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A Ficção Seriada Neopolicial da América Latina e o Noir Luiza Lusvarghi Universidade Nove de Julho [email protected] Resumo: O presente artigo pretende analisar a relação entre as séries de TV do gênero policial e de ação da recente produção latino-americana – A Lei e o Crime (2010-Record), Força- Tarefa (2009-2011, Rede Globo), 9MM (2009-2011, Fox), Mandrake (2008-2011, Fox); Epitafios (2004-2010, HBO), Profugos (2011, HBO) e Capadocia (2009-2011, HBO), e o estilo noir, ou negro, estabelecendo uma relação entre a classificação proposta para o cinema por Steve Neale (2000), a partir dos modelos hollywwodianos, e a de Jason Mittell (2004), que entende o gênero como uma categoria social, analisando o surgimento do gênero na TV dos Estados Unidos, a partir do rádio, com os cop shows. Uma das denominações mais comuns para esta produção latina é o termo neopolicial ou negro, numa alusão ao conceito de noir, utilizado pela primeira vez por Nino Frank (1946), e discutido sob as perspectivas de James Naremore (2008) e Frank Krutnik (2010). Palavras-chave: ficção seriada - ficção policial - policial noir - séries latino-americanas. 1

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A Ficção Seriada Neopolicial da América Latina e o Noir

Luiza Lusvarghi

Universidade Nove de Julho

[email protected]

Resumo:

O presente artigo pretende analisar a relação entre as séries de TV do gênero policial e

de ação da recente produção latino-americana – A Lei e o Crime (2010-Record), Força-

Tarefa (2009-2011, Rede Globo), 9MM (2009-2011, Fox), Mandrake (2008-2011, Fox);

Epitafios (2004-2010, HBO), Profugos (2011, HBO) e Capadocia (2009-2011, HBO), e

o estilo noir, ou negro, estabelecendo uma relação entre a classificação proposta para o

cinema por Steve Neale (2000), a partir dos modelos hollywwodianos, e a de Jason

Mittell (2004), que entende o gênero como uma categoria social, analisando o

surgimento do gênero na TV dos Estados Unidos, a partir do rádio, com os cop shows.

Uma das denominações mais comuns para esta produção latina é o termo neopolicial ou

negro, numa alusão ao conceito de noir, utilizado pela primeira vez por Nino Frank

(1946), e discutido sob as perspectivas de James Naremore (2008) e Frank Krutnik

(2010).

Palavras-chave: ficção seriada - ficção policial - policial noir - séries latino-americanas.

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A Ficção Seriada Neopolicial da América Latina e o Noir

Introdução

O sucesso internacional de filmes como “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e

Katia Lund, 2002), considerado uma ruptura com a retomada, e “Tropa de Elite 2”

(José Padilha, 2011), a maior bilheteria da história do cinema brasileiro, batendo “Dona

Flor e seus dois maridos” (Bruno Barreto, 1972), aparentemente parece ter inspirado no

Brasil uma nova onda de seriados policiais e de ação. As séries “Força-Tarefa” (Globo,

2009-2011), “9 MM” (HBO, 2008-2011), “A Lei e o Crime” (Record, 2010),

“Mandrake” (HBO, 2005-2008) invadiram as telas da TV. Mas a tendência não se

resume ao Brasil. Os argentinos “Poliladrón” (Canal 13, 1995-1997), “Epitafios” (HBO,

2004-2009), e a franquia “Hermanos y Detectives” (Telefe, 2006), com versões em oito

paises, de “Capadócia” (HBO,2008-2010), produzido pela HBO, passam a compor o

imaginário latino-americano do gênero com uma produção de ficção que fala de

violência, de conflitos sociais, e trata temas urbanos de forma realista e ao mesmo

tempo, se espelha na tradição destes gêneros no cinema mundial e, sobretudo, no

americano.

O mais recente exemplo desta tendência é a série “Prófugos” (HBO, 2011), uma

produção da HBO no Chile, em co-produção com as produtoras locais Efetres e Fabula.

No caso do Brasil, o desenvolvimento da produção em parceria com produtoras

independentes é uma característica da produção norte-americana que raramente se

reproduz nos grupos de mídia local.

Esses seriados televisivos inovam com relação aos tradicionais melodramas

característicos do formato telenovela, o mais popular da América Latina. Assim como

ocorreu com os cop shows americanos na década de 50, que desafiavam o padrão água

com açúcar das sitcoms, mostrando o outro lado da América, os seriados policiais e de

ação latino-americanos vão ser os responsáveis por introduzir na televisão os conflitos

da pós-modernidade, com personagens mais realistas, um cenário distante dos folhetins

eletrônicos e da fórmula fácil da ascensão social através do casamento, com finais

felizes.

O objetivo principal deste trabalho é estabelecer uma discussão sobre as relações

entre os seriados televisivos policiais que vêm surgindo nas produções recentes do

continente latino-americano, classificados como gênero policial ou de ação, e o noir, um

conceito escorregadio (Krutnik, 1991), mencionado como gênero, subgênero (do

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policial), estilo, tendência ou movimento. Esta comunicação integra a minha pesquisa

atual “A ficção neopolicial e suas relações de gênero no audiovisual - Brasil e América

Latina”.

Gênero, Nacionalidade e Entretenimento

As cinematografias latino-americanas, de modo geral, representam uma

categoria específica nas prateleiras das lojas especializadas, como se cinema argentino

ou cinema brasileiro constituíssem um gênero à parte. As classificações de gêneros

cinematográficos como drama, terror, comédia, policial, ação, são destinadas

invariavelmente às produções norte-americanas, com raras exceções. Essa condição, que

se agrava pela insipiência da produção cinematográfica no continente, contrasta com a

pujança da produção hollywoodiana, cujo predomínio se acentua com o monopólio da

distribuição, dificultando uma discussão de gêneros na produção latino-americana tanto

no cinema quanto na televisão. Quando alguma produção se destaca de forma

diferenciada, é basicamente atacada como “comercial”, como foi o caso da polêmica

inicial em torno do lançamento de “Cidade de Deus” no Brasil.

Em função de uma produção cinematográfica oscilante, é a produção televisiva

que vai se firmar como a grande referência de indústria cultural local, e dentro dela o

formato telenovela, é predominante. A telenovela, também chamada em alguns países

como teleserie, caso do Chile, vai ocupar papel central na produção de países como

México e Brasil, mas também de Argentina, Chile, Colômbia, Venezuela.

As telenovelas brasileiras e mexicanas são mais bem-sucedidas enquanto

formato de exportação. Mas é o melodrama, que tem como grande referência o cinema

americano, e na sua origem no continente, o rádio cubano, mencionado em muitos

textos também como estilo, que vai se firmar como gênero constante em toda essa

produção. São narrativas de duração limitada, diferentemente das soap operas, mas que

podem durar meses, com episódios de até 45 minutos, e temas que invariavelmente

privilegiam uma história de amor, em que o jovem casal protagonista enfrenta vilões e

ciladas para chegar a um final feliz. Na contemporaneidade, outros formatos, a maioria

de influência americana, como sitcoms, minisséries, ação, aventuras e policiais,

começam a marcar presença. Os seriados policiais e de ação, compreensivelmente, são

sempre os mais polêmicos.

Naremore (2008) defende a ideia de que a discussão do cinema atrelada à

literatura acaba por comprometer a qualidade da análise fílmica. Para ele, o noir em seu

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contexto original não se origina da associação com a literatura hard-boiled do período,

mas tem raízes no expressionismo alemão, e é um conceito que vai além da produção

dos anos 30 ou da discussão sobre o neo-noir e que se caracteriza quase sempre como

um olhar para o passado, e pela questão da linha tênue do conflito entre o bem e o mal.

O conceito do existencialismo em Bazin, também é um referencial importante, o que

equivale a dizer que o noir tende a uma estética que exalta a prevalência da realidade

sobre a narrativa e à postura critica social incorporada pela esquerda norte-americana

intelectual do período. Foi o caso de Dashiel Hammet, por exemplo, que entrou na lista

dos Hollywood Ten da House Un-American Activities Committee (HUAC), a comissão

que investigava artistas envolvidos em atividades antiamericanas, supostamente

comunistas (BAZIN Apud NAREMORE, 2008).

Posto isso, se como destaca Stam (2003), é a associação do cinema com a

literatura que vai consolidar o cinema enquanto arte em seus primórdios no cinema

mudo, não é somente a literatura de Chandler e de Hammet que vai consolidar a

aceitação do noir enquanto um produto bem-sucedido que surge respaldado num

movimento literário respeitado pela crítica e que, embora atrelado ao amusement,

atualiza naquele contexto uma ideia de oposição ao sistema e, especificamente, ao

macarthismo. Mas é sem dúvida a literatura americana que funda na modernidade a

ideia do noir enquanto contracultura. Para Krutnik (1991), ele subverte até hoje

inclusive a própria critica de gêneros, pois parte do conceito hollywwodiano para na

verdade destruí-lo, a partir do momento em que ele desafia as normas dos gêneros

convencionais, e do próprio filme policial, erigidos a partir das bilheterias e modelos de

produção. Filmes como “O Falcão Maltês” (The Maltese FAlcon, John Huston, 1941 ) e

“Pacto de Sangue” (Double Indemnity, Billy Wilder) só vão surgir nos anos 40 em

função das restrições impostas sobre a abordagem da violência pelo Código Hays.

O continente latino-americano não herdou de seus colonizadores uma tradição

de literatura de mistério ou policial. Diferentemente dos EUA, as obras que abordam o

tema vão surgir de forma mais expressiva somente na década de 80, com autores como

Ricardo Piglia, Rubem Fonseca, Ramon Diaz Eterovic, Patricia Melo. Na televisão, vale

destacar, a grande influência no estabelecimento de gêneros e formatos de ficção seriada

vem do cinema e também da televisão americana, com seus populares enlatados. Desta

forma, será estabelecida uma relação entre o gênero policial segundo as categorias

propostas por Steve Neale, que cria uma classificação para os gêneros a partir dos

modelos hollywoodianos para o cinema, mas também do conceito de categoria social

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para os gêneros na televisão proposto por Mittell (2004), para discutir as formatações

locais destes seriados.

Gênero e Política

Quando “Cidade de Deus” é lançado em 2002, é estabelecida uma polêmica pela

crítica brasileira, que acusa a obra de Fernando Meirelles de deturpar a realidade

brasileira comparando a estética do filme a uma “Cosmética da Fome”, numa alusão

paródica ao famoso manifesto de Glauber Rocha, e ao Cinema Novo, apoiada pelo

jornal O Estado de S. Paulo. A ideia de uma discussão de gêneros no audiovisual

nacional, e de propostas de filmes e seriados de entretenimento a partir da realidade

nacional sempre é objeto de controvérsia. O filme de Meirelles dialogava mais

claramente com obras urbanas daquele período, a exemplo de “Rio 40 Graus” (55), de

Nelson Pereira dos Santos, que antecede ao “Cinema Novo”, e com alguns thrillers

americanos de ação, adotando uma narrativa naturalista e documental. A opção pelo

autorismo, que surgiu como uma tendência em contrapartida à dominação da indústria

hollywwodiana sobre a produção e distribuição, vai acabar obstruindo a discussão sobre

os gêneros no cinema brasileiro.

“...O primeiro ponto que devemos sublinhar é a contraposição usual, já um

senso comum na imprensa mais sofisticada, entre filme de gênero e filme de

autor. Ocorre então a depreciação do primeiro, acusado sempre de ser o

reino do “sempre igual”, para seguir uma formulação frankfurtiana, da

repetição de estereótipo, produtos da avidez comercial. Já a obra de qualquer

cineasta-autor é sempre valorada como um conquistado espaço mágico da

criatividade, da expressão individual. “ RAMOS, José Mário Ortiz, pag 110,

acesso 20-03-2012 http://www.usp.br/revistausp/19/13-josemario.pdf),

Na verdade, o conceito de cinema de autor, como sugere o obra de Jean-Claude

Bernadet, surgido na França (BERNADET APUD RAMOS, pg 110), pressupõe a

repetição de um padrão, engessando muitas vezes a produção. No contexto político em

que se formou o Cinema Novo, a ideia de um filme artesanal, produzido fora do

contexto da indústria (que no Brasil praticamente não existia) se afirmou como

revolucionário.

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Apesar da polêmica, o filme de Meirelles e Lund foi indicado pela comissão

brasileira que escolheria o candidato estrangeiro para participar do Oscar em 2003. O

filme não foi selecionado, mas foi relançado nos EUA pelos Irmãos Weinstein, então na

Miramax, para poder concorrer, desta vez na categoria principal, no ano seguinte.

No Brasil, a indústria cultural e a produção voltada para o entretenimento se

estabelece a partir da televisão, e não do cinema ou da literatura (PAES, 2001). A ideia

de um cinema de resistência e não de entretenimento acaba por configurar um modelo

único de filme nacional, e a telenovela, o formato nacional de ficção seriada, é quase um

sinônimo da baixa qualidade artística, nos moldes propostos por Adorno em seu famoso

ensaio “A Indústria Cultural – O Iluminismo como mistificação de massas”. A ideia de

uma indústria cultural estabelecida a partir da televisão pode ser estendida ao restante da

América Latina.

Nas emissoras de televisão brasileiras, em que se destaca a Rede Globo, o

gênero ficcional predominante ainda é a telenovela, também chamadas de folhetim

eletrônico. O folhetim surgiu na França em 1836, e fazia sucesso na segunda metade do

século XIX, quando as narrativas eram publicadas diariamente em jornais nos espaços

destinados a entretenimento, com a função de popularizar o acesso e formar novos

leitores. O romance policial era publicado em periódicos jornalísticos no século XVIII

e XIX, e herdou características folhetinescas como o texto envolvente, o papel de herói

do detetive, a luta do bem contra o mal, a verossimilhança e atualidade informativo-

jornalística. Além disso, possui uma temática semelhante aos faits divers e à cobertura

policial. No Brasil, à época do primeiro cinema, muitos filmes foram baseados

justamente em casos policiais (GOMES, 1980 ) para driblar a concorrência dos filmes

estrangeiros e atrair público. Apesar de serem atualmente quase sinônimos de ficção

seriada televisual, os primeiros filmes de aventuras e ação do cinema também seriam

exibidos em capítulos. A ideia de uma narrativa com personagens fixos, dialógica,

sempre foi uma estratégia fecunda para o envolvimento da audiência e para a criação de

outras obras, dela derivadas.

As ficções seriadas policiais e de ação vêm abalando, com propostas ousadas e

uma abordagem da realidade extremamente crítica, a exemplo de “Epitáfios”, “9 MM”,

“Prófugos”, e mesmo formatos mais híbridos, como “Los simuladores” (Argentina,

Telefé, 2002-2003), “Donde está Elisa” (Chile, TVN, 2009). As séries televisivas que

exploram gêneros semelhantes aos seriados americanos, adotando ainda muitas vezes o

formato de temporadas, com temas, e episódios com início, meio e fim, vêm se

colocando cada vez mais como referência, abordando situações inusitadas e, nos casos

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do sistema a cabo, mais experimentais no tratamento da imagem do que os filmes, que

devem ser capazes de conquistar grandes audiências em curto prazo. Concorrem para

isso não somente os canais nacionais, mas também as produções das majors,

notadamente Fox e HBO, que vem produzindo seriados policiais e de ação, sobretudo,

voltadas para o mercado doméstico, beneficiadas por renúncia fiscal.

No Brasil, o sucesso internacional de filmes como “Cidade de Deus” (Fernando

Meirelles, 2002), lançado na Europa como um gangster movie (SHAW, 2005), e a

premiação de “Tropa de Elite” (José Padilha, 2008), no festival de Berlim em 2008,

com o Golden Bear, sucedida pelo estrondoso êxito de “Tropa de Elite 2” (José Padilha,

2010), parece ter contribuído para estimular essa nova produção. As obras mesclam

exclusão social, violência urbana com conhecidas fórmulas de seriados de ação

americanos, a exemplo da franquia “Law and Order” (NBC, 2000-2011), criada por

Dick Wolf e seus diversos spin-offs (Rússia, França).

O policial brasileiro, entretanto, assalariado e distante do heróico modelo dos

policiais americanos moldados pelo gênero, vive em permanente conflito com o sistema

Judiciário, num país que somente agora parece caminhar para uma estabilidade

econômica, e enfrenta a corrupção da corporação. Sem falar no papel exercido pela

polícia civil ao longo da ditadura militar, que rendeu à corporação uma imagem

extremamente impopular. Embora com diferenças locais, em função de contexto

histórico, essa mesma relação ambígua se faz presente na América Latina que ao longo

da década de 70, viveu imersa em ditaduras e sob intensa repressão, em que a

corporação se aliou a governos ditatoriais para torturar e oprimir civis.

A tendência a trabalhar novos formatos não se limita às televisão nacionais,

HBO e Fox Latin America vêm lançando projetos em parcerias com produtoras locais e

distribuição internacional. Em 2005, a HBO estreou o seriado brasileiro Mandrake

(HBO, 2005-2011), baseada na obra de Rubens Fonseca, dirigida por José Henrique

Fonseca, que teve segunda temporada em 2007, e vem sendo novamente exibida pela

rede. Na Argentina, a HBO produziu a elogiada série “Epitáfios” (HBO Latin America,

20004-2010), e no México, “Capadócia” (HBO Latin America, 2009-2010). Já a Fox,

sediada na Colômbia, lançou no Brasil a franquia “9 MM São Paulo” (Fox Latin

America, 2008-2011), dirigida por Michael Rumel, escrita e produzida por Newton

Cannito, Carlos Amorim e Roberto Dávila (Moonshot Pictures).

Desta forma, a telenovela, gênero melodramático mais constante e bem-sucedido

na América Latina, enfrenta agora a concorrência, ainda inicial, de outros formatos,

minisséries, alguns deles resultantes de parcerias entre produtoras locais e as majors,

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sobretudo, HBO e Fox. Uma parte expressiva dessas produções privilegia o gênero de

ação e policial.

A classificação de crítica social, comum a produções latino-americanas que

abordem conflitos entre a lei e a ordem no continente, aos poucos vai sendo substituída

nos cadernos especializados e nos blogs pelos termos policial ou de ação. Parte desta

crítica vê nestas produções uma tendência à “americanização”, expressão citada

algumas vezes de forma pejorativa (CASTRO, 2011), numa alusão à relação entre essas

obras e à literatura do gênero, considerada como corpo estranho à literatura nacional,

mas também aos formatos consagrados pelo cinema e televisão mundiais, sobretudo a

partir dos modelos hollywoodianos. Existe, contudo, uma outra corrente forte que

prefere utilizar o termo neopolicial, ou ainda negro (de noir) para distinguir justamente

a produção latino-americana de ação e policial mais recente do modelo hollywoodiano.

Uma vez que os ensaios latino-americanos sobre o tema são ainda predominantemente

voltados para a literatura, os conceitos de James Naremore (1998) e Frank Krutnik

(2001) vão ser essenciais para estender a discussão do noir ao audiovisual. Uma vez que

o noir no cinema é a tradução existencialista de um certo mal-estar de pós-guerra, e que

os seriados policiais televisivos clássicos optaram pelo modelo que trabalha com noções

nitidamente definidas de bem e mal, com personagens rígidos, sem vida pessoal,

fortemente influenciados pelo estilo semi-documental no cinema, pelos cop shows do

rádio e de docudramas produzidos pelo governo americano, não é difícil entender

porque os seriados latino-americanos vão oscilar rumo ao noir.

É com certeza para o noir que pende o capitão Wilson da terceira temporada de

“Força-Tarefa”, interpretado por Murilo Benício, que se iniciou com a morte de toda a

sua equipe, rendida pela perigosa articulação entre polícia corrupta e marginalidade.

Alvarenga Jr, o diretor do seriado, que considera a trilogia Millenium extremamente

forte para uma televisão de sinal aberto como a Globo, não teve como driblar os temas

explorados pela terceira temporada, orçosamente mais sinistros, em que a atuação de

Wilson não traduz mais a ingenuidade dos primeiros tempos.

Mais intrigante é mesmo o personagem Horácio, de “9 MM” (Calibre 9), um

policial que foi torturador do Dops, mas que em nenhum momento cede ao apelo fácil

de se transformar em vilão. Interpretado pelo fantástico ator Norival Rizzo (de “Oração

para um pé de chinelo”, peça emblemática de Plínio Marcos), Horácio transmite

verossimilhança e sua trajetória se confunde com os conflitos de seu próprio país. É pai

de família frustrado, perdeu um filho drogado, e ao mesmo tempo em que representa um

passado do qual o Brasil gostaria de se esquecer, também está vinculado ao presente:

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quando todas as tentativas de estabelecer a verdade através de métodos legais

desaparece, para desespero do delegado Eduardo, Horácio entra em cena com seus

velhos métodos.

Nas séries latinas em que a corporação faz parte da trama, esse acerto de contas

com o passado das ditaduras está presente, mas é em “Profugos” que ela se acentua. Em

“Epitáfios” ela é apenas mencionada como fato histórico, mas no filme “O Segredo dos

teus olhos” ela é mais evidente, quando o assassino longamente perseguido por X se

torna um aliado da ditadura e entra para a polícia. O fotógrafo forense que vai ser o

personagem-chave da segunda temporada e fundamental na vida de Renzo (Julio

Chavez) e Marina (Cecília Roth) certamente foi um aliado da ditadura, mas o tema não

é explorado por esta ótica. Mas ao longo da trama “Epitáfios”, sem dúvida, se enquadra

neste olhar sobre o passado de que nos fala Naremore (1998), e no indivíduo que tem de

romper com a corporação, porque não acredita mais em sua eficácia e em sua função

primordial.

Na primeira temporada, o policial vivido por Renzo abandona a corporação após

não conseguir evitar que crianças morram em um incidente em uma escola local. Para

sobreviver, ele se torna taxista, até que um novo incidente coloca o assassino em seu

caminho. Ele retorna à polícia, mas em função de seu passado o novo delegado designa

como sua assistente Marina Segal. Curiosamente, é ela quem vai personificar o agente

que acaba por perder a sua própria identidade na medida em que se aprofunda nas

investigações. Homossexual, suicida, Marina representa a própria impotência da

instituição diante de uma sociedade em que os limites legais foram ultrapassados, e isso

se insinua no cotidiano de uma forma que torna a possibilidade de reversão cada vez

menor. Em “Epitáfios”, não é a sociedade argentina a grande vilã, mas as organizações

sociais como um todo, e de uma certa forma, o seriado retoma um tema que é caro à

tradição noir.

Prófugos, contudo, consegue ainda ser mais instigante. Apresentado pela HBO

como o primeiro filme de ação de seu braço latino, o que lhe valeu algumas criticas, o

seriado vai aos poucos mostrando a sua outra face. Temos novamente o conflito da

corporação, tentando lutar para que a verdade prevaleça, mas “forças ocultas”, tanto na

corporação, quanto no governo, impedem que isso aconteça. A corrupção parece ser

inerente ao sistema. O personagem Parraguez-Tegui (Benjamin Vicuna), um dos quatro

fugitivos que dão nome à série, é a representação mais definida do tough guy. Policial

infiltrado no narcotráfico, ele vai descobrindo que para estabelecer a verdade, terá de se

esquecer de quem era, e abandonar as formas usuais de ação. Seus antigos

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companheiros, à exceção de Ximena e Fulano, parecem mais interessados em ganhar

muito dinheiro. A ideia, naturalmente, é a de que em algum momento, todo o enigma

será esclarecido e a verdade virá a tona, resgatando o mocinho de sua conflituosa

condição. Ao final dos 13 capítulos que compõem a temporada, já se pode perceber

claramente que essa hipótese não existe. Pois para entender o que acontece, Parraguez-

Tegui se envolve tão profundamente no meio que supostamente deveria combater, que

já não se reconhece como policial.

O neopolicial e o noir

Um dos autores a quem se credita a criação do termo neopolicial é o escritor

mexicano Paco Ignacio Taibo, mais conhecido por PIT, que tem como personagem

principal Héctor Belascoarán Shayne e como cenário o sistema policial corrupto

mexicano. Mas o termo é usado também para designar a obra de Ramon Dias Eterovic,

escritor chileno que tem como protagonista o detetive Heredia, que se transformou num

seriado, Heredia & Cia (2002), produzido pelo Canal 13. e filmes tão díspares quanto

“O Segredo de teus Olhos”, “Tropa de Elite”. O que eles teriam em comum¿

A classificação crítica social, comum a essas produções no passado, aos poucos

vai sendo substituída por policial, ou neopolicial, numa alusão à relação entre essas

obras e a literatura do gênero. A referência maior dessas produções, contudo, ainda se

encontra no cinema e da televisão mundiais. De modo geral, elas usam estruturas

narrativas que são semelhantes às hollywwodianas, mas se destacam delas porque a

natureza do conflito é diferente, bem como as relações do continente com a lei e a

corporação.

Distintos do modelo consagrado pela TV americana, que tem como principal

referência atual a franquia Law and Order, os policiais latinos não conseguem ver o

mundo em preto e branco, e na luta entre o bem e o mal, policiais e detetives por vezes

se confundem com o caos que tentam ordenar.

Os policiais americanos modernos, oriundos dos cop shows do rádio, foram

produzidos desde o início como um projeto que poderia ser convertido em cinema

(Mittell, 2004), daí serem filmados em película, o que foi uma inovação com relação

aos sitcoms. Podem ser identificados em duas vertentes: a dos semidocumentais, que

fazem questão de se confundir com a vida real, com narrativas em primeira pessoa

enfatizando o aspecto real da história narrada, e centrada na investigação e não na vida

pessoal dos personagens, e que se impôs na televisão, e o estilo crítico social, a partir

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dos filmes e seriados de inspiração noir, como Naked City, que usam o crime e a

investigação para falar das mazelas da sociedade capitalista. Outra distinção do noir

seria a figura do tough guy (Krutnik, 2010), sempre em conflito com a lei, e seu dilema:

para restaurar a ordem, ele tem de romper com a lei, e neste processo, acaba perdendo

sua identidade e se identificando com o caos que pretende ordenar.

No entanto, para uma América que ainda não conheceu a estabilidade, e em que

os conceitos de bem e mal são fugidios, o noir não é um estilo, mas uma condição dada.

O termo noir, criado pela crítica francesa, vai ser adotado pelo Brasil, mas o restante da

América Latina vai usar o termo negro para se referir a esta vertente. O prefixo neo é

aplicado indistintamente, ora a produções cinematográficas, ora a livros. Em princípio,

faz-se necessário estabelecer uma distinção importante.

A literatura de suspense moderna, em que emerge a figura do detetive, surge

inicialmente na Europa, em obras como a de Conan Doyle, que mereceu diversas

adaptações de cinema. A figura do detetive vai se firmar na literatura americana

somente nas décadas de 30 a 50 (CAMARANI, 2008). A associação com o cinema é

imediata, a maioria dos filmes classificados como noir são baseados em novelas. Já a

corrente neopolicial latina, que se estende ao cinema, vai tratar dos conflitos urbanos

dentro de um contexto social de países em desenvolvimento, com enormes diferenças

sociais. A tendência à literatura “negra” ou noir,, que se verifica na literatura da década

de 80, estende-se à produção cinematográfica e televisiva. Algumas características deste

movimento podem ser encontradas ainda em alguns países, incluindo os de fala

anglófona, com características diversas da latino-americana, mas também distantes do

modelo americano consagrado pelo gênero na década de 40 e mesmo no cinema

americano atual.

A crise de identidade do personagem masculino, um anti-herói por excelência,

ou ainda um herói trágico como preferem alguns, é um elemento importante dentro da

trama. A categoria usada por Neale para especificar os filmes de detetive, de gângster, e

thrillers de suspense é a de Crime contemporâneo, expressão bastante oporturna.

Curiosamente, para Neale (2002), o termo noir é reducioanista, ao contrário do que

propõem Naremore e Krutnik, Outro dado curioso é a releitura da femme fatale. Nos

filmes noir originais, da década de 40, ela representava o horror à cultura de massas, e

ao mesmo tempo, naturalmente, todo o seu poder de sedução. Desta forma, o macho

perdido entre o papel que lhe era outorgado pela sociedade patriarcal e o mundo

moderno se via envolvido por ela. A mulher fatal que Barbara Stanwick-Phillys

representa em Double Indemnity (Pacto de Sangue, 1944, Billy Wilder) aparece sempre

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em cenas como a do supermercado em que ambos conspiram o assassinato, associada à

estandardização da vida moderna (Krutnik, 1991). E para ficar com ela, Walter (Freddy

McMurray) tem de matar o pai, o personagem que representa a lei, o poder, no caso o

marido de Phillys, ou aceitar a castração. Ao recusar a norma, ele deve encarar as

consequências.

Nos novos seriados policiais, a femme fatale e o tough guy podem ser até a

mesma pessoa, a julgarmos pelo personagem de Marina em “Epitáfios”. Repletos de

mulheres fortes, os seriados neopoliciais não estigmatizam as personagens femininas, o

que de resto não é uma tendência latina, mas mundial, basta atentar para personagens

como a hacker Lisbeth Salander, da trilogia Millenium. Se o super-Blomkvist hesita em

romper com as regras diante da busca da verdade, Lisbeth se encarrega de cumprir essa

função. Marina, de uma certa forma, também o faz. Sem uma personagem feminina

mais definida, uma vez que as mulheres não são protagonistas, “Prófugos” também não

deixa que elas sejam apenas figuras decorativas empurrando os tough guys para o

precipício. A única femme fatale da história, Laura Ferragut (Blanca Lewin), não possui

os elementos fálicos dos thrillers, sua maior perspectiva é a vingança, assim como a

personagem como subsecretaria Adriana Bascuñán (Paulina Urrutia), tão decisiva para a

trama. A mãe de Laura, Kika (Claudia di Girólamo) e Ximena (Alice Kuppenheim) não

são igualmente movidas a ambição, mas possuem autonomia, controlam a sua própria

vida, não vivem em função de seus companheiros.

Considerações finais

Para Naremore, filmes como o brasileiro “A Dama do Cine Shangai”, de

Guilherme de Almeida Prado, vão em busca de uma memória de passado glamoroso,

vendida, sobretudo por Hollywood, que representam mais um comentário do noir

enquanto moda, do que propriamente um conceito ou estilo do gênero.

E assim como Jameson (1997), ele argumenta que o adjetivo noir desempenha

um papel central no vocabulário do pós-modernismo lúdico e comercializado pela

indústria cultural, quase se confundindo com ele. Desta forma, dependendo de como

essa influência vai ser incorporada, pode se constituir numa nostalgia de um passado

que na verdade nunca existiu, daquela forma, convertendo-se num pastiche. Assim, é

equivocado reconhecer apressadamente em “Pulp Fiction”, de Quentin Tarantino, um

filme noir simplesmente porque seus personagens são gângsteres, vestidos de preto, e a

iluminação do filme em certas situações traz contrastes. Os gângsteres de Tarantino não

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parecem sofrer de nenhuma angústia ou dilema moral, e a estética noir utilizada por eles

soa mais como um comentário, ou ainda uma paródia ao próprio cinema, do que

propriamente uma tentativa de se aproximar do estilo. O filme de Tarantino lembra a

dinâmica pop das histórias em quadrinhos.

Já o taxista que Schrader cria para Martin Scorcese em “Taxi Driver”,

claramente representa esta tendência, ainda que mais do ponto de vista estilístico do que

ideológico. Tudo indica que é mais fácil pensar em um noir ou neo-noir distante de um

cenário nova-iorquino.

“… Latin America has a strong tradition of film noir: consider, as only two

examples of many that could be listed, Julio Brachos´s Distinto Amanecer

(Mexico, 1943) and Jorge Ileli`s Mulheres e Milhões (Brazil, 1961), the last

of which has many things in common with The Alphalt Jungle and Rififi.

Such pictures usually represent the Latin world as a dark metropolis rather

than a baroque, vaguely pastoral refuge from modernity, and as a result, they

indirectly reveal a mythology at work in Hollywood. Two of the more

effective recent examples include “Foreign Land (1995), a Brazilian-

Portugueses coproduction directed by Walter Salles and Daniela Thomas,

and Deep Crimson (1997), a Mexican remake of The Honeymoon Killers

(1970), directed by Arturo Ripstein. (NAREMORE, James, pg 232-233,

2008).

O conceito do noir, do ponto de vista ideológico, sem dúvida, encontra terreno

fértil na América Latina. E se no caso do cinema, muitas produções são continuamente

descaracterizadas em função de modelos de cinema autoral e nacional em detrimento da

discussão sobre os gêneros, é improvável que a televisão reproduza essa tendência na

contemporaneidade. Nos Estados Unidos, o grande modelo dos seriados policiais vem

dos cop shows, do rádio, e dos ciclos de cinema semidocumental e docudramas

produzidos pelo governo, (MITTELL, 2004). O primeiro seriado a se tornar referência

foi Dragnet (NBC, 1951-2004).. Suas principais características eram a narrativa em

primeira pessoa, limitando a ação às próprias experiências do protagonista, o sargento

Friday, o estilo visual de sequências de diálogo adaptado de técnicas clássicas

hollywodianas, e um modelo abstrato e universal de verdade, ou, em autêntica

dramatização de uma verdade geral, evitando qualquer menção à vida pessoal dos

policiais, policial americano (MITTELL, 2004). Esses policiais na verdade cunharam

um modelo de protagonista sem nenhuma ambição pessoal, a não ser resolver os crimes,

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e erradicar o mal da sociedade, autênticos missionários da lei, incorruptíveis, incapazes

de confundir seus problemas pessoais com a função que desempenham.

A dificuldade dos neopoliciais latino-americanos em espelhar um mundo

organizado, em que a lei e a ordem seguem seu curso, em uma sociedade onde as

fronteiras entre o bem e o mal, o público e o privado, não são claramente delimitadas,

pode se revelar extremamente rica para uma discussão do noir e sua atualidade.

Referências bibliográficas:

CAMARANI, Ana Luiza Silva e TELAROLLI, Sylvia (2008). “Romance Negro” de Rubem Fonseca:

Conto Fantástico Ou Narrativa Policial? Itinerários, Araraquara, n. 26, 193-205.

CASTRO, Daniel. Nova série da HBO, Profugos parece filme americano.

http://noticias.r7.com/blogs/daniel-castro/2011/08/28/nova-serie-da-hbo-profugos-parece-filme-

americano-no-chile/

GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra;

Embrafilmes, 1980. (Col. Cinema, V.8)

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo:Ática, 1997.

KRUTNIK, Frank (1991). In a lonely street: film noir, genre and masculinity. New York:Routledge.

MEMÓRIA GLOBO. Dicionário da TV Globo, v.1: programas de dramaturgia & entretenimento. Rio de

Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.

MITTELL, Jason (2004), Genre and Television. From Cop Shows to Cartoons in American Culture. New

York and London: Routledge.

NAREMORE, James (2008). More than night. Film Noir in its context. Berkeley: University of

California Press.

NEALE, Steve (ed. 2002). Genre and Hollywood. London: BFI, 2002.

RAMOS, José Mário Ortiz. A questão do gênero no cinema brasileiro. Revista da USP. n. 19, set. out.

nov. 1993. Disponível em:

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SHAW, Miranda (2005). “The Brazilian Goodfellas: City of a God as a Gangster Film” in VIEIRA, Else.

(Org.) City of God in several voices: Brazilian social cinema as action. London: CCCPress.

SILVA, Denise Mota da. Vizinhos Distantes, Circulação cinematográfica no Mercosul. São Paulo:

Editora Annablume, 2007.

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