a filosofia e a teologia da idade media

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1 Lucas Ferreira da Silva - Filosofia A Filosofia e a Teologia da Idade Média Filosofar e informar-se são duas coisas bem distintas. Filosofar significa sempre chegar a resultado, tomar decisões. Por isso seria muito pouco simplesmente descrever aqui o cristianismo como um fator determinante na história ocidental. Com isso, o cristianismo e a Igreja sempre equivaleriam. Sendo assim, a aspiração e o conteúdo do cristianismo podem ser adequadamente compreendidos? Isso precisa de uma análise de dois tipos do Novo Testamento: Compreensão histórica e decisão pessoal. Empenho na compreensão histórica, uma vez que as informações das instâncias educacionais são simplesmente insuficientes, como as advindas do convívio familiar, do educacional, das religiões e da mídia; decisão pessoal exigida pelo próprio assunto. A esse respeito, algumas referências. A peculiaridade do novo testamento, O Novo Testamento é um testemunho de fé de povos primitivos e tais testemunhos se expressam inteiramente segundo as ideias daquela época. Seria um grande equivoco, portanto, do que criticar as narrativas sobre os milagres de Jesus, dizendo que são “falsos” nossos conceitos de natureza e de objetividade, certamente ainda não existiam nessa visão de mundo. Devido a essa divisão do mundo e formas de representação, é muito difícil tornar palpável a figura do Jesus histórico. A pesquisa histórico-crítica deixa de fora dos relatos sobre sua vida o Evangelho de João, já que este surgiu cronologicamente por último, por volta do ano 100, e em grande parte constituído de reflexões teológicas. Dos três primeiros relatos, o Evangelho de Marcos é o mais antigo, por volta do ano 70, enquanto o de Mateus e o de Lucas devem ter sido escritos entre 75 e 95. Entre outras tradições, Mateus e Lucas recorrem ao Evangelho de Marcos. A dependência desses evangelistas e a transformação por ele operada são facilmente reconhecíveis quando colocamos os três evangelhos um ao lado do outro e obtemos uma visão de conjunto, ou seja, um resumo. Por isso, Mateus, Marcos e Lucas são chamados de “sinópticos”. O uso de uma sinopse do evangelho é bastante recomendável para todos aqueles que queiram analisar mais de perto a história da tradição. O problema do texto se complica ainda mais com os conhecimentos da assim chamada escola histórica de pesquisa bíblica. De acordo com ela, os evangelhos compõem-se de partes separadas, adaptadas segundo regras determinadas e que

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Page 1: A Filosofia e a Teologia Da Idade Media

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Lucas Ferreira da Silva - Filosofia

A Filosofia e a Teologia da Idade Média

Filosofar e informar-se são duas coisas bem distintas. Filosofar significa sempre

chegar a resultado, tomar decisões. Por isso seria muito pouco simplesmente descrever

aqui o cristianismo como um fator determinante na história ocidental. Com isso, o

cristianismo e a Igreja sempre equivaleriam. Sendo assim, a aspiração e o conteúdo do

cristianismo podem ser adequadamente compreendidos?

Isso precisa de uma análise de dois tipos do Novo Testamento: Compreensão

histórica e decisão pessoal. Empenho na compreensão histórica, uma vez que as

informações das instâncias educacionais são simplesmente insuficientes, como as

advindas do convívio familiar, do educacional, das religiões e da mídia; decisão pessoal

exigida pelo próprio assunto. A esse respeito, algumas referências.

A peculiaridade do novo testamento, O Novo Testamento é um testemunho de fé

de povos primitivos e tais testemunhos se expressam inteiramente segundo as ideias

daquela época. Seria um grande equivoco, portanto, do que criticar as narrativas sobre os

milagres de Jesus, dizendo que são “falsos” nossos conceitos de natureza e de

objetividade, certamente ainda não existiam nessa visão de mundo. Devido a essa divisão

do mundo e formas de representação, é muito difícil tornar palpável a figura do Jesus

histórico.

A pesquisa histórico-crítica deixa de fora dos relatos sobre sua vida o Evangelho de

João, já que este surgiu cronologicamente por último, por volta do ano 100, e em grande

parte constituído de reflexões teológicas. Dos três primeiros relatos, o Evangelho de

Marcos é o mais antigo, por volta do ano 70, enquanto o de Mateus e o de Lucas devem

ter sido escritos entre 75 e 95. Entre outras tradições, Mateus e Lucas recorrem ao

Evangelho de Marcos. A dependência desses evangelistas e a transformação por ele

operada são facilmente reconhecíveis quando colocamos os três evangelhos um ao lado

do outro e obtemos uma visão de conjunto, ou seja, um resumo. Por isso, Mateus, Marcos

e Lucas são chamados de “sinópticos”. O uso de uma sinopse do evangelho é bastante

recomendável para todos aqueles que queiram analisar mais de perto a história da

tradição.

O problema do texto se complica ainda mais com os conhecimentos da assim

chamada escola histórica de pesquisa bíblica. De acordo com ela, os evangelhos

compõem-se de partes separadas, adaptadas segundo regras determinadas e que

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Lucas Ferreira da Silva - Filosofia

originalmente circulam de maneira independente na comunidade. Portanto, encontram-

se nos evangelhos camadas distintas, intimamente entretecidas, como palavras de Jesus

supostamente tidas como autênticas afirmações atribuídas a Jesus pela comunidade

primitiva, narrativa das comunidades primitivas, a redação dos evangelistas, que

perseguiam, por sua vez, um determinado interesse teológico e por fim, interferências de

épocas posteriores.

Um pequeno trecho de uma sinopse revela de imediato a composição

diferenciada, nesse caso em relação à questão de qual saber Jesus dispõe.

Quando ocorrerá o retorno?

Mateus 24.34-36

Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que estas coisas

aconteçam. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Porém a

respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem mesmo os anjos do céu, nem o filho, mas

unicamente o Pai.

Marcos 13.30-32

Em verdade vos digo que não passará esta geração até que todas estas coisas

aconteçam. Passarão o céu e a terra, mas as minhas não palavras não passarão. Mas a

respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão o Pai.

Lucas 21.32-33

Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.

Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não hão de passar.

Visto que as palavras de Marcos, “nem o Filho”, causaram aparentemente um

escândalo, Mateus as omitiu, ao passo que Lucas contornou o problema de maneira

elegante. Por que essas alterações, por que, aliás, relatos escritos sobre Jesus? Resulta

claro, a partir de numerosas passagens citadas no Novo Testamento, que Jesus de Nazaré

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Lucas Ferreira da Silva - Filosofia

pertence ao grupo dos judeus apocalípticos. O conteúdo de sua mensagem é a vinda do

reinado iminente de Deus e o apelo para a conversão radical (um apelo que em sua

radicalidade ultrapassa as diversas conceituações de religiosidade e de deus da época).

Após sua morte, seus seguidores viviam na expectativa imediata da parúsia,

(“presença”) do retorno de Jesus e do início da nova era. Com a demora cada vez maior

dessa parúsia, formulavam problemas que podiam ser solucionados unicamente por meio

de interpretações sempre novas da figura de Jesus. Essa situação antes de tudo despertou

o interesse pela vida de Jesus, antes e depois de sua morte, e pelos relatos de milagres,

nos quais se revelava seu poder. Assim, Jesus sempre recebeu o título mais alto. Ele torna-

se o “Filho”, o servo de Deus, o “messias”, “o filho do homem”. Cuja chegada Jesus

anunciara, com o que, porém – isso é absolutamente essencial – ele mesmo não havia

contado originalmente.

Marcos 8.38

“Pois qualquer um que se envergonhar dele, quando vier na glória de seu Pai com

os santos anjos”. Essa linha de revalorização prossegue pelo Evangelho de João até os

dogmas cristológicos da primeira Igreja imperial. No problema da parúsia ausente reside,

em minha opinião, uma chave para a compreensão de muitas afirmações contraditórias

do cristianismo sobre sua relação com o mundo (Talvez alguém sarcástico possa definir o

cristianismo como história de um anjo com expectativas frustrada de parúsia).

Com esse saber acerca do lugar histórico da aparição de Jesus e da fé da

comunidade primitiva estaria por assim dizer “resolvida” a questão da fé? Para a maioria,

hoje em dia, certamente. Ela concebe o cristianismo – particularmente a fé na

ressurreição de Cristo – como expressão de uma nova visão de mundo que se tornou

estranha para nós. Porém, uma relação histórica – crítica com o Novo Testamento não

tem de significar necessariamente um distanciamento ateu. Um saber histórico também

pode levar-nos a encontrar, dentro de uma nova visão de mundo, uma mensagem que

ainda hoje nos diz respeito. Cito dois teólogos, G. Bornkamm e H. Braun, os quais

examinaram a fundo essa questão: “A partir do que foi dito, resulta que compreender as

histórias da Páscoa também como testemunhos de fé, não como registros formais e

crônicas, e temos, portanto, de indagar pela mensagem de Páscoa. Não estamos dizendo

com isso, de modo algum, que a mensagem da ressurreição de Jesus seja apenas um

produto da comunidade de fiéis. Certamente, a forma na qual ela se apresenta a nós está

marcada de fé.

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Lucas Ferreira da Silva - Filosofia

A fé na ressurreição de Jesus é uma forma antiga de expressão cristã, na verdade

uma forma de expressão condicionada pela circunstância, pela autoridade que Jesus

conquistou sobre aqueles homens.

Hoje não podemos considerar essa forma de expressão obrigatória. Porém, a

autoridade visada com essa forma de expressão certamente pode ser obrigatória para

nós.

A partir de uma mesma consciência histórica – crítica do texto, segundo os

teólogos chegaram a posições completamente diferentes. G. Bornkamn vê na fé da Páscoa

uma “profissão de fé de Deus nesse Jesus”, atendo-se, portanto, ao conceito de um deus

transcendente e sua intervenção na história humana. Já, segundo H. Braun, ao contrário,

trata-se tão-somente da singularidade do Jesus de Nazaré histórico, cuja autoridade

consiste, para ele, no apelo para o amor incondicional ao próximo: Jesus e a sua tradição

interpretam o amor de Deus como amor ao próximo”. Daí que, para ele o emprego da

palavra “Deus” se torne desimportante. Qual atitude em relação à fé cristã é então

correta é algo que só pode ser lançado como pergunta, que cada um tem de decidir por si

(decisão da qual tomam parte muitos outros motivos). Isso deveria despertar, no contexto

dessa história da filosofia, meramente a consciência, atualmente, de uma relação

histórico-crítica com o Novo Testamento e para o fato de que, com isso, a questão do

significado de Jesus permanece ainda em aberto.