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Vermelho

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Vermelho

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NÃO PUBLICAÇÃO (CIF)

A Fantástica Literatura Queer, Vermelho / Vários Autores. -- SãoPaulo : Tarja Editorial, 2011. ISBN 978-85-61541-30-9 1. Contos brasileiros: Coletâneas - I.Alliah. II. Fernandes,Camila. III. Marques, Cesar Sinicio. IV. Vieira, Rogério Paulo. V.Malheiros, Monica. VI. Guerra, Laura Valença. VII. Lasaitis, Cristina.VIII. Série CDD-869

ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:1. Contos : Antologia : Literatura Brasileira

869.9308

EDITORES:

ORGANIZAÇÃO:

REVISÃO:

PROJETO GRÁFICO:FOTOGRAFIA CAPA:

ILUSTRAÇÃO MIOLO:DIAGRAMAÇÃO CAPA:

DIAGRAMAÇÃO MIOLO:

TARJA EDITORIAL LTDA.Rua Silvio Rodini, 399 - cj. 34Parada Inglesa - São PauloCEP 02241-000 / [email protected]: @tarjaeditorialwww.tarjaeditorial.com.brwww.tarjalivros.com.br

Copyright © 2011 Tarja Editorial

Todos os direitos desta edição reser-vados à Tarja Editorial. Nenhuma par-te deste livro poderá ser reproduzida,de forma alguma, sem a permissão for-mal, por escrito da editora ou do au-tor, exceto para citações incorporadasem artigos de crítica ou resenhas.

1ª edição em junho de 2011Impresso no Brasil

Gianpaolo CelliRichard DieguesCristina LasaitisRober PinheiroCristina LasaitisRober PinheiroRichard DieguesKatrina BrownRichard DieguesVerena PeresRichard Diegues

Todas as citações e nomes incidentes nes-te livro são fruto do inconsciente de seusautores. As citações não são intencionais eservem apenas para embasar as histórias edar mais prazer ao leitor, não chegandonem mesmo perto da idéia de ofender osvivos ou mortos. Mas ainda assim, caso sin-ta-se ofendido com algo nestas páginas,basta fechar a obra. Todavia, se resolver in-sistir, compreenda que o mundo não giraao seu redor e coincidências ocorrem. To-das as opiniões expressas nessa obra per-tencem ao seu autor, mas os editoresconcordaram em publicá-las, portanto,partilhar delas. Os animais que porventuraforam feridos, molestados e traumatizadosdurante a produção da obra receberam tra-tamento e passam bem, incluindo os deoutras dimensões e planos. A cola usada nalombada pode conter glúten. Discrimina-ção é crime e deveria causar lapidação pú-blica. Sim, exercício provoca enfarto eTV causa retardamento mental. Vá ler!

[2011] NOSTER ANNO MIRABILIS

LITERATURA FANTÁSTICA MUITO ALÉM DOS GÊNEROS

Vermelho

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Eu tinha 20 anos quando pela primeira vez ouvi a pala-vra queer: ao me registrar como bolsista numa residênciauniversitária dos Estados Unidos, em 1966, o atendente,desconfiando que eu era gay, devido a meus olhares seduto-res, me disse asperamente: “You are queer!” Só então vim asaber que queer significava esquisito, estranho, equivalenteao nosso bicha, viado. Com o tempo, tanto lá quanto noBrasil, nós, homossexuais, passamos a assumir os antigosinsultos, numa estratégia intencional de esvaziar-lhes aconotação pejorativa. Bicha e sapatão era como os militan-tes se tratavam quando em 1980 fundei o Grupo Gay daBahia. Na época, “gay” era o termo preferido, e englobavatodas as letrinhas de nossa comunidade: até hoje há lésbicase travestis que se autointitulam gay.

Foi na virada do milênio que pela primeira vez ouvi fa-lar em Teoria Queer, que se tornou o principal modismopós-estrutralista junto à intelligentsia e setores da militância

LGBT, muito embora introduzida

PREFÁCIO

LUIZ MOTT

Doutor em Antropologia, Fundador do Grupo Gay da Bahia e Decano do Movimento Homossexual LGBT Brasileiro

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no Brasil notadamente por antropólogas heterossexuais.Hoje, os principais conceitos da teoria queer se tornaramchavões no milieu até pouco chamado de “gay and lesbianstudies”. Raro é atualmente um artigo, conferência ou atédiscurso militante sobre homossexualidade que não citeheteronormatividade, binarismo, constructo social,essencialismo, identidades mutáveis, etc. Para grande parteda militância histórica LGBT, os teóricos queers se torna-ram deletéria ameaça a um dos axiomas de nossa luta: aafirmação identitária, já que continuamos a estimular o sairdo armário e a visibilidade como passos vitais para nossacidadania plena de homossexuais. Tornei-me então umaespécie de corifeu crítico da teoria queer, por considerá-lauma esquisitice talvez válida para o primeiro mundo, masdanosa para o Brasil onde a cada 36 horas um gay, travestiou lésbica é barbaramente assassinado, vítima dahomofobia, sendo por conseguinte vital que mais e maishomopraticantes se assumam homossexuais como estraté-gia de enfrentar a homofobia cultural e institucional quetão fortemente infernizam nossas vidas.

Perguntará então o/a leitor/a: se na qualidade de de-cano do movimento LGBT, o acadêmico que há mais tem-po, três décadas, milita em prol da cidadania translesbigay,e que vem tecendo constantes criticas às propostasantiidentitárias dos teóricos queers, por que então estarprefaciando exatamente uma coletânea de contos que temcomo título A Fantástica Literatura Queer?

Aceitei este convite como um desafio e oportunidadepara melhor conhecer essa novidade literária na língua doBrasil: a ficção queer. Já digo logo de cara que gostei bastan-te deste livro, aprendi horrores e considero tratar-se de uma

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iniciativa não apenas pioneira, mas importante, para a inclu-são do universo LGBT nos gêneros literatura fantástica, fic-ção científica e fantasia, ramos da literatura ainda poucopesquisados na academia.

A Fantástica Literatura Queer é obra exemplar de comodevem se pautar obras literárias coletivas: o respeito e desta-que da diversidade. Embora os organizadores e diversosautores sejam lésbicas e gays assumidos, há também partici-pação de heterossexuais, bissexuais, afinal, como gosto deconfrontar o heterrorsexismo, nem todo mundo é perfeito...Tô brincando, obviamente.

Diversidade observada fartamente também no perfilbiográfico d@s participantes do livro: dos 15 contistas,metade homem, metade mulher, jovens em sua maioria.Em termos profissionais, há de tudo: estudante, pintora,artista plástico, tradutora, revisora, ilustradora, psicólo-go, estudante de letras, jornalista, mestrando em literatu-ra, roteirista, historiador, professora de inglês, técnicapublicitária e em áudio visual, consultor e editor da revis-ta UFO, contabilista, funcionário público, expert emhomofobia. Um menu pra ninguém botar defeito.Pluralidade regional: há autor cearense, paulistano, deNiterói, Guarulhos, Brasília, do Rio Grande do Sul.Vári@s contistas já participaram de outras coletâneas,inclusive laureados com prêmios nacionais, municipais einternacionais. Cert@s são possuidores de blogs, sites,fanzines, outros estão l igados ao preternatural ,inescrutável e misterioso universo new weird e ao RPG(jogo de interpretação de personagens). Coisas mudernasque este coroa sexagenário teve de recorrer ao Googlepra saber exatamente seu significado. Há entre os autores

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quem se identifica como menestrel, realista onírico, gayassumido, sacerdote neopagão, pura metamorfose ambu-lante, fãs de publicações japonesas do gênero yaoi.

A Fantástica Literatura Queer reúne contos pertencen-tes a gêneros literários igualmente marcados pela pluralidadeinerente ao universo fantástico: ficção científica, fantasiaurbana, terror sobrenatural, new weird (que mistura elemen-tos de ficção científica, fantasia, terror, entre outros gêne-ros). Um verdadeiro coquetel queer...

Alguns títulos refletem a diversidade multifacetada epreternatural inerente a este gênero ficcional: Eu era um lobi-somem juvenil, A primeira vez de Silvânia Morgana Memphis contraa irmandade Gravibranâmica, Eu tenho um disco voador na garagem.Outros evocam seja o apelo sentimental lesbigay: O beijo deAlice, A presença, seja a tragédia de ser homo num mundodominado pelos héteros: É foda existir, Eros, onde o suicídioou o autoexílio da terra são recorrentes como solução emalguns dramas existenciais.

Como fantasia não tem limites, A Fantástica LiteraturaQueer abre as portas não só do inferno, como de diversasoutras fantasmagorias e mitologias que pululam – poluindona mais das vezes! – nosso imaginário coletivo abraâmico:há relatos de possessões demoníacas, exorcismos, catarse mís-tica, vampiros. Episódios e personagens bíblicos sãodesconstruídos numa criativa e sacrílega perspectiva lesbigayou queer: o fratricídio de Caim e Abel na verdade enrusteuma relação homoincestuosa; as filhas de Lot na mitológicadestruição de Sodoma e Gomorra se tornam revolucionári-as reprodutoras de futuros sodomitas – a raça maldita comofoi chamada pelo egodistônico e queer avant la lettre OscarWilde. Há ainda aparição de outras miragens preternaturais:

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anjos sedutores, os demônios Lucibel e Balial, musas e dedjins da mitologia islâmica.

Muitos dos contos têm forte marca do feminismo-lésbico, seja pelo resgate e revisão afirmativa de íconese episódios emblemáticos, como as amazonas, as bru-xas, a Rainha-Deusa Matrígia; seja pela presença de lés-bicas afirmativas e vitoriosas no dia a dia ou em missõesinterplanetárias e no universo estranho do new weird,como as duas heroínas Morgana Memphis, apresenta-dora e famosa ex-roqueira e Amadahy, uma índiacherokee, sua ex-namorada, que usa um belíssimo e enor-me cocar branco e poucas peças de roupa... Ah! Já quefalamos em índias, encontrei na Torre do Tombo fan-tástica descrição de uma relação lésbica entre uma mu-lata e uma índia, num conventículo de diabos e feiticeiras,imagine aonde: no Piauí Colonial! Quem quiser, memande um email que envio o artigo.

Seguindo os teóricos queer, que costumam provocar iranos militantes, quando vaticinam a falência das políticasidentitárias, A Fantástica Literatura Queer resgata uma amplagama de tipos marginais, inimagináveis metamorfoses am-bulantes, que se tornam ficcionalmente protagonistas e he-róis: um albino, ciborgues, mutantes e híbridos de humanoscom animais, translienígenas, bruxas, uma transexual seduzidapor um vampiro, um adolescente nerd.

Como militante gay full time há mais três décadas,neoessencialista afirmativo e em vez de dinossauro,tiranossauro rex assumido..., sinceramente, considero estacoletânea de contos uma importante contribuição não sópelo seu pioneirismo, ao dar visibilidade à temática LGBTentre os aficionados pela literatura fantástica, como também

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pela mensagem/injeção de otimismo transmitida pelo espí-rito geral da obra.

Enquanto humanista e uranista, aplaudi particularmen-te a denúncia feita por vários ficcionistas à homofobia e acrítica ao heterossexismo – conceito original e maisabrangente que heteronormatividade, a palavra chave dosteóricos queers. Homofobia cultural e institucional refleti-das na solidão de vida de Martim, um jovem estudante gay;no casamento de fachada de alguns casais heteroeróticosque encontram finalmente a felicidade na homoafetividade;na cobrança familiar para que o filho gay apresente umanamorada inexistente; na similitude da solidão de umatransexual comparada à dos vampiros; no caso de um gayassassinado e uma lésbica estuprada, situações verdadeirasonde a ficção imita a vida real no nosso querido Brasilatual, campeão mundial de homocídios, onde uma travesticorre 800 vezes maior risco de ser assassinada do que nosEstados Unidos da América!

Apesar das trevas da solidão, do fogo do inferno edas fogueiras da Inquisição, da morte como fuga doheterrorsexismo, A Fantástica Literatura Queer transmite es-perançosa mensagem cor de rosa do tipo o amor liberta!Em seu primeiro e único beijo de um vampiro pode con-vencer sua vítima apaixonada a abdicar para sempre daluz do dia; pelo amor de um demônio, o próprio infernose torna preferível ao nosso mundo. Mundo que apesar epour cause dos espancamentos de gays na Avenida Paulista,um bando de lunáticos humanistas, incluindo esta plêiadede contistas fantásticos, insistem em fazer da bela diver-sidade cromática do arco-íris, não uma enganosa quime-ra, mas um ideal atingível. Parabéns aos organizadores

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Cris Lasaitis e Rober Pinheiro por esta exitosa iniciativa.Que A Fantástica Literatura Queer tenha muitos leitorese provoque boas discussões e devaneios. Quem sabe al-gum de nós encontrará de baixo do arco-íris um pote deouro, ou a realização do sonho de mudar de sexo, de gê-nero, ou de vida...

Nota: o prefácio nesta obra referencia tanto os autores destevolume, como do volume laranja.Inicialmente o projeto previaapenas um livro, mas acabou dividindo-se em uma coleção.

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MORGANA MEMPHIS CONTRA AIRMANDADE GRAVIBRANÂMICA

ALLIAH

If anyone in this shithole city gave twotugs of a dead dog’s cock about Truth,

this wouldn’t be happening.Spider Jerusalem (Transmetropolitan, de Warren Ellis)

A menina segurava o corpinho molenga do polvo nosbraços, enquanto uma gosma amarelada escorria pra forado rasgão que dilacerava metade da criatura. Largados nomeio-fio, com sangue e fluidos escorrendo em meio à sujei-ra, ambos eram ignorados pelo pandemônio que se arrasta-va vibrante e indiferente. Os olhos grandes da menina bri-lhavam com códigos num vermelho escuro piscando apres-sados por sua íris, pincelados por lágrimas e poeira. Ela aper-tava o cadáver contra o peito ossudo, com os cabelos casta-nhos desgrenhados cobrindo-lhe o rosto. O polvo de tentá-culos gelatinosos ainda estremecia e esfumaçava, desfazen-do-se em minúsculas partículas, gradativamente. Uma coleirade couro surrado pendia sobre a coxa da garota, e em pou-cos minutos era tudo que restava do animal que pouco tem-po antes servia como objeto sexual no centro de zoofiliaque se erguia atrás da criança.

Pelas calçadas largas, humanos, ciberoganiformes,animorfos, translienígenas e

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pacotes de consciências vaporizadas disputavam o mesmo es-paço fedido e melado. Poucos paravam nas portas do ZooSex,atendidos por uma mulher-raposa de seios à mostra e calça devinil. Ali perto, um casal de translienígenas metamorfos agar-rava-se encostados numa projeção holográfica que berravaalguma sequência entediante de estatísticas sobre a eleição quese aproximava. Seus corpos alaranjados mesclavam-se comoesponjas fusionando-se, perpassadas por ossos que se deslo-cavam e penetravam no holograma, furando o olho arregala-do de um candidato que exibia uma pele metalizada em cons-tante movimento turbilhonante.

– Nada de lixo aqui na frente! – gritou um animorfo deombros largos e cabeça de chacal enquanto bicava a meninaque acabara de perder o polvo de estimação.

A bota atingiu a coluna da garota e a jogou longe, parao meio da rua, onde quase foi atropelada por um grupo deperegrinos temporais em aeromotos. Xingando e tacandolatinhas de cerveja, os viajantes fizeram a menina fugir paraum beco, chorando alto e com filetes de catarro escorrendodo nariz.

Após chutar algumas sucatas e pedaços quebrados depróteses que se amontoavam sobre uma profusão de restosde ração e escorpião frito, a menina deixou-se apoiar numgalão de dejetos hospitalares e escorregou até o chão. Irritada,massageava o olho para tentar acertar a sequência de códigosque havia bugado sua visão. Mas antes que conseguisse seentender com o defeito no software, ouviu um menino cho-ramingando e murmurando algo ininteligível. Com cuidado,ela levantou-se tentando não fazer barulho e perscrutou ofundo do beco, que terminava num paredão pichado compassagem para um criptoaçougue. Semicerrando os olhos e

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ativando o zoom do olho não travado, a garota distinguiudois vultos e os contornos esverdeados do menino. Era umtranslienígena sendo coagido por alguém coberto por umacapa. Parecia que lhe apertavam o pescoço. Um tapa jogou ogaroto ao chão e braços arrastaram-no. Bruscamente, am-bos sumiram pela porta dos fundos do criptoaçougue.

Assustada, a menina sentia suas mãos e pernas treme-rem. Pensou em voltar à rua principal e correr até uma cú-pula policial para avisar do ocorrido, mas assim que girounos calcanhares, um vulto acertou-lhe com um mangual deferro e esmagou-lhe a cabeça contra a parede.

Morgana provocava Lisa com pequenos beijos no pes-coço, encostando seus lábios cheios tão de leve na pele clarada ciberorganiforme que o toque era sentido como um so-pro de pluma. De quatro sobre o corpo da amantemezzohumana, suas mãos passeavam pelo corpo nu da loi-ra, arranhando-a levemente. Ela abraçava-a com as pernas,gemendo baixinho e jogando a cabeça para trás, arqueandoo corpo na cama. As imensas e grossas paredes de vidrodeixavam visível o oceano lá fora, de um azul turquesa en-tremeado por feixes de luz artificial e águas-vivas mutantesque volta e meia batiam nas janelas. Seus corpinhostranslúcidos acendiam como árvores de natal subaquáticas egeneticamente destroçadas. Com uma das mãos, Morganaapertou a coxa esquerda de Lisa, ornada com trechos metá-licos em espiral, enquanto deslizava a outra para o meio daspernas da mulher.

Lá fora uma arraia enroscou-se com uma das águas-vivas e ambas chamuscaram num arroubo esfumaçado quefez uma trilha de bolhas estourar na superfície.

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Lisa deixou escapar um gemido mais intenso quandoMorgana a penetrou. A ex-cantora de cabelos negros arrepi-ados sentiu o gosto salgado do suor da amante ao lamberseu pescoço, enquanto as mãos de Lisa deslizavam por suascostas. As respirações ofegantes de ambas uniam-se e com-punham o único ruído da casa submarina, quando umholograma gigantesco piscou no meio do quarto e uma vozmasculina digital cuspiu um alerta.

– Aaah não... O que agora?!– Ahn... Espera... – murmurou Lisa ao ver Morgana

levantar-se e ir em direção à projeção boiando no ar, explo-dindo em cores fosforescentes que formavam os contornosde um casebre estilizado e de uma cabeça amarela de olhossoturnos. Em letras vermelhas:

AMADAHY ENVIA PEDIDO DE SOCORRO

– Merda... – falou Morgana, ajeitando o cabelo. – O queessa louca fez agora?

– Você não vai embora, vai? – indagou Lisa com olhossuplicantes, já sentada na cama e aninhando-se nos lençóis.

– Ela precisa de mim. – respondeu, virando o rosto edepois indo em direção às roupas jogadas no chão ali perto.– Esse vórtex ambulante de confusão sempre precisa de mim.

– Não sei por que você ainda se preocupa – a loirafalou numa expressão emburrada, só desanuviando o cenhoquando o filhote de tigre dentes-de-sabre irrompeu peloquarto, pulou no seu colo e ronronou. – Ela te largou! Maisde uma vez!

Morgana vestia a meia-calça preta, o shortinho jeans ea blusa branca com o símbolo hippie pintado de vermelho.

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O cabelo negro desfiado e assimétrico descia até pouco abai-xo dos ombros, com as pontas espetadas pra fora.

– Olha, eu vou passar no Marte pra ver o que infernosaconteceu, vou resolver o mais rápido possível, e então vol-to pra você. Prometo!

– Isso é jeito de tratar os outros? Metade de mim temsentimentos. Sem falar que até lá eu já perdi o tesão.

– Então fica assistindo algum videocast e pede umacomida cripto – respondeu Morgana enquanto calçava asankle boots amarelas e pegava uma jaqueta de couro preto,que acomodou no braço.

– Sua sensibilidade é sempre revigorante.– Você sabia com quem tava se metendo. Até mais,

sweety!E saiu porta afora em direção à batisfera de bronze arti-

ficial que a levaria até a superfície. O prisma de cores e luzesque se sucedeu na esfera pipocou em seu cérebro, sobrecar-regado com lembranças de problemas passados e incômo-das sensações de saudade daquela desequilibrada da Amadahy.

– Que bagunça!Um policial gordo de semblante oleoso e pele arroxeada,

resultado de uma rejeição orgânica aos enxertos de músculoque fizera, estava parado na entrada do beco em frente aoZooSex. Aos seus pés estava jogado o corpo de uma meninacom a cabeça estourada na parede, coluna dobrada em posiçãofetal e membros amarrados com cordas grossas de bondage.

– Esse bando de selvagem pratica sadomasoquismo tam-bém? – perguntou em voz alta o policial.

– Acredito que não – respondeu o legista, uma nu-vem de fumaça acinzentada que flutuava amorfa ali perto.

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– O corpo foi amarrado após a morte. Talvez apenas umaperversão extra ou uma tentativa de nos despistar. E não háassinatura animal no cadáver. Quem fez isso era humano puro.

– Bem, vamos assumir que foi um terrível mal entendi-do e fica tudo por isso mesmo. Não quero divulgação dessamerda. As eleições tão chegando e qualquer coisa que possamanchar a imagem dessa área vai irritar o Carbonaço. Nãosei vocês, mas eu não to afim de ter minha garganta cortada.– falou outro policial que se aproximava segurando umincinerador que parecia uma píton amazônica.

– Que seja – retrucou o gordo com cara de azeitonapreta. – Aqui essa garota ia morrer de qualquer jeito.

– Quer dizer... Olha só isso. Quem em sã consciência seencosta num galão de lixo hospitalar? – ele continuou en-quanto pegava uma seringa na ponta dos dedos, deixandopingar um muco amarronzado. – Daqui só tá faltando umamálgama de pedaços de figado, luvas ensanguentadas eplugues enferrujados adquirir vida e levantar voo. Porra, ti-nha uma parede mijada limpa e inteirinha ali do outro lado.

– Sã consciência tá em extinção nessa cidade – retrucouo do incinerador, destravando a arma e ajeitando-a nos bra-ços musculosos.

Uma língua de chamas alaranjadas lambeu a menina eentão o cheiro de carne queimada elevou-se no ar, sendorapidamente absorvido pela cúpula isoladora que o gordocriou e depois desfez com um gesto ensaiado. As cinzas fo-ram varridas para o meio da rua, mesclando-se ao ranço deálcool intoxicado e sexo barato que escorria pelos bueiros,apimentados por cheiro de cebola, tinta fresca e espetinhosde inseto frito.

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No topo de um morro isolado da metrópole e acessívelapenas através de uma trilha cortando uma densa mata re-florestada, uma construção pequena, irregular e frágil erguia-se, cercada de troncos milenares e barba-de-velho roxa.Morgana aproximava-se em alta velocidade, deixando umrastro de poeira e embrenhando-se pela vegetação úmida efechada.

Em cima de uma bandeja de metal, a cabeça douradarepousava pacífica. Grande, gorda e impecavelmente inoxi-dável. Seu olhar branco e sereno era detestável, mashipnotizante. O casebre de bambu e palha que abrigava ooráculo ostentava uma precariedade tão palpável que qual-quer um se acharia no poder de derrubá-lo com um únicosopro. Três andarilhos perdidos haviam tentado fazer exata-mente isso. E todos terminaram com os lábios cortados e osintestinos arrancados pela orelha antes que pudessem se-quer notar o que estava acontecendo.

– Boa tarde, Marte. Mostre-me as imagens – comandouMorgana assim que entrou no casebre, deixando a aeromotoestacionada logo ao lado das três estacas de metal queempalavam os andarilhos, nus, castrados e ornados com asvísceras lhes contornando o pescoço, espetadas com deze-nas de bottons figurando smiles.

– Acredito que houve algum problema na transmissãoou na execução das fotografias – respondeu a cabeça, rolan-do na bandeja de prata. – Tudo que temos é isso.

Imediatamente uma série de hologramas abriu-se no ar,com imagens confusas e borradas. A primeira mostrava umtranslienígena em close, com os olhos arregalados emarejados, enquanto um vulto agarrava-o por trás e esgui-chos de sangue espirravam pra todo lado, sem que fosse

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possível saber sua origem. Morgana mordeu os lábios comraiva, ressentida pelo transalien, que provavelmente fora maisuma vítima de preconceito. A segunda foto revelava um tre-cho das instalações internas de um criptoaçougue. Carcaçasde criaturas estavam penduradas de um lado, enquanto dooutro um homem bigodudo vestindo um avental de plásticocorria enfurecido na direção do fotógrafo, com uma mache-te em mãos. Enquanto nessas duas nenhum rosto podia seridentificado e os contornos eram borrados, na terceira tudoparecia mais nítido. Uma mancha vermelha no chão de umbeco, com cinzas sendo levadas pelo vento. Do outro lado,o letreiro luminoso do ZooSex destacava-se.

– Ótimo – resmungou Morgana com um sorriso irôni-co e braços cruzados. – Nada exatamente claro ou lúcidosaiu dessas imagens. Tem algum arquivo de áudio ou de tex-to além da mensagem de urgência?

– Nada. A transmissão foi cortada.– Okay, então tudo que sei é que ela deu uma volta pela

cidade e registrou alguns adoráveis acontecimentos cotidia-nos dessa agradável existência terrena e miserável. Bem, jáque preciso começar por algum lugar, acho que voltarei aexercitar minhas capacidades de sociabilidade chutando al-gumas bundas por aí e fazendo perguntas. Envie um mapacom rotas traçadas de todas as localizações dessas imagenspra minha memória externa neural – falou, enquanto passa-va as mãos pela superfície metálica das prateleiras e tateavaentre os equipamentos eletrônicos que piscavam e reluziamdeixando escapar um ruído manso quase inaudível.

– E deixe uma mensagem pra Lisa, na casa submarinaprincipal. Diga que vou demorar mais que o previsto e que elapode ficar por lá o tempo que quiser – concluiu, apertando

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um pequeno botão atrás da orelha esquerda que desligava onanofone. – Sem mais dor de cabeça, pelo menos por hoje.

Morgana saiu do oráculo a passos largos, vestiu a jaque-ta que deixara em cima do assento, montou na aeromoto, epartiu, fazendo uma curva íngreme em direção às nuvens esobrevoando entre o vapor d’água. Em três minutos já esta-va sobre a metrópole, manobrando pelo topo dos arranha-céus, desviando de uma infinidade de máquinas voadorasvigilantes e balões metereológicos que passavam mais tem-po monitorando atividade cometária do que prestando al-gum serviço de informação climática.

Lembrando da expressão apavorada e molhada que es-tampava o rosto do jovem translienígena naquela fotografiaborrada, Morgana pensava em como a luta dos recém-ope-rados era uma batalha sem fim. Originalmente assexuados eprovenientes de uma cultura extraterrestre em que a sexuali-dade era inexistente e a reprodução dava-se através de umaforma complexa da cissiparidade, os alienígenas queaportaram na Terra há algumas tortuosas décadas devido aum acidente viram-se imersos num mundo extremamentesexualizado.

Conforme foram embrenhando-se entre os terrenos,tanto os humanos orgânicos quanto os modificados, encon-traram-se absorvendo sua diversidade e ansiando por seusprazeres. Não demorou muito para que uma parte dos imi-grantes decidisse se submeter a cirurgias que lhes dariamum sexo, uma identidade biológica de gênero essencialmen-te humana. Mas suas decisões não passariam em branco.Grupos conservadores radicais e extremistas, que havia pou-co tempo habituaram-se a tolerar ciberorganiformes eanimorfos, ficaram entusiasmados com o surgimento de uma

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nova identidade na praça e puseram-se imediatamente a pro-testar contra os novos translienígenas. Alvos de preconceitoe agressões, os transaliens foram jogados à margem daquelasociedade caleidoscópica, e antes que uma guerra civil fossedeflagrada entre terrenos e extraterrestres, todos os que ha-viam feito a cirurgia foram obrigados a se mudar para umbairro isolado no subúrbio, o Roulette, um buraco imundo eesquecido. Após a medida, suas vozes minúsculas e frágeisforam silenciadas. Eram verdadeiros espectros,perambulando invisíveis e ignorados, soterrados sobre amudez da mídia e o desinteresse do grande público.

Com um frio incômodo mordiscando-lhe o pescoço e osdentes rangendo de raiva e ansiedade, Morgana consultou asrotas enviadas por Marte, visualizando-as no canto direito desua visão, adaptando-a as linhas coloridas e sujas da cidade láembaixo. Assim que determinou um primeiro alvo, desceunum voo rasante, matando uns três ratos voadores no proces-so, e aterrissou derrapante na rua do ZooSex. Seu pouso nãodespertou mais do que alguns segundos de atenção entre osanimorfos do local e os transeuntes acidentais, normalmentebêbados ou drogados, que perambulavam por ali.

Deixando a aeromoto pairando em stand by perto de umposte de eletrofilia, onde meia dúzia de viciados plugava-secom fios que entravam em suas nucas e lhes aplicavam cho-ques controlados, a ex-cantora andou firmemente até a entra-da do ZooSex e encarou a mulher-raposa de três peitos.

– Possui cartão de associado ou cadastro no banco ge-nético? – perguntou a animorfa com uma voz desinteres-sada e mecânica.

– Não vim aqui pra isso. Estou atrás de informaçõessobre uma mulher desaparecida.

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– Eu tenho cara de caixa de recados ou lente de vigia,por acaso? – respondeu rispidamente, dando um olhar su-perior e seco pra Morgana e virando a atenção para um casalde homens-cavalo que se aproximava. – Não desperdice meutempo. Ei, vocês, cartão de associado ou cadastro no bancogenético?

– Não tente foder com a minha paciência – disseMorgana, pegando a mulher-raposa pelo pescoço e aper-tando-o, sentindo a fina pelagem alaranjada envolvendo-lhe os dedos. – Estou atrás de uma mulher metade humanade descendência cherokee e metade reconstruída a partirde engenharia biotemporal. Eu sei que vocês possuem sis-temas de segurança que varrem a assinatura genética detodo e qualquer infeliz que passe por aqui. Se ela passoupor essa rua, vocês tem o registro, e eu saberei que é apessoa certa já que ela é a única do tipo num raio de centoe cinquenta quilômetros.

O casal de homens-cavalo havia se afastado, amedron-tados, com seus focinhos tremendo. A mulher-raposa ofe-gava, olhos esbugalhados, soltando grunhidos que pareciamtentativas de xingamento com pedidos de socorro. Morganasoltou-a, deixando a animorfa recuperando o fôlego em gran-des goladas. Alguns seguranças ursos carrancudos acabavamde chegar às portas do local, e estavam preparados pra ati-rar, mas haviam parado no exato momento que vislumbra-ram o rosto de Morgana.

– Sua... Ugh... Eu vou... Ugh... Não preciso ver os regis-tros – respondeu a mulher-raposa, recobrando-se. – Eu vejoum desfile de bizarrices todos os dias, mas consigo me lem-brar quando uma morena indígena passa seminua, cheia detatuagens e com um cocar branco gigante na cabeça.

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– Uau, você é Morgana Memphis! – exclamou um dosseguranças que havia estancado na porta, surpreso e comum sorriso de orelha a orelha. – Por favor, me dê um autó-grafo!

– Eu também quero um! – gritou o segundo segurança.– Só um minuto, rapazes – ela respondeu, deixando-os

apreensivos como crianças. – Certo. Então ela passou poraqui. Ótimo. Lembra se ela estava com alguém e em quedireção ela foi? Ou se houve algum incidente?

– Ela tava falando com umas freiras esquisitas, e depoisacho que foi na direção do criptoaçougue do Tutano.

– Freiras... Que freiras?– Sei lá, porra. Freiras são freiras, pra mim é tudo a

mesma merda. Ainda mais com quinhentas religiões novassurgindo a cada segundo, e tudo com isenção fiscal e privilé-gios territoriais. Depois reclamam de orgias animorfas...

– Okay, okay... Onde fica esse criptoaçougue?– A entrada principal é pelo outro lado do quarteirão.

Mas ele tem uma porta dos fundos que dá praquele beco ali– respondeu apontando o dedo para o beco onde a meninado polvo de estimação havia sido morta e incinerada.

Morgana agradeceu as informações com um sorrisosarcástico e deu os autógrafos para os seguranças, enquantoesses se desculpavam pela falta de respeito da mulher-rapo-sa, explicando que ela havia sido fabricada numa fazenda, sótinha quatro anos de vida e não se lembrava das Gungirlsnem vira as últimas aparições polêmicas da cantora na mídia.

“Às vezes eu também prefiro não me lembrar dessabanda...”, pensou Morgana, atravessando a rua em direçãoao beco. Mas quando estava no meio do trajeto, com um ououtro veículo passando rente ao solo, uma explosão fez-se

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ouvir na direção do prédio residencial em frente, estouran-do uma janela do vigésimo andar. No meio da fumaça e doscacos de vidro que se estilhaçavam, um vulto com asas pu-lou e planou por segundos. Uma saraivada de tiros seguiu-se, e o vulto desceu veloz. Morgana teve tempo apenas dedistinguir os contornos de uma mulher sentada sobre umpterossauro putrefato antes de ser arrancada do chão. Assimque foi agarrada e posta naquela montaria alada, notou quea mulher no comando dos arreios era Amadahy.

– O-qu-ca-ra-os-tá-a-con-t-en-do?! – berrou Morgana,segurando firme na cintura da cherokee e tentando se fazerouvir entre os disparos.

Atrás delas, duas máquinas vigilantes aproximavam-se,apontando os canos de uma sequência preocupante de ar-mamentos de fogo. As bolas de metal controladas remota-mente e programadas pra não retornar até extinguir a vidados alvos faziam manobras no ar tentando desestabilizar opterossauro e atiravam com considerável precisão, quaseacertando a dupla três vezes. Amadahy passou um tipo ro-busto de pistola pesada e emborrachada para Morgana.

– Aponta na direção dessas coisas e pressiona o gatilho!A ex-cantora não pestanejou. Curvou o corpo e acer-

tou as duas máquinas com uma poderosa descarga elétrica.As bolas de metal pararam imediatamente, soltando faíscase alguns filetes de fumaça preta, caindo logo em seguida eindo chocarem-se nas ruas lá embaixo.

Amadahy puxou o arreio improvisado e guiou opterossauro até alguns metros à frente. Mas assim que sepreparava para descer com o animal, ele começou a ter con-vulsões, perdendo o equilíbrio. O réptil convulsionou empleno ar, babando uma espuma verde e tendo a mandíbula

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descarnada quase arrancada pelos puxões desesperados deAmadahy. Caíram numa calçada perto de uma praça. Opterossauro saiu rolando em alta velocidade e foi espatifar-se contra uma cabine videofônica, esmagando um infeliz queestava lá dentro e espirrando ossos para todos os lados.Amadahy levantava-se do chão, massageando o ombro di-reito e espalmando a poeira da pouca roupa que usava, dei-xando as inúmeras tatuagens tribais em seu corpo moreno àmostra. Morgana ajeitava a jaqueta e estapeava a cherokeegritando mil xingamentos.

– Onde você tava com a cabeça! A gente podia termorrido! E de que buraco saiu esse pterossauro? Quem tavatentando te matar? O que infernos você fez agora?

Amadahy olhava pra Morgana que berrava igual umamaluca, fazendo gestos furiosos, quase disparando aciden-talmente a arma elétrica, e não respondia uma palavra se-quer, apenas sorria. A ex-cantora esgotou seu arsenal dequestionamentos e sermões, com as mãos na cintura e ocenho franzido olhou em silêncio para a cherokee, tentandoenxergá-la através daqueles olhos negros quase escondidospela franja. Então a puxou pela cintura e a beijou, subindouma das mãos para a nuca de Amadahy, por entre seus lon-gos cabelos escuros. Abraçaram-se carinhosamente e fita-ram-se com um suspiro. Riram.

– Vem, vamos comer alguma coisa que eu te explico tudoem detalhes – falou Amadahy, segurando Morgana pela mão.

– Eu vou precisar de uma cerveja...

O ferrão do híbrido de escorpião e aranha pingava ve-neno e estava prestes a furar os olhos arregalados de umcriptoaçougueiro. Mãos femininas seguravam a criatura morta

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coberta por couraças desbotadas e por tufos de pelo cinza,encurralando o homem contra uma mesa de mármore sujade sangue e pedaços de vermes gigantes. Desesperado, eledesculpava-se pelo descuido, implorava por misericórdia eprometia que da próxima vez não deixaria a intrusa escapar.Falou entre soluços de um choro engolido que iria agoramesmo pegar um facão e sair à caça daquela índia. Mas tudoque ouviu como resposta foi que o fracasso era intolerável eque por culpa daquele pequeno erro, todo um império esta-va em risco, balouçando sobre estruturas rachadas.

– Você irritou gente poderosa. Sabe o que isso significa,não sabe? Significa que seu nome já tá escrito em cada gotadesse veneno.

O homem gritou e morreu num engasgo quando amulher atacou-o com o ferrão, quase lhe partindo o crânioao perfurar seu olho direito. O corpo gordo estrebuchou ecaiu, respingando veneno. Pacientemente, ela arrastou-o atéo frigorífico ali perto, cortou fora a cabeça, jogando-a notriturador de lixo pesado, fatiou o corpo e guardou-o meti-culosamente em pequenos pacotes, etiquetando-os e colo-cando-os junto à reserva de carne de Yeti.

Amanhã seu cadáver partiria para algum restaurantesofisticado e seu músculo seria saboreado ao temperoindonésio de algum paladar muito azarado.

– Eu não gosto desses grilos fritos. As asas ficam agar-rando na gengiva, é um inferno pra tirar – falou Morganaenquanto saboreava um pombúrguer e bebia uma cervejaachocolatada.

As duas estavam sentadas numa mesa no canto de umalanchonete. O piso de vidro erguia-se vários metros do solo,

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deixando visíveis as linhas de trilho magnético correndoparalelas lá embaixo. Os vagões passavam numa velocidadeestonteante, flutuando. Nada mais eram do que borrõesacinzentados e silenciosos. Ali dentro, apenas uma leve mú-sica eletrônica ambiente tomava corpo.

– Você é louca de pagar essa fortuna toda só por umagarrafinha de cerveja – disse a cherokee, rodando uma latinhade energético no tampo verde da mesa.

– Não é qualquer cerveja, é cerveja achocolatada, e damelhor safra de cacau suíço. Além do mais, dinheiro é o quenão me falta.

Atrás delas, a parede funcionava como uma gigantesca eplana lâmpada de lava, com bolhas vermelhas subindo e des-cendo. Uma película de resfriamento protegia os descuidadosde queimarem-se na superfície daquela psicodelia líquida.

– Mesmo assim. Não é uma questão financeira. É umaquestão de princípios. Só porque chocolate é uma raridadeeles se acham no direito de cobrar como se fossem diaman-tes comestíveis.

– Princípios? Quer falar de princípios? Comece na par-te em que você me sequestra no meio da rua montada numréptil voador de 65 milhões de anos atrás – falou Morgana,pegando um picles de algas verde-azulado da bandeja. – Essesespécimes pré-históricos clonados não estavam confiscados?Ou proibidos. Qualquer coisa assim.

– Clonagem de animais extintos potencialmente peri-gosos foi proibida dois anos atrás e os espécimes existentesforam congelados e lacrados em alguns seletos laboratórios.Acontece que aquele criptoaçougue funciona como muitascoisas além de sua função principal, e uma dessas coisas éservir de depósito temporário pro tráfico dessas belezinhas

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pré-históricas – respondeu Amadahy, enquanto devorava osgrilos fritos desdenhados por Morgana. – Mas aquele emespecial estava sendo descarnado. Eu o animei com uma in-jeção de zumbificante. Acho que dei uma dose pequena de-mais, por isso ele remorreu antes que pudéssemos pousarapropriadamente.

Uma tela embutida na parede atrás do balcão de atendi-mento, que antes passava um filme sobre um paralelo espaço-temporal da Palestina nos subúrbios de Andrômeda, inter-rompera a programação para dar espaço ao Minutos Do Povo,uma propaganda odiosa em que o governador Carbonaço,atualmente trabalhando em sua campanha pela reeleição, dis-cursava baboseiras sobre suas falsas conquistas. O políticomal começara a discorrer sobre as últimas medidas que toma-ra em relação à biosegurança dos hospitais de vapotransiçãoquando Morgana levantou e tacou a garrafinha de cerveja natela, que ficou enfiada no meio de uma gigantesca rachadura.

As pessoas observaram a tudo imóveis e boquiabertas.Alguns riram nervosamente. Os atendentes, ao perceberemque era Morgana Memphis a responsável, prontamenteignoraram o ocorrido e continuaram a trabalhar, agora sobum ruído ininteligível que partia da tela danificada, com aimagem deformada do governador, discursando com umagarrafa de cerveja enfiada na cara.

– E por que você foi cuspida de uma explosão naqueleprédio? – indagou a ex-cantora numa voz calma, retomandoa conversa como se nada tivesse acontecido.

– Eu tava fugindo de uma sede da IrmandadeGravibranâmica. Aparentemente o criptoaçougue no primei-ro andar deles é só uma maneira de lavar dinheiro e ganharuns extras com o tráfico.

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– O que você tava fazendo numa igreja? – indagouMorgana com espanto, parando o último pedaço de sanduí-che no meio do caminho. – E logo na mais reacionária delas.

– Tentando descobrir que fim levou o pobre meninotranslienígena que uma daquelas freiras malucas sequestrou.Eu estava indo bisbilhotar as instalações da Irmandade, atra-vés de uma passagem do criptoaçougue, mas um velho gor-do ensandecido e fedendo a gordura de Chupacabra me viue tentou me matar. Nem lembro direito por onde passei,porque eu saí correndo e tive uma puta sorte quando medeparei com aquelas seringas de zumbificante numa sala deevisceração.

– Sequestrado, é? Hum... Sabe, ninguém comenta, masse formos contar, esse deve ser o décimo translienígena de-saparecido só essa semana aqui na cidade – falou Morganaterminando de comer o pombúrguer e desviando o olharpara as mesas vizinhas, onde alguns a olhavam de esguelha ecochichavam animados.

Pedaços retalhados de conversas sobressaíam-se aciden-talmente. Elogios e críticas recheadas de ódio sobre Morganae sua língua sem filtro. Uns reuniam uma sequência vazia depalavras bonitas para tentar desacreditar as denúncias claras ediretas que ela fazia, enquanto outros apenas diziam que elatava mais gostosa do que na época das Gungirls. Quem a ido-latrava era de maneira torta e, por vezes, violenta. A ex-canto-ra divertia-se com o frenesi que causava e se alimentava dasreações absurdas das pessoas para encorpar suas gargalhadas.

– É, eu andei falando com alguns ativistas no Roulette– disse Amadahy, fechando a expressão. – A situação táfeia, as crianças não saem mais nas ruas sozinhas. E quan-do podem, contratam animorfos como seguranças. Agora

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imagina a farra que aqueles cabeça de búfalo tão fazendo comesse dinheiro fácil, explorando o terror dessas criaturas...

– Eu só queria saber por que ninguém fala disso. Nin-guém sabe o que anda acontecendo. Nem mesmo aGrammaton, que me paga fortunas pelos direitos de exibi-ção dos meus vídeos. Nem essa emissora fudida transmiteuma notinha sequer sobre o desaparecimento detranslienígenas e a brutalidade a que eles são expostos na-quela merda de bairro que é o Roulette. Praticamente umazona militar isolada e abandonada pra manter os inconveni-entes afastados. Acho que já passou da hora de eu usar issocomo tema no Shot de Cianureto.

Amadahy esboçou um leve sorriso e balançou a cabeçanum sinal claro de reprovação, embora concordasse comMorgana e sentisse a mesma repulsa e mal estar que impeli-am a amiga a dizer tudo que pensava no programa semanal.

– Pressinto mais uma avalanche de atentados terroristas nasimediações da sua casa, ameaças de morte por parte de conser-vadores fanáticos e homens encapuzados querendo te espan-car num sinal de aviso sobre futuros abusos de liberdade...

– Querida, liberdade nunca é abusiva. Somente a opres-são é.

– Ouvi isso de um senhor translienígena crossdresserna semana passada – respondeu a cherokee, levantando amão para chamar um atendente e pedir um sorvete. – Eletava sentado na calçada, com um vestido mutável cheio debabados, rabiscando quadrinhos num daqueles tablets anti-gos. Acho que era alguma coisa sobre o acidente que trouxea espécie dele pra nosso planetinha.

Um estrondo de vozes e pneus raspando o asfalto vindoda rua interrompeu a conversa das duas. Assustados, todos se

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levantaram e aproximaram-se das paredes, enxergando umaconfusão lá fora. Através das bolhas vermelhas que dança-vam no vidro, Morgana distinguiu um grupo de fanáticosque havia parado o trânsito terrestre e se organizava paracongestionar o aéreo. Reconheceu suas túnicas grossas e seuscapuzes e turbantes pesados. Eram integrantes de um movi-mento pequeno, mas barulhento, que abominava o sexo eoutras formas de contato físico íntimo, até mesmo abraçosou apertos de mão.

– Ei, não são aqueles babacas que fizeram um protestona apresentação dos neogípcios, ano passado? – indagouAmadahy. – Foi quando você e a Georgia se encontraram,não foi?

– Sim, são os mesmos imbecis. E não me lembra maisdela, okay?

Morgana virou o rosto, perturbada, e foi até o caixa.Estendeu o pulso e passou-o sobre um sensor no balcão,que detectou um minúsculo chip subcutâneo e processou opagamento, com uma adição pelo preço da tela quebrada.

– Mas falando em fanáticos religiosos... Quando termi-nar esse sorvete, vamos voltar àquela igreja. Se as freiras es-tão mesmo por trás dos sequestros dos translienígenas, vaiser lá que também descobriremos quem está compactuadocom elas pra manter essa atrocidade encoberta. Eu vou que-rer resolver isso com minhas próprias mãos.

– E eu vou querer recuperar o cocar que eu perdi nomeio daquela confusão.

Mesmo com o controle climático mantendo o céu numentediante e sereno azul, a atmosfera no Roulette era de umcinza esverdeado pesado e gosmento, que assentava como

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sujeira grossa pelas calçadas. O coquetel químico de resídu-os acumulados pelos cantos e amontoando-se no meio-fiobrilhava em alguns pontos, irradiando e estalando, contor-cendo-se e expandindo-se. Alguns juravam que podiam atémesmo ouvir a podridão gemer, bem baixinho e rouco,lamuriando xingamentos. Mas naquela tarde, nada disso cha-mava mais atenção do que o corpo mutilado que aparecerapregado numa cabine videofônica. O transalien menino ti-vera a cabeça retalhada, com os olhos ovais expurgados, aboca miúda dilacerada e os membros fracotes dispostos emângulos impossíveis. Fraturas expostas pontuavam suas arti-culações, enquanto o sangue de um vinho arroxeado escor-ria abundante, formando uma poça no chão abaixo de seuspés suspensos.

O pavor espalhou-se imediatamente, com fêmeas ta-pando os olhos de seus filhos, afogando-se em lágrimas, emachos deixando-se cair de joelhos perante a vítima. Ou-tros, enfurecidos, cerravam os punhos e andavam sem rumo,como se procurassem um inimigo em quem descontar oódio. Os militares que guardavam as entradas do bairro ape-nas observavam apaticamente, de longe, a movimentaçãoencorpar e abrigar gritos de desespero e urros de indigna-ção. Ninguém se atrevia a chegar perto dos soldados, commedo de receberem umas boas porradas na cabeça antesmesmo de conseguirem terminar de explicar a situação. Al-guém falou em chamar a polícia. Mas mesmo que conseguis-sem entrar em contato, nenhuma viatura nunca chegaria ali.

Um pouco afastado daquele espetáculo de horror, umsenhor de vestido acomodava-se nas escadas de um prédiocarcomido e torto. A laje despedaçada deixava escorrer umalinha fina de pó branco. Encostado na grade de ferro que

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formava o corrimão, o transalien crossdresser ajeitou a pe-ruca de cabelos loiros cacheados e começou a desenhar noseu tablet, com gestos furiosos, enquanto mantinha umaexpressão congelada de resignação.

Um grupo de militares aproximava-se do corpo mutila-do, empunhando armamentos engatilhados e passeando comsuas miras vermelhas pelas cabeças dos transaliens, que aospoucos diminuíam suas vozes e abaixavam seus braços.Câmeras portáteis e implantadas que focavam o cadáver fo-ram desativadas ou destruídas. Um deles, de mandíbulas pro-eminentes e implantes metálicos brotando grotescos dozigomático e crescendo como chifres recurvados, arrancouo cadáver da cabine de maneira brusca, despedaçando-o.Gritos agudos acompanharam suas ações.

– Vocês precisam fazer alguma coisa! – um jovem pre-cipitou-se, arrependendo-se das palavras estúpidas logo de-pois.

O soldado desferiu um tapa no rosto do transalien, jo-gando-o de encontro ao chão.

– Esse cadáver... É só mais um ataque... Estão nos eli-minando... – murmurou o menino, massageando o rostomachucado.

Olhares perplexos observavam os soldados recolheremos pedaços do transalien, amontoarem no meio da rua ecomeçarem a despejar um líquido amarelado de cheiro mui-to forte. Risos debochados seguiram o apontar de um fósfo-ro, artefato que quase não mais existia.

– Cadáver, garoto? – perguntou o militar. – Que cadáver?Assim que a chama do pequeno palito tocou o líquido

que encharcava o corpo, uma gigantesca língua de fogo lilássubiu aos céus. A fogueira queimaria ininterruptamente por

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mais de um mês. O produto só poderia ser apagado com umcontrolador de uso exclusivo das forças armadas. O meninotransalien serviria de lição por um bom tempo.

– Precisava mesmo fazer aquilo? – indagou Amadahy aMorgana, enquanto as duas andavam pela rua em direção àIrmandade Gravibranâmica.

– Foi primeiro pela diversão e segundo pela sensação devingança cumprida, ainda que tardia – respondeu a ex-cantora.

Morgana havia confrontado o grupo de protestantesantissexo logo depois que saíra da lanchonete, zombando-os e arrancando as roupas pesadas dos pobres homens, queficaram desnorteados com a metralhadora de palavras obs-cenas da cantora e mal conseguiam defender-se de suasinvestidas. Ao final, cinco dos protestantes estavam nus nomeio da rua, com seus membros amarrados uns aos outrospor um fio que Morgana arrancara de um poste de eletrofiliaali perto. Qualquer movimento brusco, e seriam eletrocuta-dos de maneira perturbadoramente prazerosa.

Ao aproximarem-se da rua do ZooSex, Morgana cor-reu em direção à entrada do centro de zoofilia, torcendopara sua aeromoto ainda estar parada ali em frente. Masobviamente não estava. Tudo acontecera tão rápido àquelahora antes da cherokee agarrá-la num pterossauro que se-quer ativara o sistema de segurança do veículo.

– Sabe, você tá me devendo uma aeromoto! – vociferouirritada para Amadahy, que parara repentinamente no meioda calçada e parecia estar recebendo uma ligação pelonanofone.

Seus olhos negros movimentavam-se apreensivos e velo-zes de um lado a outro, vasculhando as imagens que estava

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recebendo via neural. Com o rosto fechado numa expressãoassustada, Amadahy terminou a ligação e passou as imagenspara memória externa de Morgana, que as acessou abrindo-as no ar como hologramas.

– Não sei como vocês conseguem viver com esses im-plantes oculares integrados. Eu não gosto de nada bloque-ando minha visão, mesmo que momentaneamente e...

Mas suas palavras silenciaram assim que se deparou coma história em quadrinhos que se desenrolava no ar. Dese-nhados de maneira descompromissada, com rabiscos pre-tos e vermelhos, ainda assim possuía uma excelência artísti-ca de tirar o fôlego, e o causo que contava começava a em-brulhar o estômago das amigas. As expressões dilatadas dosmilitares frente ao horror esticado dos transaliens erammostradas como tecidos prestes a arrebentar, com um panode fundo macabro que figurava os pedaços mutilados docorpo da vítima. A última página era um arroubo de linhasonduladas que sangravam as bordas. Na base, um borrãopreto e insignificante representava os restos em combustãodo menino assassinado.

– Não estão apenas sumindo com os transaliens, agoratambém estão eliminando-os! – falou a cherokee.

– Não, isso não é um simples extermínio... – respondeuMorgana. – É um aviso! Querem expulsá-los do planeta,mandá-los de volta pra sabe-se lá onde! Os sequestros susci-taram terror, mas não foi suficiente pra intimidá-los. Entãocomeçaram a fazer ameaças mais enfáticas.

– Se os querem longe, não poderiam matá-los e enco-brir tudo, como fizeram com esse menino?

– Por mais que esses filhos da puta sejam poderosose por mais que o povo aqui fora seja alienado, o sumiço

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repentino de uma população inteira de uma determinadaespécie seria algo grande demais para colocar panos quen-tes. Os poucos transaliens endinheirados que vivem aqui foratomariam providências.

– Mas por que os militares estão ajudando as freiras?Ou seria o inverso? Merda, não consigo enxergar a raiz des-sa operação!

– Ora, pense, Amadahy! De quem partiu a medida dacriação do Roulette? Sob o mandato de quem os transaliensforam marginalizados? E sob os comandos de quem os mi-litares agem na porra da cidade inteira, quiçá no resto doestado também?

A cherokee teve um lampejo de consciência e levou amão à boca. Seus olhos miraram os outdoors flutuantes quecrucificavam as ruas da cidade com suas cores brilhantes eseus anúncios barulhentos. Entre eles, surgindo com umsorriso impecável e sua inconfundível pele metálica turbu-lenta, a cara robusta e quadrada do Carbonaço ganhava es-paço entre frases de efeito e nebulosas estatísticas dos resul-tados duvidosos de seus governos.

Rostos espremiam-se pelas grades, com olhos ovaladossuplicantes e profundos. As queimaduras e choques não maisfaziam efeito. As feridas em suas peles regeneravam comrapidez e seus choros e gritos eram intermináveis. As pare-des curvas e mutantes do salão causavam vertigem aos desa-costumados. Um par de freiras metidas em túnicas negrasandava pra lá e pra cá, agitadas, com manguais de ferro nasmãos e bastões incendiários presos à cintura. Os transaliensprisioneiros sufocavam no pequeno caixote energético queos mantinha isolados. Não recebiam explicações sobre por

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que estavam ali. Ninguém lhes falava de maneira clara. Eramapenas açoitados, humilhados e castigados continuamente,sob alegações de que suas impurezas contaminariam as pes-soas de bem.

– Seus corpos extraterrenos são a materialização here-ge da corrupção extraplanetária que ronda as bordas do nossoSistema Solar! – berrava uma das freiras quase todos os dias.– Só Brana sabe quantos mais existem lá fora, prontos afincar suas garras imundas em nosso solo e absorver nossosustento! Vocês são a escória! E não possuem o direito de seapropriar da essência masculina nem da feminina! Suas mo-dificações corporais para roubar um gênero humano sãovergonhosas e absurdas! Seus relacionamentos são nojentose perversos! Espero que sucumbam com suas genitáliasapodrecidas a lhes corromper todo o corpo!

As vociferações causavam terror e vergonha. Muitos jáestavam convencidos a sair do planeta, e levariam suas con-vicções entristecidas para os parentes quando voltassem paracasa, exatamente como as freiras planejaram. Mas outros semantinham firmes na resistência e frequentemente respondi-am aos insultos. A teimosia agressiva desses dissidentes foi oque causou o assassinato de um deles. Os prisioneiros aindalembravam-se vividamente de terem presenciado o homicí-dio e a mutilação. O corpo sumira pelos confins enlouqueci-dos daquele prédio mutante e agora ardia em chamas lilases.

Aproveitando a confusão que se formara ao redor da fo-gueira, uma menina transalien esgueirou-se sorrateiramentepelos becos do Roulette, contornou as tropas que assistiamdistraídas ao pandemônio, e conseguiu ultrapassar as frontei-ras vigiadas do bairro através dos canos de despejo de uma

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clínica animorfa ali perto. Com as roupas empapadas deisopropanol sujo, tufos falhados de pêlo felino presos no sa-pato e pedacinhos de cálcio grudados no cabelo, a meninaatravessou a zona morta que separava o Roulette do centro ecorreu pelas ruas parando as pessoas, pedindo por socorro.

Inconformada, tentava relatar o que estava acontecen-do a poucos metros dali, mas ninguém lhe dava crédito.

– Assassinato? Ora, faça-me o favor, vocês recebem umbairro inteirinho do governo, tem segurança militar vinte equatro horas e ainda reclamam?

– O quê? Estão sendo ameaçados? O que é isso, algumviral de uma apresentação teatral? Não sabia que transalienstinham veio artístico!

– Não seja boba, criança, esse fogo lilás só pode serusado em guerra! Você está delirando, volte para seus pais!

– O Carbonaço está fazendo um ótimo trabalho de as-sistência social para vocês, e não está pedindo nada emtroca! O Roulette é uma benção! Mantém sua espécie ampa-rada e protegida! Tenha mais respeito!

Mas a menina não descansava, e sua insistência estavacomeçando a causar uma reação, ainda que minúscula e su-perficial. Um ou outro levantavam as sobrancelhas e coça-vam o queixo, paravam para ouvir um pouco mais e faziamperguntas não tão ofensivas. Seus olhinhos pequenos e ame-drontados começavam a brilhar.

– Não sei por que ainda me surpreendo com seus mo-dos práticos e objetivos... – resmungou Amadahy enquantotentava manter o equilíbrio ao andar por um corredorcaleidoscópico que pipocava representações de partículassubatômicas interagindo na velocidade da luz.

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– Olha, não sei você, mas eu não tenho estômago praaguentar aquela freira-guia tentando me ensinar um montede babaquice esotérica – respondeu Morgana, apoiando-senum feixe de táquions que passavam como uma faixa ama-rela pela parede, contornando o espaço virtual. – Eu tinhaque deixá-la inconsciente! Só assim ela ia calar a boca e nóspoderíamos subir aos andares proibidos.

– Foi você que quis entrar pelo portão principal. Euavisei que o primeiro andar é uma ala didática. Eles recebemvisitantes do país inteiro, sabia? E existem maneiras maissutis de deixar alguém inconsciente. Não precisava jogar avelha contra o altar de branas e destruir metade da escultura.

– Considere isso como um contra-ataque acumulado.Desde adolescente não aguento esses papos pseudocientíficose interpretações distorcidas e religiosas sobre Física Quânticae Teoria-M. Mas não fazia nada porque achava que ser umacética pacífica era mais elegante. E agora veja aonde chega-mos! Uma religião nova e inteirinha baseada nessa merda!

– Morgana, cuidado!Meia dúzia de projéteis explosivos cortou o ar, confun-

diu-se com as representações computadorizadas que se der-ramavam pelo teto alto e explodiram atrás das duas amigas,que se abaixaram instintivamente. À frente delas, um segu-rança carrancudo com uma armadura de metamaterial quelhe deixava parcialmente camuflado ao ambiente, aproxima-va-se a passos largos. Um chicote elétrico estrebuchava emsuas mãos emborrachadas, como uma enguia metálica. Atrásdele, um outro surgia, ultrapassando uma holografia do es-paço-tempo, e começava a levantar um arco-e-flecha.

Amadahy levantou e avançou sob os protestos deMorgana. A ex-cantora viu a cherokee pular por cima do

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primeiro segurança, e aproveitou para distraí-lo com provo-cações, fugindo das chicotadas numa dança desengonçadade passos. Os estalos elétricos zumbiam, mesclando-se aosruídos desconexos das paredes mutantes e dos corredoresmaleáveis. Aproveitando-se do espaço traiçoeiro, que pare-cia derreter e multiplicar-se em algumas partes, a cherokeeconfundiu o arqueiro com projeções suas enfileirando-senuma parede e o emboscou, roubando a arma e perfurandouma flecha por sua nuca. Morgana tinha se complicado comas esquivas e fora agarrada pelo pescoço. Estava prestes aser eletrocutada quando uma flecha atravessou a cabeça dosegurança, arrancando-lhe a língua pela garganta.

– Eu não sou lutadora. Eu não sou atiradora. Eu nãonasci pra isso! – reclamou Morgana, enquanto abaixava-separa roubar o chicote elétrico.

– E eu não estava gostando nem um pouco dessa lou-cura arquitetônica cheia de quântica, supercordas e branas,mas agora até que estou me sentindo confortável – retrucouAmadahy com um sorriso sacana no rosto. – Eu identifiqueium padrão nessas colisões de partículas. Elas formam ummapa. Se minha física não está enferrujada, precisamos atra-vessar mais três andares por essas escadas mutantes pra che-gar onde os transaliens estão aprisionados! Vê? As trajetóri-as e as velocidades são códigos!

– Aquele erro na sua reconstrução biotemporal fezmaravilhas com seu cérebro. Mas já que você tá conseguin-do ler essa maluquice, ache outro caminho, porque não aguen-taremos mais três andares de seguranças.

– E nem precisamos. Isso aqui foi construído pra mimetizaruma série de eventos físicos, tanto na escala subatômica quantona astronômica. Só precisamos manipular umas projeções aqui

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e ali, criar um buraco de minhoca virtual, e, seguindo o mapadessas colisões simbólicas, marcar nosso destino na topo-grafia desse prédio.

– Custava colocarem uma porra de um elevador?

No salão principal, as duas freiras zombavam dostransaliens com repulsa. Seus narizes empinados e o ar su-perior que exalavam ao discursar os dogmas irracionais desua crença atingiam o rosto de cada translienígena como umsoco. Como sempre, as vozes autoritárias das duas preen-chiam o salão inteiro com raiva e os prisioneiros apenas abai-xavam as cabeças e choravam silenciosos, ansiando por li-berdade e respeito. Mas antes que uma das freiras, de modosespalhafatosos e cara gorda, pudesse terminar de explicarpor que o deus Gráviton e o santo Brana abominavam aspráticas sexuais dos transaliens, um buraco abriu-se na pare-de turbilhonante a poucos metros dali, e duas mulheres caí-ram no chão.

Morgana e Amadahy levantaram-se habilmente, com oarco-e-flecha apontado e o chicote girando no ar. As duasfreiras ficaram sem reação nos primeiros segundos, e entãocorreram a chamar os seguranças. Mas as flechadas dacherokee foram mais velozes e atingiram as duas em cheio,derrubando-as como pedaços gigantes de carne e gorduraembalados num saco preto. Imobilizadas pelas flechas querasgavam suas pernas e braços, as mulheres imploraram pormisericórdia.

– Não teremos a menor compaixão com vocês, seusvermes, suas... Ei, meu cocar! – Amadahy exclamou quandoviu o cocar escorrendo pela parede, saindo de um redemoi-nho de entropia.

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– Agora sim – disse a cherokee, ajeitando o acessóriona cabeça, com suas enormes penas brancas de pontas ver-melhas e amarelas, descendo até o chão.

A ex-cantora aproximou-se das mulheres, exigindo ex-plicações. As freiras relutaram em entregar nomes ou forne-cer qualquer informação. Morgana, então, abaixou-se, dei-xando o chicote elétrico visível aos olhos marejados das be-atas. O artefato metálico era articulado e possuía níveis deintensidade reguláveis para o choque. Num gesto rápido, asplacas prenderam-se umas às outras de forma linear e o chi-cote endureceu numa lança.

– Ou vocês começam a falar tudo que eu quero ouvir,ou esse chicote vai fritar seus úteros pelo rabo!

Em menos de dez minutos as freiras fizeram uma listade nomes e contaram tudo em detalhes, explicitando a par-ticipação importante do Carbonaço naquela operação.

– Agora nos deixe ir! Por favor, nos deixe ir!A resposta da ex-cantora foi pisar em seus pescoços e

cortar suas gargantas com o chicote quase a decepar suascabeças. O sangue que escorreu de seus corpos começou aser absorvido pelo piso ondulante, e todo o prédio, aos pou-cos, foi adquirindo uma coloração avermelhada.

– Sei lá, viu, eu esperava um grand finale pra essa histó-ria – disse Amadahy enquanto desativava a gaiola energéticaque prendia os translienígenas.

Os prisioneiros pulavam de alegria, num êxtase inco-mensurável ao se verem finalmente libertos. Afagados pelacherokee, olhavam a dupla com admiração.

– E você terá seu grand finale, querida – respondeuMorgana. – Hoje meu programa vai ao ar mais cedo, emsessão extraordinária.

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– Espera, você vai revelar tudo no Shot de Cianureto?A Grammaton nunca vai passar essa história!

– Ah, eles vão sim. Quando eu enviar tudo pro Marte eele começar a distribuir o vídeo pra transmissoras clandesti-nas, espalhando a verdade pelos quatro cantos do ciberespaço,o escândalo vai chamar atenção das emissoras pequenas, quevai incomodar as médias e deixar meu editor da Grammatonuma pilha de nervos! O filho da puta não vai querer perderessa! Pelo amor das supernovas, Amadahy, nosso materialpode tirar o governador do poder! Só preciso organizar asinformações e depois você dá um zumbificante pra outrodaqueles pterossauros que precisaremos chegar num certolugar muito rápido.

– O que você tá querendo fazer?– Depois de soltar a verdade? Esperar um pau-man-

dado babaca qualquer cometer um erro no calor do mo-mento.

Nas ruas do centro que se avizinhavam ao Roulette, amenina translienígena continuava gastando sua voz, agorafraca e cansada, em repetir a mesma história para as pessoas.Meia dúzia acreditara em parte daquela carnificina, mas ape-nas para se aproximar dela e tentar levá-la a um hospício oua uma assistente social. Outra meia dúzia acompanhava oesforço inútil da garota por pura diversão. Esgotada, com aslágrimas encharcando o rosto e as mãos trêmulas de umaínfima esperança, a menina estava prestes a se deixar cair nomeio da calçada, desacreditada de que conseguiria ajuda,quando telas públicas em todos os cantos da cidade anunci-aram uma transmissão extraordinária do programa Shot deCianureto, da artista Morgana Memphis.

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Pessoas, ciberorganiformes, animorfos e um ou outrotranslienígena paravam no meio de seus caminhos, aglome-ravam-se embaixo do telão mais próximo ou acionavam seusfeeds oculares de notícias, e prestavam atenção nas palavrasque Morgana começava a dizer. As faces surpresas dosexpectadores transmutaram-se em faces transtornadas dedescrédito ou terror. Sob a sequência ferina de palavras queela desferia, as páginas dos quadrinhos daquele senhortransalien crossdresser ocupavam a tela, seguidas de fotoshorríveis dos prisioneiros mantidos na IrmandadeGravibranâmica. Mas o que deixou a todos atordoados foi agravação de um vídeo mostrando Morgana ajoelhada peranteuma freira, que vomitava toda a verdade sobre a operação.

– ...mas é claro que tivemos apoio do Carbonaço! Semele não poderíamos agir às escondidas! Quem você acha queencobriu os desaparecimentos dessas criaturas imundas?Quem você acha que mandou os policiais ignorarem qual-quer indício de crime envolvendo a Irmandade ou seus arre-dores? Nós estamos a serviço de Gráviton e Brana, não per-mitiríamos essas aberrações perambulando por nossa cida-de! Precisávamos fazê-los dar o fora daqui! Queríamosameaçá-los, assustá-los! Mas essa corja insistiu e então pre-cisamos matar um deles! Aquele corpo que jogaram noRoulette foi um aviso! Não estou dizendo que o Carbonaçonão dê a mínima pra essa gente! Ora, ele até mesmo desig-nou um bairro inteirinho só pra eles! Claro que é um buracoinfestado de merda, mas esse povo também é merda! A ques-tão é que o Carbonaço nos apoiou, ajudou e encobriu, por-que nossa Irmandade possui milhares de adeptos! Nossorebanho está espalhado pelo estado inteiro, é um puta cur-ral de voto, não acha? Mas estamos do mesmo lado, pela

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decência dessa civilização corrompida, pela pureza de nos-sos corpos orgânicos, só nossos! Pelo direito de não deixaresses invasores pervertidos roubarem nossa identidade e...

Conforme iam ouvindo, os expectadores pareciam di-minuir de tamanho, encolhendo de vergonha e remorso. Oseleitores do Carbonaço procuravam sair das ruas, fugindocom passos apressados e olhando para os lados, paranoicosde que viriam descontar tudo neles. A menina translienígenaexibia um sorriso de orelha a orelha ao mesmo tempo emque continuava chorando pela opressão de sua espécie. Aspessoas que antes haviam zombado de seus pedidos de so-corro, agora se uniam ao seu redor. Uma multidão começa-va a se formar, colérica e injuriada. Gritos de revolta explo-diam. Alguém preparava um coquetel molotov. Policiais afas-tavam-se mais do que tentavam conter alguma coisa, comtanta gente reunida, e nervos à flor da pele. Decididos, co-meçavam a marchar, revigorados pela voz de Morgana eco-ando pela cidade, finalizando a transmissão do programacom ameaças ao governador.

– Você não está mais encoberto, seu filho da puta! Quan-do menos esperar, vamos arrancar suas bolas e fazê-lo en-goli-las com o sangue dos translienígenas que você matoudurante todos esses anos!

O mar de gente avançava em passadas fortes na direçãodo Roulette. Os militares das fronteiras do bairroposicionavam-se com escudos, formando uma barreira. Asduas frentes encararam-se. A tensão era palpável. Podia-secortá-la com uma faca. Paralisados, esperavam o outro ladodar o primeiro passo. Os soldados da linha atrás dos escu-dos tremiam em suas botas, com as mãos suadas agarradasnas armas e os olhos embaçados tentando focalizar alguma

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ameaça no meio da multidão. Um homem-chacal mexeu osbraços para levantar a menina translienígena e apoiá-la nocolo, mas antes que conseguisse, teve a cabeça explodidapor um tiro. A reação foi imediata. A multidão avançouensandecida e a carnificina tomou corpo.

A quase trinta metros acima das ruas, Amadahy eMorgana estavam montadas em um pterossauro grogue emanso, batendo as longas asas para estabilizá-los no ar. Acherokee fizera o que a amiga pedira, e as lentes em seuimplante ocular deram um zoom para o conflito lá embaixo,bem a tempo de gravar o tiro covarde do soldado que matouum animorfo inocente e espirrou seu sangue numa criançatranslienígena. O vídeo já estava sendo distribuído e com-partilhado compulsivamente.

– E a revolução local acaba de ser estendida – sorriuMorgana, puxando o arreio do réptil voador e guiando-opara as vias que levavam às florestas do litoral, onde a entra-da para sua casa submarina encontrava-se.

– Espera, você não vai querer ver tudo terminar? Não vaiquerer participar? – indagou Amadahy, confusa, virando o pes-coço para enxergar a massa de gente engalfinhada lá embaixo.

– Eu não preciso fazer nada agora. Nunca foi minhaintenção remediar alguma coisa ou tomar parte no decorrerda revolta. Eu apenas comecei a destruição, expus os esque-letos no armário, apontei o dedo na fuça desse bando dehipócritas e cuspi na cara deles a verdade. Agora eles queterminem o trabalho. E os próximos que vierem que se en-carreguem de reconstruir o que foi posto abaixo.

– E ainda te pagam por tudo isso...– Falando em pagar, melhor ligar meu nanofone que

preciso dar uma palavrinha com meu editor e... – mas assim

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que apertou o minúsculo botão atrás da orelha, foi bombar-deada com uma série de chamadas não-atendidas e mensa-gens raivosas de Lisa.

– Merda, devia ter ligado...– É aquela sua amante ciberorganiforme? Largou essa

ao abandono também? – zombou Amadahy. – Você nãopresta, sabia?

– Eu nunca disse que prestava, amor. Eu não valho nada,mas são vocês que insistem em continuar me amando –respondeu Morgana de maneira odiosamente adorável.

O universo weird, caótico,expl í c i to e debochado deMorgana Memphis tem princi-pal influência da HQ Trans-metropolitan, e trata de temasLGBT com uma comicidadeimpiedosa. Subversivo, porémcomprometido, nasceu da vonta-de de criar e extrapolar perso-nagens que beiram o limiar en-tre o cotidiano fantástico e oabsurdo psicológico.

Esta é uma amostra do livro“A Fantástica Literatura Queer”,volume “Vermelho”, que podeser lida gratuitamente no sitewww.tarjaeditorial.com.br

Para conhecer mais sobre a obrae demais livros da série, visite o site.