteira, desempenha ação purificadora por fixação das poeiras e materiais residuais, realiza a reciclagem de gases tóxicos através da ação natural fotossintética, além de colaborar na depuração bacteriana e de outros micro-organismos,
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melhorando a qualidade do ar. Nas áreas verdes urbanas onde há o predomínio da permeabilidade, a vegetação contribui para manter as propriedades e a fertilidade dos solos, conserva a umidade, diminuindo a temperatura da superfície. Além disso, o verde associado à permeabilidade do solo condiciona o escoamento difuso, colaborando para a infiltração pluvial e redução de enchentes urbanas, influenciando no balanço hídrico (p. 46-47).
Desse modo, fica claro o peso dessa variável biótica na geomorfologia e na pedologia
local. No âmbito climático, essas formações vegetais retroalimentam a atmosfera, devolvendo
umidade e amenizando as temperaturas locais, bem como, criam condições para a circulação
dos ventos, conferindo mais conforto térmico, o que evidencia mais qualidade ambiental e
condições de bem-estar à população. Na perspectiva do ciclo hidrológico, além da
participação na circulação do ar, essas coberturas ajudam no equilíbrio de cursos d’água
superficiais e subsuperficiais, ajudando a reter água e distribuí-la ao longo do sistema.
3 O RISCO DE DESASTRES E O FITOCÍDIO URBANO
O risco apresenta-se como uma categoria de análise fundante e explicativa no tocante
à geografia, especialmente aos estudos investigativos das relações sociedade e natureza.
Desde muito cedo, as percepções de riscos compuseram o rol de atenções dos primeiros
agrupamentos sociais, que se viram obrigados a aprimorar convivências com o entorno, a fim
de garantir sua sobrevivência, especialmente em contextos de severas intempéries climáticas e
demais eventos ambientais. “De maneira geral, poderíamos dizer que a gênese dos riscos,
assim como o aumento da capacidade de gerar danos e de sua escala de abrangência,
acompanha a história da sociedade” (CASTRO et al, 2005). Se, antes, as adversidades
naturais eram representadas como desígnios divinos, prontamente aceitos e inquestionáveis,
com o advento da modernidade, essa noção de risco é discutida e problematizada num
contexto em que as intervenções técnicas sobre a natureza rompem cada vez mais essa relação
de simbiose e de pertença, ampliando a noção e a percepção de risco. Os riscos de desastres não estão relacionados unicamente com a probabilidade de que ocorra o evento natural desencadeante do processo destrutivo, mas também com os níveis de ameaça associados com esse fenômeno (inundações, secas, deslizamentos de terra, etc.) em lugares específicos e à vulnerabilidade da atividade social e econômica e da
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infraestrutura em áreas susceptíveis à ameaça. Isso quer dizer que a geração de ameaças e de vulnerabilidade é um processo histórico, como qualquer outro processo social. E, no caso das vulnerabilidades, ele pode ser um processo acumulativo que responde a diversos tipos de fatores e entre eles, estão não só as debilidades e as incertezas frente aos desastres, mas também a acumulação de experiências de gestão e comportamento e, de conhecimentos e de atitudes das organizações sociais frente aos mesmos. Portanto, já se compreende atualmente que os riscos de desastres são gerados socialmente. Ou seja, não basta ter um fenômeno natural detonante, é preciso que existam condições de exposição ao perigo, de ameaças e vulnerabilidade coletiva associados com processos sociais, econômicos, territoriais e políticos, que determinem os efeitos concretos de um fenômeno natural (FILGUEIRA, 2013, P. 53-54).
Com a distribuição e o incremento dos riscos, surgem situações sociais de ameaça.
Estas acompanham, na verdade, em algumas dimensões, a desigualdade de posições de estrato
e classes sociais, fazendo valer, entretanto, uma lógica distributiva substancialmente distinta:
os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou
que lucram com eles (BECK, 2011). Essa discussão sobre a noção de risco, como objeto
social, segundo Veyret é vista e definida como: [...] a percepção do perigo, da catástrofe possível. Ele existe apenas em relação a um indivíduo e a um grupo social ou profissional, uma comunidade, uma sociedade que o apreende por meio de representações mentais e com ele convive por meio de práticas específicas. Não há risco sem uma população ou individuo que o perceba e que poderia sofrer seus efeitos. Correm-se riscos, que são assumidos, recusados, estimados, avaliados, calculados. O risco é a tradução de uma ameaça, de um perigo para aquele que está sujeito a ele e o percebe como tal (2007, p. 11).
Nesse sentido, o estudo da percepção humana dos riscos oferece a oportunidade de
compreender como se dá a relação do sujeito e seus espaços de convivência imediata,
sobretudo aqueles espaços que venham ocasionar algum tipo de ameaça. São inúmeras as
abordagens concernentes aos riscos, partindo desde os aspectos objetivos até abordagens
perceptivas (riscos percebidos) (ADAMS, 2009). Enquanto a concepção objetiva analisa os
riscos ambientais seguindo parâmetros ambientais, passíveis de mensuração (essa abordagem
segue a linha quantitativista), a abordagem perceptiva reconhece e investiga as percepções e
representações dos sujeitos, caracterizando-se, portanto, como uma investigação qualitativa.
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É possível dizer que, atualmente, a geografia física esteja vinculada a uma leitura
objetiva desses riscos, no momento em que serve de subsídio para o estudo sistemático da
evolução de processos físico-naturais. A identificação e a análise da dinâmica desses
processos no tempo e no espaço sinalizam a possibilidade de criação de parâmetros e, por
consequência, o fomento de classificações de ambientes, tendo, como referência, informações
técnico-científicas desses riscos.
Desse modo, a abordagem objetiva dos riscos ambientais na geografia, especialmente
da geografia física, conduz ao entendimento de que as análises das ameaças e das
vulnerabilidades em determinados ambientes podem ser orientadas por parâmetros
geoambientais (clima, relevo, solo, hidrografia e vegetação), desde que identifique a
participação e o peso de cada um desses aspectos na dinâmica dos processos que venham
condicionar e configurar algum desastre. No entanto, há uma tradição em responsabilizar as chuvas e a falta de cobertura vegetal, assim como outros aspectos da natureza pela ocorrência e intensidade de eventos catastróficos e de desastres. No âmbito do discurso, costuma-se negar as questões políticas que dizem respeito à esfera pública, da responsabilidade, muitas vezes, com a questão do uso e ocupação do solo. O arranjo socioespacial de muitas cidades, especialmente no Brasil, demonstra o descaso com comunidades que vivem em áreas ambientalmente vulneráveis, fruto de políticas públicas de segregação socioespacial (MATOS, 2014, p.133).
Essa compreensão da natureza, tendo como uma das pautas sua abordagem dos riscos
de desastres na geografia, pode ser orientada a compreender de quais formas as idiossincrasias
do sujeito podem, de algum modo, interferir na percepção de riscos ambientais, especialmente
àqueles ligados às práticas de supressão vegetal.
Atendendo à necessidade de problematizar o peso da vegetação no espaço urbano e
das práticas de supressão da mesma, atrela-se a isso a noção de fitocídio. O termo fitocídio ou
práticas de fitocídio compreende um conceito novo de uma prática socioambiental antiga.
Corresponde, sobretudo, toda e qualquer ação ou conjunto de ações de natureza antropogênica
que compromete diretamente ou indiretamente as condições ecológicas de coberturas vegetais
nativas ou não, desencadeando sua supressão parcial ou total. Desse modo, tais práticas
lesivas alteram os padrões de distribuição geográfica, comprometendo a interdependência
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entre os elementos bióticos e abióticos da paisagem. Em contextos urbanos e rurais, essas
práticas são historicamente registradas e qualificadas usualmente como práticas de
desmatamento e queimadas. Como assinala Troppmair, [...] as áreas verdes em sistemas urbanos representam ecossistemas simplificados, pobres em espécies, e além das funções citadas, têm função estética, sendo os indivíduos que as compõem podados e “educados”, atendendo às exigências do momento. Podas drásticas, sem qualquer critério e de forma contínua, ocorrem em todas as cidades, levando, muitas vezes, os indivíduos à morte (2012, p. 154).
Na literatura científica, tais práticas de manejo da flora, sem qualquer critério, não são
citadas como fitocídio, embora seja usual o emprego do termo biocídio para se referir às
práticas lesivas que desencadeiem a mortandade de animais. Curiosamente, o termo bio,
embora se refira à ideia de vida em seu sentido amplo, no ordenamento jurídico brasileiro,
apenas cobre assuntos de interesse relacionados à fauna. Desse modo, as práticas lesivas,
qualificadas como biocídio, estão numa relação de correspondência ao que se poderia
qualificar como zoocídio e não fitocídio (Figura 2).
Desse modo, entendendo a vida de modo amplo, qualquer prática lesiva, a qualquer ser
vivo, enquanto biocídio, compreenderia tanto as ações que diretamente afetam à fauna quanto
à flora (Figura 3). Assim, por entender que os documentos oficiais apontam o biocídio a
determinadas espécies da fauna (zoocídio), torna-se conveniente assegurar o emprego do
termo fitocídio como forma de assinalar tais práticas antropogênicas sobre as coberturas
vegetais. O código florestal, por exemplo, embora não cite o presente conceito, faz alusão a
determinadas práticas através da ideia de desmatamento e queimadas, o que justificaria o
Figura 2: Relação entre o termo Zoocídio e Biocídio Fonte: Elaboração do autor
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emprego do conceito de fitocídio, por enfatizar a criminalização por danos cometidos às
formações vegetais.
O conceito de Fitocídio, na análise fitogeográfica, tem como propósito assinalar a
necessidade de rever as formas de intervenção, considerando, fundamentalmente, os
parâmetros físico-naturais e sociais que estão incorporados na cidade, entendendo, sobretudo,
como o ambiente funciona em sua totalidade, especialmente quanto ao balanço de circulação
de matéria e energia. Nesse contexto, a análise de riscos de desastres no ordenamento
territorial, considerando parâmetros fitogeográficos, traduz esse desejo de criar uma cultura de
prevenção de riscos de desastres associados por fitocídio, instrumentalizando, dessa forma,
ações socioeducativas às populações direta e indiretamente afetadas, o que justifica a inserção
da fitogeografia nas políticas de ordenamento do solo urbano.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar a temática do risco de desastres através do prisma da fitogeografia e, sobretudo,
das práticas de fitocídio, é refletir sobre as atuais políticas de ordenamento territorial em
espaços urbanos e seus desdobramentos socioambientais. Fica claro o papel da vegetação na
redução de riscos de desastres, especialmente relacionados às enchentes urbanas e aos
processos erosivos comuns em áreas de encostas.
Nesse contexto, as práticas de supressão vegetal, tanto em rios como em encostas,
criam condições de desequilíbrio físico-natural, ocasionando alteração das condições
Figura 3: A noção de Biocídio Fonte: Elaboração do autor
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microclimáticas, especialmente relacionadas à alteração da qualidade do ar. Acelera,
sobretudo, os processos erosivos e compromete a disponibilidade hídrica, uma vez que as
coberturas vegetais, ao passo que devolvem água para o ambiente atmosférico, por meio da
evapotranspiração, disponibilizam água, retendo-a em lençóis freáticos, rios e lagos.
Além disso, o conhecimento acerca dos benefícios e serviços ecológicos
desencadeados pelas coberturas vegetais demanda o conhecimento sempre atualizado das
modificações nos processos físico-naturais do espaço geográfico, com forte conteúdo
antropogênico, resgatando a necessidade de problematizar o papel ecológico, estético e social
das coberturas vegetais, a fim de instrumentalizar políticas públicas de ordenamento
territorial, as quais se traduzam em melhoria das condições de vida e menos gastos na esfera
pública, especialmente na área da saúde.
REFERÊNCIAS
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