a experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua...

129
1 Carmem Lúcia da Silva A experiência das famílias com pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento: uma nova dimensão da desproteção social Mestrado em Serviço Social Universidade Federal de Santa Catarina 2004

Upload: truongdan

Post on 26-Jan-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

1

Carmem Lúcia da Silva

AA eexxppeerriiêênncciiaa ddaass ffaammíílliiaass ccoomm ppeessssooaass ccoomm nneecceessssiiddaaddeess eessppeecciiaaiiss eemm pprroocceessssoo ddee eennvveellhheecciimmeennttoo:: uummaa nnoovvaa ddiimmeennssããoo ddaa

ddeesspprrootteeççããoo ssoocciiaall

Mestrado em Serviço Social

Universidade Federal de Santa Catarina

2004

Page 2: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

2

Carmem Lúcia da Silva

AA eexxppeerriiêênncciiaa ddaass ffaammíílliiaass ccoomm ppeessssooaass ccoomm nneecceessssiiddaaddeess eessppeecciiaaiiss eemm pprroocceessssoo ddee eennvveellhheecciimmeennttoo:: uummaa nnoovvaa ddiimmeennssããoo ddaa

ddeesspprrootteeççããoo ssoocciiaall Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Federal de Santa Catarina, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Serviço Social sob a orientação da Profa. Dra. Beatriz Augusto Paiva.

Florianópolis

2004

Page 3: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

3

AA eexxppeerriiêênncciiaa ddaass ffaammíílliiaass ccoomm ppeessssooaass ccoomm nneecceessssiiddaaddeess eessppeecciiaaiiss eemm pprroocceessssoo ddee eennvveellhheecciimmeennttoo:: uummaa nnoovvaa ddiimmeennssããoo ddaa

ddeesspprrootteeççããoo ssoocciiaall

Carmem Lúcia da Silva

Banca Examinadora

Profa. Dra. Beatriz Augusto Paiva

Profa. Dra. Heloisa Maria José de Oliveira

Profa. Dra. Maria do Carmo Brant de Carvalho

Florianópolis, 2004.

Page 4: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

4

Dedicatória

Ao meu amado Rodrigo, que compartilhou comigo cada fase deste trabalho e que soube compreender as minhas ausências, a necessidade de nos privarmos de momentos, muitas vezes importantes, em nossas vidas, agradeço as palavras de estímulo e a paciência, tão fundamentais nesta trajetória. É a você, meu amado, que dedico este trabalho, cuja conquista, neste momento, compartilhamos.

Page 5: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

5

AGRADECIMENTOS É sabido que a decisão de realizar um Mestrado muitas vezes pode ser feita de

maneira individual, autônoma; porém certamente a empreitada assumida é compartilhada por muitas pessoas que, direta ou indiretamente, compõem este momento singular e cuja presença especial, em todo o processo, culmina na conquista do resultado final.

Diante disso cabe aqui o meu reconhecimento por cada um em especial. Nomeá-los todos é tarefa impossível, porém contemplarei algumas pessoas que foram fundamentais neste percurso, e que apenas corporificam parte do meu agradecimento. O reconhecimento pela presença de cada uma dessas pessoas também me faz pensar nos momentos em que a minha ausência foi necessária, a fim de alcançar este objetivo, e por isso cabe aqui meu pedido de desculpas pela imposição a vocês de algumas situações de privações, mesmo que estas tenham acontecido de forma involuntária. No mais, deixo registrada a minha eterna gratidão:

A Deus, aos meus santos protetores, que me deram saúde, inspiração e recursos para realizar o mestrado e, em especial, a dissertação.

Ao meu pai, in memorian, por tudo que representou na minha vida.

À minha mãe amada, que sempre esteve ao meu lado, na alegria e na dor, seja para dar uma palavra de consolo e incentivo, seja apenas para emprestar o seu colo, tão necessário neste processo.

À minha irmã Márcia e meu cunhado Sérgio, pelo afeto e por todos os momentos de alegria e conforto que as suas presenças proporcionam. Compartilhar com vocês a minha vida só faz torná-la mais significativa e especial.

Ao meu irmão Élcio e minha cunhada Adir, pela torcida silenciosa, mas sempre presente.

Aos meus amados sobrinhos Willian, Diego, José Henrique e Arthur, pela oportunidade que me deram de viver momentos especialmente lúdicos e afetivos, dos quais cada despedida suscitava a necessidade de um novo contato.

À minha companheira Judhy, minha cachorrinha amada, que, embora não sendo classificada como pessoa, desempenhou um papel fundamental nesta trajetória, acompanhando-me em todos os momentos. Fosse nos dias de calor extremo, fosse nas madrugadas frias, sua presença ao lado da minha cadeira, ora dormindo, ora arranhando-me, pedindo atenção, dava-me a certeza de que não estava só.

À minha sogra, Laura, pelo carinho dispensado, e a toda a família, aqui representada por Andréa, Arnaldo, Jaílton e Potira, cuja presença foi importante neste processo.

À minha orientadora, Beatriz Augusto Paiva, que, para além de ser uma profissional de renome, comprometida com a profissão de Serviço Social, referência importante na área, foi em especial companheira desta batalha. A você, Bia, meu eterno reconhecimento, pelo apoio nas horas mais difíceis, pelo estímulo tão necessário nos momentos em que desejava jogar a toalha e desistir de tudo. Esta conquista quero compartilhar com você e sua família, que me acolheu em dias próprios para descanso e lazer, revertidos em trabalho. A Camila, pela alegria e descontração; a Tita, pelos latidos e pedidos de carinho; e a Rosane, pelas deliciosas refeições, formas importantes de cuidado.

À professora Dra. Heloisa Maria José de Oliveira, que não raras vezes atuou como

Page 6: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

6

ponto de referência e de troca, com quem o contato sempre se balizou no conhecimento, no respeito e na solidariedade. Agradeço pela oportunidade de tê-la na banca examinadora, antecipando que suas considerações serão de valiosa contribuição.

À professora Dra. Maria do Carmo Brant de Carvalho, pela disponibilidade em participar da banca, tendo em vista a temática desenvolvida neste estudo, na certeza de que suas contribuições só qualificarão este trabalho. Este agradecimento é extensivo à sua secretária, Mirene, que, com competência, articulou os contatos e proporcionou a possibilidade da vinda da professora para Florianópolis.

À querida amiga Luziele, pelas palavras de estímulo e por sempre se colocar à disposição na construção deste trabalho. Obrigada pelo aprendizado constante e por tê-la como referência fundamental como profissional e como amiga.

Às professoras do Departamento de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, bem como aos servidores desse programa, pelo apoio e aprendizado, em especial à professora Dra. Catarina Schmickler que de maneira significativa auxiliou com sugestões importantes na construção deste trabalho.

Aos companheiros da diretoria do Conselho Regional de Serviço Social, aqui representados por Valéria, Kátia, Sueli, Jussara, Iracema, Monyk, Méri, Bete, Luiza, Matilde e Rosângela, pela compreensão e respeito quanto à minha ausência em momentos importantes para o CRESS. O agradecimento é extensivo aos funcionários, Lúcia, Fátima, Tânia Lurdinha, Ricardo e Gustavo, que sempre foram suportes importantes no trabalho desenvolvido naquele espaço.

Aos companheiros da vida, que são inúmeros, especialmente àqueles com quem os momentos compartilhados fomentaram laços efetivos de amizade e dos quais a saudade corresponde diretamente ao sentimento que sempre nos aproximou. Foram amigos conquistados no meio profissional, no Mestrado e na vida, como a Cíntia, a Fê, a Paty W., a Lenira, a Paty, a Jôsi, a Cleide, o Cacá, o Marcos, o Marco, a Néia, a Fernanda L. Maciel, a Maria Luiza, a Edite, o Bid e a Teresa, a Merinha, a Marisa e o Luciano, a Eliete, o Paulo, o Rogê e a Clarissa, Luciana, Marilda, Dolores, Damares, Deborah e Vera, que, mesmo à distância, sempre estiveram presentes e foram inesgotáveis no afeto.

À Iza, que, neste período, mais do que nunca, foi suporte fundamental na minha casa, cuja administração e cuidado foram méritos desta grande guerreira. A você meus agradecimentos especiais, que vão para além do cuidado da casa, abrangendo a palavra de apoio e o exemplo da sua história de vida, que encoraja todos a irem mais além.

Às famílias pesquisadas, cujo cotidiano foi partilhado e que, muito mais do que a porta de suas casas, abriram espaço em suas vidas. O meu forte agradecimento e respeito pela confiança e por acreditarem na possibilidade deste trabalho.

Page 7: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

7

“A compaixão é, assim, essa virtude singular que nos abre não apenas a toda a humanidade, mas também ao conjunto dos seres vivos ou, pelo menos, dos que sofrem. Uma sabedoria fundada nela ou nutrida dela, seria a mais universal das sabedorias”.

Comte-Sponville

Page 8: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

8

RESUMO Silva, Carmem Lúcia. A experiência das famílias com pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento: uma nova dimensão da desproteção social. Beatriz Augusto Paiva - Santa Catarina, 2004, 142f il. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. A experiência das famílias com pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento e sua caracterização histórica singular, mediatizada pelas medidas de proteção social pública e pelo cuidado familiar, compõem o feixe temático central desta dissertação. A intenção de desvendar esse universo familiar está diretamente vinculada à hipótese de pesquisa de que o sistema de proteção social direcionado a essas famílias não atende satisfatoriamente àquela problemática social, que apresenta como especificidade a questão da deficiência. Nesse sentido, foi necessário escutar, das famílias, o relato de seu cotidiano de lutas travadas diuturnamente, as quais configuram suas múltiplas estratégias de vida, contextualizadas e caracterizadas como situações especiais, diferenciadas das demais, ou seja, configuram a existência singular da pessoa com necessidades especiais, em processo de envelhecimento. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, em que a metodologia adotada permitiu o conhecimento desse universo familiar que, conjuntamente com o referencial teórico, proporcionou a articulação dos discursos das famílias. O universo da pesquisa foi de nove famílias, das quais os membros que apresentam necessidades especiais recebem atendimento educacional na Fundação Catarinense de Educação Especial, especificamente no Centro de Educação e Trabalho. Atrelado as entrevistas realizadas junto às famílias, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, objetivando obter subsídios para compreensão dessa dimensão familiar, bem como do sistema de proteção social brasileiro. Posto isso, o trabalho em tela foi balizado em três eixos fundamentais, que corporificaram as questões pertinentes ao tema supracitado. O primeiro eixo refere-se às pessoas com necessidades especiais e suas famílias diante do sistema de proteção social, na tentativa de vislumbrar que lugar esse segmento especial ocupa ali. Para isso foi necessário percorrermos a trajetória histórica da deficiência e a contemplação desse grupo especial no sistema de proteção social. Também coube compreender os meandros deste sistema no Brasil e a forma como foi sendo materializado, e, ainda, identificar de que maneira as famílias vêm sendo contempladas nas políticas públicas a fim de terem garantidos os suportes necessários para assegurar aos seus membros condições básicas de vida. O segundo eixo traz especificamente a problemática das famílias pesquisadas, sendo que compõem este estudo a apresentação destes grupos e a análise de seu processo de apropriação da deficiência, pelo qual se organizaram após a comunicação do fenômeno, esta realizada por uma equipe de profissionais. Por fim, o eixo intitulado “As novas temáticas das políticas públicas no contexto das famílias” direciona-se ao conhecimento desse fenômeno em termos do cotidiano de lutas travadas pelas famílias, em razão das complexidades que demanda esta população especial. Trata também da prioridade do cuidado destinado à figura feminina, e da resposta à questão visceral da pesquisa que subsidiou este estudo, que aborda a desproteção social pública frente ao universo singular das famílias. Palavras-chave: Famílias

Pessoas com necessidades especiais Sistema de proteção social

Page 9: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

9

ABSTRACT

Silva, Carmem Lúcia. The experience of families with aging members with special needs: a new dimension of social dis-protection. Beatriz Augusto Paiva - Santa Catarina, 2004, 142pp il. Masters dissertation - Federal University at Santa Catarina. Graduate Program in Social Service. The experience of families with aging people with special needs and their unique historic characterization, mediated by public social protection measures and by family care, compose the central thematic scope of this dissertation. The intention of unveiling this family universe is directly linked to the research hypothesis that the social protection system directed at these families does not satisfactorily attend the social problem of disability. To examine this question it was necessary to discuss with the families the daily struggles that configure their multiple living strategies - contextualized and characterized as special and distinct situations. This was necessary to characterize the unique existence of aging people with special needs. This is a qualitative study that adopted a methodology that allowed a better understanding of this family universe, and together with theoretical references, helped in the organization of the family discourses. The universe of the study included nine families in which the members with special needs receive educational service at the Labor and Education Center of the Santa Catarina Special Education Foundation. Bibliographic research was also conducted in order to improve the understanding of this family dimension, and of the Brazilian social protection system. The study was based on three basic pillars that incorporate the issues related to the theme. The first concerns people with special needs and their families in relation to the social protection system, in an attempt to determine what place this special segment occupies there. To do so it was necessary to review the historic trajectory of disablement and the treatment of this special group in the social protection system. It was also important to understand the characteristics of this system in Brazil and the way it has evolved, and even to identify the way that families have been considered in public policies in order to guarantee the support they need to assure their members basic living conditions. The second pillar specifically concerns the problematic of the families studied, given that this study includes the presentation of these groups. An analysis of their process of appropriation of deficiency - through which they organize after the communication of the phenomena - is conducted by a team of professionals. Finally, the pillar entitled “The new themes of public policies in the context of families” is aimed at the knowledge of this phenomenon in terms of the daily struggle of the families caused by the complexities that place particular demands on this special population. The study also analyses the priority given to women as caretakers and responds to the visceral issue of the research that supports this study, which concerns the public social dis-protection of the unique universe of these families.

Key-words: Families

People with special needs Social protection system

Page 10: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

10

SSUUMMÁÁRRIIOO

IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO.......................................................................................................................................................................................................................................... 11

11 AASS PPEESSSSOOAASS CCOOMM NNEECCEESSSSIIDDAADDEESS EESSPPEECCIIAAIISS EE AASS SSUUAASS FFAAMMÍÍLLIIAASS NNOO CCOONNTTEEXXTTOO DDOO

SSIISSTTEEMMAA DDEE PPRROOTTEEÇÇÃÃOO SSOOCCIIAALL:: QQUUEE LLUUGGAARR OOCCUUPPAAMM??..................................................................................................

20

1.1 A construção histórica da deficiência.......................................................................................... 22

1.2 Sistema de proteção social no Brasil: considerações teórico-históricas..................................... 32

1.3 O enfoque da deficiência na esfera do sistema de proteção social............................................. 43

1.4 A atenção às famílias nas políticas públicas................................................................................ 48

22 FFAAMMÍÍLLIIAASS DDAASS PPEESSSSOOAASS CCOOMM NNEECCEESSSSIIDDAADDEESS EESSPPEECCIIAAIISS:: DDEE QQUUEEMM EESSTTAAMMOOSS

FFAALLAANNDDOO??..................................................................................................................................................................................................................................................

59

2.1 Muito prazer, eis um pouquinho da minha história.................................................................... 62

2.2 O processo de apropriação da deficiência pela família............................................................... 76

2.3 A equipe profissional e a comunicação da deficiência................................................................ 82

3 AASS NNOOVVAASS TTEEMMÁÁTTIICCAASS DDAASS PPOOLLÍÍTTIICCAASS PPÚÚBBLLIICCAASS NNOO CCOONNTTEEXXTTOO DDAASS FFAAMMÍÍLLIIAASS:: CCOOMMOO

PPRROOBBLLEEMMAATTIIZZÁÁ--LLAASS??..............................................................................................................................................................................................................

90

3.1 A expressão de um cotidiano de lutas.......................................................................................... 92

3.2 O cuidado como responsabilidade feminina................................................................................ 104

3.3 A desproteção social perpassando o universo familiar............................................................... 109

CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS FFIINNAAIISS........................................................................................................................................................................................................ 116

RREEFFEERRÊÊNNCCIIAASS BBIIBBLLIIOOGGRRÁÁFFIICCAASS .............................................................................................................................................................................. 124

Page 11: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

11

IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

Permanece atual um importante desafio: a investigação teórica do sujeito família e

suas contemporâneas conformações neste começo de século. É sabido que este grupo vem

ornamentado com padrões difusos de relacionamento, em que os “laços tornaram-se

esgarçados” (SARTI, 2003a), inviabilizando os contornos que o delimitavam anteriormente.

Laços que são construídos por meio dos diferentes processos através dos quais a família vem

se (re)configurando, desde as distintas formas de reprodução da espécie, não necessariamente

atreladas a uma relação sexual, passando também pelas novas conotações do sistema

econômico-político e cultural em que estamos inseridos, e que afiança a inserção dos

membros da família na construção de estratégias de sobrevivência. Para Sarti (2003a, p. 21),

Vivemos uma época como nenhuma outra, em que a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além de sofrer importantes abalos internos tem sido alvo de marcantes interferências externas. Estas dificultam sustentar a ideologia que associa a família à idéia de natureza, ao evidenciarem que os acontecimentos a ela ligados vão além de respostas biológicas universais às necessidades humanas, mas configuram diferentes respostas sociais e culturais, disponíveis a homens e mulheres em contextos históricos específicos.

Embora a família na contemporaneidade apresente novas configurações, ainda é

por meio deste espaço privilegiado que se configura um canal de aprendizado dos afetos e

vínculos, além das relações sociais, indiferente dos diversos desenhos e constituições deste

grupo. Sendo assim, é a família o “primeiro sujeito que referencia e totaliza a proteção e

socialização dos indivíduos” (CARVALHO, 2002, p. 93).

Neste percurso, as famílias se reconstróem, sendo que os laços consangüíneos

passam a ser elementos secundários na definição dos pertencentes a este grupo. Segundo

Mioto (2000), os grupos familiares podem ser categorizados como núcleos de pessoas que

convivem em um determinado local, durante um período de tempo, além de serem marcadas

por relações de gênero e/ou de gerações, e que estão vinculados dialeticamente com a

estrutura social em que se inserem.

Apresenta-se, desta forma, a família como tema de estudo dessa dissertação,

embora com uma particularidade adensada: trata-se aqui de famílias que incluem, entre os

seus membros, uma pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento. De

Page 12: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

12

partida, vale assinalar que esse especial universo familiar, em função dos maiores cuidados,

necessidades e intervenções que um indivíduo com necessidades especiais requer, organiza-se

de forma singularmente determinada pelos fatores decorrentes desta condição. Deste modo, “a

capacidade de ultrapassar as condições de vida mais adversas revela-se também na forma

como estas famílias desenvolvem condições para cuidar dos elementos que necessitam de

cuidados suplementares” (HESPANHA, 2000, p. 84). Tais condições, necessidades, capacidades

e aspirações constituem-se, pois, no campo temático correlacionado ao objeto dessa

dissertação.

Há que se ressaltar que, há poucos anos atrás, tais cuidados não implicavam

grandes desdobramentos, em razão das pessoas com necessidades especiais apresentarem

baixa expectativa de vida. Essa realidade, porém, paulatinamente tem-se alterado, em

consonância com o progresso registrado na medicina preventiva, no tratamento de doenças e

nos cuidados com a saúde (THOMAE; FRYERS, 1982). Desta maneira, não se estima que estas

pessoas faleçam no período da adolescência, nem tampouco na segunda ou terceira etapa de

suas vidas, como acontecia anteriormente. Ao contrário, hoje a maioria delas sobrevive aos

pais.

No entanto, isto que de um lado causa-nos satisfação, em razão das possibilidades

abertas pela tecnologia e pelo progresso do conhecimento científico, que permitem maior

longevidade e mais qualidade de vida para os indivíduos acometidos de deficiências e doenças

vulnerabilizadoras e/ou incapacitantes, do outro cria uma nova problemática social, que

expressa a sobreposição de dois fenômenos: a velhice e a condição de deficiência. É preciso,

portanto, considerar a hipótese de que estamos diante de uma incipiente problemática dirigida

às políticas públicas, no entanto, para discuti-las faz-se necessário que realmente

identifiquemos esta população que apresenta uma condição especial e adversa de muitas

outras. Sendo assim, apresenta-se a grande questão de pesquisa, motivadora e orientadora

deste estudo: ccoommoo ssee ccoonnffiigguurraa oo ccoottiiddiiaannoo ddaass ffaammíílliiaass qquuee ppoossssuueemm nnaa ssuuaa ccoonnssttiittuuiiççããoo

uummaa ppeessssooaa ccoomm nneecceessssiiddaaddeess eessppeecciiaaiiss eemm pprroocceessssoo ddee eennvveellhheecciimmeennttoo,, ffrreennttee aaoo

ssiisstteemmaa ddee pprrootteeççããoo ssoocciiaall??

Balizados por esta indagação, sinalizamos a importância da investigação

acadêmica e da produção de conhecimento, objetivando compreender e contextualizar o

fenômeno das famílias que, na sua constituição, possuam uma pessoa com necessidades

especiais em processo de envelhecimento, frente à possibilidade concreta de evidenciar uma

nova problemática dirigida às políticas públicas.

Page 13: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

13

Nesta perspectiva, não caberia apenas debruçarmo-nos sobre o contexto histórico

da deficiência e suas distintas conotações ao longo do tempo, nem tampouco apresentar as

famílias pesquisadas, descrever as suas trajetórias e os óbices enfrentados cotidianamente,

sem contextualizá-las no processo em que estão inseridas e, especialmente, sem indagar de

que forma este segmento social vem sendo contemplado no sistema de proteção social1.

Não obstante o fato de que a família possui uma função primordial no processo de

desenvolvimento do indivíduo, isto não significa que este grupo tenha que suprir isoladamente

todas as necessidades dos seus membros e responder a todas as demandas que lhe são

impostas, especialmente considerando a atual conjuntura econômica e social, que

sobrecarrega de atribuições e exigências ao grupo familiar.

Para além deste enfoque, pretendemos intensificar esforços para que o debate

público, acadêmico e político possa contribuir para a superação da perspectiva corrente, que

restringe apenas à esfera privada da família a responsabilidade pela resolução e pelo

atendimento de suas demandas. É o momento, pois, de problematizar este segmento, suas

características, necessidades e direitos dentro do sistema de proteção social. Portanto,

acreditamos que a relevância do debate está em demonstrar a necessidade de ampliação da

visão atual, restrita quanto ao papel atribuído à família nas estratégias de superação isolada de

seus óbices. É corrente, sabemos, a revalorização da função deste grupo “enquanto ‘célula

social’ encarregada da socialização primária dos indivíduos e enquanto provedora, dita

‘natural’, de bem-estar material, afetivo e emocional para seus membros” (FARIA, 2000, p.

98). Tal processo fundamenta, no discurso do Estado, a legitimação da transferência de novas

responsabilidades para a família, naturalizando atribuições que antes haviam sido, de certa

forma, e ainda que precariamente assumidas pela esfera pública.

Direcionamos o enfoque da pesquisa empírica desse estudo visando publicizar e

conferir um caráter público e político à família cuja condição peculiar de apresentar na sua

constituição uma pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento já atribui

outros cuidados, que não devem ser restritos aos muros familiares, mas estendidos ao contexto

de um sistema de proteção social que venha ao encontro deste segmento social

vulnerabilizado. Adensamos esta justificativa, sobretudo, pelo fato de que as demandas

1 Cabe pontuar que se entende por Proteção Social as formas “às vezes menos institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações. Incluo neste conceito, também, tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas na vida social. Incluo, ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades (DI GIOVANNI, 1998, p. 10).

Page 14: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

14

apresentadas por este segmento especial vêm sendo atendidas majoritariamente por suas

famílias, como se fossem atribuições e competências exclusivas destas as ações que visam a

satisfação das necessidades básicas deste grupo vulnerabilizado. Entendemos que, para estas

famílias, a deficiência representa um problema demasiadamente complexo, em dois sentidos,

mais enfaticamente:

Por um lado, um adulto inválido ou deficiente representa um elemento que não contribui para o rendimento e, simultaneamente, uma fonte de despesa; por outro lado, ao exigir cuidados suplementares, impede muitas vezes um ou mais membros da família (quase sempre mulheres) de desenvolver uma atividade remunerada (HESPANHA, 2000, p. 85).

Isto significa evidenciar que, de um lado, a família atende a um membro que não

está em condições efetivas de ser inserido no mercado produtivo, sendo muito mais um

demandante de serviços e cuidados especializados e, de outro, que a referência a estes

atendimentos familiares extrapola as despesas financeiras, exigindo a intervenção direta de

um outro membro para monitorar estes cuidados, o que dificulta ou impossibilita a dedicação

de mais uma pessoa às diferentes estratégias de sobrevivência.

Objetivando, assim, estudar este fenômeno, pretendemos dedicar nossa atenção às

famílias atendidas na Fundação Catarinense de Educação Especial - FCEE2, posto que foi

neste espaço que, a partir do cotidiano destes sujeitos e de suas famílias, emergiram muitas

inquietações que, por sua vez, nos permitiram superar o desconforto frente ao diferente, na

perspectiva da ampliação do conhecimento relativo ao universo das lutas travadas

hodiernamente pelas famílias, diante do desafio contínuo de tocarem suas vidas com

dignidade.

Para tanto, trata-se de uma pesquisa qualitativa, no qual a metodologia adotada,

irá privilegiar o uso de dois instrumentos de coleta de dados, sendo que o primeiro

corresponde a entrevistas gravadas, realizadas com nove famílias que possuem membros com

necessidades especiais em processo de envelhecimento, atendidas no Centro de Educação e

Trabalho - CENET II3. Por meio da utilização deste instrumento foi possível escutar as

2 O interesse nesta temática reflete o nosso processo de inserção profissional, enquanto assistente social que começou sua trajetória na Fundação Catarinense de Educação Especial - FCEE, instituição de caráter estatal que tem como missão desenvolver uma política de educação especial junto às escolas do Estado de Santa Catarina. É responsável pelo atendimento às pessoas com necessidades especiais, após seu diagnóstico. E esta instituição presta serviços como o de orientação à família, encaminhamento a serviços especializados, estimulação essencial, reabilitação, educação infantil, ensino fundamental, educação e trabalho, entre outros. 3 Vale destacar que as famílias que configuraram a pesquisa em tela são atendidas em um dos Centros de Educação e Trabalho existentes no Campus da Fundação Catarinense de Educação Especial, sendo que este Centro é basicamente subdividido em dois blocos, definidos como bloco “I” e bloco “II”. O primeiro atende

Page 15: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

15

narrativas destas famílias, dada a preocupação com a livre expressão de seus pontos de vista,

suas necessidades e suas formas de compreensão do mundo. Diante disto,

Não houve a intenção de buscar uma representatividade quantitativa, buscou-se apenas recolher experiências de vida, “experiências humanas”[...] Experiências que narradas fragmentariamente e em “falas” muitas vezes assentadas em outros códigos, bem expressam as múltiplas espoliações de seus narradores. Expressam também suas inquietudes, suas resistências e seus desejos de libertação das condições em que vivem, mesmo como um sonho (YAZBEK, 1993, p. 30).

Nesse sentido, é imprescindível que a leitura dos relatos obtidos pela pesquisa

empírica leve em consideração o processo histórico no qual esta população está inserida e,

pelo qual ela foi caracterizada e construída. Com destaque para o segmento social alvo desse

estudo, foram cotejadas interpretações múltiplas, seja sob a ótica da piedade, seja sob o

enfoque da ética, da compaixão e da justiça, conforme a direção proposta, ou seja, a de que

uma nova dimensão analítica deve ser exercitada com relação a todos que são tidos como

desiguais por serem diferentes.

Desta forma, as entrevistas foram realizadas nos espaços disponibilizados e

desejados pelas famílias, sendo que sete abriram a porta de suas casas e de suas vidas, a fim

de contribuírem para a construção deste estudo, enquanto outras duas preferiram o espaço

institucional da FCEE, o que de modo algum interferiu no conteúdo de suas narrativas, na

relevância de suas informações e no resgate da trajetória de suas histórias.

Inicialmente, realizamos o contato com a instituição que, após ter aprovado a

pesquisa, viabilizou a intermediação com estas famílias, para as quais encaminhamos o

projeto explicitando o teor da pesquisa e o convite para que as mesmas fossem protagonistas

deste trabalho. Posteriormente, realizamos ligações telefônicas, a fim de verificarmos a

adesão e o desejo de comungarem deste processo de estudo. Por fim, agendamos - de acordo

com a disponibilidade da família - as entrevistas propriamente ditas, uma por família, uma vez

educandos com idade superior a quatorze anos e com diagnóstico de deficiência mental leve a moderada. Nesse local são desenvolvidas atividades, como alfabetização, educação de jovens e adultos, orientação para o trabalho, cursos em diversas oficinas, estágios na própria Fundação ou em empresas e encaminhamento ao mercado de trabalho. É importante salientar que este bloco, apesar das dificuldades construídas historicamente e que são enfrentadas quotidianamente, propõe à Fundação, à família, aos educandos e à sociedade uma porta de saída da institucionalização destes sujeitos, através do mercado de trabalho competitivo ou protegido. Já no bloco “II”, os usuários são educandos também com idade superior a quatorze anos, com um diferencial bem evidenciado do bloco “I” no que concerne ao diagnóstico, com deficiência definida como grave a severa. Isto significa dizer que existe um comprometimento físico e mental maior, que impossibilita a execução de muitas atividades da vida diária. Torna-se inviável também sua inserção no mercado de trabalho, especialmente sob a ótica de trabalho preconizada pelo sistema capitalista. O atendimento desenvolvido neste bloco se dá através dos grupos de trabalho, das atividades laborativas ocupacionais e do grupo de convivência. Foi a partir deste grupo que extraímos as famílias inseridas na pesquisa.

Page 16: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

16

que não houve necessidade de retorno, tendo em vista a qualidade e intensidade das

informações fornecidas. O reconhecimento deste universo familiar pautava-se na necessidade

de aproximação do cotidiano destas famílias, juntamente com a compreensão do “significado

da tarefa assistencial enquanto mediação no acesso a direitos sociais” (YAZBEK, 1993, p. 28).

Cabe salientar que todos os nomes utilizados nesta pesquisa são fictícios,

garantindo o sigilo necessário para o referido estudo. Com o mesmo apreço, houve o cuidado

em comunicar às famílias todo o processo desta construção, porém algumas salientaram que

não haveria a necessidade de sigilo, que suas identidades poderiam ser reveladas sem

qualquer restrição. Mesmo diante da permissão dos familiares, preferimos manter o sigilo, a

ética a respeito de seus nomes e de suas vidas.

Assim, temos nove famílias que foram caracterizadas pelos nomes da pessoa com

necessidades especiais em processo de envelhecimento, sendo constituídas por sete homens e

duas mulheres. Percebemos que o contexto das famílias apresenta-se de forma similar,

embora haja distinções básicas, que pode ser caracterizada pelo próprio diagnóstico

apresentado por este membro, ou ainda pela pessoa responsável em cuidá-lo, dentre tantas

outras complexidades que cada sujeito em particular demandam. Das famílias pesquisadas

apenas duas o protagonismo do cuidado é responsabilidade dos pais (Pedro Henrique e

Cleide). Outras o cuidado fica restrito a figura materna que pode ou não contar com o auxílio

dos demais filhos, como é o caso de Eduardo, Gustavo, Armando e Rebeca. Nas famílias de

Clóvis, Richard e Fernando o cuidado é redimensionando aos demais membros da família,

tendo em vista que já não possuem os genitores como referência, em razão do falecimento dos

mesmos.

O segundo instrumento correspondeu à pesquisa documental e bibliográfica, tanto

dedicada ao estudo desta população, quanto às demais temáticas que nos propusemos

trabalhar para subsidiar nossas ponderações. Ocorreu durante todo o processo de construção

desta dissertação, decerto.

Os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa decorrem, assim, da

combinação destes dois instrumentos de análise complementares, na qual a articulação das

informações elencadas suscitou a construção dos três capítulos que compõem esta dissertação,

o que será sintetizado a seguir:

O primeiro deles é intitulado “As pessoas com necessidades especiais e suas

famílias no contexto do sistema de proteção social: que lugar ocupam?” e visa problematizar

a percepção histórica que se tem da questão da deficiência, seus mitos, estigmas e

Page 17: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

17

preconceitos que, para além de se restringir a uma simples conceituação e categorização,

influenciam de forma direta a relação estabelecida com este segmento social e com suas

famílias.

Longe de ser restrita ao ambiente familiar, ou até mesmo às fronteiras das

comunidades em que estas famílias residem, tais relações inscrevem-se também na esfera

pública por meio do sistema de proteção social, o que justificou dois sub-itens neste capítulo:

inicialmente, abordamos esta temática no contexto brasileiro, perfazendo seus desenhos no

decorrer da história; a segunda linha de raciocínio enfoca especificamente a questão da

deficiência no sistema de proteção social, a fim de que tenhamos vislumbradas as formas de

engendramento deste processo. Frente a estas reflexões amplas e visando uma percepção

teórico-política quanto à questão das relações entre o sistema de proteção social e a

deficiência, surge a necessidade de elencar, nestas discussões, a relação destes com o

segmento familiar. É nesta direção que justificamos a construção deste item, que encerra as

ponderações do capítulo inaugurador desta dissertação.

Trata-se, portanto, apenas do início das abordagens no tocante à temática da

família que, nesta dissertação, tem um enfoque central. O título “Famílias das pessoas com

necessidades especiais: de quem estamos falando?” objetiva apresentar, assim, esta

população, que historicamente construiu uma vida paralela à das demais famílias, posto que se

sentia penalizada e/ou culpabilizada pela existência deste integrante, possuidor de algo

diferente e não apenas distinto, algo reprovado pela sociedade, que primava pela eugenia e

por uma moralidade homogênea.

Nesta direção, privilegiamos a apresentação destas famílias, sua constituição, o

perfil da pessoa com necessidades especiais, seu diagnóstico, sua renda familiar, com quem

reside, enfim, informações que aduzem como está posto este grupo familiar.

Em seguida, objetivamos compreender de que forma as famílias se apropriaram da

deficiência, como se organizaram, quais foram as angústias e receios que muitas vezes

comungaram, ou que estão diretamente vinculada à forma como esta família recebeu a

comunicação da deficiência. Neste sentido, argumentamos pela necessidade de elucidar estes

meandros, posto que a investigação da forma de comunicação adotada essencialmente pelas

equipes profissionais vinculadas à área da saúde, denota situações complexas e que suscitam a

resignificação urgente de algumas intervenções profissionais.

Ainda na tentativa de elucidar este universo que inicialmente nos é estranho,

buscamos resgatar das narrativas familiares as novas temáticas das políticas públicas no

Page 18: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

18

contexto das famílias. Temáticas que são materializadas num cotidiano de lutas, visto que, no

momento das entrevistas, o que saltava aos olhos era a necessidade premente de travar lutas

diárias na tentativa de conquistar mais um dia, que significava e constituía uma grande vitória.

Vitórias diárias que são observáveis no controle das crises convulsivas, na obtenção de mais

um pacote de fraldas descartáveis, na ida ao médico e na aquisição dos medicamentos de uso

contínuo, no atendimento educacional realizado diariamente, enfim, nestes fatos que se

configuram como verdadeiras batalhas pois, no contexto destas famílias, os direitos são

sempre arduamente conquistados, quando o são.

O segundo tópico deste capítulo analisa o cuidado como responsabilidade

feminina. Esta, nos segmentos pesquisados, fica evidente e certamente produz implicações,

decorrentes tanto da condição de gênero, quanto da resignificação da família sob essas

características.

É na dimensão do cuidado que observamos grande parte das preocupações

familiares, posto que, em razão do envelhecimento da população com necessidades especiais,

competem à família (ao menos dentro do modelo em que está configurado o sistema de

proteção social brasileiro) as respostas a estas inseguranças. Tais inseguranças não devem ser

compreendidas de forma abstrata ou generalizada, mas sim com ênfase nas lacunas existentes

no sistema de proteção social, que deveria atender as demandas suscitadas por estas famílias.

A articulação dessas análises culminou, assim, no capítulo 3, denominado “As

novas temáticas das políticas públicas no contexto das famílias: como problematizá-las?”

Termos conhecido e participado deste universo familiar proporcionou-nos a

renúncia aos nossos preconceitos e a resignificação de nossas posturas pessoais e

profissionais, não em nome da piedade ou da resignação, mas em prol de um novo desenho de

sociedade. O que se apresentava, antes, de forma tão embrutecida e indiferente, frente não

apenas às famílias das pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento

mas, de um modo geral, frente aos segmentos designados como vulneráveis, agora pode ser

percebido como matéria de direitos, ainda que especiais e inéditos. Resignificar este universo

faz emergir fortemente o compromisso com a justiça, que Comte-Sponville (1995, p. 93)

define como elemento essencial, ao dizer que

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. Não são os justos que prevalecem; são os mais fortes sempre. Mas isso, que proíbe sonhar, não proíbe combater. Pela justiça? Por que não, se nós a amamos? A impotência é fatal; a tirania é odiosa. Portanto, é necessário “pôr a justiça e a força juntas”; é para isso que a política serve e é isso que a torna necessária.

Page 19: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

19

Direcionamos esta dissertação na perspectiva da aplicabilidade da justiça e da

compaixão, entendendo-as como possibilidades a serem alcançadas de forma a

essencialmente, resignificar o cotidiano destas famílias, em prol da efetividade de um sistema

de proteção social e não da permanência e cristalização de um estado de coisas em que a

desproteção social perdure como estratégia de manutenção das desigualdades e indiferenças

sociais.

Page 20: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

20

11 AASS PPEESSSSOOAASS CCOOMM NNEECCEESSSSIIDDAADDEESS EESSPPEECCIIAAIISS EE AASS SSUUAASS FFAAMMÍÍLLIIAASS NNOO CCOONNTTEEXXTTOO

DDOO SSIISSTTEEMMAA DDEE PPRROOTTEEÇÇÃÃOO SSOOCCIIAALL:: QQUUEE LLUUGGAARR OOCCUUPPAAMM??

As reflexões a serem tematizadas nesse primeiro capítulo nos remetem a três

registros teórico-conceituais distintos mas inter-relacionados: a deficiência tomada na sua

dimensão social e histórica, a família como principal esfera de socialização primária, e o

sistema de proteção social, com as reconfigurações processadas pelas conquistas político-

legais dos últimos anos. São elementos, portanto, essenciais na construção desta análise, que

constituem o lastro de toda a pesquisa teórica e empírica com base na qual esta dissertação é

construída. Assim sendo, compreendê-los significa conferir a dimensão e importância devidas

ao universo familiar, bem como ao sistema de proteção social, esfera complementar de

organização e enfrentamento das necessidades sociais, estruturas determinantemente

vinculadas à problemática da pessoa com necessidades especiais.

Privilegiar nesta pesquisa a construção histórica da conceituação da deficiência se

fez necessário, tendo em vista que ainda perduram dúvidas a respeito do fenômeno. Dúvidas

que não ficam restritas ao espaço privado das famílias que possuem um membro com

necessidades especiais, mas estendem-se à ausência de compreensão da sociedade em geral,

que se expressa de diferentes formas frente a esta população.

Outra questão relevante trata-se da forma como historicamente as políticas sociais

e setoriais minimalistas, banalizaram e até eclipsaram a família, de modo que a vertente destas

“grandes políticas sempre conduziu à compreensão da mesma isolada de seu contexto e dos

valores sócio-culturais com predominância generalizante” (TAKASHIMA, 2002, p. 77).

Nesta direção, enfatizamos a idéia de Hofmeister (2003, p. 13), que indica a

relevância de contextualizarmos a família, pois

Olhando para a realidade brasileira atual (considerando seu desenvolvimento histórico) e nos deparando com a óbvia carência de vários fatores importantes para a realização humana, podemos seguramente esperar que a situação do núcleo familiar esteja também marcada por precariedade, falta de preparação e ausência de projetos de vida positivos.

Page 21: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

21

No Brasil, historicamente, a família representava um espaço secundário na

conformação de um sistema de proteção social que apresentava marcas clientelistas, focalistas

e corporativistas e não se constituía como reflexo de políticas destinadas ao grupo familiar.

A partir da Constituição Federal de 1988 e dos desdobramentos desta Carta (o

Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica de Assistência Social, por exemplo),

elementos como a convivência familiar e a participação comunitária são evidenciados como

direito social. É neste contexto que acontece uma revalorização do espaço familiar, que não

deve simbolizar a isenção do Estado na garantia de um sistema de proteção social, nem

tampouco a transferência de suas competências ao Segundo e Terceiro Setor4.

A sobrecarga que as famílias estão experenciando são fomentadas também pela

reconfiguração do Estado que, tendo legitimado sua intervenção com a regulação das relações

sociais nos diferentes contextos econômicos, mais do que nunca está à mercê dos ditames do

capital internacional, cujos interesses sacramentam várias normas e orientações a serem

obedecidas pelos países em desenvolvimento, na perspectiva da precarização dos direitos

sociais e do desinvestimento público nas políticas sociais, ao lado da destruição das garantias

mínimas e da proteção da população assalariada.

É na perspectiva de problematizar e esmiuçar estas três esferas - a deficiência, a

família e o sistema de proteção social, que alicerçaremos este capítulo, sendo que inicialmente

trataremos de privilegiar a construção histórica da deficiência, a fim de que este fenômeno

seja depurado do universo dos estigmas e mitos. Embora, em alguns aspectos, essas

incógnitas tenham sido atenuadas, muitos questionamentos perduram, tendo em vista que suas

origens correspondem ao próprio processo histórico, durante o qual a deficiência foi

conceituada, ora como doença mental, ora com um atributo a ser satanizado, ou santificado,

dependendo do percurso da humanidade. Objetivando minimizar o efeito deletério destas

indagações, construímos o primeiro tópico deste capítulo, a fim de delinear historicamente o

processo de compreensão da deficiência.

Posteriormente, evidenciaremos algumas considerações teórico-históricas do

sistema de proteção social no Brasil. Em seguida, realizaremos a discussão da deficiência na

4 Dirigimo-nos a Komeyama (2000, p. 199), a fim de conceituar estes setores que categorizam o Estado, o Mercado e a Sociedade, sendo que o Terceiro Setor engloba “serviços não-exclusivos do Estado. Inserem-se neste setor quaisquer iniciativas privadas na criação de entidades jurídicas não-governamentais que perseguem o bem comum da coletividade, desenvolvendo atividades nas quais não existe o poder do Estado. [...] O primeiro setor é constituído pelas atividades do governo, envolvendo os poderes executivo, legislativo e judiciário assim como o ministério público. O segundo setor é o verdadeiro setor produtivo de todo país essencialmente capitalista. Nele estão englobadas as empresas de diferentes ramos de produção [...] enfim, todo o setor produtivo com fins de lucratividade”.

Page 22: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

22

esfera do sistema de proteção social, visto que será por meio deste segmento em particular

que investiremos esforços de compreensão e desvendamento deste fenômeno tornando-o

visível, palpável, para que tenhamos condições de conhecer aquilo que nele se constitui como

núcleo temático central dessa investigação.

Por fim, registraremos a atenção destinada às famílias no âmbito das políticas

públicas, a fim de sustentar as argumentações do capítulo seguinte.

1.1 A construção histórica da deficiência

A temática que inaugura a análise construída nesse estudo é dedicada ao

reconhecimento da problemática da deficiência mental, entendendo que se trata de um longo

trajeto social e científico que suscitou, sobretudo, uma apreensão generalizadora do

fenômeno, como se toda manifestação comportamental, dissociada dos padrões da época,

fossem expressão da própria condição da deficiência.

Conforme Scheerenberger (apud MENDES, 1995), há registros escritos que, desde

2.500 a.c., comprovam a caracterização de alguns comportamentos como sendo provenientes

da explicitação da deficiência mental. Contudo, somente no século XIX houve uma

delimitação da deficiência mental, num processo que atribuiu a ela uma esfera particular da

condição humana.

De qualquer forma, as características de generalização da deficiência registraram

sua marca na história, sendo evidenciada, desde os primórdios, esta universalização

explicativa, no sentido de responder às mais inquietantes dúvidas da época. Ou seja, por não

existirem informações mais precisas sobre as doenças e as questões sociais, os fenômenos

considerados destoantes da sociedade vigente eram agrupados sob a rubrica da deficiência,

responsabilizando somente o indivíduo por tal condição. Em outras palavras, a idéia de

deficiência caracterizou-se, no decorrer da história, como uma panacéia, sendo remédio para

todos os males do conhecimento insuficiente e pseudo-resposta para todas as indagações. Para

Goergen (1985, p. 9), “foi possível silenciar completamente sobre o deficiente mental e

esconder anonimamente aqueles que mais se distinguiam ou cuja presença mais incomodava”.

Page 23: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

23

A percepção destes sujeitos, ora como seres parasitários, ora como elementos de

condescendência limitavam outras formas de conceber esta população e, mais ainda, atribuía

unicamente ao indivíduo sua condição incapacitante, reforçando estigmas5 e fazendo

prevalecer a lógica de isolamento. Para Foucault (1992, p. 121), a prática de internamento da

loucura, no século XIX, coincide com o momento em que esta é percebida menos com relação

ao erro do que com relação à conduta regular e normal6. Este momento representa a loucura

não mais como julgamento perturbado, mas sim como uma desordem na maneira de agir, de

se expressar, de sentir paixões, enfim, de ser livre. Para o autor, “em vez de se inscrever no

eixo verdade-erro-consciência, [a loucura] se inscreve no eixo paixão-vontade-liberdade”.

Para Pessotti (1984) as políticas de atendimento vislumbradas no século XIX eram

direcionadas na perspectiva do abandono, do confinamento com objetivo educacional ou do

retorno ao hospício, dependendo do tipo de anormalidade observável, geralmente restrita às

pessoas deficientes mentais consideradas dentro das classificações severa, profunda e, talvez,

moderada, associadas às incapacidades acentuadas, aos estigmas físicos bem demarcados e,

por fim, adicionadas à inadequação social, dentro da concepção de ordem vigente na época.

Diante disto, constatamos que os padrões de normalidade e anormalidade estão

diretamente associados ao modelo econômico vigente, indiferente do período histórico

estudado, haja vista que qualquer alternância nos moldes deste exigiria a adaptabilidade das

demais estruturas sociais. Neste sentido, observamos que a população que apresenta alguma

necessidade especial esteve historicamente abandonada à sua própria sorte, na mesma medida

5 Esta categoria é trabalhada por Goffman (1988), que faz um resgate histórico da representação social do estigma, sendo que, para os gregos, o termo significava sinais corporais, que permitiam identificar alguma atitude criminosa realizada pelo seu “portador” ou, ainda, referia-se a pessoas discriminadas. Os sinais eram feitos com cortes ou queimaduras, objetivando distinguir escravos, traidores, e criminosos dos demais membros da sociedade. Na era cristã, duas interpretações dos sinais corporais eram evidenciadas: uma correspondia à graça divina e a outra, contrariando a explicação religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Enfim, várias foram as significações pontuadas ao longo da história, culminando numa identidade virtual que criamos, identidade esta que ignora a identidade social real da pessoa estigmatizada, que muitas vezes caracterizamos como sendo uma pessoa estragada e/ou má. 6 Embora no texto intitulado “Sintomas mentais e ordem pública” Goffman (1978) não esteja fazendo uma análise direcionada aos modelos comportamentais existentes no século XVIII, o autor pontua algumas críticas e reflexões relevantes acerca dos padrões sociais de “normalidade”, especialmente retratando que estes ditames nem sempre são tão claros e que, por trás destas condutas, há uma série de interesses que vão além de um diagnóstico científico; ao contrário, aparece sob esta mácula a representação dos interesses político, econômico e social. O autor reflete sobre estes aspectos, considerando a hipótese de não possuirmos recursos científicos para distinguir o que caracterizamos realmente como “anormal” na sociedade, bem como a definição de uma doença mental, haja vista que “ao passar tão rapidamente do delito social ao sintoma mental, o psiquiatra [Goffman exemplifica a atuação deste profissional] tende a apresentar a mesma dificuldade que o leigo para avaliar a impropriedade de um dado ato - o que é defensável no caso de atos extremamente desviantes, mas não quando se trata de muitas outras impropriedades mais suaves. Isto é inevitável, pois simplesmente não possuímos um mapeamento técnico dos vários padrões de comportamento aprovados em nossa sociedade” (Ibid., p. 10).

Page 24: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

24

em que as parcas iniciativas públicas direcionadas a este público ficaram restritas às

patologias e aos mitos.

Reflexos desta síntese, entre desinformação e as pré-noções oriundas do senso-

comum, podem ser evidenciados também no discurso das famílias pesquisadas, no qual as

categorias de doença e de deficiência são usualmente confundidas.

Muita gente olhava pra ela e pensava que ela não era doente. Tratavam normalmente. Teve um [dia] que eu fui consultar com ela [e ela] começou a ficar agitada. Aí ele [funcionário] começou a engrossar. Aí eu assim: “Será que o senhor não tá vendo que ela não é uma pessoa normal?” Porque às vezes a Rebeca tem a característica [...] quem olha pra ela não diz que ela é deficiente ou não (Família de Rebeca).

As irmãs acrescentaram ainda que, quando “a gente conversa com ela, acha que

ela é normal”.

Evidenciamos também esta dicotomia na família de Richard, chamado de Rick,

pelos familiares:

Às vezes a gente diz assim do RicK que ele é doente, mas daí as minhas filhas dizem - que já estudaram e tudo: “mãe, o RicK não é doente, o RicK é uma pessoa especial, não é doente, porque o RicK, come, caminha, né?” Eu não sei, eu acho que quem é deficiente é aquele que não consegue caminhar, né? Se locomover? Até assim, tem gente com duas pernas que não trabalha, como aqueles que não consegue se locomover [...] que não consegue se expressar como uma pessoa normal, né?

A família de Clóvis pode ser também citada nesta análise:

É a mesma coisa com o Clóvis, que tem dia que vem gente aqui e diz: “ai, tadinho”. Eu digo: “Ele não é tadinho, ele é debilitado na vida dele”. O importante é como eu digo: não é tratar ele como doente, ele não é doente, entende? Porque o Clóvis não é retardado como muita gente chama, mas eu não gosto que chamem desse jeito, porque as pessoas se referem assim: “Ah, aquele retardado, aquele doente lá [...] não sei porque eu tenho em casa, mas a palavra, a forma como chama é tão forte [...] é pesada. Ele tá bem, dentro das possibilidades dele, tá contente, tá feliz, ele transmite energia pra todo mundo, entende? Então ele não é um tadinho [...] Não vou criar ele como tadinho porque se fosse criar ele assim, ele já tinha morrido há muito tempo [...] a gente dá as responsabilidades dele [...] ele não é um inútil, ele tá aqui por alguma coisa, ele tem a missão dele, e tem muita gente que não aceita.

Observa-se que as patologias e os mitos não fazem apenas parte de uma história

que ficou para trás, mas ainda está presente no contexto destas famílias. E era em função deste

risco eminente e ameaçador, simbolizado pela pessoa com necessidades especiais, que

Page 25: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

25

existiam as instituições correcionais e religiosas, que atendiam todo e qualquer tipo de

desviante, fazendo crescer consideravelmente, no final do século XIX e início do século XX,

um movimento a favor da institucionalização, já que os idiotas e os imbecis formavam,

juntamente com os inaptos à inclusão na força de trabalho, a categoria social dos

incompetentes. O objetivo destas instituições era o de legitimar um simples cuidado custodial,

destinado a todos os perturbadores de uma ordem social.

De forma concomitante a este processo Alfred Binet (1905) institui o diagnóstico

psicológico, definindo esta incompetência como um déficit intelectual de grau leve,

denominando-o debilidade mental e associando-o às condições de desvio mental

anteriormente classificadas como imbecilidade e idiotia. Esta graduação estabelecida por

Binet permitiu compreender as categorias de “idiotia, imbecilidade e debilidade mental, com

base no pressuposto de que a atividade intelectual nestes indivíduos seria sempre a única

função comprometida independente da etiologia” (MENDES, 1995, p. 80).

Desta maneira, é a partir de Binet (1905) que ocorre a dissociação entre o aspecto

psicológico e o biológico, sendo que o pesquisador privilegia o primeiro em detrimento do

segundo, argumentando que “para se obterem sinais seguros de retardo mental seria

necessário estudar o grau de inteligência” (MENDES, 1995, p. 81). Assim sendo, a partir deste

período, as explicações psicológicas do retardo intelectual se constituíram como área

autônoma, visto que a classificação destas novas categorias se legitima muito mais com base

nos critérios psicológicos do que nas explicações etiológicas.

Esta nova abordagem trouxe consigo um temor social, já que a inclusão da

debilidade mental, na condição de inteligência subnormal, fomentou o alarmismo e o pânico

na sociedade, que entendia este fenômeno como um rótulo capaz de justificar qualquer desvio.

A partir do século XX esta generalização é posta em xeque como tentativa de

classificar esta população, uma vez que nem todos precisariam ser considerados ameaçadores.

Este temor era evidenciado especialmente em duas situações: ora pelo fato de os deficientes

severos serem associados aos leves, como se fossem pertencentes à mesma categoria, ora pela

tomada de consciência quanto à grande incidência da debilidade mental na população.

Nesta direção, as descrições de Binet (1905) enfatizaram basicamente as

habilidades de linguagem, o que não afetou a compreensão, própria do senso comum, que

rotulava a debilidade mental como sendo atributo de pessoas defeituosas que eram vítimas da

hereditariedade e que, em função disto, eram repassadores desta mazela biológica, psíquica e

moral à sua prole, pondo em risco toda a sociedade.

Page 26: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

26

As associações profissionais de eugenia7 assumiram a tarefa de coibir a

proliferação das ditas anomalias genéticas e dos distúrbios morais. O resultado desta

intervenção, somado aos estudos genealógicos que associavam deficiência mental,

hereditariedade e comportamento anti-social, serviu de base para a legitimação da legislação a

respeito da necessidade de esterilização, bem como para confirmar a relevância do

confinamento e da segregação das pessoas consideradas deficientes.

Em sintonia com este movimento, cresce o número de estudos demográficos que

se apropria dos testes formulados por Binet, objetivando relacionar o nível intelectual com

algumas peculiaridades atribuídas anteriormente à condição de idiotia, “tais como a natureza

hereditária, o crescimento de incidência na população e a relação entre a condição e os

problemas sociais que se supunha serem decorrentes do déficit intelectual” (MENDES, 1995, p.

82).

Diante disto, pensar em estratégias de resposta a estas ameaças, como por

exemplo a condenação, a rejeição e o temor, reforçava consideravelmente o clima negativista

e alarmista criado em torno da população considerada deficiente mental.

No decorrer deste período, intensificaram-se os estudos que buscavam elaborar

descrições comportamentais destes indivíduos. No entanto, muitos deles eram mera expressão

de informações casuísticas, infundadas e contraditórias que, longe de serem explicações

fundamentadas cientificamente, restringiam-se a dados coletados de forma empiricista nas

instituições educacionais e escolas especiais, como também nos espaços hospitalares, tendo

em vista que as observações eram feitas no ambiente coletivo destas estruturas. Não se levava

em conta nestes estudos, por exemplo, que os indivíduos ali analisados estavam há anos sob

uma tutela institucional e que este elemento, por si só poderia ter contribuído para ou

agravado as incapacidades destas pessoas.

O movimento contraditório deste período trouxe um novo olhar sobre a forma de

estudo das características da pessoa deficiente mental que, por um lado, passou a se pautar no

7 Exemplo deste modelo encontramos na obra de Mendes (1995, p. 82), que se reporta ao estudo de Fernald em que este descrevia parte das anomalias vinculadas à deficiência mental, relacionando-as aos comportamentos “criminosos, pobreza, nascimentos ilegítimos, intemperança e outros problemas sociais complexos, [afirmando] que seus portadores eram parasitas, completamente incapazes de bastar-se, que se tornavam um encargo público, causavam um desgosto inconsolável à família e se constituíam numa ameaça à sociedade. Para ele as mulheres portadoras de tal condição seriam invariavelmente imorais, agentes de propagação de doenças venéreas e de crianças deficientes. Em relação aos imbecis leves, ele afirmava que eram criminosos em potencial que necessitavam apenas de um meio favorável para desenvolver e exprimir suas tendências”.

Page 27: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

27

estudo científico e, por outro, não conseguiu desvencilhar-se das formas descritivas e

negativistas direcionadas apenas às características comportamentais.8

Com o progresso da área médica, que proporcionou a construção de diagnósticos

etiológicos mais precisos, houve uma diminuição no mito da hereditariedade como indício

probabilístico da deficiência mental, o que aumentou a possibilidade de prevenção das

deficiências. Paralelamente a este progresso médico, a psicologia também formula seu

diagnóstico na tentativa de diminuir a incidência dos fatores orgânicos e combater a

concepção unitária organicista, mesmo com a ampla utilização dos testes mentais.

A intenção destes esforços era dar outra conotação à deficiência mental,

diminuindo a importância da hereditariedade e buscando outras formas de classificação do

fenômeno, ampliando a abrangência de outras áreas do conhecimento e, especialmente,

fomentando uma visão mais otimista sobre a recuperabilidade da pessoa que apresentava tal

condição.

No entanto, percebemos que prevalecem ainda nos dias de hoje, os mitos e as

explicações incertas acerca da origem da deficiência, em cenários que configuram o contexto

das famílias que vivenciam o fenômeno, como observamos no resultado da pesquisa. Para

família de Cleide, a deficiência surgiu em razão do fato de que “ela deu um pouquinho assim

de catapora, né? Não sei porque deu isso nela”. Por trás desta justificativa está a concepção

vislumbrada pela família de Pedro Henrique, segundo o qual a deficiência decorre do parto.

No entanto, a família avalia este processo comparando-o com aquele que é vivenciado pelas

demais famílias com as quais tem contato, pois acredita que “o Pedro Henrique é um pouco

[deficiente]. Mas tem deficientes muito pior do que ele, tu vê lá na Fundação, tem uns que

não andam, outros ficam numa cama [...] Que esperança vai ter com uma criança daquela

lá?”

É importante registrar que, nesta última família, ficou evidenciado que quanto

maior a debilidade da pessoa, mais sua situação física e mental é agravada;

proporcionalmente, os sentimentos de esperança são diminuídos, tendo em vista que a

deficiência está muitas vezes associada a doenças e, como conseqüência, à necessidade da

procura de curas.

8Cabe destacar que um dos elementos comportamentais avaliados dizia respeito à vida sexual, já que os “homens considerados sexualmente instáveis eram aqueles que apresentavam masturbação pública, exibicionismo, ataque sexual às mulheres, violação e estupro. As moças e mulheres instáveis eram as promíscuas ou as sujeitas ao abuso sexual” (MENDES, 1995, p. 86).

Page 28: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

28

A abolição da idéia de que a deficiência era algo herdado direcionou a psicologia,

para duas abordagens (MENDES, 1995) que corroboraram a contestação acerca da importância

dada ao aspecto da herança genética como a única causa deste fenômeno. Uma delas foi

adotada por John Watson, na linha behaviorista, evidenciando que o condicionamento e a

aprendizagem explicavam mais adequadamente as aquisições humanas do que a própria

hereditariedade. A outra foi defendida por Sigmund Freud na área da psicanálise, e enfatizava

a aprendizagem social precoce, considerando especialmente a família como fator de mudança

da personalidade.

Intensificando este movimento, avaliações acerca dos estudos genealógicos e

demográficos foram revistas e questionadas, sobretudo no tocante às estimativas alarmantes

de incidência e proliferação desta condição, neutralizando o fantasma do rebaixamento da

inteligência nacional ao longo do tempo.

Outro aspecto considerado importante neste movimento, e que foi suscitado pela

compreensão das características da aprendizagem e pelas descrições dos comportamentos, foi

a composição de novas síndromes ou definições de quadros clínicos, os quais foram sendo

diferenciados gradualmente da categoria genérica9 pela qual a deficiência mental era

reconhecida.

Netchine (1971) avalia este movimento como sendo reflexo da diminuição do

pânico, atribuindo relevância aos progressos científicos, e reforçando a lógica de que o temor

estava diretamente vinculado ao que era estranho, desconhecido. Sem diminuir a importância

deste processo, o autor indica que não há como ignorar que razões puramente políticas podem

também ocasionar mudanças nas concepções e atitudes.

A partir desta concepção acerca da deficiência mental, estudos no sentido de

categorizar10 este fenômeno foram desenvolvidos com o objetivo de chegar a novas

formulações teóricas, novas terminologias e novas políticas de atendimento para esta

população. Diante disto, a “condição perde, então, a referência à etiologia orgânica e

incurabilidade, e é assumida uma nova terminologia para as subcategorias: deficiência mental

leve, moderada, severa e profunda” (MENDES, 1996, p. 11).

9 Para Mendes (1995, p. 90 - grifo da autora), “as categorias atualmente denominadas como dificuldades específicas de aprendizagem, distúrbio de conduta, psicoses infantis e dificuldades de linguagem” certamente foram categorias que se destacaram da condição genérica da deficiência mental. 10 O sistema de classificação comumente utilizado nas últimas décadas tem sido aquele endossado pela American Association on Mental Retardation - AAMR. Para uma melhor análise, ver o texto intitulado “Definición, classificación y sistemas de apoyo” (1992), traduzido por Ludwig (2003) em pesquisa realizada na FCEE.

Page 29: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

29

Por meio do conceito de deficiência mental leve11, tentou-se desmistificar parte

das características que pareciam cristalizadas, como a idéia de hereditariedade, os estigmas

físicos que resultavam em pouca atratividade física, a correlação com comportamentos anti-

sociais descritos como criminalidade, vadiagem e delinqüência, já que estes não eram

atributos inerentes a esta população.

Nos estudos comparativos entre o deficiente mental leve e as pessoas consideradas

normais, os aspectos de psicomotricidade, aprendizagem, inteligência, sociabilidade e

personalidade eram avaliados, especialmente na esfera escolar, onde as aquisições acadêmicas

de crianças e adolescentes eram mais evidenciadas. Nesta análise comparativa, constatou-se

que há condições de aprendizagem para o deficiente mental leve, ainda que a velocidade deste

processo seja diferenciada em relação aos demais.

Outra explicação conceitual referente a esta população, diz respeito à disfunção ou

lesão cerebral mínima, justificando as dificuldades cognitivas, perceptivas e comportamentais

que resultavam em deficiências no aprendizado acadêmico. Para Mendes (1995) a

caracterização desta população englobando qualquer indivíduo que, por exemplo, apresente

dificuldades acadêmicas e/ou demonstre comportamentos tidos como anti-sociais no contexto

escolar é por demais extensa.

Neste entendimento, o deficiente mental leve é visto como vítima de um desvio

intelectual que afeta a sua escolarização, já que a idéia central é a de que estes indivíduos não

estão preparados para aprender a ler, e a escrever, pois sua idade mental não corresponde à

sua idade cronológica. Em síntese, a categorização da deficiência mental leve em nada

auxiliou no fortalecimento da idéia de educabilidade desta população.

Sujeitos com deficiência mental moderada, anteriormente chamados de imbecis,

rotulados de treináveis ou organicamente defeituosos, constituem uma população cuja

categorização fica mais evidente, tendo em vista que os casos diagnosticados como tal eram

visivelmente identificados pelos indicadores etiológicos orgânicos, em razão dos problemas

neurológicos, e glandulares, ou ainda dos defeitos metabólicos. Esta identificação geralmente

era feita precocemente, em virtude da existência de sinais evidentes de anormalidades, que

podiam ser observados a partir do nascimento ou em tenra idade, muitas vezes acompanhados

de estigmas físicos. Nesta categorização, não existia a distinção de nível sócio-econômico, no

tocante aos reflexos disto na apresentação do fenômeno.

11 Este termo foi considerado sinônimo de outras categorias, como “retardo mental leve” e outras expressões mais antigas como “debilidade mental”, “moron”, “retardo mental familial”, “retardo familial cultural”, “retardo psicossocial” e ainda “retardo educável”.

Page 30: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

30

A deficiência mental severa e profunda12, anteriormente definida como a

categoria da idiotia, dos dependentes, custodiais e dos severamente defeituosos, era

facilmente identificável, em virtude da etiologia desta população, que estava associada à

diversidade de patologias clínicas conhecidas, como as advindas de problemas neurológicos, e

glandulares, de defeitos metabólicos, anomalias cromossômicas, e lesões no sistema nervoso,

dentre outras, além dos estigmas físicos e de diferenças marcantes no desenvolvimento.

Outras peculiaridades também eram freqüentemente reconhecidas e somavam-se

aos demais fatores, como as concernentes às dificuldades de linguagem, motora, sensorial,

comportamental e de saúde, o que dificultava o diagnóstico diferencial entre esta categoria e

aquela designada na literatura como deficiência múltipla (MENDES, 1995). Os reflexos da

ausência de informações precisas acerca da deficiência caracterizada como severa motivaram

algumas famílias a buscarem formas de enfrentamento do fenômeno, já que, embora haja esta

tentativa, observamos ainda a predominância do desconhecimento. No discurso da família de

Armando, fica evidenciado este contexto:

Tinha um médico em São Paulo - Dr. Benedito - porque o meu marido viajava muito, porque nós tínhamos comércio. Então tinha um rapaz, que dizia assim pro meu marido: “Ô S. Fernandes, leva o seu filho naquele lugar, ele dá uma vacina no seu filho e não dá mais crise”. [refere-se as crises convulsivas] justamente nós fomos lá [...] aí ele deu a vacina. Até assim, ele não tinha casa, hospital, começou com numa garagem, até a injeção, naquele tempo era fervida [...] então ele dava e dizia: eu dô a vacina, mas tem que continua a dar o remédio. Eu indiquei pra muita gente aqui em Florianópolis, aí elas disseram: “ah não, não é pra largar o remédio, então eu não quero”.

Embora predominem as situações de incerteza, ou ainda a garantia da inexistência

de uma “cura”, a família persiste na possibilidade de encontrar algo que lhe garanta a não-

desistência deste membro.

Um limite apontado por Mendes (1995) com relação à população definida como

deficiente mental severa a profunda é que não havia material suficientemente claro e

fidedigno para caracterizar esta população, visto que os documentos encontrados eram

demasiadamente simplistas, omitindo uma realidade de potencialidades desta categoria.

Conforme indica a autora, os estudos mais recentes apontam que estas pessoas são diferentes

entre si, haja vista que a generalização deste grupo é um equívoco. Além disso, essas pessoas 12 Vale destacar que esta população considerada deficiente mental severa e profunda sofreu ainda mais os reflexos do descaso social, da discriminação e da ausência de atendimentos, tendo em vista que “atinge uma população mais restrita em número, que foi, por muito tempo, excluída do sistema educacional e esteve mais sob

Page 31: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

31

mostraram-se bem mais capazes do que se imaginava dentro da perspectiva de

ineducabilidade.

Para Mendes (1996, p. 18), há uma série de riscos que apontam para esta

subcategorização, e que são evidenciados especialmente nos dias atuais, já que esta

classificação, embora seja questionável, é legítima e comumente utilizada. Diante desta

realidade, a autora destaca que:

Na área da deficiência mental leve pode-se constatar que o atual estágio de conhecimento na área aponta para a existência de controvérsias e especulações teóricas, aparentemente insolúveis, quanto à etiologia dessa condição para explicar sua relação com a pobreza, descoberta há quase um século. É nessa subcategoria que também se encontram os maiores problemas em relação ao diagnóstico. Na área da deficiência mental moderada poderíamos destacar que existem, na atualidade, críticas em relação ao planejamento curricular tradicional, caracterizado por objetivos de ensino limitantes e pessimistas e pela carência de procedimentos de ensino de habilidades cognitivas superiores. Tais críticas evidenciam a existência de baixas expectativas ainda presentes em relação à educabilidade de tal condição e apontam para a necessidade de uma evolução científica futura em bases mais otimistas e menos dogmáticas. As denominadas como deficiência mental severa e profunda somente começaram a despertar o interesse científico na área educacional em anos recentes, particularmente quando, em alguns países desenvolvidos, foram impostas legislações específicas que garantiram a provisão de serviços educacionais para essas populações.

Embora sejam classificações que não ampliam ou definem de fato uma

conceituação apropriada para esta população, ainda constituem-se como paradigmas

privilegiados e que são adotados hodiernamente.

Existe ainda a classificação feita pela Organização Mundial de Saúde - OMS

(1989) no tocante aos tipos de deficiências, na qual podemos enquadrá-las da seguinte forma:

- Deficiência física (tetraplegia, paraplegia, hemiplegia e outras);

- Deficiência mental (leve, moderada, severa e profunda), aqui incluídos os que

apresentam patologias neuropsiquiátricas;

- Deficiência auditiva (total ou parcial);

- Deficiência visual (cegueira total e visão reduzida);

- Deficiência múltipla (duas ou mais deficiências associadas).

a tutela do sistema de saúde, de outros setores sociais, ou então excluídas dos serviços públicos desde o início da organização dos serviços” (MENDES, 1996, p. 20).

Page 32: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

32

Uma outra definição utilizada para indicar a pessoa com necessidades especiais é

a legitimada pela Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, no

seu Decreto no. 914, de 06/09/93, Artigo 3º, que considera esta população como:

aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.

Como observamos na trajetória da compreensão do fenômeno, houve várias idas e

vindas, nem sempre refletindo a realidade desta população, que muitas vezes era exilada e

entregue à sua própria sorte pelo estigma e pelo descaso das autoridades.

Hoje o que também está evidenciado é a ausência de uma definição clara e

condizente com a realidade desta população, que passou de débil mental, idiota ou imbecil, a

portadora de deficiência e até mesmo pessoa com necessidades especiais, conforme a

definição adotada neste trabalho. No entanto, acreditamos que cada uma destas conceituações

traz no seu bojo uma representação social diferenciada, ora estigmatizante, ora contraditória,

quanto à definição desta população. Portanto, um dos grandes problemas a serem enfrentados

reporta-nos para além de uma nomenclatura, mas essencialmente aos parâmetros de

atendimento e proteção direcionados a esta população que demanda serviços diferenciados.

Objetivando compreender, nesta direção, a forma como esta população vem sendo

contemplada no sistema de proteção social, faz-se necessário elencar primeiramente algumas

considerações teórico-históricas que configuraram este sistema no Brasil.

1.2 Sistema de proteção social no Brasil: considerações teórico-históricas

A idéia de um sistema de proteção social público, que garanta a cobertura de

riscos tais como a doença, a velhice e o desemprego, está indissoluvelmente vinculada ao

surgimento de uma sociedade de padrão industrial, e portanto, das classes trabalhadoras, em

especial o operariado urbano.

As diretrizes do sistema de proteção social brasileiro, diferentemente de alguns

modelos europeus, foram construídas sobre a não consolidação do pleno emprego, dadas a

Page 33: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

33

ausência de políticas universais e a fragilidade da rede pública de proteção, sob o jugo da

perpetuação dos processos de exclusão social, entre outras características, conforme os

interesses de cada período histórico13.

Períodos que foram marcados por diferentes formas de enfrentamento às questões

sociais, que ora era entendida como uma “questão de polícia”, segundo Washington Luís, ora

era configurada como pleitos politiqueiros a favor de práticas focalizadas e populistas,

caracterizando-se por ações despolitizadas. Resultados disto, foi a solidificação de um regime

político-econômico excludente e antidemocrático, no sentido dos direitos sociais destinados à

população brasileira. Observa-se ainda que este regime autoritário criou para o sistema de

proteção social um aparato institucional tipicamente conservador.

Desta maneira, cabe destacar que o traçado político constitucional do sistema de

proteção social brasileiro se estabelece inovadoramente sob a égide do princípio da

seguridade social somente a partir de 1988. O próprio conceito de seguridade, na legislação

brasileira atual, retrata uma concepção mais abrangente, levando-se em conta as versões

anteriores.

Na Constituição Federal de 198814 inaugura-se uma primeira tentativa de se

estabelecer um sistema público de seguridade social que englobasse Saúde, Previdência e

Assistência Social, e que tivesse uma clara dimensão universalista, sendo válido para toda a

população, conforme as peculiaridades de cada política setorial e também atendendo às

especificidades de alguns segmentos populacionais.

Desde os anos de 1990, porém, processa-se uma interpretação restritiva dos

direitos constitucionais previstos pela seguridade social, fruto de diversificadas estratégias de

retração dos direitos sociais, tanto pela via da legislação regulamentadora dos preceitos

constitucionais, quanto pelas medidas concretas de implementação das políticas setoriais.

Todavia, sabe-se que as políticas sociais são produto da correlação de forças

sociais e políticas, em seus contextos determinados. Por essa razão, o exame da natureza e das

perspectivas de realização da proteção social a ser ofertada sobretudo no âmbito da seguridade 13 Para aprofundar estes períodos históricos, ver Pereira (2000), que elabora uma construção acerca da experiência brasileira de proteção social. 14 Foi com a Constituição Federal de 1988 que se configurou uma tentativa de equiparação com relação às três áreas da seguridade social: previdência, saúde e assistência social. Anteriormente, somente a previdência era direito subjetivo, ou seja, aquele que poderia ser exigido judicialmente, enquanto as demais (saúde e assistência social) eram eventuais, dependendo das decisões políticas, e das forças de pressão, e estando atreladas à disponibilidade dos recursos. Outra distinção inicial diz respeito à concepção de seguro e seguridade. No seguro-previdência, é indispensável a contribuição direta para que o possível usuário adquira o seu direito. Por esta razão, ela é definida como de base contributiva, ou seja, “só recebe o benefício quem paga”. A seguridade, ao

Page 34: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

34

social e da educação, exige um retrospecto histórico, ainda que breve, no sentido de se

recuperar sua dinâmica constitutiva.

Desde as primeiras décadas do século, quanto as idéias e a noção de seguridade

social ganham divulgação no mundo capitalista, correspondendo ao início da formação

concreta dos chamados Estados de Bem-Estar Social, consolidados no segundo pós-guerra.

Demo (2003, p. 101-2) aduz que o processo do Welfare State em alguns países desenvolvidos

representou a expressão da

cidadania popular (principalmente em seu início no pós-guerra), evidenciada, entre outras marcas, pela educação básica universalizada e por forte associativismo, mormente sindical, [posto que] políticas universais alcançaram êxito memorável, não como “doação”, “concessão”, “extensão” do Estado, mas como conquista da sociedade organizada e capaz de impor efetivo controle democrático. Não se pode esquecer que já se tratava de sociedades menos desiguais.

No Brasil, a influência desta concepção, elaborada originalmente pelo sociólogo

inglês Sir William Beveridge15 nas primeiras décadas do século XX, pode ser identificada

sobretudo nas representações e discursos dos técnicos e dirigentes dos institutos

previdenciários, bem como do Ministério do Trabalho. Em documento do Serviço Atuarial do

Ministério do Trabalho e Comércio, de 1950, citado em Oliveira e Teixeira (1989, p. 175),

podemos constatar a seguinte ponderação:

É bem sabido que a tendência moderna nesta questão é ampliar o âmbito dos antigos seguros sociais, para compreender nas finalidades do Estado, neste setor, não somente a Previdência stricto sensu, como também a assistência, a garantia do emprego, etc; numa palavra, a seguridade social do trabalhador [...]; de, a par da Previdência Social propriamente dita (seguro de pensões), desenvolver um amplo sistema de assistência social (prestações em natureza ou em serviços) [...]. para que possa o segurado gozar dos benefícios da Previdência, isto é, para que possa ser aposentado por velhice, precisa antes de mais nada sobreviver; a condição primacial é a saúde, a qual depende em grande parte de uma boa assistência médica, cirúrgica e hospitalar. Por outro

contrário, independe da contribuição, tendo em vista o seu princípio de universalidade, sendo destinada a todos. É financiada pelo Orçamento Fiscal e não pressupõe a contribuição direta do trabalhador (BALERA, 1999). 15 A expressão Welfare State foi gestada na década de 1940, ainda que a utilização do termo Welfare Policy - Política de Bem-Estar - ocorra desde o início do século XX. O Plano de Beveridge refere-se a um sistema britânico de segurança social (1942) que marcou os princípios do Welfare State, indicando a independência entre necessidades e mercado, tendo imediata repercussão em vários países, que passaram a organizar a sua política de segurança social a partir de algumas diretrizes apontadas por Beveridge: “é um sistema generalizado, que abrange o conjunto da população, seja qual for o seu estatuto de emprego ou o seu rendimento; é um sistema unificado e simples: uma quotização única abrange o conjunto dos riscos que podem causar privações do rendimento; é um sistema uniforme: as prestações são uniformes seja qual for o rendimento dos interessados; é um sistema centralizado: preconiza uma reforma administrativa e a criação de um serviço público único” (NOGUEIRA, 2002, p. 03).

Page 35: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

35

lado, essa assistência, prevenindo os riscos de invalidez e morte prematuras, alivia o encargo de seguros e pensões.

O padrão de seguridade foi sistematizado a partir do reconhecimento da

obrigatoriedade do fornecimento pelo Estado de respostas às demandas sociais, por meio da

expansão dos gastos públicos, ou também, segundo alguns especialistas, pela condição

oportuna que este tipo de intervenção propiciava para os setores vinculados ao capital.

Conforme os princípios elaborados pelos ideólogos da “Seguridade Social”, caberia ao Estado

viabilizar desde a garantia de renda mínima, em caso de perda de capacidade de ganhá-la, até

o acesso aos serviços estatais de saúde, educação e serviços sociais.

Nesse sentido, o ideário da seguridade social, nos moldes em que foi inicialmente

concebido pela comissão de Lord Beveridge e depois implantado pela maioria dos países da

Europa Ocidental, sob governos social-democratas e trabalhistas, é gestado no interior de uma

articulação política dos países capitalistas aliados, após a Segunda Grande Guerra, cujo

objetivo consistia na elaboração de novas estratégias de reconstrução da hegemonia:

Esse movimento corresponde, na verdade, a parte de um amplo processo de enfrentamento, no plano ideológico, simultaneamente aos projetos fascista e socialista de organização da sociedade, o primeiro dos quais, apesar de derrotado militarmente, demonstra ter encontrado significativa aceitação em amplos setores de diversos países, enquanto o segundo estava em plena ascensão ao final do conflito [...]. A democracia liberal procurava demonstrar, em síntese que, como seus interlocutores, também tinha uma proposta avançada para a satisfação das “necessidades sociais” (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1989, p. 176).

O desenho atual do sistema de proteção social no Brasil, que chamamos

Seguridade Social, é resultante direto das conquistas introduzidas pela Constituição de 1988 e

das leis específicas que a regulamentam e complementam. Seu formato compõe-se da Saúde,

Previdência e Assistência Social, atravessadas pelas políticas de proteção especial, à criança e

ao adolescente, ao idoso e à pessoa com necessidades especiais.

É assim que, na nova Constituição, aparecem contemplados como direitos sociais

a educação, a saúde, o trabalho, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e

à infância, a assistência aos desamparados (cf. Título II, “Dos Direitos e Garantias

Fundamentais”, Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”, artigo 6º), antes mesmo do compromisso

com a seguridade social, declarados nos artigos 194 e 195.

A referência explícita à seguridade social se dá então no artigo 194 (Capítulo II,

“Da Seguridade Social”, do Título VIII, “Da Ordem Social”), no qual se diz: “A seguridade

Page 36: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

36

social compreende um conjunto integrado de ações e iniciativas dos Poderes Públicos e da

sociedade, destinadas a assegurar a saúde, a previdência e a assistência social”.

Nesta direção, são princípios fundamentais defendidos na Constituição (loc. cit.):

I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços a populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento16; VII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.

Um registro importante, que não se pode deixar de citar, diz respeito à própria

concepção de seguridade social como proteção universal, por meio da elevação da Assistência

Social a um patamar de política de direitos, como estratégia basilar de enfrentamento à

pobreza e à exclusão social, como política não contributiva acessível a todos que dela

necessitarem, conforme preconiza a Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS. E, seguindo

esta lógica, Martins e Paiva (2003, p. 27) endossam que:

A perspectiva da política pública supõe a identificação das demandas na perspectiva da universalidade e a construção de respostas que alcancem a todos. Tradicionalmente a Assistência Social não era operada no campo público com transparência e controle social. Seu acesso foi sempre mediado por uma “regulação ad hoc” isto é, caso a caso e por isso, campo do favor, campo de vínculos pessoais e não públicos e não de direitos sociais. O reconhecimento de que existem necessidades que não afloram por “fragilidades de indivíduos”, ultrapassando portanto o âmbito da manifestação da bondade, da caridade, da benemerência, é que reposiciona o campo da Assistência Social como política pública.

Desta forma, importantes conquistas foram asseguradas na Carta Constitucional

de 1988 no que se refere aos direitos de cidadania. Disso resultou a denominação que lhe foi

generosamente atribuída, ou seja, a de “Constituição Cidadã”.

No que se refere à Previdência Social, algumas conquistas também foram obtidas,

como por exemplo a regularização dos direitos do trabalhador doméstico, a ampliação da 16 Balera (1999, p. 34) aponta para algumas preocupações com relação às três esferas da seguridade social (política, financiamento e gestão), sendo que todas devem caminhar necessariamente juntas; no entanto, “é lamentável que isso não foi implementado pela legislação. A legislação não caminhou junto. Cada setor teve uma dinâmica legislativa de tal modo que a primeira legislação disciplinar foi a da saúde que é de 1990; depois a legislação da Previdência de 1991 e só agora no final de 1993 é que surgiu a legislação da Assistência Social

Page 37: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

37

licença maternidade para 120 dias e a extensão de todos os benefícios e direitos trabalhistas ao

trabalhador rural.

Embora a Constituição Federal tenha sido qualificada como “Constituição

Cidadã”, é preciso relativizar e ponderar com mais cautela esses avanços. Apesar dessas

conquistas formais, não se pode deixar de constatar a não correspondência entre tais avanços

no âmbito da legislação, por um lado, e, por outro, o que foi possível consolidar enquanto

prestação efetiva dos serviços prescritos.

Nota-se ainda a fragilidade do compromisso político dos governos federal,

estatuais e municipais em implantar corretamente o Sistema Único de Saúde - SUS e, em

contrapartida, a dificuldade que os setores sociais comprometidos com a efetivação desses

direitos vêm encontrando para reverter essa situação. Exemplo disto é o próprio SUS, que

aponta para uma atenção hospitalar integral e indiscriminada a toda a população, superando-se

a perspectiva de atendimento segmentário, ou seja, relativo apenas aos segurados da

previdência e seus dependentes, e não aos cidadãos em geral. Nesta direção, percebemos que

alguns avanços estão a requerer maior radicalidade na sua tradução concreta.

Para tanto, cabe recordar alguns princípios norteadores da concepção política que

embasa esse padrão de Seguridade Social, a partir do qual se estruturam os Estados de Bem-

Estar - os Welfare States, dado que, historicamente, esse padrão se converteu na referência

teórico-política mais utilizada para pensar a legislação social como um todo, ainda que ela

venha sendo submetida a críticas severas pelos defensores do neoliberalismo, nos últimos

tempos. Entre esses princípios, destacam-se:

a) A contribuição será proporcional à capacidade do segurado e, também, não

compulsória;

b) Qualquer cidadão terá direito a uma renda mínima, independentemente de

contribuição ou não, que lhe garanta um padrão mínimo de bem-estar, determinado de acordo

com o contexto histórico concreto;

c) A concessão deste benefício não está condicionada a qualquer critério de

merecimento, estabelecido pelos motivos causadores da necessidade;

d) A seguridade social será, todavia, algo além de um mero sistema de concessão

de benefícios. Consistiria, também, num amplo sistema de proteção social, na sua acepção

mais abrangente, contemplando, além dos benefícios pecuniários tradicionais, ações de saúde,

(Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS). Este caminhar em separado gera outro problema na integração da disciplina constitucional da seguridade.”

Page 38: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

38

saneamento básico, educação, habitação, medidas de garantia do pleno emprego, e

redistribuição de renda, entre outros direitos.

A rigor, aquela tendência, vislumbrada nos anos de 1950 e que expressava a

defesa de um modelo de proteção social com esses atributos, jamais se concretizou em nosso

país. Ao contrário, a configuração histórica das políticas sociais no Brasil tem se caracterizado

pela predominância de um perfil discriminatório e restritivo em termos de direitos sociais,

visto que “são políticas casuísticas, inoperantes, fragmentadas, sem regras estáveis ou

reconhecimento de direitos” (YAZBEK, 1995, p. 15). Nesta direção, as relações clientelistas

estabelecidas não são, certamente, reconhecidas como direitos e espera-se lealdade dos que

recebem os serviços.

Trata-se de um padrão arcaico de relações que fragmenta e desorganiza os subalternizados ao apresentar como favor ou como vantagem aquilo que é direito. Além disso, as práticas clientelistas personalizam as relações com os dominados, o que acarreta sua adesão e cumplicidade, mesmo quando sua necessidade não é atendida (Ibid., p. 16).

Desde as primeiras medidas significativas no campo da legislação social e

trabalhista, que os interesses e aspirações igualitárias dos trabalhadores, são subordinados aos

interesses políticos da legitimação, em detrimento do compromisso com a necessidade social

e o direito.

Neste contexto, repõe-se o antagonismo entre capital e trabalho, próprio da

sociedade de classes, onde as “políticas universais correm o risco de embaralhar a dialética

social, ao ignorar que os ‘marginalizados’ não possuem, de modo algum, as mesmas armas de

luta” (DEMO, 2003, p. 102).

É a partir dessa relação que se deve demarcar os traços constitutivos

determinantes do perfil das políticas sociais no país, entre estas a Assistência Social, de forma

que se possa compreender, com suficiente nitidez, como essa questão se inscreve hoje na

sociedade brasileira e, dentro dela, perceber as alterações anunciadas na Constituição de 1988,

no tocante aos direitos do cidadão e ao dever do Estado no campo da proteção social, bem

como às potenciais alternativas de aperfeiçoamento ou de retrocesso em curso.

Neste entendimento, Yazbek (1995, p.18) contribui com as argumentações

refletindo que:

se de um lado o Estado brasileiro aponta constitucionalmente para o reconhecimento de direitos, por outro se insere no contexto de ajustamento a essa nova ordem capitalista internacional, onde se observa a desmontagem

Page 39: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

39

de conquistas no campo social e onde as políticas ortodoxas de estabilização da economia, com suas restrições aos gastos públicos, reduzem e direcionam os investimentos sociais do Estado.

Desta feita, em pleno auge das novas formulações que a Constituição Federal de

1988 trazia, o modelo de intervenção estatal adotado pelos países hegemônicos já apresentava

sinais de saturação evidenciados desde a década de 1970, em função da crise17 do capitalismo.

Esta nova configuração internacional exigiu dos países periféricos uma política de

ajustes estruturais propaladas pelo Consenso de Washington (1989), que impunha disciplina

fiscal, e o controle da inflação, além do discurso da redução drástica da presença do Estado na

economia e na sociedade. Ao construir o Estado Mínimo por intermédio das privatizações, da

flexibilização, do corte grotesco dos recursos sociais, e mercantilização dos serviços sociais, a

nação considerada periférica “globaliza-se para a economia e nacionaliza-se para o social”

(SPOSATI, 1997, p. 14). Esta “opção por menos Estado não se converteu em melhor

distribuição de renda ou maior integração social, mas apenas em mais mercado” (NOGUEIRA,

2004, p. 54). É na base deste novo modelo de Estado que estão presentes os organismos

internacionais que fazem recomendações direcionadas ao mercado, exigindo a abstenção dos

instrumentos de controle político e a restrição na alocação de recursos públicos,

principalmente na área social. Como contribui Paiva (2003, p. 54):

Essa crise econômica, acoplada à crise política do regime welfariano, vem sendo tratada pelo pensamento liberal conservador como um problema de asfixia do mercado - reerguido à sua dimensão auto-reguladora -, gerada pelo crescente espaço de intervenção do Estado na economia, sobretudo enquanto instância pública de atenção aos direitos sociais. É o momento da apologia neoliberal do Estado mínimo, cujo mote tem sido a privatização, ou seja, a redução drástica da atuação pública no campo das necessidades sociais, de forma que o Estado volte a se configurar como mais eficiente aos interesses do grande capital. Trata-se, como já sabido, de um Estado mínimo para os trabalhadores, porém máximo para o capital.

Nesta direção, o Estado atuou de forma imprescindível na formação de uma base

integrada aos interesses dos oligopólios internacionais. Desempenhou um papel de mediador

para o capital bancário, subsidiando investimentos internacionais privados com recursos

públicos, e passando a intervir na dinâmica econômica de forma sistemática e contínua. Esta

17 Esta crise foi evidenciada pela recessão, queda nas taxas de lucro, endividamento internacional, e esgotamento do modelo keynesiano. Mota (1995, p. 53) acrecenta que os prenúncios da crise tiveram sua fecundação “com a intensificação do processo de internacionalização do grande capital”. O fortalecimento da ideologia neoliberal teve como alguns adeptos Margareth Thatcher (Inglaterra - 1979) e Ronald Reagan (EUA - 1980), que se apoiaram nas mudanças tecnológicas, como também na alteração do modelo de regulação social existente, na fragilidade estrutural do paradigma keynesiano/ beveridgiano/fordista de produção e reprodução social, além da crise do socialismo real e do enfraquecimento dos partidos e organizações de esquerda.

Page 40: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

40

opção política (ABRANCHES, 1997) foi crucial e acarretou uma grande perda - uma crise

econômica e inflacionária sem precedentes - com resultantes que estão presentes até os nossos

dias.

Dada esta conjuntura, as fronteiras foram esquecidas, “o capital desterritorializa-

se, autonomiza-se numa articulação supranacional, em uma estrutura de poder cuidadosa e

bem construída onde a dominação é anônima, difusa, virtual” (YAZBEK, 1995, p. 5). Somado a

esta afirmação, vale citarmos a análise de Iamamoto (1997, p. 21) que se refere a uma falsa

proposta de inovação, em que:

o discurso neo-liberal tem a espantosa façanha de atribuir título de modernidade ao que há de mais conservador e atrasado na sociedade brasileira: fazer do interesse privado a medida de todas as coisas, obstruindo a esfera pública, a dimensão ética da vida social pela recusa das responsabilidades e obrigações sociais do Estado.

Neste processo conturbado, faz-se presente o Banco Mundial, juntamente com os

demais organismos financeiros multilaterais, que condicionam a aprovação dos seus projetos

de financiamento a metas que os países periféricos têm que cumprir, objetivando um bom

governo. Porém esta expressão é simbolizada pelos cortes grotescos de recursos destinados às

políticas sociais, pela responsabilização do Estado pela crise e pela transferência dos deveres

do Estado, como também pela ampliação do mercado como agenciador de serviços sociais,

atribuindo direitos somente a quem pode pagar. Corroborando esta idéia, Sposati (2002, p.

41) afirma que nem todas as pessoas que nascem num mesmo país têm acesso igualitário aos

direitos sociais, na medida em que:

A centralidade no mercado própria do neoliberalismo substitui o conceito de cidadania pelo de consumidor, difundindo o conceito da regulação social àqueles que não têm capacidade própria de prover suas necessidades pelo consumo do mercado. A noção de direito ao acesso a respostas públicas como condição universal fica fragilizada e é reforçado o modelo político da subsidiariedade, que propõe a regulação estatal para o último plano ou só quando ocorrer ausência de capacidade da família ou da comunidade em prover tais necessidades. Reduz-se a responsabilidade pública como condição básica do direito e se “compensa o mercado”- e não o cidadão - transferindo precários recursos para que “indigentes” possam consumir ou realizar os bad jobs.

Esta mesma defesa do modelo neoliberal é observada nos discursos demagógicos,

que proclamam a privatização como única alternativa eficaz e eficiente, já que o Estado que

não tem uma função empresarial e nem todas as atividades atreladas ao mesmo (saúde,

Page 41: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

41

educação, previdência, segurança) são exclusivas. Enfim, estes DIREITOS serão garantidos

àquela parcela extremamente vulnerabilizada, caracterizando políticas pontuais e paliativas de

abrangência ínfima, aviltante e descontinuada.

Esta perspectiva pressupõe duas espécies de atendimento: de um lado, há a

“exuberância” de serviços privados, para a parcela restrita dos que podem financiar e, do

outro, a esfera pública, com orçamento ínfimo abrangendo uma parcela significativa da

população, popularizando esta última estratégia na expressão “política pobre para os pobres”.

Vieira (1997, p. 88) faz um recorte deste movimento histórico, em que “a classe

dirigente no Brasil tem oscilado entre a inércia e a modernização imposta de fora, entre a

promulgação da Constituição e a imediata proclamação de sua reforma”. Deste modo,

percebemos que a Constituição não foi integralmente validada e que na íntegra de seu texto

repousam as infinitas medidas provisórias que neutralizam seu caráter universal em prol da

economia maestrada pelas nações hegemônicas.

A prevalência do econômico em detrimento do social é claramente evidenciada na

alegação de que é necessário produzir para posteriormente distribuir. Silva (1997, p. 191)

relembra que “a história demonstrou à exaustão a falácia de tal proposição. A marca do

desenvolvimento capitalista é a concentração e não a redistribuição de renda”.

Reforçando este discurso, Abranches (1987, p. 10) completa que existe uma série

de opções políticas e enfatiza:

Os impactos que [...] as conjunturas cíclicas [causam] na economia e no estágio de desenvolvimento são mais visíveis e criam a impressão de que seus formuladores são prisioneiros de determinações inarredáveis; de que só existe uma forma de resolver esse dilema e, portanto, que a atenção às demandas sociais básicas deve ser postergada, sob pena de colapso econômico e desordem inflacionária. Sofisma e ilusão. O padrão de desenvolvimento comporta diferentes soluções: não é mais que a síntese econômico-política geral do balanço final entre meios de acumulação e utilidade social.

Preocupamo-nos em fazer este recorte com a intenção de demonstrar a demanda

que está excluída dos processos de produção existentes, onde as alternativas de consolidação

da sua cidadania ocorrem por intermédio dos sistemas de proteção social, hoje intensamente

ameaçados e precarizados. Nesta direção, Yazbek (1993, p. 83-4) observa que:

Marcados por um conjunto de carências, muitas vezes desqualificados pelas condições em que vivem e trabalham, enfrentando cotidianamente o confisco

Page 42: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

42

de seus direitos mais elementares, buscam, na prestação de serviços sociais públicos, alternativas para sobreviver.

Diante do exposto, resistimos à alternativa posta pelo sistema neoliberal,

resistência esta que tem como sustentáculo a reafirmação dos valores da solidariedade e da

justiça social. Após décadas de embates, tais valores foram abandonados ou distorcidos,

retornando a simplificação da intervenção pública pela regulação ad hoc, abreviando toda a

dimensão do direito social pela ótica do voluntarismo e da piedade.

Em outras palavras, o Estado foi se eximindo de seus deveres sociais, atribuindo à

sociedade civil o protagonismo desta intervenção. Sendo assim, estamos submetidos aos

apelos sensacionalistas de uma solidariedade desprovida de projeto político, reduzida à noção

de ajuda mútua, de responsabilização privada e individual, como medida de todas as coisas,

como referência de sociedade. Enquanto este discurso persistir, estaremos transferindo a

titularidade do direito à suplência de concessões e benemerência, dando-lhe apenas uma nova

roupagem, que para Raichelis (1998, p. 21) “retira do leito das políticas sociais universais, de

estrita responsabilidade estatal, para o espaço das iniciativas emergenciais descontínuas e

focalizadas de práticas clientelistas” uma questão essencial para a cidadania.

Desta forma, Pereira (2000, p. 187) afirma que “concretizar direitos sociais

significa prestar à população, como dever do Estado, um conjunto de benefícios e serviços

que lhe é devido, em resposta às suas necessidades sociais”. Nesta perspectiva, na

compreensão de Balera (1999, p. 38), o Estado brasileiro não implantou o sistema de

seguridade social, que ainda está em processo de formação. Diante disto, não se pode dizer

que:

o Estado Brasileiro despende muito em seguridade porque na verdade o que existe é uma arrecadação tributária para a seguridade. Só a sociedade financia o sistema de seguridade brasileira. Não há um compromisso do Estado com essa área porque se trata, efetivamente, de um Estado anti-social. O Estado Brasileiro ainda é um Estado do século XVIII nessa área. É o Estado Política.

É refletindo sobre este Estado brasileiro que direcionamos nosso enfoque para o

fenômeno da deficiência no âmbito do sistema de proteção social. De acordo com a forma

como era compreendida esta população suscitavam-se estratégias correspondentes de

atendimento a estas pessoas com necessidades especiais. Deste modo, faz-se essencial

compreender de que maneira o sistema de proteção social vem enfocando a deficiência, por

meio do atendimento a esta população, faz-se essencial, posto que é na materialização das

Page 43: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

43

políticas dirigidas às pessoas com necessidades especiais que justificamos boa parte desta

dissertação.

1.3 O enfoque da deficiência na esfera do sistema de proteção social

A construção histórica do atendimento diferenciado às pessoas com necessidades

especiais perpassou distintas áreas, desde a saúde pública até educação, sendo

privilegiadamente direcionada também à política de Assistência Social, por intermédio dos

programas sociais especiais, e da implementação do benefício de prestação continuada -

BPC18. Para tanto, compreender esta trajetória requer que façamos o caminho de volta, no

sentido de observar como a deficiência foi sendo configurada e de que forma isto interferiu

nas políticas dirigidas a esta população.

Para Canzione (1999), o processo do pensamento político referente à questão da

pessoa com necessidades especiais, embora tivesse assumido um novo perfil nos anos de

1980, foi enraizando sua história em movimentos internacionais importantes, como a

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração dos Direitos das Pessoas

Portadoras de Deficiência, que foi proclamada em 1975, e o Programa de Ação Mundial para

as Pessoas com Deficiência, aprovado pelas Nações Unidas em 1982. Esses foram alguns

marcos legais em defesa dos direitos desta população.

Outro aspecto importante foi a criação, por meio da Lei 7.853, da CORDE -

Coordenadoria Nacional para Integração das Pessoas Portadoras de Deficiências, vinculada ao

Ministério da Justiça, atendendo às pressões de entidades que prestam atendimento às pessoas

com necessidades especiais e como conseqüência do Ano Internacional das Pessoas

Portadoras de Deficiência. Este movimento fomentou a criação de um plano de ação mundial

das Nações Unidas, que sugere que os países disponham de um órgão de coordenação e

articulação interministerial, objetivando trabalhar dentro da esfera federal com as políticas

setoriais. Vale destacar que este órgão foi extinto no ano de 2003.

18 O benefício de prestação continuada veio substituir a renda mensal vitalícia, anteriormente vinculada à Previdência Social, também com caráter assistencial, que concedeu durante os anos de 1975 até 1996 uma renda às pessoas idosas e “inválidas”, desde que estivessem impossibilitadas de desenvolverem alguma atividade remunerada e tivessem contribuído pelo menos por 2 anos no Sistema Previdenciário.

Page 44: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

44

Paralelamente as mudanças ocorridas nos marcos legais referentes à pessoa com

necessidades especiais, sucedem-se os tipos de atendimento voltados a esta população. Como

já afirmamos anteriormente, a concepção desta população evidenciava modelos de

atendimento distintos, que perpassaram áreas como a de saúde, educação, e previdência. A

partir da Constituição Federal de 1988, foi garantido pela primeira vez, por meio do tripé da

Seguridade Social, o status da Assistência Social como direito, relativos privilegiadamente

aos idosos e às pessoas com necessidades especiais, entre outros segmentos especiais

regulamentados, então, pela Lei Orgânica de Assistência Social em 1993, Lei n. 8.742/93 e

implementado três anos depois.

Há, especialmente no artigo 20 da Lei Orgânica de Assistência Social, “A garantia

de um salário de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 anos

ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida

por sua família, conforme dispuser a lei”. Vale registrar que se, de um lado, a lei oficializou

direitos, de outro lado desenhou princípios bastante questionáveis com relação aos critérios de

elegibilidade, inclusive centrando na família a responsabilidade pelo provimento dos

segmentos mais vulneráveis e dando caráter subsidiário ao papel do Estado.

Estes critérios de elegibilidade destinados à população com necessidades

especiais, bem como aos idosos, refletem o princípio da ótica da exclusão, pois consideram

como família incapaz aquela que não consegue prover condições adequadas a estes sujeitos

com o ínfimo valor de ¼ de salário mínimo por cada membro do grupo familiar.

Concordamos com a análise de Gomes (2002, p. 68), quando esta reflete que os

destinatários do BPC vivenciam uma situação particular de vulnerabilidade,

pela contingência da idade ou da deficiência incapacitante para o trabalho e para a vida diária independente. Tal situação de vulnerabilidade, por si, ainda que em condições favoráveis de vida, coloca-os a exigir um conjunto de necessidades especiais. Acrescida, então, de precárias condições de existência, qual seja: no limite da indigência é forçoso reconhecer por um lado que esta provisão é um direito por demais necessário e legítimo, e por outro que seu valor é insuficiente e seu alcance limitado e excludente.

Nesta direção, Pereira (1998, p. 128) analisa o ônus que a Assistência Social

carrega após ser concebida como direito, pois “o critério de elegibilidade nela contido inovou

em matéria de retrocesso político. Nunca, no Brasil, uma linha de pobreza foi tão achatada, a

ponto de ficarem acima dessa linha cidadãos em situação de pobreza crítica”.

Percebemos que o reconhecimento da Assistência Social como direito não

extingue de imediato as práticas voluntaristas; ao contrário, segundo Gomes (2002, p. 63), as

Page 45: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

45

ações representam muito mais uma “ajuda nas dificuldades e privações, atribuídas ao âmbito

privado de cada necessitado, e não campo de responsabilidade social do Estado”. Gomes

(2002) problematiza esta ambigüidade entre a caridade pública e privada, entendendo que esta

contradição não tem visibilidade pública, seja por meio do Estado, seja pela iniciativa da

filantropia privada, universo que começa a emergir. Neste sentido, partilhamos da idéia de

Canzione (1999, p. 129), que revela uma preocupação “quando ouvimos falar que o portador

de deficiência terá acesso à assistência social como qualquer cidadão que dela necessite”,

tendo em vista que as condições de inserção não são iguais, e que eles são também sujeitos

que demandam outros serviços.

Embora estes paradoxos estejam evidenciados no contexto da Assistência Social,

não podemos descartar que, com a Constituição Federal, houve uma abertura política e de

debate nacional acerca dos assuntos relacionados as pessoas com necessidades especiais,

espaço este inédito no contexto das constituições brasileiras. Para Canzione (1999, p. 130), “o

paternalismo deu lugar à equiparação de oportunidades. A tutela foi substituída pela

cidadania”, que certamente necessita ser materializada no cotidiano das pessoas.

Nesta direção, a população que historicamente foi compreendida de distintas

formas (como por exemplo, seres que não tinham direito à vida, e eram exterminados; que

eram considerados como endemoniados, bruxos e que em razão disto foram perseguidos pela

inquisição; que foram objeto de ações filantrópicas a partir da concepção de que são eternas

crianças e de que, em razão disto, são incapazes), passando pela fase que compreendia uma

etapa cientificista, e que estabelecia que, para trabalhar com esta população, era necessária

uma equipe de profissionais e especialistas, atualmente se vê diante da necessidade de

conceituar este sujeito não pela sua incapacidade, mas sim pelo seu potencial. A compreensão

deste recorte histórico é necessária, para que resignifiquemos os espaços e serviços destinados

a esta população pois, segundo Canzione (Ibid., p. 131), “são fantásticas as respostas que o ser

humano alcança quando lhe são dadas oportunidades para desenvolver suas potencialidades.

[...] A abordagem anterior era de tratamento, terapêutica, hoje é educativa”.

Percebemos que, além de compreendermos o fenômeno da deficiência no decorrer

da história, ainda há uma necessidade maior de a conceituarmos, tendo evidenciado que

estamos tratando de sujeitos que possuem não uma enfermidade, mas um impedimento ou

uma desvantagem que não impossibilita a vida, mas que requer outras oportunidades.

Precisamos ter claro que as conceituações explícitas ao longo da história são “constructos e

classificações, são sistemas lingüisticos arbitrários, que variam de acordo com o propósito

Page 46: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

46

pretendido” (MENDES, 1996, p. 21) e que isto interfere diretamente na vida das pessoas com

necessidades especiais, e no cotidiano das famílias, bem como nos serviços a eles

dispensados.

Sendo assim, estamos nos referindo a conceitos que, ao longo do tempo, têm sido

manipulados, tornando-se cada vez mais ininteligíveis e destituídos de uma correspondência

direta com o mundo real. Assim, seria ingenuidade acreditarmos que novas terminologias

geradas no âmbito da ciência iriam necessariamente substituir completamente velhos termos pejorativos do discurso cotidiano. [...] Também seria ilusório supor que o abandono total das definições e sistemas de classificações científicas, iria impedir a ocorrência de sistemas sociais informais de identificação, classificação, segregação, discriminação ou estigmatização de tais indivíduos (loc. cit.).

A tradução desta prática, fundamentada na teoria de interesses, materializa as

relações desiguais e pulverizadas de “preconceitos culturais e sociais, que resultam ainda em

segregação, como condição de vida de grande parte desses indivíduos” (CARVALHO, 1998, p.

12).

Os reflexos destas categorizações, como observamos, permearam e resultaram em

muitas injustiças e preconceitos que ainda hoje refletem, de forma ora transparente ora velada,

a questão do estigma, isto porque nossa sociedade é sistematicamente geradora e fruto de

modelos ideais que definem o certo, o bonito e o desejável, o que não teria importância “se,

como produtos ideológicos, não fossem interiorizados e não se tornassem um dos

fundamentos políticos de atribuições de caráter negativo e estigmatizante (MELLO, 1997, p.

57).

Para além da questão do estigma, a formulação de políticas públicas destinadas às

famílias das pessoas com necessidades especiais é vital no contexto de um sistema de

proteção social da cidadania em nosso país. As demandas indiscutivelmente crescem

conforme aumenta a vulnerabilidade proveniente da deficiência, pois muitas dessas pessoas

dependem de cuidados diários especiais, ou seja, não conseguem realizar as atividades da vida

diária. Muitas destas pessoas são usuárias de medicamentos variados e contínuos, utilizam

fraldas descartáveis, e se locomovem com auxílio de cadeiras de rodas, carrinhos Zeus ou até

macas, entre outras necessidades especiais. Além disso, boa parte delas é impossibilitada de

trabalhar e, portanto, de acessar uma renda pela via do mercado.

As situações de deficiência podem ser inclusive fomentadas e resultantes da

ausência de políticas públicas básicas para atender a população, como no exemplo de uma

Page 47: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

47

dieta alimentar insuficiente, relacionada diretamente ao desenvolvimento físico e mental do

indivíduo, e atrelada à maior exposição a agentes infecciosos, bem como a uma baixa

qualidade na assistência à saúde. Todos estes componentes devem ser considerados

fomentadores de desvantagens físicas incapacitadoras. Neste sentido, as políticas de saúde

pública, trabalho e renda, educação, e assistência social deveriam e devem ser direcionadas na

perspectiva da prevenção destes fatores.

A ausência de serviços de saúde dirigidos a esta população pode ser caracterizada

pelo discurso da família de Richard, em que a irmã do mesmo, fazendo menção à forma como

a sua genitora tentou buscar auxílio, e objetivando compreender as manifestações

comportamentais e de desenvolvimento diferenciadas apresentadas pelo irmão, revela que não

obteve êxito nas suas investidas. Diante deste quadro de incertezas, resta à família ficar

restrita a meras suposições quanto à origem da deficiência e às diversas formas de tentar obter

uma pseudo-cura, por meio de “simpatias”, e outras crenças populares. São trajetórias que

podem ser evidenciadas na narrativa familiar que as reinscreve por meio de sua fala:

Olha meu irmão: minha mãe veio de uma família bem humilde [...] então por falta de muitos recursos de levar ele em especialistas, até porque na cidade em que morávamos tudo era muito precário, não tinha esses serviços [...] Eu sempre vi porque ele nasceu depois de mim, eu sempre vi que ele tinha dificuldade no caminhar. A mãe fazia muitas simpatias, muito remédio caseiro para ele. A mãe sempre falou que foi meningite que tinha dado nele.

A ausência de acesso aos direitos básicos, bem como a precariedade da inserção

das famílias vulneráveis nas políticas de saúde, saneamento, e garantia à alimentação, expõe e

aumenta mais os riscos sociais desta população, no seio da qual uma doença grave, mas

plenamente durável pode causar seqüelas irreversíveis, pois não houve uma intervenção

adequada. Os reflexos desta desproteção social expõem mais contundentemente os membros

destas famílias vulneráveis a possíveis quadros de deficiência física e mental.

É diante desta conjuntura que iremos problematizar de que forma a família

brasileira vem sendo inserida no contexto das políticas sociais, a fim de conhecermos as

particularidades da inserção destes grupos no campo dos direitos, devendo ressaltar de

antemão que, em diversos registros legais vigentes, a família passou a se constituir como

sujeito de direitos nas políticas públicas, em especial na assistência social e, por

conseqüência, na seguridade social. Na perspectiva de elucidar estes meandros, é que

desenvolvemos, portanto, o item a seguir.

Page 48: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

48

1.4 A atenção às famílias nas políticas públicas

A atenção às famílias pelas políticas públicas no Brasil possui uma primeira

abordagem significativa já no início do século XX. Precisamente nos anos de 1930, como

demonstra Fonseca (2001), o tema se insere no debate sobre a nação, simultâneo ao esforço

das elites no sentido de conformar um país integrado política, econômica e culturalmente.

Nesse esforço, a questão da identidade nacional dos brasileiros ganha relevância indiscutível,

embora com uma abordagem singular. Para a autora, a articulação entre família e nação

responde, nesse primeiro momento, a dois registros bem particulares: o primeiro no contexto

do debate acadêmico sociológico, dedicado a investigar a composição das famílias

homogêneas ou heterogêneas do ponto de vista étnico, e o segundo registro que, conforme

afirma a autora, corresponde a um conjunto de propostas e de políticas sociais, lançadas com

o objetivo maior de conformar uma família que estivesse de acordo com os pressupostos

considerados ideais. Nesse sentido, Fonseca (2001, p. 22-3) explicita:

No primeiro, trata-se de conhecer as práticas matrimoniais prevalecentes entre os imigrantes e seus descendentes e propor medidas no sentido de evitar enclaves no território nacional. [...] No segundo registro, trata-se de organizar um certo tipo de família por meio de medidas concretas que deveriam incidir sobre os indivíduos: obrigatoriedade do exame pré-nupcial; regulamentação do trabalho feminino [...]; facilidades para a aquisição de casa própria aos indivíduos que pretendessem se casar. [...] No entanto, também havia propostas concretas dirigidas às famílias já formadas [...] que privilegiavam os casados com filhos.

Preocupados com a construção de uma nação forte, obrigatoriamente formada por

um padrão familiar ideal - homem, mulher e filhos saudáveis, propunham medidas como o

exame pré-nupcial e a interdição para os casos considerados inadequados, condizentes com a

idealizada noção de união certa, vitais para o modelo de família que se ambicionava. Para

Fonseca (Ibid., 23-4), é “por esse caminho que o aprimoramento físico e moral da raça se

realiza [...] seus membros teriam a mesma capacidade física e mental, compartilhariam os

mesmos valores e disto resultaria o fortalecimento da nação”.

Se, num primeiro campo, o debate sobre a família se dava em torno da

preocupação com a descendência e a integração nacional, focando a questão dos imigrantes

europeus e a necessidade de se impedir a formação de enclaves étnicos no território nacional,

Page 49: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

49

o segundo enfoque centra-se na idéia da conformação de um modelo de família a ser

propagado. Assim:

não se trata de estrangeiros, mas de nativos que precisam ser corrigidos e apoiados, no momento em que estão constituindo suas famílias, ou amparados, quando as famílias já existem. [...] se no primeiro registro a ênfase estava posta nas alianças - para examinar a reprodução dos grupos -, no segundo, o foco é a reprodução, ou seja, as condições apropriadas para gerar e educar uma prole saudável. Com este objetivo há uma série de propostas e discussões nas áreas de higiene, habitação, saúde, trabalho etc. e, no centro do debate, a idéia do aprimoramento da raça por intermédio da família (FONSECA, 2001, p. 52).

Contribuindo com esta ideologia estavam os eugenistas brasileiros, que

propagavam a idéia da esterilização como um remédio para o desenvolvimento da nação. A

questão da procriação não tomava uma dimensão de opção do casal ou grupo familiar, mas

suscitava um gesto de responsabilidade social, com objetivos econômicos definidos, exigindo

a reprodução de “gente normal”, dentro dos parâmetros do sistema que colocava o trabalho, a

disciplina, o autocontrole e a obediência como referências ideais. Diante disto, Godoy (1927,

p. 142) discursa que:

A procriação de homens sadios e produtivos é fundamental para o progresso de um país. Um homem ativo, capaz e bom dá mais à sociedade do que lhe pede. É um valor econômico. É uma força civilizadora. Um indivíduo, pede, ao contrário, à sociedade mais do que lhe dá. Constitui um valor negativo, um déficit econômico. É elemento receptor, passivo. Consome e não produz. É esponja. É sanguessuga. Agarrado às artérias da raça, destrói seus elementos nobres, debilitando-a. Inúteis, esses indivíduos nada produzem, nada edificam mas, ao contrário, concorrem conscientemente, criminosamente, para a miséria, a dor, a fome, a doença.

É nesta linha que a eugenia traçava seus objetivos, estimulando que as pessoas

bem dotadas ou, mais claramente, as pessoas robustas, inteligentes e bonitas aumentassem a

sua prole, para que o número médio dessas pessoas se elevasse progressivamente. Quanto aos

considerados medíocres, caberia a eles a união matrimonial mais tardia, e a possibilidade de

reprodução era combatida pela contracepção.

No Brasil, a ameaça da degeneração populacional estava associada especialmente

à crescente e desordenada urbanização, que evidenciava a ausência de infra-estrutura básica

obrigando a população imigrante a se aglomerar em ambientes caóticos, o que demandava

uma resposta social no sentido de exercer um maior controle sobre esta classe. Estas respostas

materializaram-se por meio de estratégias que culminaram na educação pública compulsória,

no surgimento de orfanatos, de instituições destinadas à população reconhecida como

Page 50: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

50

retardada, de hospitais gerais, de refúgios para os considerados delinqüentes, enfim, toda e

qualquer forma de aparato que minimizasse o sentimento de ameaça gerado por esta parcela

de desviantes19.

Desta maneira, tanto a classificação destes elementos anômicos ameaçadores

quanto a forma de tratamento destinada aos mesmos obedeciam aos ditames da ordem

econômico-social em questão, ao poder exercido pela classe dominante, cujas estratégias de

controle, acima de tudo, eram balizadas por valores morais, haja vista que qualquer esforço na

direção de exterminar esta praga social era compreendido como um “antídoto para a vida

perniciosa nas grandes cidades” (MENDES, 1995, p. 77).

Estes preceitos eram fundamentados em estudos de eugenistas que lideraram este

movimento no Brasil, como o Dr. Renato Kehl (1917), Basílio de Magalhães (1913), e

Oswaldo Cruz (1907), dentre outros. As argumentações destes profissionais eram

materializadas em Congressos, relatórios e outros meios, cujo teor era balizado na

disciplinarização e normatização desta população. Este controle social era evidenciado, por

exemplo, em documentos como o de Oswaldo Cruz (1907), considerando que “a higiene

social objetivou impedir as obras resultantes da indisciplina de certos moradores, teimosos em

manterem o desasseio em suas casas, rebeldes por índole e educação aos conselhos de

higiene” (apud JANNUZZI, 1985, p. 33).

Com base na família ideal, portanto, edificam-se as balizas dessa especial

estratégia de regulação no campo das políticas sociais. Sendo assim, para Calderón e

Guimarães (1994) a família ideal é constituída através de padrões culturais da nossa

sociedade, envolvendo valores e normas que se manifestam de distintas formas, seja por meio

do agir, e do pensar, seja pela transmissão destes de geração a geração. Como uma

referência/modelo cultural a ser seguido, tem nas próprias pessoas os vigilantes designados

para punir a violação das normas e rituais. Esta atribuição, que inicialmente é delegada à

19 No texto de Fonseca (1999) é trabalhada a noção de doença mental, embora no período de ascensão do capitalismo, ainda fosse explícita esta confusão acerca do patológico e da deficiência. O autor pondera que esta nova prática de exclusão se baseava nos preceitos da ordem econômica vigente, associados aos ditames moralistas, cujo apartheid eugênico, estético e de ordem social justificava por si só qualquer tipo de confinamento, não objetivando um atendimento terapêutico, mas sim com “um fundo essencialmente econômico. No início da organização social e política das sociedades capitalistas torna-se intolerável a existência, livre na sociedade, destes extratos de população ociosa. Daí sua rejeição com a decorrente exclusão representada pelo internamento. Inserido nesta massa de população indefinida em relação à organização do trabalho, o louco perde sua liberdade, e a loucura, antes experimentada em estado livre, é trancada. De marginalizado, o louco passa a ser excluído materialmente da sociedade em função das normas de uma economia capitalista que se desenvolvia. Neste sentido, o que é excluído [...] não é o louco enquanto louco, mas o louco enquanto pertencente à massa de indivíduos irredutíveis à norma do trabalho” (FONSECA, M., 1999, p. 122).

Page 51: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

51

família, estende sua esfera de atuação, tornando-se comunitária, constituindo-se em diversos

mecanismos disciplinares que vigiam e punem, são os guardiões, decerto.

Nesta direção, as medidas inaugurais de “proteção às famílias”, portanto,

concretizaram intenções nas áreas de habitação, saúde, e educação, com forte ênfase no

controle das famílias operárias, especialmente na recusa em proteger o trabalho feminino.

Visam, ademais, estimular a dedicação integral aos filhos e ao lar pelas mulheres, de forma a

preservar sua saúde e capacidade de reprodução. Por essa razão, foram impostos inúmeros

obstáculos ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, na perspectiva do preconceito e da

ausência de especial legislação social que apoiasse essa participação. Nos termos do projeto

de Estatuto da Família (artigos 13 e 14), ressaltados por Fonseca (2001, p. 68):

Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para criação de filhos e capazes da administração do lar; o Estado adotará medidas que possibilitem a progressiva restrição da admissão de mulheres em empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão em empregos próprios da natureza feminina e dentro dos estritos limites da conveniência familiar.

Como se pode constatar, são variadas as dimensões das relações entre a família e

as políticas públicas. Essa combinação encontra sua lógica no fato de que o Estado moderno e

a família, historicamente, vêm desempenhando papéis semelhantes. Ambas objetivam dar

subsídios à reprodução e à proteção social dos segmentos que estão sob sua tutela. Se,

anteriormente, nas comunidades tradicionais, o grupo familiar se ocupava quase unicamente

dessas atribuições, nas comunidades contemporâneas o que se observa é a intervenção do

Estado que, por meio das políticas públicas, compartilha com as famílias este cuidado. Como

demonstra Carvalho (2002, p. 268), em seus respectivos âmbitos de atuação, eles

regulam, normatizam, impõem direitos de propriedade, poder e deveres de proteção e assistência. Tanto família quanto Estado funcionam de modo similar, como filtros redistributivos de bem-estar, trabalho e recursos. [...] Nesse contexto, pode-se dizer que família e políticas públicas têm funções correlatas e imprescindíveis ao desenvolvimento e à proteção social dos indivíduos.

Com diferentes formatos e dinâmicas, historicamente, as famílias vêm

assegurando o desempenho desses papéis socialmente atribuídos, com maior ou menor apoio

e vitalidade. Como salienta Sawaia (2003, p. 41), a família “continua sendo, para o bem ou

para o mal, a mediação entre o indivíduo e a sociedade”. Mas não só, afirma “assiste-se hoje

ao enaltecimento dessa instituição, que é festejada e está em evidência nas políticas públicas,

Page 52: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

52

e é desejada pelos jovens” (loc. cit.). Entretanto, relembra a autora, a “família é um conceito

que aparece e desaparece das teorias sociais e humanas, ora enaltecida, ora demonizada”

(SAWAIA, 2003, p. 40).

Nesta lógica o berço que deflagrou uma nova concepção de família foi

evidenciado na revolução industrial, no século XIX, quando houve a cisão entre o mundo do

trabalho e o mundo familiar, emergindo assim a dimensão privada da família, em

contraposição ao mundo público. As grandes revoluções ocorridas estão associadas

diretamente ao desenvolvimento tecnológico, que atribuiu diferentes papéis à família,

especialmente à mulher. Estas novas atribuições foram observadas pela sua inserção no

mercado de trabalho, como também pela possibilidade de dissociar a maternidade da

sexualidade feminina, anteriormente tidas como elementos complementares e pertencentes ao

destino da mulher, fator este controlável pela adoção do uso de pílulas anticoncepcionais, a

partir na década de 1960.

A partir dos anos 1980, vê-se um outro movimento que afeta diretamente a

identificação da família com o mundo natural; trata-se do aparecimento das tecnologias

reprodutivas e de diversas técnicas de inseminação artificial, ou fertilização, o que resulta na

possibilidade de conceber um filho sem a necessidade de se ter uma relação sexual.

Indiferente dos recursos existentes, seja para evitar uma gravidez, seja para

induzi-la por meios considerados não naturais, um elemento deve ser referendado, no que

concerne à introdução da possibilidade de escolha. Para Fonseca (apud SARTI, 2003, p. 23),

existe nesta lógica uma dimensão clara “no imaginário atual relativo à família, pelo menos no

amplo espectro do mundo ocidental, [que] opera uma tensão entre escolha e destino”.

Somando-se a este entendimento, o modelo de proteção social assentado no

padrão keynesiano, e fordista, cujo sustentáculo material e simbólico era a existência do pleno

emprego, sempre associado ao crescimento econômico constante, previa a participação das

famílias que, ainda que idealizadas numa composição nuclear e estável, atuavam

decisivamente como responsáveis pela socialização primária e proteção dos seus membros.

Nesta direção, processou-se a ampliação das atribuições das famílias, posto que o sistema

neoliberal caracterizado pelo Estado Mínimo transfere à esfera privada da família a

responsabilidade exclusiva pelo bem-estar dos seus membros. Vale lembrar que a composição

das políticas públicas capitalistas pressupõe, em maior ou menor medida, a depender do

processo histórico-político das conquistas da cidadania, que a provisão de bem-estar deve ser

assegurada, prioritariamente, pelas esferas denominadas como naturais, ou seja, a família e o

Page 53: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

53

mercado. Sob a lógica de isentar-se dos deveres de prover o cuidado aos seus cidadãos é que o

Estado transfere essa responsabilidade à família, “conclamando-a a ser parceira da escola e

das políticas públicas, e a sociedade, atônita, na ausência de ‘lugares com calor’ elege-a como

o lugar da proteção social e psicológica” (SAWAIA, 2003, p. 42).

Esta particularidade da sociedade atual, que se vê absorta perante as instituições,

visto que não são vislumbrados modelos de identificação e confiabilidade, resulta na

tendência crescente de isolamento dos indivíduos que, fechados em si mesmos, encastelam-se

em seu narcisismo e num individualismo exacerbado. Evidencia-se, assim, o paradoxo ora do

fortalecimento da lógica individualista, ora do apelo para a preservação dos laços de

solidariedade familiar (MIOTO, 2000).

O que de um lado fortalece a família, certamente de outro a fragiliza, trazendo à

tona esta dicotomia entre forte e fraco. A família possui características fortes, que a associam

ao locus da integração social, do porto seguro contra o desamparo e a exclusão, da

reprodução dos valores culturais centrais, mas também revela seus aspectos de fragilidade por

ser vulnerável às diversas formas de violência, confinamento, desencontro e fragmentação.

Prova disto é o modelo observado por Losacco (2003), em que a ausência dos adultos na

dinâmica familiar, motivada pela busca de formas de subsistência, impossibilitam ou tornam

raros os momentos de troca nas relações pessoais, especialmente no contexto da família. A

necessidade de subsistência, bem como as novas demandas impostas à família, obrigam

muitas vezes os seus membros a buscarem outros laços na comunidade, tendo em vista que,

em algumas situações, tais alternativas podem ser opções de risco, associada por exemplo à

violência social. Nesta direção, a família não deve ser considerada isoladamente como o lugar

da proteção, da felicidade.

O florescimento da idéia de que a família é o lugar da felicidade está vinculado justamente ao ocultamento de seu caráter histórico. Este ocultamento permitiu pensá-la como um grupo natural, e com isso veio também a naturalização de suas relações e o enaltecimento de sentimentos familiares, tais como amor materno, amor paterno, amor filial. Esta ideologia foi fortalecida, por um lado, pela ligação direta que se faz entre os fatos naturais (sexo, nascimento, morte) e a família e, por outro, pela importância que a experiência afetiva familiar passou a ter na vida das pessoas, no contexto de uma sociedade industrial cada vez mais desumanizada (MIOTO, 1997, p. 117).

Levando-se em consideração as diferentes formas de organização familiar e os

diversos processos que a família vem experenciando, torna-se elucidativo o conceito

Page 54: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

54

explicitado por Mioto (2000, p. 217), visto que engloba as diferentes situações do cotidiano

das pessoas. Nesse sentido, ao falarmos de família, estamos tratando de:

um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um lapso de tempo, mais ou menos longo e se acham unidas (ou não) por laços consangüíneos. É marcada por relações de gênero e/ou de gerações, e está dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida.

Adotar esta conceituação de família implica em considerar as transformações na

sociedade contemporânea fomentadas pela nova ordem econômica e pela desorganização/

flexibilização das relações de trabalho, ao lado do enaltecimento da lógica individualista. Tais

projetos resultaram diretamente num processo de fragilização dos vínculos familiares que,

submetendo às famílias a situações de extrema vulnerabilidade, impulsionam a exigência de

atendimento das suas necessidades sociais básicas. Nesta perspectiva, “quando uma família

recorre à ajuda institucional para a solução de seus problemas, ela já não dispõe de recursos

para lidar com as suas dificuldades” (MIOTO, 1997, p. 124).

Nessa perspectiva, não é casual que, neste contexto mundial, estejam evidenciados

dois tipos de políticas sociais: o primeiro, mais generoso para o público ao qual é dirigido,

está umbilicalmente ligado ao mercado de trabalho e voltado para os trabalhadores mais

qualificados; o segundo, com uma faceta residual, seletiva e estigmatizante, é direcionado

para os segmentos mais marginalizados da sociedade. Estes processos repercutem diretamente

na organização e na estrutura familiar, que é sempre vista "pelo retrovisor", e não como foco

de atenção (TAKASHIMA, 2002). Ademais, afirma Pereira (1995, p. 106):

A conseqüência mais imediata da revolução tecnológica sobre a família foi que sua importância na reprodução da força de trabalho deixou de ser vital. [...] Além disso, a associação dos avanços científicos e tecnológicos colocados à disposição da família (inclusive para planejá-la) com o maior tempo livre imposto ao trabalhador pelo imperativo da automação, fez com que aumentassem as necessidades espirituais dos membros da família, especialmente daqueles sufocados com encargos domésticos, como foi o caso das mulheres.

Deste modo, não podemos conceber a família atual tal como ela era há cinqüenta

anos e encarregá-la de todas as atribuições domésticas que ela já não pode realizar. Tais

atribuições são concernentes aos cuidados com crianças, idosos, enfermos e pessoas com

necessidades especiais. Devolver estas tarefas, em nome da descentralização das funções do

Estado e da parceria, é retroceder no processo histórico das conquistas e garantias sociais e

destituir a população mais vulnerável, a qualquer custo, daquilo que foi conquistado. Além

Page 55: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

55

disto, dentro da lógica do pluralismo liberal20, é viável ou lícito se pensar na possibilidade de

dizer à mulher que retorne às tarefas domésticas? Ou seja, dada uma repartição dos custos

com a proteção bancada pela coletividade, quem poderia assumir estes cuidados com os

membros familiares dentro da esfera familiar?

Nesta perspectiva, a revalorização do papel da família acaba por reeditar a clássica

referência à família como a célula social designada para a socialização primária dos

indivíduos, considerada provedora natural de bem-estar material, afetivo e emocional aos

seus associados. Ao ser chamada pelo Estado, em diferentes processos históricos, a família

não pode deixar de inquirir e analisar o conteúdo ideológico dessa convocação, de maneira

que, ao atender às diversas finalidades que lhes são designadas e reprocessadas, não se

dissocie dos seus objetivos políticos (FARIA, 2000).

É a revalorização dos setores informal, voluntário e comercial, sob a prerrogativa

da redução da ingerência do Estado, que vincula a destinação do dinheiro, do poder e da

solidariedade, como partes integrantes e indissolúveis do esforço individual em prol de uma

causa comum. Essa lógica pode ser melhor elucidada recorrendo-se às contribuições de

Carvalho (2002) a respeito da expansão da idéia de Sociedade-Providência, em oposição à

construção e/ou fortalecimento do Estado-Providência ou de Bem-Estar Social. O Estado

brasileiro, sabemos, estruturou-se muito mais como residual e coadjuvante, atribuindo à

sociedade o protagonismo nas atenções e serviços destinados às camadas populares, do que

propriamente como provedor da proteção social universal.

Nesta direção, Carvalho (2002) reflete que a lógica da Sociedade-Providência é a

da solidariedade, distintamente da lógica do Estado, que diz respeito ao direito proclamado e

requerido. Fazendo menção à pesquisa realizada em conjunto com Sposati, a autora faz um

recorte dessa complexa rede de solidariedade promovida pela Sociedade-Providência,

dividindo-a em quatro possibilidades.

20 Pereira (1995) aponta que, em razão da impoderabilidade dos resultados da ação, se faz necessária a distinção entre duas principais concepções de pluralismo no campo das políticas de bem-estar: “o pluralismo liberal, que concebe a descentralização como sinônimo de privatização e de transferência de responsabilidades do Estado para a sociedade, sugerindo a restrição ou destituição de direitos conquistados e instituídos, em nome da autonomia ou liberdade de escolha dos indivíduos. Trata-se, pois, da aplicação do modelo residual de políticas públicas que se assenta nos princípios da seletividade e da menor elegibilidade, resgatando práticas de assistência que não mais se coadunam com a estrutura das organizações sociais contemporâneas. [...] o pluralismo coletivista, que valoriza a participação da sociedade mas não descarta a presença do Estado no processo de provisão social e não sobrecarrega a família com tarefas que já não lhe cabem. Trata-se da aplicação do modelo institucional de políticas públicas que se assenta no princípio da universalidade, visando a manutenção e a extensão de direitos, bem como a congruência destes com demandas e necessidades particulares” (PEREIRA, 1995, p. 110-1).

Page 56: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

56

A primeira delas é a solidariedade parental e contemporânea, em que a

subsistência dos despossuídos nessa sociedade depende de uma rede próxima, formada por

parentes, vizinhos, compadres, para servirem de suporte nas situações de dificuldade. Nesta

ótica, é construída uma solidariedade do favor, pressupondo a troca, tendo em vista que tais

favores devem ser retribuídos nos momentos oportunos; sendo assim, há uma vinculação com

o compromisso moral.

A segunda, caracterizada como solidariedade apadrinhada, é definida pelo

contato que um ou mais membros da família possuem com alguém da classe média e alta por

meio do vínculo empregatício, que pode se referir a uma atividade doméstica ou aos serviços

prestados por porteiros de prédios, e jardineiros, entre outras funções. Nesta relação existe

uma possibilidade de estabelecer algum tipo de laço mais próximo com esta outra classe, à

qual não pertencem. Tal vínculo assegura um canal de doação, que pode envolver a

transferência de roupas, eletrodomésticos e demais objetos fundamentais na composição do

consumo dos grupos em situação de subalternidade.

A terceira possibilidade dessa rede de solidariedade é designada como

missionária. É através dela que a igreja se faz presente no cotidiano destas famílias e

comunidades, pois trata-se da instituição que tem maior credibilidade junto a esta população.

“É através dela que flui a Sociedade-Providência organizada, que cria serviços assistenciais e

igualmente serviços de defesa para a imensa demanda de justiça que essa população expressa”

(Ibid., p. 74). Além disso, e de forma contraditória, essa forma de solidariedade amortece,

muitas vezes, a revolta e indignação com a injustiça.

Por fim, está posta a solidariedade de luta, que é estabelecida na malha de

relações intracomunidade e entre os agentes governamentais e não-governamentais atuantes

nela. Em geral, dela participam aqueles agentes externos com maior confiabilidade e

compromisso com os grupos comunitários e que estabelecem com os mesmos espaços de

reflexão e resignificação do cotidiano. É na solidariedade de luta que fica propenso o

nascimento dos movimentos sociais reivindicatórios e dos projetos coletivos de ações de

satisfação das necessidades comuns identificadas na comunidade.

É, portanto, forte a tradução das políticas sociais a partir de diretrizes balizadas

nas micro-solidariedades e sociabilidades familiares, como espaço privilegiado de produção

de bem-estar, proteção e inclusão social. E, neste espectro, a família tem ocupado um lugar de

destaque crescente nas políticas sociais, que objetivam a parceria nas ações sociais. Prova

disto são as alternativas de desinstitucionalização de alguns segmentos como crianças,

Page 57: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

57

doentes mentais crônicos, e idosos, entre outros, transferindo para a família e para a

comunidade estes cuidados, sem os correspondentes apoios necessários ao cumprimento

dessas novas e difíceis tarefas.

Diante desta lógica, compreendemos que a intervenção destinada às famílias não

deve significar a renúncia do Estado, ou a sua modulação neoliberal como ator subsidiário

quanto às responsabilidades sociais, agravando a desproteção social das famílias mais pobres.

Nem tampouco deve representar um padrão tutelar de controle, que objetiva o amoldamento

das relações afetivas dentro de um ideal moral, violando direitos individuais e culturais

(PAIVA, 2003).

Dadas as mútuas dependências entre as estruturas políticas e sociais que articulam

as competências de bem-estar e justiça social entre as esferas do Estado, do mercado e das

famílias, houve, equivocadamente, uma valorização do papel do mercado, cujo espaço é

demarcado pela obtenção do lucro ou, em outras palavras, pela comercialização dos direitos,

atualmente fragilizados. A fragilização dos direitos, associada à revalorização da família,

levou, pois, a um afastamento do Estado na destinação de recursos de bem-estar aos cidadãos.

Por essa razão, os cuidados e recursos necessários à satisfação e ao bem-estar suportados e

atribuídos às famílias, insistimos, não devem eximir de responsabilidades o Estado, tendo em

vista que:

tal parceria só será promissora se a família não substituir o Estado nas responsabilidades que lhe cabem, nem o Estado e a sociedade continuarem fazendo de conta que a família não mudou. Neste caso, para que a solidariedade informal dentro da família seja preservada, o Estado tem que fazer a sua parte, suprindo tradicionais deficiências das políticas públicas (PEREIRA, 1995, p. 112).

Conforme aponta Pereira (1995), qualquer política que objetive preservar e

intensificar os vínculos familiares deve considerar inicialmente o novo padrão familiar

existente e suas contradições. Outro ponto a ser referendado é que as condições pertinentes ao

vínculo familiar não devem constituir instrumento de opressão, nem tampouco camisa de

força. Ou seja, é fundamental que tanto a família como a comunidade local desempenhem um

papel relevante no futuro, desde que se democratizem e sejam sujeitos de políticas adequadas

às várias situações familiares particulares existentes.

Nesta direção, compreender as famílias como unidades de atenção, em oposição à

histórica prática fragmentada no âmbito das instituições, torna-se premente. Traduzir a

necessidade de inversão da lógica tradicional, que associava a atenção ao indivíduo

Page 58: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

58

desvinculando-o do seu grupo familiar, ignorando as possibilidades de potencialização das

ações junto às famílias, configura-se como fundamental. Nesta perspectiva, considerar a

família como público-alvo das políticas, contando com a possibilidade de parceria, exibe

certamente resultados diferenciados, que vão para além de estratégias emergenciais, e se

baseiam, sobretudo, no reconhecimento da diversidade destes grupos.

Segmentos especiais como o das famílias que possuem na sua constituição

pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento, definiram para si

mesmos trajetos percorridos em solidão, e difundiram-se em múltiplas direções que

complexificaram este processo, em função dos obstáculos externos, materializados na

ausência e precariedade dos atendimentos, e das dificuldades econômicas, ou até mesmo das

habituais limitações familiares, bem como da incógnita decorrente da necessidade inédita de

se lidar com uma pessoa com necessidades especiais.

Para nos apropriarmos de aspectos significativos do cotidiano de luta dessa

população e de suas famílias, construiremos o segundo capítulo, em que conheceremos o

perfil e as peculiaridades das famílias pesquisadas, a apropriação da deficiência pela família e

a forma como foi noticiado o fenômeno. Dentro disto, objetivamos problematizar, neste

segundo capítulo, as particularidades das famílias que possuem em sua constituição pessoas

com necessidades especiais em processo de envelhecimento, trazendo, no transcorrer destas

interlocuções, os discursos provenientes deste segmento social, para quem sabe, desmistificar

concepções que ficaram estagnadas ao longo da história. Temos o propósito de olhar esta

população não com comiseração e lástima, mas como sujeitos de direitos que necessitam de

instrumentos que oportunizem condições de vida e de realização de suas potencialidades.

Page 59: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

59

22 FFAAMMÍÍLLIIAASS DDAASS PPEESSSSOOAASS CCOOMM NNEECCEESSSSIIDDAADDEESS EESSPPEECCIIAAIISS:: DDEE QQUUEEMM EESSTTAAMMOOSS

FFAALLAANNDDOO??

Quando se trata de falar sobre a realidade das pessoas com necessidades especiais,

quer se trate de uma deficiência mental, física ou sensorial, muitas indagações aparecem; não

é o que acontece, porém, com as respostas. Quem são as pessoas com necessidades especiais?

Onde estão? A que famílias pertencem? Quais são as suas necessidades? Que dificuldades

enfrentam no cotidiano? Eles compreendem o que falamos? Como entender a fala dos que não

verbalizam palavras? Que sentimentos as famílias têm em relação a este membro e à

sociedade? Dor? Alegrias? Tristezas? Medos? Compaixão? Que embates enfrentam no

processo de aceitação/negação da deficiência? Quais os mitos vivenciados pela família, em

torno da deficiência? O diagnóstico representa uma limitação ou a expressão de uma

potencialidade a ser desenvolvida?

Estas são algumas dúvidas colocadas no nível do senso comum e que permeiam o

imaginário de pessoas cujo conhecimento a respeito desta população é distante, restrito e,

muitas vezes, adquirido apenas a partir das janelas dos carros ou das casas. Em geral, as

pessoas não têm a oportunidade de experenciar situações que envolvam estas famílias a ponto

de conhecê-las realmente, pois são “sujeitos que pouco conhecemos e que devemos

‘descobrir’, se é que essa é a palavra adequada, diante de um segmento social concreto ao

qual não pertencemos” (YAZBEK, 1995, p. 84).

Diante disto, o enfoque deste estudo busca trazer à tona situações que

materializem estas famílias, que apresentam uma especificidade adicional: a de possuírem

entre seus membros uma pessoa com necessidades especiais e, além disso, em processo de

envelhecimento. Direcionaremos o enfoque para a apreensão desse específico cotidiano

familiar perpassado por adversidades inauditas, como veremos.

Nesse sentido, os argumentos problematizados neste trabalho não pretendem

corroborar “a existência de um maquiavelismo consciente que prefere se apresentar como

compassivo para exercer assim, mais livremente, o domínio e o poder” (CAPONI, 2000, p. 18),

nem intentam, por outro lado, despertar sentimentos que vulnerabilizem ainda mais esta

população, seja pela mobilização da comiseração, seja pela conversão virtuosa dos que antes,

por ignorância, os estigmatizavam. Fazemos esta advertência com o intuito de não focarmos o

olhar nesta população como mero objeto de nossa “caridade”, numa atitude que apenas nos

Page 60: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

60

liberta “de um sentimento de dor que é absolutamente nosso, a dor que inspira o espetáculo da

miséria, [posto que] e o que fazemos, então, é libertar-nos desse padecimento” (Ibid, p.19).

Os sentimentos que ora nos aproximam, ora nos distanciam desta população

alertam para a importância de que não façamos a leitura dessa complexa realidade concreta

balizados por facetas de nossa própria conveniência, uma vez que tal tema é perpassado por

estigmas e distorções.

Diante disto, a indagação explícita no título deste capítulo não foi feita

aleatoriamente; ao contrário, reporta-se à materialização do verbo conhecer, especialmente

referindo-se às famílias das pessoas com necessidades especiais, e se fundamenta na

necessidade de desvelar este mundo que, na maioria das vezes, não nos pertence mas que, ao

mesmo tempo, suscita reações as mais variadas e adversas, dependendo da forma como

compreendemos e recebemos esta população.

Em discussões anteriores, já chamamos a atenção, para a necessidade de

estabelecermos um paralelo entre a conceituação e construção histórica da deficiência e os

sujeitos que a apresentam, bem como suas famílias, a fim de que possamos elucidar parte de

nossas indagações. Sabemos, contudo, que esta aproximação não responde completamente a

todas as inquietações, pois a questão da deficiência possui outros aspectos a serem

compreendidos.

O entendimento sobre a temática das famílias também é um desafio a ser

perseguido e que, por si só, vem enredada de diferentes significações e conceituações que

foram sendo arquitetadas historicamente, dentro de um contexto econômico, político, social e

cultural. Para Sawaia (2003), o conceito de família já percorreu inúmeras significações,

especialmente nas teorias sociais e humanas, sendo ora enaltecido, ora demonizado.

Incansáveis foram os autores21 que se debruçaram e que ainda não poupam

esforços para compreender esta instituição, cujo detalhamento faz-se premente, visto que não

estamos tratando apenas da questão da deficiência, mas sim da forma como estas famílias vêm

experenciando este fenômeno.

Precisamos, neste sentido, compreender que, embora tenhamos nossas

experiências pessoais, não devemos ficar restritos a estas concepções, para não tomá-las como

parâmetros ou modelos idealizados, fiéis apenas aos valores que alicerçaram nossa formação.

21 Entre estes autores chamamos a atenção para alguns que trabalham diferentes enfoques, quanto à temática família, dentre eles: Mioto (1998; 2000); Sarti (2003); Pereira-Pereira (1995); Lopes (1994); Calderón e Guimarães (1994); Fukui (1998); Carvalho (1998); Costa (2002); Neder (2002); Vicente (2002); Takashima (2002); Draibe (2002).

Page 61: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

61

Atentar para a existência de outros grupos familiares, distintos daquele em que fomos

gerados, não é apenas uma opção, mas precondição para exercitarmos uma outra postura e

possibilitarmos uma ruptura com a padronização de um modelo ideal. “Romper com a nossa

experiência pessoal significa apenas entender que outras possibilidades de organização

familiar são possíveis” (RIBEIRO, 1999, p. 17).

Nesta perspectiva, segundo a autora, as famílias - considerando-as na sua

dimensão plural - apresentam práticas diferenciadas e, por conseguinte, ora fortalecem, ora

fragilizam seus vínculos, seja por meio de suas relações de consangüinidade, seja pelas

relações de afinidade ou afetividade22 estabelecidas.

As mudanças23 no contexto interno das famílias nada mais são que respostas

diversificadas ao mundo externo, que as obriga a superar crises, representar novos papéis e,

acima de tudo, permanecer sob a égide da proteção de seus membros. Em síntese, as famílias

vão estruturar as suas relações, seu cotidiano, seus credos e valores, na tentativa de encarar as

vicissitudes que a vida lhes apresenta.

O entendimento deste mundo externo vai além dos muros das casas, ultrapassa

fronteiras e incide diretamente na esfera macroeconômica e social vigente, tendo em vista que

a condenação muitas vezes destinada às famílias quanto à sua incompetência no momento de

superação de crises vela e/ou escamoteia esta realidade, restringindo ao privado e ao afetivo,

uma questão que é maior.

22 A doutora em Psicologia Social Bader B. Sawaia, em sua fala apresentada no Seminário sobre Famílias: Laços, Redes e Políticas Públicas, intitulada “Família e afetividade: a configuração de uma práxis ético-política, perigos e oportunidades”, traz para análise a dicotomia e as diferentes representações que, em tese, o sentimento de afetividade motiva. Inicialmente, aponta para a necessidade de considerarmos os laços de afetividade, visto que estes são reflexo de um fenômeno privado cuja gênese e conseqüência são sociais, associando assim o social e o psicológico, a mente e o corpo, a razão e a emoção. A autora considera ainda a forma como estes referenciais estão sendo utilizados pelo modelo neoliberal, (re)significando estes conceitos e valores, transportando-os para a esfera do mercado, em que se pode considerar que os “corpos e sentimentos são as novas mercadorias de manipulação comercial e publicitária: vendem-se o ‘fast love’, o ‘bom humor full time’, além de todas as variações do prefixo ‘auto’, especialmente a auto-estima, a auto-responsabilidade” (SAWAIA, 2003, p. 40). Por fim, a autora alerta que as “redes de sociabilidade e de solidariedade que a família é capaz de promover ganham nova importância política no contexto do Estado mínimo” (loc. cit.). 23 Não podemos subestimar a força e as mobilizações necessárias que estas mudanças fazem incidir sobre a família, mudanças estas nem sempre facilmente reconhecidas. “O aumento da expectativa de vida [...] tende a redefinir novos equilíbrios nas relações intergeracionais. [...] A mudança central da inserção da mulher no mercado de trabalho, e do controle da natalidade gestam novos papéis masculinos e femininos, novos laços conjugais e novos arranjos familiares [...] as mudanças penetram as relações familiares e implicam em ganhos e custos emocionais e sociais” (VITALE apud LOSACCO, 2003, p. 65). Nesta direção, Mioto (2000, p. 219) retrata que o “terreno sobre o qual a família se movimenta não é o da estabilidade, mas o do conflito, o da contradição. As relações são profundamente marcadas pelas contradições entre as expectativas que a sociedade tem e as possibilidades objetivas de realização. Esta situação é condicionada tanto pela organização econômica e social da distribuição dos recursos, como pela coexistência de modelos culturais (valores, normas, papéis) reciprocamente contraditórios”. É nesta ambigüidade, na legitimação da cultura do querer-e-não-poder, que é estruturada a identidade social, alicerçando valores, “procurando retraduzir em seus próprios termos o sentido de um mundo que lhes promete o que não lhes dá” (SARTI, 2003a, p.34).

Page 62: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

62

Para compreendermos esta dimensão familiar, apresentaremos neste capítulo as

famílias pesquisadas, levantando alguns aspectos importantes, como a composição familiar,

de que forma a família está organizada para cuidar deste sujeito, que redes estão disponíveis,

enfim, situações experenciadas no cotidiano destas famílias. Posteriormente, abordaremos de

que forma as famílias se apropriaram da notícia da deficiência, trazendo elementos do

discurso destes familiares que materializaram este processo.

Por fim, traremos à tona a questão da comunicação da deficiência, a forma pela

qual a família foi notificada, posto que no discurso extraído deste segmento pesquisado

apareceram algumas situações que devem ser consideradas.

É na perspectiva de desvelar e conhecer estas famílias que este capítulo foi

concebido.

2.1 Muito prazer, eis um pouquinho da minha história...

Após estas considerações, apresentaremos nove grupos familiares cujo laço

comum, que os aproxima e os assemelha, é a existência de um membro que possui uma

deficiência e que está em processo de envelhecimento, embora existam tênues diferenças na

idade, renda familiar, diagnósticos, e rede de cuidadores, entre outros dados. Diante disto, a

opção adotada por este trabalho foi dar-lhes voz, para que possamos ouvir e conhecer a

história destas famílias. “Escutar suas narrativas, dar-lhes espaço, é uma tentativa de deixá-las

expressar seus pontos de vista, suas necessidades, suas formas de ver o mundo” (ACOSTA, et

al. 2003, p. 144), o que não significa dizer que ficaremos restritos à contemplação como que

de um cenário imóvel, que pode nos sugerir e mobilizar distintos sentimentos de

espetacularização deste fenômeno.

Ao contrário, pretendemos, com a apresentação das famílias por meio de

fragmentos de suas narrativas, trazer questões relevantes, que reflitam suas histórias, a fim de

problematizá-las como segmento social que demanda outros serviços em razão de suas

distintas necessidades.

Page 63: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

63

PPEEDDRROO HHEENNRRIIQQUUEE

!"Perfil

Tem 43 anos, sendo irmão gêmeo de uma mulher, além de ter também uma irmã

mais velha. Nenhuma das 2 possui algum tipo de deficiência. O genitor tem 78 anos e a mãe

77 anos de idade. A família é natural do Rio de Janeiro e, em função do trabalho do genitor,

percorreu vários estados do Brasil. A mãe cursou até o segundo ano do Ensino Médio e o pai

concluiu este período escolar.

!"Renda familiar

O genitor é aposentado e recebe uma renda de aproximadamente 4 ½ salários

mínimos, já que Pedro Henrique não responde aos critérios de inclusão para o recebimento do

Benefício de Prestação Continuada.

!"Com quem reside

Atualmente reside com seus pais.

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Pedro Henrique é deficiência mental. Segundo relatos da

genitora, no período da gestação a médica, desconfiada de uma gravidez gemelar, solicitou

que fosse realizada uma radiografia no final da gestação, em que foi confirmada a informação

de serem gêmeos.

Em virtude de ser uma gravidez de risco, a médica imediatamente autorizou a

internação. Embora a mãe se queixasse de dores, o parto aconteceu, segundo relatos da

genitora, de forma tardia. Diante destas complicações, “o médico fez o parto e ele ao invés de

botar na incubadora não puseram, faltou oxigênio. O negócio foi esse”.

!"A forma como perceberam a deficiência

Os pais começaram a perceber que Pedro Henrique tinha um desenvolvimento

diferenciado do da irmã, tendo dificuldades na amamentação, e nos reflexos, o que foi

confirmado após 1 ano de idade, com a primeira crise convulsiva, “até porque hoje tem o

teste do pezinho, mas naquela época não tinha”.

Desde então, a família procurou vários tipos de atendimento a fim de suprir as

necessidades do filho, no tocante à sua saúde e ao desenvolvimento físico e mental.

!"Medicamentos

Page 64: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

64

Quando criança, Pedro Henrique precisou tomar uma série de medicações para

suprir suas carências, seja em termos do desenvolvimento físico, seja para minimizar os

efeitos perversos das crises convulsivas: “antes era um monte de remédios, agora um faz o

efeito de um monte dos que ele tomava, mas isso faz mal para outras coisas também [...] só

pro estômago, porque os remédios atacam mesmo. [...] De 3 em 3 meses eu tenho que levar

no dentista para fazer limpeza”.

!"Políticas de atendimento

Atualmente Pedro Henrique é atendido pela FCEE, freqüentando o Grupo de

Convivência.

FFEERRNNAANNDDOO

!"Perfil

Tem 42 anos de idade. A família de Fernando é procedente da Grande

Florianópolis. A irmã de Fernando tem 63 anos de idade e é deficiente auditiva, tendo

concluído o Ensino Médio, num curso técnico de contabilidade.

!"Renda Familiar

Embora tivesse feito um curso técnico, a irmã trabalhou como costureira e

atualmente está aposentada, recebendo cerca de 2 salários mínimos. Fernando, por sua vez,

recebe a pensão do seu pai, de aproximadamente 3 salários mínimos.

!"Com quem reside

A mãe de Fernando faleceu quando ele tinha 27 anos e o seu pai veio a falecer no

ano seguinte. Desde então, Fernando reside com a sua irmã. Segundo ela, Fernando é o

caçula entre 6, ou seja, eles têm mais 4 irmãos, sendo 2 mulheres e 2 homens, porém “quando

os meus pais faleceram eu fiquei com ele [...] porque eu já cuidava dele, então resolvi ficar”.

Residem numa casa, nos fundos da casa do filho da irmã de Fernando, visto que,

segundo sua irmã, ele é muito metódico e “gosta de ficar tranqüilo [...] não gosta de

agitação, só se é uma festa. Se é aniversário, se chega visita, aí ele adora, ele é muito

social”.

!"Diagnóstico

Fernando apresenta a Síndrome de Down.

!"A forma como perceberam a deficiência

Page 65: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

65

Segundo a irmã, quando Fernando nasceu ele teve desidratação. Disse-nos que a

sua mãe teve dificuldades no parto e que estas refletiram no desenvolvimento de seu irmão.

“Quando tinha 1 mês, ele era um ratinho, era uma coisinha, pequeninho, magrinho. Então

ele teve desidratação. Quando a minha mãe levou Fernando ao médico, atestaram que ele

era Síndrome de Down”.

!"Medicação

Não apresenta um quadro com crises convulsivas, embora tenha que utilizar uma

medicação que serve como sedativo, “onde deixou ele mais calmo [...] Até hoje se tu

incomodar ele, se tu não dá aquilo que ele quer, tem que ser tudo do jeito que ele quer”.

!"Políticas de atendimento

Hoje Fernando é atendido na FCEE, onde freqüenta diariamente o Grupo de

Convivência.

EEDDUUAARRDDOO

!"Perfil

Tem 47 anos de idade e a sua mãe tem 80 anos. A família é natural do município

de Alfredo Wagner/SC e vieram para São José motivados por oportunidades de trabalho,

educação e atendimento para o filho com necessidades especiais. A mãe de Eduardo não

chegou a concluir a Educação Infantil visto que, naquela época, além das dificuldades de

freqüentar a escola em função da distância e das condições precárias de ensino, não era algo

culturalmente e politicamente fomentado. Eduardo tinha 5 irmãos, sendo 4 mulheres e 1

homem, todos casados. A irmã mais velha já faleceu. O irmão de Eduardo, que auxiliava nas

demandas domésticas, especialmente no que se refere ao transporte, sofreu tempos atrás um

acidente de automóvel e ficou paraplégico, o que complicou ainda mais a dinâmica da família.

!"Renda familiar

A mãe tem uma renda de aproximadamente 2 salários mínimos, tendo em vista

que Eduardo não se enquadra nos critérios para recebimento do Benefício de Prestação

Continuada, visto que na residência só vivem os dois. A genitora relatou-nos que, além deste

valor, recebe o auxílio dos filhos, posto que sozinha não possui condições financeiras de

prover as suas necessidades, bem como as de Eduardo. Exemplificou esta dificuldade

financeira com a despesa com a farmácia, que chega a quase 75% do salário que recebe.

!"Com quem reside

Eduardo reside com a sua mãe, sendo que o seu pai faleceu em 2001.

Page 66: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

66

Para a mãe, Eduardo pode ser definido como um grande “companheiro. Ele que

cuida de mim [...] Agora que me deu essa crise forte [refere-se ao problema de saúde que

teve], ele pegou o colchão dele e botou lá no quarto perto de mim, pra mim não ficar sozinha.

[...] Meu filho, graças a Deus, adora trabalhar [refere-se às atividades domésticas], me

ajuda na casa, adora trabalhar no quintal [...] ele arruma a cama dele. Ele troca a roupa,

sabe quando é pra trocar”.

!"Diagnóstico

Eduardo tem deficiência mental.

!"A forma como perceberam a deficiência

Segundo relatos da mãe “eu só sei que ele nasceu perfeito. Quando ele tinha 9, 10

meses deu uma convulsão. Daí disseram que tinha queimado uma célula do cérebro. Aí ele

começou a dar [...] como a gente dizia? Ataque? [...] É [...] deu até uns 2 ou 3 anos e depois

não deu mais. Eu fiz tratamento. Eu tratava ele lá em Rio do Sul.”

!"Medicamentos

Somada à deficiência mental, Eduardo tem também diabetes, o que requer um

controle especial na alimentação, bem como o uso contínuo de outras medicações. Neste

caso, vale registrar que a mãe também apresenta alguns problemas de saúde e,

esporadicamente, necessita de atendimento hospitalar, posto que no período em que ela está

internada, Eduardo fica sob os cuidados de uma irmã.

!"Políticas de atendimento

Eduardo foi um dos primeiros alunos da FCEE, e hoje freqüenta o Grupo de

Convivência desta instituição.

RREEBBEECCAA

!"Perfil

Sua idade é de 50 anos. Tem 11 irmãos: destes, 7 são mulheres e 4 homens. A

procedência da família é do município de São José.

Rebeca e seus irmãos tiveram uma infância marcada pela violência doméstica

perpetrada pelo pai, a exemplo de sua mãe que também foi vítima de várias formas de

agressão, como evidenciamos na fala da irmã: “a história da Rebeca e a nossa também foi

difícil. O meu pai era um homem muito bruto; com ele era na base da paulada. Com ele era

tudo na hora, ele foi criado assim [...] ele foi criado nisso e ele usou a mesma criação pra

Page 67: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

67

gente. Ele não precisava falar com a gente, só olhava pra gente e a gente já sabia o que era.

[...] Ele batia muito na mãe, a mãe apanhava muito. A gente crescia com isso.”

Essas informações são corroboradas pela genitora que, com pesar, relata que

Rebeca “apanhava de fecho de lenha [...] Naquele tempo, eles vendiam fecho de lenha

grande [...] aquelas haste. Passava a mão no fecho de lenha que tava na rua. Ele dava na

mãozinha dela que ficava inchada. Ela dizia: mãe a minha mãozinha. [...] É [...] foi uma vida

de cão.”

!"Renda familiar

A renda familiar atual é de aproximadamente 5 salários mínimos, já que Rebeca

recebe a pensão do genitor.

!"Com quem reside

O pai de Rebeca já é falecido, sendo que a mesma atualmente reside com a sua

mãe de 73 anos, 2 irmãs, com idades de 53 e 43 anos que estão divorciadas, 1 irmão solteiro

com 37 anos e mais 3 sobrinhos, que têm idades de 13, 23 anos e 1 bebê de 3 meses.

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Rebeca é deficiência mental.

!"A forma como perceberam a deficiência

Segundo informações da mãe, “foi na hora do parto, né? Faltou oxigênio na

cabecinha dela [...] Eu fiquei sabendo quando ela tinha 10 meses. Ela começou a enfiar os

dedos dentro do ouvido. Fazia coisas que a gente até duvidava”.

!"Medicamentos

A família relata que houve um período em que Rebeca era muito agressiva, e que

lhe foi providenciado atendimento psiquiátrico. Foi necessária uma intervenção

medicamentosa, sendo que os remédios são utilizados diariamente até os dias de hoje. Foram

“erros e acertos” até encontrarem uma medicação que possibilitasse conciliar a conter a

agressividade, sem que Rebeca ficasse “o dia inteirinho dopada”, como habitualmente vinha

ocorrendo.

!"Política de atendimento

Rebeca freqüenta a FCEE, atendimento este interrompido apenas no período em

que teve as crises de agressividade, no entanto posteriormente retornou às atividades

educacionais, participando atualmente do Grupo de Convivência.

Page 68: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

68

GGUUSSTTAAVVOO

!"Perfil

Gustavo tem 37 anos, é o caçula entre 3 irmãos. Um deles reside no município de

Biguaçú/SC e é caracterizado pela genitora como “o meu socorro”, enquanto o outro mora em

Curitiba/PR, não tendo um vínculo afetivo com a mãe, nem contato com a família.

A genitora relata que a sua família era do município de Imaruim/SC, onde o acesso

às informações era muito precário, “uma pessoa que foi criada no sítio até os 14 anos, né,

não teve experiência nenhuma, eu era a mais velha, não tinha experiência de nada”.

Posteriormente a família da genitora, motivada pela oportunidade de trabalho, veio para o

município de Biguaçú/SC, onde ela se casou.

!"Renda familiar

A família tem uma renda mensal de 1 ½ salário mínimo, posto que este valor é

proveniente da pensão de 1 salário deixada pelo marido e de um benefício24 do Estado

destinado às pessoas com necessidades especiais, e em situação de vulnerabilidade

econômica.

Para incrementar a renda familiar, a genitora esporadicamente trabalha como

costureira numa fábrica de roupas de praia. No entanto, este trabalho é temporário e somente é

possível no horário em que Gustavo freqüenta a Fundação, pois no outro período ele necessita

de cuidados constantes e especiais.

!"Com quem reside

Reside com a sua mãe de 59 anos, que é viúva desde os 30 anos.

Gustavo é definido pela genitora como uma pessoa “bem consciente, ele sabe

quem é, quem não é, ele conversa, ele é comunicativo, ele não é agressivo, ele é uma pessoa

carinhosa, gosta de festa, de passeios, gosta de estar no meio das pessoas.”

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Gustavo é deficiência múltipla, sendo aqui evidenciada pela

deficiência mental e física. É dependente para as atividades da vida diária, como: alimentação,

vestuário, controle dos esfíncteres (utiliza diariamente fraldas descartáveis), tendo como

agravante constantes episódios de crises convulsivas que tornam a sua saúde ainda mais

fragilizada.

24 Este recurso do Estado é fornecido a esta população após avaliação bio-psico-social realizada pela FCEE. Em função dos critérios de elegibilidade do Benefício de Prestação Continuada, Gustavo não se insere na população contemplada pela Lei Orgânica de Assistência Social.

Page 69: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

69

!"A forma como perceberam a deficiência

Segundo a genitora, no período gestacional, especificamente aos 5 meses de

gravidez, ela teve varíola, contraída do seu sogro, de quem estava cuidando naquele momento.

“E eu, quando me casei, eu não sabia nem de quanto tempo era uma gravidez. A

minha mãe tem um monte de filho, mas nunca falou nada [...] como que eu ia saber o que era

uma deficiência? Eu só sabia que o meu filho tinha problema, mas eu não sabia o que que

era.”

!"Medicamentos

Em razão da fragilidade de sua saúde, Gustavo faz uso de uma série de

medicamentos - nem sempre disponibilizados gratuitamente nos postos de saúde - para coibir

e minimizar os efeitos das crises convulsivas. Por ter uma saúde mais vulnerável, Gustavo

freqüentemente apresenta um quadro de pneumonia que se complexifica na estação do

inverno.

!"Políticas de atendimento

Gustavo freqüenta esta instituição educacional desde criança: “eu acho que ele

começou a fazer fisioterapia na Fundação, bem na época do aniversário dele, parece que no

dia do aniversário dele de um aninho, ele tava fazendo fisioterapia.”

CCLLEEIIDDEE

!"Perfil

Tem 44 anos. Cleide tem ainda mais 7 irmãos, sendo que 3 moram no município

de Tubarão/SC, e os demais na Grande Florianópolis. A família é procedente do interior do

município de Tubarão/SC. Os genitores não tiveram oportunidade de estudar “a gente morava

na roça, né? E os pais não ligavam muito pra gente estudar, eles queriam que a gente

trabalhasse.”

!"Renda familiar

A renda familiar é de 2 salários mínimos: “ele ganha um salário e eu ganho

outro. A gente conseguiu se aposentar pela lavoura, né? [...] sempre trabalhou na lavoura,

parou quando a gente veio pra cá, porque tinha uma filha aqui [...] que via que a gente

passava muita dificuldade lá”. O auxílio dos filhos, quanto ao incremento na renda mensal, é

fundamental, já que eles não possuem condições de prover sozinhos as despesas do lar, que se

tornam mais onerosas pelos custos adicionais, como por exemplo o transporte escolar de

Cleide, para que esta possa freqüentar a Fundação.

Page 70: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

70

Outra questão a ser considerada refere-se aos problemas de saúde do genitor: “eu

tenho bronquite, pressão alta, problema no coração, osteoporose”, o que demanda uma série

de medicamentos de uso regular. “Tem remédio que eu tenho que tomar 4 por dia, mas eu

não dou conta de comprar, então eu diminuo, senão não dá. [...] Se não fosse os meus filhos

me ajudar, eu não daria conta”.

!"Com quem reside

Reside com a sua mãe e seu pai, com idades de 64 e 68 anos respectivamente, e

também com o seu irmão de 26 anos. Quando necessário, os genitores contam com o auxílio

dos filhos para cuidar da irmã, seja em função de uma viagem para visitar familiares ou por

questões de saúde dos mesmos.

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Cleide é deficiência mental, apresentando dificuldades na parte

motora, especialmente no equilíbrio. Cleide utiliza fraldas descartáveis no período noturno,

pois não possui controle dos esfíncteres: no entanto, durante o dia pede para ir ao banheiro.

!"A forma como perceberam a deficiência

Segundo informações da mãe, “ela nasceu com saúde perfeitinha, mas depois foi

meningite que deu [...] Ela tinha 11 meses, ela deu meningite, convulsão junto, né? Aí, de lá

pra cá, ela ficou assim. Ela não nasceu assim.”

!"Medicamentos

Embora Cleide tivesse tido na infância uma crise convulsiva, esta não mais se

repetiu, sendo considerada pela genitora “uma pessoa normal [...]. Pelo menos ela tem

saúde”. A medicação é utilizada por Cleide para conter a sua ansiedade, consistindo apenas

em comprimido com efeitos calmantes, que ela toma à noite.

!"Políticas de atendimento

No período em que moraram no município de Tubarão/SC, tentaram matricular

Cleide numa instituição de educação especial, “aí disseram que não, que ela tá muito velha,

aí não quiseram ela lá. Aí quando eu vim pra cá, fui na APAE de São José, aí eles disseram

que não tinha vaga, aí eu fui lá na Fundação, falei lá, aí eles botaram ela”. Cleide está

freqüentando a Fundação há 3 anos, sendo que atualmente participa das atividades do Grupo

de Convivência.

Page 71: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

71

CCLLÓÓVVIISS

!"Perfil

Clóvis tem 37 anos. A família é composta por mais 8 irmãos; destes, 3 já

faleceram, sendo que um dos óbitos foi o de uma criança de 7 anos, que tinha a mesma

deficiência de Clóvis. Os outros 2 faleceram em acidentes automobilísticos. Dos demais

irmãos, apenas uma mora em Curitiba/PR, posto que os outros residem na grande

Florianópolis/SC. Destes, 3 são mulheres e 2 são homens. A família é de Curitiba/PR e

mudaram-se para o município de São José/SC em função de problemas familiares.

!"Renda familiar

A renda da família é de 1 ½ salário mínimo, proveniente da pensão que Clóvis

recebe do seu pai já falecido e do benefício de meio salário que é fornecido pelo Estado25 às

pessoas com necessidades especiais.

A sobrinha divide seu tempo entre os cuidados dispensados ao tio e o seu

trabalho. Sua função é a de professora de crianças de 3 a 4 anos, num Centro Comunitário.

!"Com quem reside

Reside na casa de seus pais, já falecidos, com uma sobrinha de 19 anos. Após o

falecimento dos pais de Clóvis, uma irmã que residia no município de Balneário Camboriú/SC

se mudou, junto com o seu marido, a fim de cuidar do irmão, visto que os seus filhos já

estavam residindo com os avós, genitores de Clóvis. No entanto, no ano passado houve um

acidente de automóvel em que o casal faleceu, como já mencionamos anteriormente.

Diante deste processo de “perdas e lutos”, a sobrinha de Clóvis, atendendo o

desejo do mesmo (que era o de que ela cuidasse dele após o falecimento dos seus pais),

conversou com os demais familiares, a fim de tornar pública sua decisão de cuidar do tio

Clóvis, decisão esta aceita por todos. Segundo a irmã de Clóvis, a opção de sua filha no

sentido de cuidar do tio, foi um ato voluntário e conveniente para a família. Resulta do

processo pelo qual Clóvis foi atendido por muitas pessoas que, com o passar do tempo, foram

falecendo – algumas obedecendo uma trajetória de vida, considerada normal, outras de forma

bastante drástica. Diante disto, a opção da sua filha foi, segundo ela, bastante conveniente

para todos os familiares, “mas acima de tudo foi opção dela”.

Embora residam na casa apenas Clóvis e a sobrinha, os demais parentes possuem

funções definidas pela família, seja no momento de auxiliar nas atividades da vida diária,

25 Situação semelhante aquela já evidenciada na família de Gustavo. Ver nota de rodapé 25, p. 83.

Page 72: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

72

como banho, alimentação, troca de fraldas descartáveis, transporte para a Fundação, como

também na participação nas atividades educacionais, e nos passeios, entre outras demandas.

Vale ressaltar que tanto no relato da sobrinha como no da sua mãe, que também

participou deste processo de pesquisa, ficou evidenciado que a rede de cuidados de que Clóvis

dispõe, para além da participação dos familiares, é extensiva às demais pessoas da

comunidade, em quem a família busca apoio.

!"A forma como perceberam a deficiência

Segundo a irmã de Clóvis, antes dele nascer a sua mãe já havia tido uma filha com

as mesmas características do irmão, e que a família baseou-se pelo mesmo diagnóstico, que

foi inclusive confirmado por profissionais da área da saúde. Um aspecto que vale registrar é

que, além do diagnóstico, a expectativa de vida de Clóvis também era baseada na experiência

da família com sua irmã, que faleceu aos 7 anos, idade que, segundo os médicos, marcava o

limite máximo para o tempo de vida de uma pessoa com tal deficiência.

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Clóvis é paralisia cerebral, “deficiência mental, ele não tem

nada, é só física. Mental ele é normal. [...] Ele só não fala, mas sabe tudo. [...] isso é a

informação que a gente tem até hoje. Afetou a parte motora dele.”

!"Medicamentos

O quadro de saúde de Clóvis é considerado bom pela família, embora tenha

episódios freqüentes de pneumonia, o que requer maiores cuidados.

!"Política de atendimento

Clóvis freqüenta a FCEE há 3 anos, participando das atividades oportunizadas no

Grupo de Convivência.

AARRMMAANNDDOO

!"Perfil

Armando, 49 anos, é procedente de Florianópolis. É o caçula de uma família de 7

filhos, sendo que destes 1 já é falecido, e os demais são casados; no total, são duas mulheres e

cinco homens.

!"Renda familiar

Page 73: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

73

A renda familiar é superior a 10 salários mínimos, provenientes dos investimentos

imobiliários realizados no período em que o pai de Armando era empresário e que, após o seu

falecimento, ficaram como patrimônio da família.

!"Com quem reside

Reside com a sua mãe de 82 anos, que ficou viúva há 20 anos. A genitora tem

uma rotina diária definida, na qual seu filho participa de todas as atividades, passeios, e

compras em supermercado, entre outras situações. Para auxiliá-la no transporte de Armando,

conta com um motorista particular que minimiza as dificuldades de locomoção.

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Armando é deficiência mental, apresentando também

dificuldades motoras. Armando é dependente para as atividades da vida diária, sendo

auxiliado pela mãe: “sempre sou eu, até porque em casa é tudo do jeitinho dele, o banheiro

tem os ferros dele [...] eu dô banho nele, ele tem as coisas dele [...] é mais comigo”.

!"A forma como perceberam a deficiência

Segundo a mãe de Armando, “quando ele tinha 2 anos [...] nós olhava pra ele e

não era normal como os outros irmãos”. Percebia que o desenvolvimento de seu filho era

diferenciado dos demais, seja na alimentação que recebia com dificuldade, seja na morosidade

ao caminhar e falar.

!"Medicamentos

A genitora controla as crises convulsivas com medicamentos diários, e ele faz

acompanhamento médico sistemático.

!"Políticas de atendimento

Armando foi um dos primeiros alunos da FCEE, onde participa atualmente das

atividades do Grupo de Convivência.

RRIICCHHAARRDD

!"Perfil

Tem 46 anos. O pai de Richard faleceu há 20 anos e a sua mãe há

aproximadamente 15 anos. A família é procedente do interior do município de Palhoça/SC e é

composta por 4 irmãs e Richard.

!"Renda familiar

Page 74: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

74

A renda familiar é de aproximadamente 4 ½ salários mínimos, sendo que Richard

não recebe nenhuma pensão, nem tampouco é incluído nos critérios do Benefício de Prestação

Continuada. Este rendimento é proveniente do salário da irmã de Richard, que é autônoma, e

das 2 sobrinhas que trabalham na área da saúde.

A irmã salienta que uma das dificuldades enfrentadas por Richard decorre do fato

de que ele tem algumas preferências na alimentação, rejeitando as carnes vermelhas, o que

exige a substituição por carnes brancas, especialmente peixes, o que aumenta o custo da cesta

básica, visto que este produto é mais oneroso.

!"Com quem reside

Reside com a sua irmã de 50 anos e mais 2 sobrinhas que têm idades de 19 e 25

anos. Embora a composição familiar seja de 4 irmãs, “quando a minha mãe faleceu, eu quis

ficar com ele mesmo, elas começaram a jogar uma pra outra, né? Eu tava me separando na

época também [...] os meus filhos eram tudo miudinho, eu trabalhava fora meio expediente.

Então a gente abraçou ele [...] já faz 15 anos que a gente tá com ele.”

Richard é definido pela irmã como “uma pessoa muito querida, ele é calmo, é

tranqüilo [...] ele consegue ir ao banheiro, ele faz tudo, né, consegue comer direitinho [...]

ele é assim muito ordeiro, não gosta de bagunça”. Embora a irmã tenha elencado todas estas

características, também relativizou a responsabilidade e os cuidados de que o seu irmão

precisa “porque querendo ou não eles sempre dão trabalho, preocupação, precisam de todo o

cuidado, como por exemplo na hora do banho, ele não toma banho sozinho, precisa que

alguém dê [...] ele não pede comida. Então eu já sei aquele horário é do almoço, aquele

outro é do café, entende?”

A irmã de Richard conta também com o auxílio de seu outro filho e de sua nora,

quanto aos cuidados com o irmão: “[...] quando ele vem aqui, até a mulher dele, não precisa

pedir, eles já tão fazendo. O Richard tá com a unha grande, precisa de um banho, quando eu

vejo eles já tão fazendo [...] as minhas filhas são muito carinhosas com ele, acho que isso tem

o lado compensador”. A irmã relata com pesar a situação de isolamento das demais irmãs,

visto que o seu irmão sente falta dos demais familiares: “ele pergunta por elas, pelos meus

sobrinhos. Porque quando a minha mãe era viva, né, elas visitavam muito ela, então depois

não. Ele sabe que tem [...] e é triste, né?”

Embora haja esta dificuldade de mobilizar as demais irmãs, a rede de cuidados

também é extensiva ao seu ex-marido: “ele vai pra casa dele e fica uns 15, 20 dias. Ele

Page 75: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

75

mesmo diz: [...] ‘deixa o Richard ficar aqui o tempo que ele quiser’,” pois os vizinhos olham

esporadicamente por Richard, quando os demais familiares não estão em casa.

!"Diagnóstico

O diagnóstico de Richard foi, durante muito tempo, uma incógnita para a família.

Após o falecimento da genitora de Richard e da sua inserção na Fundação, que ocorreu

apenas há um ano e meio, a irmã de Richard levou-o a um médico, que diagnosticou

deficiência mental, contrariando as suposições da irmã, que acreditava que ele apresentava

Síndrome de Down.

!"A forma como perceberam a deficiência

Quando Richard nasceu, seus pais residiam no interior do município de

Palhoça/SC, local onde o acesso a atendimentos especializados era muito precário. Segundo as

explicações da irmã de Richard; “A [sua] mãe sempre falou que foi meningite que tinha dado

nele [...] demorou muito para caminhar [...] ele tinha uns 3, 4 aninhos, ele era todo molinho,

todo molinho.”

!"Medicamentos

Richard apresenta um quadro de saúde considerado pela família como bom, visto

que não tem crises convulsivas nem tampouco necessita do uso contínuo de medicamentos.

!"Políticas de atendimento

Desde seu ingresso na Fundação, Richard freqüenta o Grupo de Convivência.

O que peculiariza e aproxima estas famílias são as experiências vivenciadas com

as pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento. Suas histórias, com

tênues diferenças, evidenciam um contexto de lutas que permeia suas vidas desde o

nascimento destes sujeitos, seja pela expectativa frustrada de terem um “filho perfeito”, seja

pela incerteza de contar com alguém para os cuidados deste familiar, depois da morte dos

pais, neste caso específico, uma preocupação mais explícita dos genitores.

O que faz ainda semelhantes os depoimentos dos familiares são as formas como as

famílias se apropriaram deste fenômeno. A ausência de informações mais precisas por parte

da equipe de profissionais que, na maioria das vezes, se encarrega de informar a família a

respeito da deficiência, também é uma questão importante identificada na pesquisa.

Para avançarmos neste estudo, necessitamos entender de que forma se deu o

processo de apropriação da deficiência pela família, o que poderá ser evidenciado através do

Page 76: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

76

relato das experiências vivenciadas em torno dos momentos considerados difíceis e/ou bons,

bem como da forma como trataram este(a) filho(a) ou irmão(ã).

Não pretendemos, aqui, adotar nenhuma escala de valores, avaliando a postura

dos familiares para com este sujeito, ou indicando erros e acertos, até porque estas famílias

sempre tiveram que “levar a vida” (CALDEIRA, 1984, p. 9) e fizeram isto de forma muito

solitária.

2.2 O processo de apropriação da deficiência pela família

Para muitas pessoas, um dos projetos de vida almejado e a ser perseguido refere-

se à constituição de uma família. Estes anseios perpassam o imaginário social e correspondem

à expectativa da união entre homem e mulher, de forma que o fruto deste vínculo seja

materializado na reprodução de sua espécie, ou seja, nos filhos.

A representação social dos filhos é, acima de tudo, a expressão da continuidade da

família e, assim sendo, deve estar associada às formas mais idealizadas de um modelo, pois

referem-se aos padrões de sucesso ou insucesso que estão vinculados à capacidade dos

familiares de superar as crises. No entendimento de Calderón e Guimarães (1993, p. 21),

“predomina no imaginário coletivo da nossa sociedade a idéia de uma família perfeita:

seguidora das tradições, formada pelos pais e filhos, vivendo numa casa harmoniosa para todo

o sempre”.

Quem nunca escutou, por exemplo, como resposta à pergunta dirigida aos pais,

especialmente à mulher gestante, quanto à sua preferência no sexo do bebê, que “o sexo não

importa, desde que venha com saúde.” Esta saúde está associada à não deficiência, à perfeição

física, e cognitiva, entre outros elementos que caracterizem um bebê saudável, além de

perspectivas futuras, como as expressas no desejo de que esse filho seja feliz, tenha êxito

profissional e afetivo, ou seja, que tenha um futuro promissor.

Não pretendemos, aqui, avaliar se estes anseios são malignos ou benignos para as

famílias, pois estão muito mais associados a elementos subjetivos (esperanças, sonhos,

ideais), porém evidenciamos estes aspectos para servirem de subsídios na compreensão das

famílias das pessoas com necessidades especiais, cuja idealização do filho perfeito já é

Page 77: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

77

frustrada a partir do seu nascimento ou, quando muito, nos seus primeiros anos de vida, após a

constatação do fenômeno.

Sendo assim, a idealização desta família harmoniosa e perfeita esbarra na

realidade da família concreta, que lida cotidianamente com os sentimentos de frustração,

tendo em vista que não consegue atingir o ideal do que deveria ser. Para Szymanski (1997, p.

25):

Supõe-se ou aceita-se, irrefletidamente, um modelo imposto pelas instituições, da mídia e até mesmo de profissionais, que é apresentado não só como o jeito ‘certo’ de se viver em família mas também como um valor. Isto é, indiferentemente, é transmitido e captado o discurso implícito de incompetência e de inferioridade, referindo-se àqueles que não ‘conseguem’ viver de acordo com o modelo.

Estes elementos subjetivos do fracasso estão presentes nestas famílias pois, diante

da realidade concreta e da representação que se faz dela, está implícita (ou explícita), a

sensação da incapacidade. Isto porque simplesmente padronizamos e naturalizamos um

modelo de família ideal, como se fosse possível construí-lo na realidade, penalizando as

famílias que não atingem tal padrão, rotulando-as de desajustadas, desestruturadas, recaindo

sobre elas boa parte da intolerância social (MIOTO, 2000).

As famílias das pessoas com necessidades especiais viram-se obrigadas, após o

recebimento da notícia, a inserir-se numa realidade diferente da que haviam almejado, como

nas palavras de Caetano Veloso, o que deflagrou “o avesso do avesso” de seus sonhos.

A família de Pedro Henrique evidencia este momento do seguinte modo: “Pra

mim foi um choque. A princípio eu fiquei apavorado”. E expõe as mudanças que ocorreram

no cotidiano da família após o nascimento do filho, tendo em vista que, “na verdade, mudou

muito, na verdade a gente vive em função dele”.

Expressões como estas também foram observadas na família de Fernando:

“naquela época, isso há 42 anos atrás, não era tão divulgada a Síndrome de Down como

hoje [...] depois a gente veio procurar saber o que era, mas a família ficou meio chocada”.

Associada ao desconhecimento a respeito da Síndrome, está a interpretação dos genitores,

para o nascimento deste filho, que era a expressão de uma punição: “eles acreditavam que era

um castigo, fruto de um pecado”.

Estes discursos refletem de que forma a família recebeu a notícia, e como

poderiam lidar com estas situações de sofrimento inesperadas e indesejadas.

Page 78: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

78

São sonhos que foram de alguma forma despedaçados pois, no estabelecimento do

vínculo entre pais e filhos, subtende-se que haja uma consideração “dos filhos com relação

aos pais [posto que] os pais que criam e cuidam são merecedores de profunda retribuição,

sendo um sinal de ingratidão o não reconhecimento dessa contrapartida” (SARTI, 2003a, p.

82).

Este reconhecimento, nada mais é que a obrigação moral estabelecida nesta

relação, explicitada pelo “compromisso afetivo de retribuição e compreensão diante das

dificuldades que pela vida afora seus pais enfrentaram” (RIBEIRO, 1999, p. 30), na dura tarefa

de dar condições de desenvolvimento a este filho.

Para Sarti (2003, p. 31), é sem dúvida a relação entre pais e filhos que representa o

vínculo mais forte, em que as obrigações morais caracterizam-se como legítimas. “Se, na

perspectiva dos pais, os filhos são essenciais para dar sentido a seu projeto de casamento, [...]

dos filhos espera-se o compromisso moral da retribuição dos cuidados”. No entanto,

diferentemente de um filho que segue uma trajetória de vida considerada “normal”, ou seja,

estuda, forma-se, trabalha, constitui sua própria família, podendo até, por vezes, auxiliar nas

despesas dos genitores que, muitas vezes, encontram-se recebendo uma aposentadoria cujo

valor é inferior ao necessário para o atendimento de suas necessidades básicas, a pessoa com

necessidades especiais, e especialmente esta população pesquisada, não se desvincula de suas

famílias; ao contrário, tornam-se ainda mais dependentes. Observamos esta frustração no

discurso da família de Cleide, já que a deficiência desta foi seqüela de meningite os pais

expressam os seus sentimentos dizendo: “A gente ficou triste, né? Porque a gente teve uma

guria com saúde que podia trabalhar, mas depois a gente foi se acostumando”.

Esse se acostumar refere-se à forma como a família se organiza após apropriar-se

do fenômeno da deficiência. Não é um processo inerte, mas em constante movimento, posto

que as demandas familiares vão sendo alteradas, seja pelos aspectos externos à família como,

o trabalho, a renda, os serviços sociais disponíveis, entre outros, seja pela dinâmica interna da

família como, os casamentos, os nascimentos, os divórcios, os falecimentos de seus membros,

entre outras situações.

Para criar estratégias de enfrentamento destas situações, as famílias se vêem

envolvidas no código de obrigações morais, como forma de materializar a reciprocidade das

relações, seja dentro ou fora de suas casas, como alude Sarti (2003, p. 140-1 - grifo da autora):

A família, com seus códigos de obrigações, é uma linguagem através da qual traduzem o mundo e, sendo assim, suas possibilidades de negociação e

Page 79: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

79

de atuação no mundo social passam pelos caminhos onde é possível falar essa linguagem. Assim, é esta especificidade que define o horizonte de sua ação política. [...] Significa [...] acentuar que a reciprocidade é o fundamento da ordem social para os pobres [e consideramos também as famílias das pessoas com necessidades especiais] porque as relações sociais na sociedade brasileira estão estruturadas de modo a fazer valer esse princípio como organizador de sua percepção do mundo. Essa marca das sociedades tradicionais, o código da reciprocidade, não é, então, uma “sobrevivência”, mas um traço que existe e persiste pelas próprias características da sociedade.

As redes sociais de cuidado com a pessoa com necessidades especiais podem ficar

restritas ao ambiente familiar, como também expandir-se à comunidade, objetivando ampliar

as ramificações familiares, entendidas aqui não apenas como as pessoas que têm laços de

sangue, mas como todos aqueles que se vêem obrigados moralmente a auxiliar nesta

empreitada. Para Sarti (2003), esta prática aponta para um duplo sentido: primeiramente,

dificulta a individualização, mas também, simultaneamente, viabiliza condições para sua

existência por meio da garantia de atendimento de suas necessidades básicas.

Observamos claramente as estratégias de manutenção da vida da pessoa com

necessidades especiais na família de Clóvis, posto que os cuidados são atribuídos a todos os

familiares, aos seus irmãos, e aos vizinhos, embora quem esteja residindo com o mesmo seja

sua sobrinha de 19 anos. São familiares que já possuem seus papéis definidos diariamente no

cuidado de Clóvis: a troca de fraldas, o banho, a tarefa de carregá-lo no colo até o veículo que

irá transportá-lo até a Fundação, a alimentação; entre outras necessidades. Os demais irmãos,

que não residem próximo à casa de Clóvis ou possuem atividades de trabalho que

impossibilitam o cuidado diário, são responsáveis pelo pagamento do transporte da Fundação,

ou ainda são pessoas que vivem em permanente vigília, caso seja necessário seu auxílio. “A

família tenta se dividir [...] ajuda no que pode”.

Realidade distinta vivencia a família de Richard, já que, após o falecimento dos

pais, a irmã mais velha assumiu os cuidados com o irmão. No entanto, a distribuição de

tarefas entre as demais irmãs não ocorre, ficando restrita apenas a este núcleo familiar, haja

vista que a manutenção e o cuidado para com Richard, são viabilizados por meio dos

sobrinhos, do ex-cunhado e dos vizinhos. No discurso da irmã, percebe-se o ressentimento

quanto à ausência dos demais familiares no cuidado de Richard:

E eu fico assim meio ressentida com as minhas irmãs, por causa disso, tu vê: eu passo assim três, quatro anos e não as vejo. Eu fico muito sentida desde que o meu irmão tá comigo [...] eu tinha outra visão, acho que ele precisa de muito carinho, e ele pergunta, ele é muito inteligente, ele sente saudades, mas elas não procuram.

Page 80: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

80

Com este afrouxamento dos vínculos sociais, a representação da família vai além

da noção de apego, mas traduz, por meio de suas hierarquias internas, a concretização de que

a sobrevivência depende e se apóia nos recursos pessoais e nas motivações morais que os

familiares são capazes de mobilizar. E estes familiares devem ser compreendidos numa

dimensão mais ampla, visto que os fios foram esgarçados (SARTI, 2003a) e a “extensão da

família corresponde à da rede de obrigações: são da família aqueles com quem se pode

contar, quer dizer, aqueles em que se pode confiar”26 (SARTI, 2003, p. 33 - grifo da autora).

Esta caracterização da família responde à ausência de serviços públicos de uma

maneira geral, especialmente os destinados aos segmentos sociais vulneráveis, como é o caso

das pessoas com necessidades especiais. No entanto, a prerrogativa destas relações, segundo

Sarti (2003a), é a reciprocidade, o código de lealdade e de obrigações mútuas, ou seja, a

própria noção da ordem moral.

Com relação às regras morais, recorreremos a Émile Durkheim27 (1967), que se

debruçou sobre esta temática e trouxe considerações relevantes, que foram inclusive

observadas no discurso das famílias, ora de uma forma velada, ora explicitamente.

Um dos aspectos evidenciados, por exemplo, é a própria noção da sanção que

pode lhes ser aplicada, mesmo nos tempos atuais, caso as famílias não correspondam

moralmente às normas impostas. Esta sanção não necessariamente diz respeito a uma

penalidade a ser aplicada concretamente, ao menos de forma objetiva, mas vincula-se muito

mais a uma pena subjetiva, espiritual, associada à noção da própria obrigatoriedade do dever

moral.

Desta maneira, as regras morais estão carregadas de significações que representam

primeiramente o dever e, num segundo plano, “aparece-nos como desejáveis, embora seu

cumprimento se dê com esforço” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 1995, p. 23).

Segundo Durkheim (1967), a moral, na verdade, retrata um sistema de normas de

conduta, que define de que forma os sujeitos devem agir em determinadas situações,

culminando na relevância dos homens aprenderem, por meio deste processo, a integrar-se à

vida social, o que dependerá inclusive de laços de solidariedade. É neste sentido que a moral é

definida pelo autor como sendo:

26 A disponibilização desta rede, com a qual a família pode contar ou na qual pode confiar, é evidenciada de forma clara na pesquisa, cujos resultados serão apresentados posteriormente. 27 Sendo Durkheim um autor cuja matriz teórica é a sociologia positivista, vale ressaltar que esta não corresponde ao quadro analítico adotado prioritariamente neste estudo, embora suas reflexões, remetidas ao campo da moral, se revele especialmente fecunda.

Page 81: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

81

tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o indivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos de seu egoísmo, e a moralidade é tanto mais sólida quanto mais numerosos e fortes são estes laços (DURKHEIM, Idem, p. 338).

Embora o autor retrate a importância desses elos e do respeito à solidariedade

como forma de regular e constituir um corpo de regras morais, dissocia claramente os mais

aptos dos menos capazes, prescrevendo a relevância destes últimos aceitarem a interferência

dos primeiros28. “Será, portanto, necessária ainda certa disciplina moral para forçar os menos

favorecidos pela natureza a aceitarem o que devem ao acaso de seu nascimento” (Ibid. p. 47).

Compreender a lógica da subordinação dos menos favorecidos com relação aos

considerados mais aptos é problematizar, inclusive, a noção da infantilização das pessoas com

necessidades especiais na convivência familiar. Não foi raro encontrar nos discursos

familiares as expressões crianças, neném, menino, referindo-se a sujeitos em idade adulta que,

por apresentarem uma deficiência, se lhes atribui a perigosa máscara de incapazes e

subservientes. Estes termos infantis também se fizeram presentes na expressão do cotidiano

destes sujeitos, em que as funções atribuídas a estas pessoas eram restritas a simplificações

como “as atividadeizinhas dele”, “faz uns aninhos”, “são crianças como ela”, “ela aceitou

[refere-se à deficiência] e tratou ele toda a vida como neném” e “a mãe fazia tudo pra ele”,

entre outras vivências que caracterizaram esta relação, já que são considerados como

crianças, passam a ser tratados como alheios a qualquer obrigação e, conseqüentemente, a qualquer direito. Pode resultar assim politicamente legítimo pensar esses doentes-crianças como não responsáveis; porém, essa identificação não é gratuita: somente na responsabilidade é que a liberdade acha sua condição e sua razão de ser. É, então, evidente afirmar que ausência de responsabilidade haverá de ser idêntico a afirmar ausência de liberdade (CAPONI, 2000, p. 37).

Estes são os elementos observáveis, no cotidiano das famílias das pessoas com

necessidades especiais em processo de envelhecimento. Não pretendemos, como já

evidenciamos anteriormente, avaliar e julgar estas relações, especialmente por compreendê-

28 Embora não seja elemento de discussão deste trabalho, fizemos questão de pontuar este aspecto por observar que esta prática está enraizada nas relações sociais estabelecidas com as pessoas com necessidades especiais, posto que já nasceram desfavorecidas pela sua natureza nata, conforme as idéias do pensador, tendo em vista que, como elemento de retribuição aos favores oferecidos, devem aceitar sem questionamentos estas imposições. Observamos nos discursos dos familiares e na prática institucional dirigida a esta população - seja aquela junto à qual estávamos inseridas profissionalmente, seja a que experenciamos como estagiária de graduação do Curso de Serviço Social - que há uma predominância do pensamento positivista, onde presenciamos a supremacia e a imposição de anseios pessoais do cuidador ou do profissional sobre o desejo de quem é cuidado, e/ou o sujeito a quem se destina os serviços. Porém este estudo requer uma pesquisa aprofundada, para esmiuçar os meandros destas relações.

Page 82: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

82

las na sua totalidade, dissociando-as de possíveis parâmetros idealizados, bem como

compreendendo a forma como foi apreendida historicamente a deficiência. O que as famílias

fazem ou não fazem efetivamente perante a existência deste filho não pode ser elemento de

condenação, visto que não podemos analisar tais aspectos sem considerar os “recursos

(materiais, sociais, afetivos) que são disponibilizados para se manterem vivas; muito pouco se

diz [também] das estratégias utilizadas para responderem às demandas que lhe são impostas”

(MIOTO, 2000, p. 223).

No entanto, isto que limita uma avaliação não deve servir de instrumento de

cristalização desta prática, mas sobretudo fomentar novas significações para estas relações, a

fim de que sejam banidos os sentimentos de dívida pelo bem recebido, posto que o papel de

eterna gratidão representa a impossibilidade de se situarem “numa relação de paridade e de

poder participar de relações sociais que exijam julgamento e discernimento” (COLLIÈRE,

1989, p. 69).

Rever posturas, práticas políticas e éticas, tanto no contexto familiar quanto nas

relações sociais, faz-se necessário, na perspectiva de vislumbrarmos um outro olhar dirigido a

esta população, com o intuito de fortalecê-los e não debilitá-los, de propiciar sua inserção em

novas redes sociais e não condená-los ao isolamento, enfim, de reconhecê-los como sujeitos

que, embora apresentem suas peculiaridades e necessidades especiais, não devem ficar

confinados e caracterizados como sinônimos de benevolência e inferioridade. Afinal de

contas, quem dentre nós não apresenta à sociedade e ao mundo demandas diferenciadas?

2.3 A equipe profissional e a comunicação da deficiência

Analisar o discurso dessas famílias, bem como a forma delas se apropriarem do

fenômeno da deficiência, obrigatoriamente faz com que nos reportemos ao momento da

comunicação do diagnóstico médico da deficiência. Esta comunicação é normalmente

verbalizada por profissionais vinculados à área da saúde, já que na maioria dos casos foi por

meio deste serviço que se buscou compreender os sintomas e a explicar o desenvolvimento

diferenciado desta pessoa, “que faz sua aparição ali onde se demandam a cura, o cuidado e a

assistência” (CAPONI, 2000, p. 12). Salientamos que estamos fazendo referência a um período

Page 83: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

83

localizado aproximadamente de 30 a 50 anos atrás, conforme o momento em que as famílias

das pessoas com necessidades especiais foram em busca de informações sobre seus filhos, ou

seja, foram comunicadas quanto à deficiência. Sendo assim, a forma como as famílias foram

acolhidas por esta equipe de profissionais, bem como o modo como foi anunciado o fenômeno

da deficiência, refere-se não a situações experenciadas nestes últimos anos, embora seja

pertinente cotejar se tais posturas finalmente foram alteradas, recentemente.

Desta forma, não pretendemos avaliar as práticas profissionais de determinadas

áreas, nem tampouco desqualificá-las, mas almejamos explicitar o contexto em que as

famílias foram informadas, procurando verificar como esta comunicação interferiu nas

relações estabelecidas dentro e fora da vida familiar. Como evidenciamos na pesquisa, a

comunicação da deficiência à família, por muitas vezes, ficou restrita aos limites, às

dificuldades e à expectativa de vida desta população, em geral com uma ênfase bastante

negativa, embora pretensamente realista.

Frente à incógnita do fenômeno da deficiência, resta às famílias buscar respostas

às suas inquietantes dúvidas, pois são vivenciadas circunstâncias-limite, em que é necessário

colocar-se “literalmente nas mãos do outro, de um outro no qual é preciso confiar quase que

cegamente” (Ibid., p. 13).

Na família de Fernando, a entrega deste nas mãos de um profissional fez com que

ele tivesse condições de sobreviver a uma desidratação, já que o seu desenvolvimento com

apenas um mês de vida estava bastante prejudicado. A família ignorou o primeiro diagnóstico

dado a Fernando, que condenava o menino à morte: relatavam que aquele bebê não teria

condições de sobreviver ao quadro de desidratação, nem tampouco aos sintomas da Síndrome

de Down. Na busca de outra opinião e intervenção profissional, a família medicou Fernando,

que “custou a sentar, custou a andar, custou a falar, tudo foi lento [...] mas ele começou a

melhorar e foi desenvolvendo”.

No caso de Cleide, a demora de uma resposta mais precisa trouxe seqüelas

irreversíveis, reflexos de uma meningite não diagnosticada: “quando descobriram, ela já

havia dado convulsão”.

Além destes tipos de intervenção a equipe de profissionais também se fez presente

no tocante à aceitação, por parte da família, daquela pessoa com necessidades especiais, como

observamos na família de Eduardo, à qual foi recomendado, após a comunicação da

deficiência, que o aceitasse, pois era uma espécie de cruz “que tinha que carregar”.

Page 84: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

84

Para Donzelot (apud CAPONI, 2000), a lógica do aconselhamento praticada pela

política de filantropia - observada inclusive nos dias de hoje - foi deflagrada no século XIX de

forma complementar à que ocorria na época clássica, posto que a ética utilitarista ficava

evidenciada na forma de atendimento prestado à população pobre, já que havia uma relação

“entre uma necessidade que pode ser satisfeita e uma gratidão infinita que se apresenta como

pagamento esperado por essa dádiva" (CAPONI, 2000, p. 75). Deste modo, o aconselhamento

pode ser considerado uma forma de aproximação entre aquele que recebe a informação e

aquele que a fornece, tendo em vista que o “conselho é o ato que melhor indica a igualdade,

pois resulta do desejo de influenciar de quem dá e da perfeita liberdade de quem recebe”

(Ibid., p. 67), ou seja, já não se trata de dar subsídios materiais àquele que deles necessita, mas

bons conselhos. Entretanto, há que considerar que há uma relação desigual entre os dois pólos

envolvidos, uma vez que, devido também ao saber profissional, aquele que aconselha está

imbuído de poderes institucionais e técnicos, oriundos da condição de especialista.

Foucault (1992) complementa essa análise lembrando que a lógica da filantropia,

no século XIX, legitimou a interferência de algumas pessoas, que passaram a se ocupar da vida

dos outros, de sua saúde, da sua residência, de sua alimentação e que, posteriormente, deram

origem a funções que, por sua vez, se personificaram em instituições e saberes, proliferando

algumas categorias de trabalhadores sociais. A esse respeito, Foucault (1992, p. 151-2)

acrescenta o papel de denominador comum desempenhado pela medicina.

Era em nome da medicina que se vinha ver como eram instaladas as casas, mas era também em seu nome que se catalogava um louco, um criminoso, um doente... Mas existe, de fato, um mosaico bastante variado de todos estes ‘trabalhadores sociais’ a partir de uma matriz confusa como a filantropia... O interessante não é ver que projeto está na base de tudo isto, mas em termos de estratégias, como as peças foram dispostas.

Ao nos reportarmos a políticas de atendimento referentes ao século XIX,

constatamos, a partir do desenrolar da pesquisa, que muitas posturas ainda perduram. Por

exemplo, ora a família é compreendida como elemento que tem uma dívida eterna para com

aqueles que lhe fornecem um serviço, um auxílio, uma assistência, ora prevalece a

multiplicação dos mecanismos de coerção, docilização e submissão.

Observamos isto na família de Gustavo: a mãe relata um episódio vivenciado em

uma das consultas médicas. Disse-nos que, certo dia, preparava seu filho para ir a uma

consulta quando ocorreu uma crise convulsiva muito forte, que impossibilitou seu

comparecimento. Em virtude de ser um atendimento rotineiro, objetivando muito mais a

Page 85: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

85

aquisição da receita médica para permanecer com a medicação, a mãe preferiu ir sozinha ao

atendimento, já que o medicamento de uso contínuo estava terminando e o profissional

conhecia o quadro clínico de Gustavo. Ao chegar na Policlínica, descobriu que o profissional

que atendia Gustavo havia viajado e deixara os seus pacientes aos cuidados de outro

especialista, no qual que este se negou a efetuar o atendimento. A mãe, preocupada com a

possibilidade de ficar sem a medicação de seu filho, pediu para o profissional providenciar

somente daquela vez, e este respondeu-lhe rispidamente: “decerto tu queria que eu fosse

consultar por telefone, na tua casa?” A mãe sentiu-se muito ofendida e agredida pois,

segundo seus relatos, o seu filho nunca faltou a uma consulta, apesar de todas as dificuldades

de locomoção, situação financeira, crises convulsivas, enfim, fatores alheios à vontade da

família. Em função da resposta do profissional, a mãe disse que nem iria pegar mais a receita

médica e que iria tentar obtê-la em outro lugar, pois sentiu-se muito aviltada com o tratamento

recebido. Relatou-nos que, por fim, o profissional forneceu a receita de forma bastante

indelicada e ríspida, tendo a mãe saído do consultório extremamente abalada e chorando

muito. Esta situação foi tão marcante que a mãe nos contou que teve, inclusive, dificuldades

para sair do prédio da Policlínica, uma vez que não conseguia nem encontrar a porta da saída,

de tão emocionalmente alterada e ofendida que ficou com o atendimento.

Incrementando esta situação, a mãe relatou que, em outra oportunidade, foi à

Policlínica para ser atendida pelo mesmo profissional. Disse-nos que chegaram no início da

manhã, por volta das 8 horas e que foram atendidos perto do meio-dia. Ponderou esta

situação, trazendo elementos que demonstram as situações pelas quais as famílias estão

comumente passando. Disse-nos que, neste dia, Gustavo permaneceu a manhã toda na cadeira

de rodas, já que era verão e estava muito quente e que, quando o profissional chegou, por

volta das 11 horas, nem justificou o seu atraso, nem tampouco compensou esta situação de

aborrecimento imposta às famílias com um atendimento mais digno. Ao contrário, atendeu os

pacientes com a porta do consultório aberta ignorando as pessoas que estavam no corredor

para serem atendidas, expondo desta forma tanto o paciente como a família. Segundo a mãe, a

impaciência do profissional foi percebida também por Gustavo que, com a sua dificuldade na

fala, disse-lhe: “Ô mãe, o que ele tem que chegou tão doido?”

Os relatos destas experiências não fazem parte de fragmentos de alguma estória,

mas do cotidiano destas famílias que, em alguns momentos, vêem suas necessidades serem

desonrosamente atendidas e suas vidas desnudadas. São relações estabelecidas entre

desiguais, nas quais a dor, e o sofrimento, são ignorados. Do ponto de vista da equipe

Page 86: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

86

profissional, é preciso o compromisso e o empenho em atenuar estas dores, o horror destes

sofrimentos, e não a banalização destes males como sendo expressões de males menores, que

devem ser suportados, pois “uma estatística não faz chorar, e as grandes cifras da indigência

são menos comovedoras que a visão de um homem ou de uma mulher destroçados pela

carência e pela doença” (BRUCKNER, 1996, p. 257). Estamos nos referindo às famílias e não

levantando números, estamos falando de expressões claras de pessoas com necessidades

especiais em processo de envelhecimento e não simplesmente dirigindo-nos a “uma mão

tendida, uma ferida que limpamos, um organismo que reparamos” (loc. cit.). São famílias,

mas também podem ser menos que isso, quando as reduzimos apenas às suas necessidades

biológicas e, diante disto, “nunca é um igual com o qual poderíamos iniciar uma relação de

reciprocidade” (loc. cit.).

Ainda retratando a experiência da família de Gustavo, sua mãe relatou-nos que,

desde o nascimento de seu filho, tinha desconfiança de que havia algum problema, pois na sua

gestação contraiu varíola e, logo que descobriu a doença, teve que tomar diariamente 2

injeções de penicilina, por volta do 6 mês de gravidez. Diante desta importante interferência, a

mãe buscou vários atendimentos, sendo que nenhum deles diagnosticou alguma alteração no

bebê até os seus 8 meses de vida. Em algumas destas idas a especialistas, a mãe era taxada de

irresponsável e insana, pois diziam “que eu tava arrumando doença pro meu filho. Agora

uma mãe vai arrumar doença pro filho?”

Segundo os relatos da mãe, Gustavo era uma criança que aparentava ser saudável,

mas havia algo no seu desenvolvimento que inspirava mais cuidados, e foi buscando

encontrar respostas para as suas inquietações que a família foi aconselhada a procurar outro

especialista. Na oportunidade, após a realização de vários exames, foi diagnosticada a

paralisia cerebral, sendo que o profissional declarou: “Mãe, reza pra ele não ficar vegetando,

pra ele não ir regredindo e não vegetar”. A partir daquele momento, vários tratamentos

foram necessários, inclusive a administração de diferentes medicamentos: “foi ali que eu

comecei a entender o que era deficiência”. Também foi a partir deste momento que os

hábitos de vida da família, especialmente da mãe, foram transformados, inclusive levando-se

em consideração as recomendações dos profissionais, que diziam: “A senhora tem que tratar

ele como os outros filhos [...] mas quando for dormir, qualquer mexida nele, tu acorda, tu

fica alerta que pode até dar uma crise e ele pode morrer dormindo.”

Escutar as narrativas desta mãe, dar-lhe espaço, é uma tentativa de deixá-la

expressar seus pontos de vista, suas necessidades, sua forma de ver o mundo e, especialmente,

Page 87: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

87

compreender a forma como a família foi se organizando em torno deste fenômeno, como

demonstra esta genitora, que ainda hoje descansa seu corpo, depois de um dia exaustivo de

trabalho, num sofá situado na sala, a menos de 2 metros da cama de seu filho. Teme que,

dormindo em seu quarto, não possa escutar algum sussurro diferenciado de Gustavo, a

demonstrar a necessidade de um cuidado especial. Estamos falando de uma vigília

permanente, em que cada dia e cada noite demandam diferentes esforços para garantir

condições de vida a este filho.

A experiência vivenciada pela família de Gustavo nos faz pensar que todos

estamos sujeitos à dor, à doença, ao sofrimento. Porém isto, que deveria nos aproximar, nos

afasta, posto que apenas quem vivencia tal fenômeno conhece os seus meandros, a energia

necessária para suportar as vicissitudes de lidar com situações tão trágicas. Tornar públicas

estas situações, longe de pretender escandalizar, serve de alerta para que percebamos

minimamente a importância de nos mobilizar política e profissionalmente, sobretudo ao

desempenharmos a função de formuladores das políticas sociais. Mas serve também para que

possamos pensar a respeito, a fim de humanizar nossas ações e redirecionar nossos olhares,

como bem aponta Arendt (1990, p. 25):

Por mais interessantes que as coisas do mundo pareçam, por mais profundamente que possam nos emocionar e estimular, elas não se tornam humanas para nós, até o momento em que possamos discuti-las com nossos semelhantes. Tudo o que não pode ser objeto de diálogo pode muito bem ser sublime, horrível ou misterioso, mas não é verdadeiramente humano. Humanizamos o que se passa no mundo e em nós, quando falamos, e com esse falar aprendemos a ser humanos.

A vivência de negação da mãe e as informações advindas de seu contexto

reportam-nos à sua experiência de ter sua fala desrespeitada, da palavra não compartilhada e

não ouvida, resultando sobremaneira na “eliminação do direito de fazer de nossa própria dor

algo inteligível, algo em relação ao qual possamos ter uma opinião e um julgamento”

(CAPONI, 2000, p. 40). A inobservância desta vivência familiar resulta em posturas tirânicas

de intervenção, utilizando a máscara de que

sempre atuam em nome e pelo bem daqueles a quem dizem auxiliar, conhecem esse bem de um modo claro e distinto, mesmo antes de ser solicitado [...] prescindem de argumentos, excluem as palavras e emudecem qualquer diálogo (Ibid., p. 69).

Somente quem vivencia situações tão díspares pode conhecer o âmago do que é

ser pai, mãe, irmã(o), enfim, familiar de uma pessoa com necessidades especiais agora

Page 88: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

88

também em processo de envelhecimento. Tais famílias enfrentam, cotidianamente, situações

absolutamente adversas, tais como a sina da ausência de expectativa de vida. Em alguns casos

pesquisados, as famílias receberam, logo após a comunicação da deficiência, a sentença de

morte de suas crianças, instalando pânico e sofrimento permanentes.

Observamos isto na família de Gustavo, cuja expectativa de vida revelada pelos

profissionais era de até 21 anos. Com o avanço da tecnologia farmacêutica, bem como da

medicina, houve uma alteração neste quadro, mas as informações dadas pelos profissionais à

família continuam desanimadoras “21 anos foi a expectativa de vida que eu dei, agora esses

16 anos a mais é tudo lucro”. O profissional ainda acrescentou: “oh mãe, se não fosse o teu

cuidado, a tua afeição, apesar do medicamento, o seu filho não viveria mais”. A mãe sente

que, por um lado, cada hora é uma vitória, uma alegria, uma superação da vida, mas, por outro

lado, desabafa que “a maior tristeza é ter um filho assim [...] eu não curei, mas tentei, fiz o

que pude”.

Outro exemplo de que a comunicação da expectativa de vida pode ser a verdadeira

gênese de toda a transformação da vida familiar, pode ser recuperado através da narrativa que

expõe o conhecimento do diagnóstico da deficiência de Clóvis. Especialmente pelo fato de

sua mãe já ter tido uma filha com o mesmo quadro clínico e que morrera com 7 anos de vida,

diante da semelhança das situações, de 7 em 7 anos a família vivia momentos de angústia e

apreensão, já que a segunda sentença significa uma dramaticidade ainda maior: a expectativa

de nova perda ao mesmo tempo em que se revive a dor passada.

Tais situações sempre levaram a família a estabelecer sua moradia em espaços

próximos a hospitais, tendo em vista a gravidade do quadro de Clóvis e a necessidade de

atendimento emergencial. Segundo a irmã, em uma das situações de crise da paralisia

cerebral, a família deixou Clóvis internado no hospital por alguns dias, numa espécie de

“redoma”, para protegê-lo e tratá-lo. Porém os profissionais não observaram muita evolução e

melhora no quadro, questionando a mãe se a mesma não preferia levá-lo para casa, pois “ele

não tem volta [...] a senhora prefere que ele morra aqui no hospital, ou leva pra casa perto

da família? [...] Com o convívio da família ele não vai ficar sozinho”. A mãe optou por levá-

lo para casa, certa de que cada hora seria uma conquista, conquista esta que perdura há mais

de 32 anos.

Outra seqüela anunciada pelos profissionais de saúde à família estabelecia que, à

medida que os ossos fossem se atrofiando, haveria uma pressão no coração, podendo ocorrer

sérios problemas cardíacos. Estes problemas ainda não se evidenciavam no quadro clínico de

Page 89: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

89

Clóvis mas, ao serem prematuramente “diagnosticados”, inequivocamente produziram

sofrimentos adicionais e totalmente desnecessários.

Estas foram apenas algumas das situações extraídas das narrativas familiares,

quanto à comunicação da deficiência, informação que deveria ser anunciada com

responsabilidade e respeito, posto que “a pessoa sujeita a uma necessidade não reclama ser

protegida. Não quer nem o olhar piedoso, nem o isolamento: ela exige poder inserir-se em

uma rede de vínculos em que seja reconhecida como um igual em orgulho e dignidade”

(CAPONI, 2000, p. 95). Afinal de contas, os profissionais envolvidos com este público

precisam entender que o outro é alguém capaz de reclamar, exigir, aceitar ou até negar a

assistência que julgamos ser a ideal e que muitas vezes “se acredita conhecer, sem sombra de

dúvida, aquilo que representa um bem para quem será assistido” (loc. cit.). É em nome desta

certeza, que, muitas vezes, os profissionais assumem uma conduta de prepotência absoluta,

que pressupõe uma obediência ilimitada dos pais, que faz sucumbir o espaço de diálogo, os

argumentos ou as razões das famílias envolvidas e prioritariamente interessadas, gerando a

total anulação do seu futuro e das suas expectativas de felicidade.

Criar este espaço de diálogo entre profissionais e famílias, especialmente no ato

da comunicação da deficiência aos familiares, exige posturas éticas da equipe de especialistas

envolvidos, pois certamente muita coisa depende do que será dito (e de como será verbalizada

a informação), na medida em que a postura da equipe refletirá nas atitudes e no atendimento

destinado a estas pessoas. Sendo assim, minimizar traumas e decodificar as informações

técnicas de forma que a família possa compreender o que significa efetivamente ter no seu

contexto uma pessoa com necessidades especiais, já economizará padecimentos

desnecessários.

É a partir dos retratos, explicitados neste capítulo por meio da fala das famílias

que pretendemos elencar algumas categorias evidenciadas ao longo da pesquisa, e que irão

contextualizar e complementar o entendimento deste fenômeno e de seus desdobramentos no

cotidiano destes grupos familiares, com características tão particulares e distintas. É nesta

direção que construiremos o próximo capítulo.

Page 90: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

90

33 AASS NNOOVVAASS TTEEMMÁÁTTIICCAASS DDAASS PPOOLLÍÍTTIICCAASS PPÚÚBBLLIICCAASS NNOO CCOONNTTEEXXTTOO DDAASS FFAAMMÍÍLLIIAASS::

CCOOMMOO PPRROOBBLLEEMMAATTIIZZÁÁ--LLAASS??

O interesse no conhecimento das famílias que possuem na sua constituição uma

pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento, deve ser percebido muito

mais como o início de um diálogo: um fazer-se conhecer exercido pelas próprias famílias,

cujas narrativas constituem na verdade a base empírica sobre a qual desenvolveu-se a

apreensão teórica desta dissertação. A decisão de apresentá-las inicialmente não foi

involuntária, até porque é uma exigência do processo de investigação conhecer os sujeitos de

nossa pesquisa. No entanto, a mera exibição, por si só, não traz nada de inovador, além de

expor o contexto de dificuldades que muitas famílias brasileiras vivenciam cotidianamente. O

desafio posto, e que nos propusemos encarar, refere-se ao intuito de qualificar as relações

familiares destes grupos, aos quais particularidade de possuírem um membro com

necessidades especiais já garante um diferencial cujas infinitas manifestações devem vir a

público, a fim de serem problematizadas como temáticas das famílias dirigidas às políticas

públicas.

Para tanto, foi necessário entrar na casa destas famílias, conhecer suas vidas, e

sobretudo prestar atenção nesta população que, na relação de troca, demonstraram singular

receptividade. Sarti (2003) diria que o fato de terem sido escolhidos para fazer parte da

pesquisa é visto como deferência e, em resposta a isto, essas pessoas abrem as portas de suas

casas, e quando não os segredos de suas almas.

Este elo de confiança, demonstrado no momento das entrevistas, denota sobretudo

uma experiência diferenciada na vida destas pessoas, pois instala a oportunidade da fala, da

verbalização de angústias e necessidades e, principalmente, de serem escutadas. As

entrevistas são a expressão ímpar do reconhecimento de sua existência por alguém que,

embora estranho ao seu mundo, partilha de preocupações que, mesmo distintas, possuem

pontos de identidade. Nesta perspectiva, “o caminho escolhido foi dar-lhes a palavra, ouvir

sua versão” (YAZBEK, 1995, p. 84).

Nesta direção, construiremos este capítulo descrevendo inicialmente o cotidiano

de lutas destas famílias, que perpassa diferentes esferas sociais, haja visto que o marco central

Page 91: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

91

dos discursos são as constantes formas de resistência e as batalhas travadas e vividas

diariamente, como se fosse necessário “matar um leão por dia, ou por minuto”.

Junto a estas reflexões, iremos pontuar, ainda neste tópico, a relevância da

compaixão neste processo. Muito além de ser caracterizada como um sentimento, a

compaixão é a sublimação e a materialização de uma virtude que, para Comte-Sponville

(1995, p. 118) é a simpatia na dor ou na tristeza, é participar do sentimento do outro. Nesta

direção, “compartilhar o sofrimento do outro não é aprová-lo nem compartilhar suas razões,

boas ou más, para sofrer; é recusar-se a considerar um sofrimento, qualquer que seja, como

um fato indiferente, e um ser vivo, qualquer que seja, como coisa.”

As famílias das pessoas com necessidades especiais travam duelos cotidianos,

pela ausência de políticas de proteção social que atendam devidamente esta população,

percebem-se como únicas responsáveis pelo cuidado dedicado a este membro, cuidado

evidenciado basicamente como de responsabilidade da figura feminina. Competem a ela o

cuidado, e a atenção dada a este membro mais fragilizado. Nesta lógica, pretenderemos

construir o tópico seguinte.

Ainda objetivando a compreensão deste fenômeno, iremos enfocar a ausência de

políticas sociais, que resulta no sentimento de desproteção como risco e em temores que estão

enredados e presentes neste universo familiar.

Trata-se de famílias cuja experiência de ter em seu convívio uma pessoa com

necessidades especiais em processo de envelhecimento já denota algo de inovador, e que

simultaneamente reflete a coragem de desafiar o novo, o diferente, o difícil. Parafraseando

Comte-Sponville (Ibid., p. 63),

a coragem não se refere apenas ao futuro, ao medo, à ameaça; refere-se também ao presente, e sempre está ligada à vontade, muito mais do que à esperança. [...] Só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende de nós. É por isso que a esperança só é uma virtude para os crentes, ao passo que a coragem o é para qualquer homem. Ora, o que é necessário para ser corajoso? Basta querê-lo, em outras palavras, sê-lo de fato. Mas não basta esperá-lo, apenas os covardes se contentam com isso.

É tentando espelhar a coragem destas famílias que potencializamos este capítulo,

sobretudo levando em consideração a motivação da compaixão nas relações estabelecidas.

Page 92: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

92

3.1 A expressão de um cotidiano de lutas

Reportarmo-nos a estas famílias significa compreendê-las na sua expressão

visceral de lutas, em que se faz necessário o hasteamento diário de uma bandeira de

sobrevivência, de resistências aos óbices impostos. Estas resistências que advém da vida

cotidiana (FALCÃO, 1987), que é heterogênea e hierárquica e que se altera em função dos

valores de uma época histórica, como também dos interesses e necessidades dos indivíduos.

Pensar desta forma é perceber que, no espectro da vida cotidiana, o indivíduo se

reproduz diretamente enquanto indivíduo e reproduz de forma indireta o complexo social. “É

na vida cotidiana que o homem aprende as relações sociais e as reproduz enquanto

instrumento de sobrevivência” (Ibid., p. 25), embora o homem não seja apenas sobrevivência,

singularidade, mas também um ser genérico. E é na “vida cotidiana, [que] este ser genérico,

co-participante do coletivo, da humanidade, se encontra em potência, nem sempre realizável”

(loc. cit.).

Nem sempre realizável, pois há fatores consideráveis que devem ser identificados

nos limbos programáveis do sistema em que vivemos e do qual fazemos parte, no qual a vida

parece reduzida ao cotidiano e este parece simbolizar um eterno retorno das desigualdades

que hodiernamente presenciamos. Isto que, em tese, nos aterroriza por configurar-se

indelével, para Netto (1987, p. 89) reporta-nos à necessidade de considerarmos que a

tomada da realidade de que a cotidianidade contemporânea é um nível constitutivo supõe a reconstrução reflexiva da sua ontologia, da totalidade concreta própria da sociedade burguesa madura. E a caça mais pertinaz das mediações é um imperativo para que a dissolução da opacidade imediata dos “fatos” cotidianos não redunde numa indiferenciação que substitui as passagens e conversões efetivas e reais que mantém tenso o tecido social.

Trata-se de reconhecer e apostar na essência humana, não como aquilo que

sempre esteve presente na humanidade, mas sim na “realização gradual e contínua das

possibilidades imanentes à humanidade, ao gênero humano” (HELLER, 1985, p. 4). Tais

possibilidades se materializam por meio dos valores que não são aniquilados, ou perdidos de

modo absoluto, por valores éticos sempre ressurgidos, num processo definido pela autora

como a “invencibilidade da substância humana, a qual só pode sucumbir com a própria

humanidade, com a história” (HELLER, 1985, p. 10). Nesta direção,

Page 93: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

93

A invencibilidade da substância e o desenvolvimento dos valores - dada como possibilidade inclusive em uma situação de desvalorização - constituem a essência da história, porque a história é contínua apesar de seu caráter discreto e porque essa continuidade é precisamente a substância da sociedade (Ibid., 1985, p.14).

Diante disto, é preciso ressaltar que não estamos aprisionados em uma regra rígida

e imutável, imposta mecanicamente pelas determinações culturais do sistema econômico. Ao

contrário, são interesses e necessidades que navegam com o decurso histórico dos processos

sociais também no cotidiano das famílias que possuem uma pessoa com necessidades

especiais em processo de envelhecimento. Afinal, o enfrentamento deste fenômeno requer da

família a superação de outras dificuldades, além das impostas pela hegemonia da cultura

mercantil, exigindo a disponibilização de uma energia adicional para gerenciar esta nova

demanda, por meio da administração da dor, do sofrimento, e da desesperança.

Não pretendemos, neste espaço, construir uma visão apocalíptica, mas sim

referendar os discursos das famílias e as situações de luta que vivenciam cotidianamente.

Situações estas, que são, muitas vezes, limítrofes e que beiram a desqualificação social

(PAUGAM, 1999) ou uma certa forma de exclusão relativa, em que até se permite analisar a

forma constitutiva e o processo no qual este segmento está inserido marginalmente, além de,

por vezes, colocá-lo como foco central e parte integrante da sociedade.

Enfatizamos estes sentimentos a priori apocalípticos, transformados em

resignação e renúncia a qualquer perspectiva de felicidade, subtraindo-os do próprio relato das

famílias, quando questionamos: quais são os seus sonhos, seus desejos, com relação àquela

pessoa? E, de uma forma quase que generalizada, obtivemos como resposta referências, ora

simbólicas, ora concretas como a da família de Pedro Henrique: “a gente não pode esperar

muita coisa. A gente sonha que ele continue bem, permaneça com saúde, já é um bom

desejo”. Ou ainda, como no relato da família de Eduardo, que não espera “mais nada, só

espero saúde pra mim e pra ele”. E também o relato da família de Rebeca, que compartilha

que “muito sonho a gente não tem, só pede a Deus saúde [...] o resto tá bom”.

Estes anseios culminam na simbolização de tarefa cumprida, e agora trata-se de

uma espera, uma vigília, pois “tudo que era pra ser feito, já foi feito [...] não tenho desejo

nenhum” (Família de Fernando).

Outra situação evidenciada refere-se à abnegação dos pais, por exemplo, em favor

da necessidade do filho, como é o caso da família de Cleide. Os genitores têm parte de seus

referenciais de vida e de valores deslocados de seu território, bem como familiares que ainda

Page 94: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

94

residem em outro município e, por isso, desejariam retornar ao local onde nasceram e onde

estão suas raízes. No entanto, reconhecem que, caso façam esta opção, sua filha ficará

desprovida de um atendimento social e educacional, pois terá rompido os vínculos

estabelecidos na Fundação Catarinense de Educação Especial, “então agora tá na hora dela

viver um pouco do jeito dela”.

Desta forma, contextualizar o sentido de tais escolhas ou da renúncia a elas exige

recategorizar a noção de família, tomada aqui como expressão máxima da vida privada, pois

trata-se do

lugar da intimidade, construção de sentidos e expressão de sentimentos, onde se exterioriza o sofrimento psíquico que a vida de todos nós põe e repõe. É percebida como nicho afetivo e de relações necessárias à socialização dos indivíduos, que assim desenvolvem o sentido de pertença a um campo relacional iniciador de relações includentes na própria vida em sociedade. É um campo de mediação imprescindível (CARVALHO, 2003, p. 271).

É no espaço da família que as dificuldades se materializam, e não é em vão que a

grande maioria dos anseios deste grupo diz respeito à saúde das pessoas com necessidades

especiais, posto que parte delas apresenta uma fragilidade e vulnerabilidade maior e

diferenciada em relação às outras pessoas, no tocante à sua condição física. Esta

particularidade está associada à própria deficiência mental que, por vezes, traz um quadro

clínico de degeneração de alguns membros, ou propicia constantes crises convulsivas que

demandam cuidados especiais. Estes cuidados têm a propriedade, inclusive, de organizar a

vida da família: em que local devem residir? Quem deve trabalhar na família? Quem terá que

cuidar desta pessoa? Todas as respostas dependem das necessidades e possibilidades da

pessoa com necessidades especiais.

Exemplo disto foi a mudança de endereço da família de Clóvis que, antes do seu

nascimento residia em uma casa própria, numa localidade considerada tranqüila pela irmã, e

que, após a constatação da deficiência, vendeu o imóvel e foi morar de aluguel numa

residência próxima ao hospital da cidade. A necessidade da mudança foi decorrente das

constantes crises convulsivas e dos episódios de pneumonia que Clóvis apresentava.

Enfim, preocupações que demandam decisões importantes, que pedem uma

atenção não momentânea da família mas, na maioria dos casos, um cuidado que perdura sem

cessar e tende a aumentar ao longo dos anos, posto que não há uma perspectiva de

independência deste sujeito; ao contrário, muitos tornam-se mais dependentes de cuidados

especiais.

Page 95: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

95

Observamos esta dependência no relato da família de Pedro Henrique, cujo

quadro de crises convulsivas iniciou-se em tenra idade (apenas 1 ano de vida): “ele dava

convulsões fortíssimas, eu ia pro pronto socorro, ficava o dia todo lá [...] Aí começou a luta,

não parou mais”. A partilha da dor pelos membros da família também é verificada, pois “teve

uma noite que a gente ficou com ele no hospital, a noite toda. Andamos muito de hospital a

hospital, o Pedro Henrique tinha muitas convulsões, sofria muito, e nós também”.

Deste modo, a ação destas famílias responde a uma reflexão ético-política que

eqüivale à análise e à prática direcionadas às emoções e aos anseios, ou seja, é forçoso

considerar que a humilhação, o medo, o sofrimento, e o ódio, como também a felicidade, são

a entretela da organização deste grupo e da moralidade (SAWAIA, 2003). Neste sentido, para

Heller (1985, p. 5-6), a moral

é o sistema das exigências e costumes que permitem ao homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior - em necessidade moral - a elevação acima das necessidades imediatas (necessidades de sua particularidade individual), as quais podem se expressar como desejo, cólera, paixão, egoísmo ou até mesmo fria lógica egocêntrica, de modo que a particularidade se identifique com as exigências, aspirações e ações sociais que existem para além das casualidades da própria pessoa, “elevando-se” realmente até essa altura.

A moralidade motiva e fundamenta muitas ações e respostas destas famílias, seja

no interior dos seus lares, seja no embate direto da luta cotidiana por serviços dignos. É o caso

da situação relatada pelos familiares de Clóvis que, numa das circunstâncias de crise

convulsiva, e febre alta, em razão da pneumonia, foram tratados numa instituição hospitalar

com descaso e desrespeito, especialmente pelo fato de não proporcionarem as condições

adequadas para serem atendidos. Deparam-se com precariedades múltiplas, inclusive de

locomoção e de permanência na fila de espera para ser atendido. A equipe da instituição

ordenava que Clóvis deveria ser colocado numa cadeira, o que era impossível, tendo em vista

a deficiência do mesmo, que possui um ângulo de abertura nas pernas que inviabiliza o sentar,

em qualquer lugar, sendo imprescindível a utilização de uma maca.

Ao relatar esta situação, a irmã de Clóvis disse-nos que, quando necessita destes

serviços, está à mercê do acaso, que define se a pessoa responsável pelo atendimento “é

simpática, se tá de bem com a vida”, como se o direito de ser atendido dignamente fosse

subordinado ao estado de humor ou espírito de quem está à frente destes atendimentos.

Estamos retratando contra-valores, já que Heller (1985, p. 5) demonstra que valor é uma

categoria ontológico-social e, como tal, algo objetivamente social. “É independente das

Page 96: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

96

avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de

relações e situações sociais”, situações estas adensadas pelas dificuldades criadas pela

ausência de serviços públicos especializados, como observamos no relato da família de

Cleide. Eles moravam num sítio, onde não havia nenhum tipo de recurso para tratar de sua

filha, nem tampouco havia transporte para locomoção desta família em busca de atendimento

adequado. “Eles mandavam a gente pra cidade, mas quem tinha condições de fazer isto?

Ficar sem trabalhar? Nós éramos pobres, e naquela época era tudo mais difícil”.

Episódios semelhantes foram vivenciados pela família de Gustavo. Não foram

raras as situações em que a genitora teve que travar embates para conseguir ser atendida de

forma minimamente condizente com a necessidade do filho.

Em função das crises convulsivas, a genitora, instruída pelo médico, procurava

constantemente o hospital, pois o médico pretendia pesquisar os efeitos destas constantes

crises. Ao chegar na instituição hospitalar, mesmo obedecendo as recomendações do médico,

a genitora era impedida de entrar no consultório, e tinha que travar constantes discussões, para

ver os direitos de seu filho atendidos, “o que eu lutei [...] para defender o meu filho, eu viro

numa fera”.

A genitora, contando estas histórias, lembra, com pesar, que foram lutas travadas

diariamente e nas mais diversas esferas: no hospital, e também no transporte coletivo, em que

tanto o motorista como o cobrador, por exemplo, não tinham a sensibilidade ou a capacidade

de compreender que, carregar no colo uma criança de 11 anos, cujo corpo não tem os mesmos

movimentos e a agilidade de outra criança, despende um cuidado diferenciado e uma atenção

redobrada. “É um teste de paciência, de fé e de amor”, como desabafa a genitora.

Estes testes são repostos em todas as situações, a exemplo da família de Gustavo,

cuja narrativa, retratada aqui, contribui para demonstrar que o cotidiano destas famílias não é

singular nem inédito mas, ainda assim, é sobretudo especial, seja pela coragem e dedicação,

seja pelos imensos e inauditos desafios. São exemplos de dedicação, como a necessidade de

realizar trocas de fraldas, visto que Gustavo não possui o controle dos esfíncteres, “porque

eles não pedem [...] eles fazem na fralda, e tu tens que limpar [...] Eu já não sinto mais

cheiro, já não sinto mais nojo, mais nada, já limpo [...] boto a fralda no tanque, vou lavar as

minhas mãos, passo álcool, e vou pra frente, a gente acostuma”. Esse ritual diário da genitora

foi naturalizado como uma tentativa de levar a vida pois, se esta atividade não fosse

responsabilidade dela de quem seria?

Page 97: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

97

A preocupação de alimentar Gustavo que, em momentos de crise convulsiva,

vomitava ou não se alimentava adequadamente, sendo necessária a complementação com

vitaminas para sua sobrevivência, é outro tema aparentemente banal, mas que exige grande

mobilização da mãe. Requer recursos subjetivos e objetivos que demandam um esforço sobre-

humano e que dependem exclusivamente desta família, da maneira como esta tem de superar

seus óbices, suas limitações.

Os óbices preenchem os dias e as noites. Noites em que se vela o sono do filho,

seja para mudar de posição na cama, em função da escoliose e para não apresentar escaras,

seja em atenção à possibilidade de uma crise convulsiva. A genitora relata que pernoita no

sofá da sala, ao lado do quarto do filho, para que em “qualquer movimentinho, possa socorrê-

lo. Eu fico com o olho fechado, mas não durmo”. Isso acontece todos os dias, há mais de 37

anos.

O estado de privação estabelecido com a impossibilidade de dormir estende-se ao

fato de não poder ficar doente, nem experenciar momentos de prazer, e diversão, como as

festas, selecionadas e, na maioria das vezes, dispensadas pela mãe. Com relação ao primeiro

fato - a ausência do direito de ficar doente - houve uma situação em que a genitora sofreu um

acidente e quebrou o braço e, quando compareceu a uma consulta com Gustavo, o profissional

disse-lhe que ela deveria prestar muita atenção ao caminhar nas ruas, pois “tu não pode ficar

doente, quem irá cuidar do teu filho?”

A dinâmica da família, como o trabalho remunerado e temporário desenvolvido

por esta mãe, funciona dentro das necessidades de Gustavo, do horário em que o mesmo está

na FCEE, ou ainda de forma a permitir que haja um contato freqüente, seja para realizar a troca

de fraldas, seja para dar o café da tarde.

A ausência do homem/provedor (SARTI, 2003, p. 103) faz com que o trabalho

desta mulher, desta mãe, assemelhe-se ao masculino, que configura a potencialidade de

realização e afirmação individual, pois adquire “um sentido particular de honra, portanto, de

afirmação de si enquanto indivíduo, porque, através do trabalho, ela tem a oportunidade de

reparar o ato condenado ou readquirir seu orgulho e amor próprio”, ao provar que pode cuidar

de seu filho, e fazê-lo dignamente.

Observamos que a ausência de condições materiais torna-se um obstáculo a mais a

ser enfrentado por estas famílias, ao passo que, nas realidades em que havia condições

financeiras de buscarem outras alternativas de atendimento, este processo não foi tão árduo,

ao menos no aspecto da existência de recursos, como foi o caso de Armando. Sua família

Page 98: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

98

recorreu a um atendimento especializado em São Paulo durante 20 anos, tendo em vista que

semanalmente os genitores viajavam para este estado em busca da pseudo-cura. Somente com

a criação da Associação de Pais dos Excepcionais - APAE, em Florianópolis, a família optou

por dar continuidade ao atendimento neste município.

Não pretendemos fazer um paralelo entre os que têm recursos financeiros e os que

não têm, como instrumento para avaliar e dimensionar o processo de vivência desse fenômeno

no contexto das famílias, pois compreendemos que isto não se configura como um

delimitador de águas. Mas acreditamos que a condição de vulnerabilidade econômica pede o

investimento de uma energia adicional na superação destas mazelas.

Um outro aspecto observado foi o da família de Rebeca, no tocante à

agressividade da mesma, posto que os familiares buscaram outras formas de atendimento

quando viram a sua mãe ser agredida fisicamente. “Enquanto ela não agredia a mãe, a gente

foi deixando; no momento que ela começou a agredir a mãe, a gente começou a ficar

preocupado”. Em uma das situações, Rebeca “tirou tudo de dentro do quarto dela e quebrou,

jogando as suas coisas na rua [...] ninguém conseguia segurar ela, achei que ela iria matar a

mãe”.

A busca da família por um atendimento especializado se deu em razão de se

sentirem ameaçados fisicamente e de desconhecerem qual seria a forma adequada de resolver

a situação. Ressaltamos este caso para demonstrar que nem toda pessoa com deficiência

apresenta a necessidade de uma intervenção psiquiátrica, e que o caso da Rebeca, no universo

pesquisado, é o único. Contribui, assim, para desmistificar a crença de que os deficientes

mentais são incapazes de convívio social. Muitos deles ficam restritos ao atendimento

neurológico no que tange à demanda de sua condição especial. Diante disto, cai por terra a

idéia de equiparar deficiência mental e doença mental.

Para isto, precisamos reconhecer não apenas a relevância do atendimento

direcionado ao grupo familiar, mas também a importância de oferecer uma atenção singular

que aponte em duas direções:

por um lado as especificidades de cada família considerando a história, a estrutura, a dinâmica, bem como a inserção das famílias no contexto social. Por outro lado deve-se avaliar a realidade e as possibilidades das famílias para usufruírem de atenção que lhes são propostas (MIOTO, 1997, p. 26).

Desnudar a realidade das famílias das pessoas com necessidades especiais em

processo de envelhecimento, nos reporta à necessidade premente de compreender também as

Page 99: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

99

motivações das relações sociais estabelecidas, inicialmente, no espaço privado da família, em

que o cuidado com este membro, não raro é fomentado pela moral29, pela missão de zelar por

este ser.

A análise das narrativas impôs, nesse sentido, um outro tema adicional, que é o fio

condutor da relação familiar com os indivíduos com necessidades especiais, ou seja, a

compaixão. Em torno dela é que se unificam as condutas, as expectativas, enfim, que se

confere sentido a esta contingência.

Ter um filho deficiente mental e/ou com severas limitações físicas decorrentes

dos quadros das síndromes e da paralisia cerebral, obrigatoriamente suscita profundas

motivações expressadas nos relatos dos familiares, que evidenciam, ao mesmo tempo, a

piedade, a compaixão, e a tristeza, e desenham todo o processo de destituição e abandono

falas que inicialmente apontam o ressentimento e a tristeza pelo nascimento desta criança e

que, posteriormente, demonstram a aceitação de que isto lhes estava reservado. Observamos

por exemplo esta informação na família de Rebeca: “a gente ficou triste, mas o que a gente

podia fazer?”

Processo semelhante foi observado na família de Armando, mas com uma nuance:

a contingência transformou-se em necessidade. Sua genitora concebe o nascimento do filho

como uma missão de Deus, como se ela necessitasse disto, pois do contrário sua vida seria

muito fácil, em virtude da família ter excelente situação financeira. “É porque, assim, eu

tinha que ganhar ele, Deus viu que eu tinha que ter uma coisa, né? Que eu não ia ter essa

vida tranqüila, eu precisava ter algum tipo de trabalho”. Nas palavras da genitora,

evidenciamos que há uma justificativa para o nascimento de seu filho, pautada numa forma de

pagamento ao sagrado pelos demais bens que possui. Era necessário este infortúnio, a fim de

ficar em paz consigo mesma e na relação com o divino.

A genitora acrescenta ainda a este relato a concepção de sua outra filha, que certa

vez disse: “Mamãe, se a senhora não tivesse o Armandinho, a senhora tava num mar de

rosas”. Esta compreensão da irmã de Armando representou, na vida de sua mãe,

29 Há que distinguir a esfera da moralidade da ética, de forma que sejam identificados os elementos pertencentes a um campo e outro, seja porque são efetivamente distintos, seja porque expressam muitas noções fronteiriças, razão de ambigüidades e contraditoriedade. Valendo-se da distinção feita por Hegel, Paiva (1996, p. 105-6) afirma que “A ética constitui o momento objetivo da vivência e da experiência dos valores; consiste, assim, no conjunto de valores que são criados por determinada comunidade. Nesse sentido, a moral expressaria o momento subjetivo de um comportamento ético; em outras palavras, moral seria a capacidade do indivíduo de formular suas próprias opiniões e pautas de comportamento (com base nos valores éticos estabelecidos) e optar por aquele que considerar mais correto e justo”.

Page 100: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

100

ressentimento e decepção diante dos demais familiares, sentimentos materializados na

seguinte frase: “Tu imagina, foi a minha própria filha que disse isso, imagina os outros”.

Com tênues diferenças, este processo de inércia a respeito do que fazer também

foi registrado na família de Gustavo. A sua avó materna disse para a mãe: “se o médico disse

que ele não iria ficar bom mesmo, porque tu ainda vai te matar, fazendo fisioterapia, dando

remédio?” A genitora, em contrapartida, justificou suas ações através do valor da vida de seu

filho, visto que “pelo meu filho, a gente dá até a vida, a gente vai fazer tudo o que é possível,

a gente quer ver ele junto da gente, mas não quer ver ele no cemitério”.

São embates e justificativas travadas no interior das famílias, que ora clamam pelo

bem-estar desta pessoa, ora sentem-se desmotivadas em continuar neste contexto de lutas, por

se sentirem desamparadas.

Reiteramos que não objetivamos, na construção destas reflexões, avaliar os

procedimentos adotados pelas famílias com relação a estes sujeitos, nem tampouco apontar

uma escala de valores entre erros e acertos. Pretendemos, isso sim, traduzir as expressões

contidas no cotidiano dessas famílias e que por vezes nos causam constrangimentos e nos

motivam a atitudes contraditórias: ora somos movidos pelo sentimento da piedade, ora

mobilizados pela virtude da compaixão30.

A reação emocional das famílias e indivíduos com necessidades especiais aos

desafios cotidianos é apenas fruto da motivação subjetiva do sentimento de piedade, e não

chega a sugerir mudanças relevantes que possam impactar e reorientar as condutas

profissionais e/ou não o estabelecimento de um padrão de qualidade para os serviços públicos

de apoio, tratamento e proteção para as pessoas com necessidades especiais e suas famílias,

no âmbito das políticas públicas. Como bem distingue Comte-Sponville (1995, p. 118):

A piedade é uma tristeza que sentimos diante da tristeza do outro, o que não salva esta, que continua, nem justifica aquela, que se acrescenta a esta. A piedade apenas aumenta a quantidade de sofrimento no mundo, e é isso que a condena. Para que acumular tristeza sobre tristeza, infelicidade sobre infelicidade?

30 O tema da compaixão é de grande complexidade no debate filosófico, portanto sua discussão extrapola em muito os objetivos dessa dissertação. Entretanto, vale sinalizar que as relações aqui apresentadas não se filiam à tradição liberal, que é demarcada por Comte-Sponville (1995, p. 118) nos seguintes termos: “Dos estóicos a Hannah Arendt (passando por Spinoza e por Nietzsche), seria infindável evocar os críticos da compaixão ou, para utilizarmos a palavra geralmente empregada por seus detratores, da piedade”. Caponi (2000) é partidária da crítica à compaixão e, embora suas reflexões tenham contribuído em diversos momentos para análise do estudo em tela, neste tema as conclusões não foram partilhadas.

Page 101: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

101

No território da ambivalência entre sentimento e virtude, onde a compaixão

“encontra uma parte de sua fraqueza e o essencial de sua força”, Comte-Sponville (Ibid., p.

120) indaga: “Não poderá existir também uma espécie de compaixão, senão alegre, pelo

menos positiva, que seria menos sofrimento suportado do que disponibilidade atenta, menos

tristeza do que solicitude, menos paixão do que paciência e escuta?”

Vale lembrar, como bem alerta o autor, que embora a compaixão seja ao mesmo

tempo sentimento e virtude, há que distingui-la da piedade sem esquecer seus fundamentos

morais, “para não a rejeitarmos tão depressa assim” (Ibid., p. 115). Sua recomendação aponta

que podemos ler nos dicionários que o contrário de compaixão é “dureza, crueldade, frieza,

indiferença, secura de coração, insensibilidade” (loc. cit.) e que, portanto, “A vida é difícil

demais e os homens são infortunados demais para que esse sentimento não seja necessário e

justificado”.

Argumentando contra os que pretendem nos levar a repugnar a compaixão e a

piedade, reconhece:

Como se não fosse o nosso desejo mais vivo, mais natural, mais espontâneo nos livrarmos dela! Quem não se fartaria do seu próprio sofrimento? Quem não preferiria esquecer o dos outros ou ser insensível a ele? [...] Viveríamos melhor sem a piedade, pelo menos os que vivem bem viveriam melhor? Mas esse conforto é a finalidade? [...] A compaixão se opõe diretamente à crueldade, que é o mal maior, ao egoísmo, que é o princípio de todos (COMTE-SPONVILLE, 1995, p. 122).

Reconhecida em seu atributo de virtude ética (e portanto não apenas como

manifestação equivalente à piedade), a compaixão se nutre da razão, fundamentalmente.

Desta forma, “só tem sentido entre iguais, ou antes, e melhor, ela realiza essa igualdade entre

aquele que sofre e aquele (ao lado dele e, portanto, no mesmo plano) que compartilha do seu

sofrimento” (Ibid., p. 127 - grifo do autor).

Pressupondo a igualdade como parâmetro, a compaixão não existe sem respeito,

sem o reconhecimento da equivalência de direitos e da justeza dos seus princípios, ainda que,

como afirma Kant, não seja um dever senti-la. Ainda assim é dever de todos “desenvolver em

si a capacidade de senti-la” (apud COMTE-SPONVILLE, 1995, p. 128). Esta recomendação é

oportuna sobretudo para os profissionais que lidam com a problemática da pessoa com

necessidades especiais, uma vez que, ao recusarem a piedade, considerada depreciativa ou

insultante, acabam por perder a capacidade de compaixão. Esta recusa a piedade e, em

conseqüência, pode levar a atitudes de indiferença, desrespeito, alheamento, prepotência e

desprezo. Nesta perspectiva, Jurandir Freire (2000, p. 79 - grifo do autor) nos explica que:

Page 102: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

102

o alheamento consiste numa atitude de distanciamento [...] de desqualificação do sujeito como ser moral. Desqualificar moralmente o outro significa não vê-lo como agente autônomo e criador potencial de normas éticas ou como um parceiro na obediência a leis partilhadas e consentidas ou, por fim, como alguém que deve ser respeitado em sua identidade físico-moral [...] diria que a conduta indiferente corresponde a um estado psíquico em que a impiedade não é reconhecida como tal [...] No estado de alheamento, o agente da violência não tem consciência da qualidade violenta de seus atos.

Tal conduta pode ser identificada no depoimento da família de Pedro Henrique

acerca da primeira intervenção profissional, que desmotivou qualquer sentimento de

esperança com relação ao desenvolvimento da criança, posto que, após passar por uma junta

de profissionais da área da saúde, receberam a informação de que Pedro Henrique não iria

caminhar, nem tampouco sentaria. Contrariando as expectativas, após um ano de trabalho

intensivo em várias sessões de fisioterapia, Pedro Henrique começou a andar e conseguia

sentar-se.

Romper com a cultura da impiedade e da indiferença requer a combinação de uma

ação de Estado de novo tipo, que reconheça o direito e que ofereça a proteção especial de fato,

aliada à transformação radical na atitude dos profissionais, no que se refere à impregnação do

sentido da solidariedade. Comte-Sponville (1995, p. 128) é incisivo quando afirma que:

A compaixão, como a generosidade, pode assim justificar, por exemplo, que se lute pelo aumento dos impostos, e por sua melhor utilização, o que seria sem dúvida mais eficaz (e para muitos de nós mais oneroso, logo mais generoso!) Isso não nos dispensa, por outro lado, de termos para com os pobres ou excluídos uma atitude de proximidade fraterna, de respeito, de disponibilidade à ajuda, de simpatia, em suma de compaixão - a qual, aliás, pode se manifestar também, pois a política não basta a tudo, por uma ação concreta de benevolência, no sentido de Spinoza, ou de solidariedade. Cada um faz o que pode nesse sentido, ou antes, o que quer, em função de seus meios e do pouco de generosidade de que é capaz. O ego comanda e decide. Mas não sozinho, e é isso que significa a compaixão.

Como compromisso ético que fundamenta o conhecimento, a intervenção

profissional deve conter e expressar o apreço pelo público e por suas necessidades, seja qual

for o demandante ou a natureza da problemática em questão. Neste sentido, precisamos

potencializar o cotidiano destas famílias, a fim de que não sejam meras reprodutoras do que já

está posto e erroneamente caracterizado como definido e irremediável, visto que suas

estruturas, que foram consideradas essenciais, podem ser submersas nas profundidades, “para

aí continuarem uma vida inessencial do ponto de vista social global [enquanto] outras se

Page 103: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

103

elevam, passando da inessencialidade à significatividade” (HELLER, 1985, p. 3).

Compreendemos, no entanto, que a superação das situações de dificuldade, não está

diretamente associada ao simples desejo da família, mas também a uma necessidade elencada

e privilegiada social, econômica e culturalmente, sendo elas “os grandes túmulos da história,

mas igualmente seus berços” (loc. cit.). Diante disto,

Não podemos conhecer a meta da história, nem sua necessidade (se interpretada sem as alternativas), caso em que sua representação seria teleológica. Mas podemos estabelecer a possibilidade de um subseqüente desenvolvimento dos valores, apoiar tal possibilidade e, desse modo, emprestar um sentido à nossa história (HELLER, 1985, p. 15).

É nesta direção que o cotidiano destas famílias deve ser resignificado, para que

ressurjam outras alternativas como, por exemplo, a questão da designação de um cuidado que

não esteja apenas sob a responsabilidade da figura feminina da família, posto que isto poderia

ser compartilhado por outros familiares, bem como com a presença efetiva do Estado como

legitimador da garantia dos direitos destinados à população.

Trata-se, nesta direção, de permitir histórias diferenciadas como as presenciadas

na família de Clóvis, em que o maior receio da mãe era falecer e repassar este cuidado a

quem? Quem poderia substituí-la nesta missão?

O processo entre a doença e o falecimento desta mãe foi vivenciado de forma

traumática pela família de Clóvis: de um lado estava a genitora, que intercalava momentos de

lucidez e senilidade, na preocupação de quem seria responsável pelos cuidados com o seu

filho. E, de outro lado, a família, que precisava reordenar a organização dos membros, em

virtude da necessidade deste indivíduo.

Foram momentos de dor relatados pela família, posto que a mãe era informada

constantemente de que este indivíduo não seria desamparado, visto que “a missão é da

senhora, mas se um dia acontecer algo com a mãe, nós vamos ter que assumir esta missão

[...] Tudo que a gente podia ter feito por ela foi feito, e ela foi tranqüila com a missão dela

pronta, deixando pra família esta herança”.

Herança que sobrecarrega a família, em razão da ausência efetiva do Estado na

viabilização e concretização de políticas públicas direcionados a esta população. Herança que

recai de forma mais freqüente sobre a figura feminina, tendo em vista que esta

problematização, a da designação da figura feminina como sendo a pessoa naturalmente

escolhida para realização dos cuidados, será o tópico que construiremos em seguida.

Page 104: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

104

3.2 O cuidado como responsabilidade feminina

A pretensão de realizarmos uma pesquisa cujo sujeito central é a família, em tese,

já aponta um grande desafio para o pesquisador, no tocante à observação dos papéis

identificados neste espaço privado. Papéis que não são cristalizados, mas tomam diferentes

dimensões, conforme a demanda suscitada e imposta à família. No entanto, compreendemos

que, mesmo tendo como motivador para a alternância de papéis a realidade social, há fatores

culturais e históricos que desenham simultaneamente a elaboração das novas atribuições.

O objetivo de identificar estes papéis junto às famílias que possuem uma pessoa

com necessidades especiais em processo de envelhecimento visa cotejar a designação do

cuidado que, no contexto pesquisado, parece restrito à responsabilidade feminina. Relatos

evidenciaram que o fator gênero, por si só, bastou para determinar quem iria cuidar deste

membro familiar.

Neste sentido, precisamos compreender que a materialização do cuidado deu-se de

forma processual, já que a mulher, desde cedo, vem tendo sua personalidade construída com

base nas noções de relacionamento, ligação e cuidado, o que significaria uma

responsabilidade maior da mulher quanto à manutenção das relações sociais e ao papel de

prestadora de serviços destinados aos outros (LYRA, 2003).

Num primeiro momento da história, segundo Muraro (1994), estas situações não

eram identificadas, posto que não havia a cisão entre público e privado, e os seres humanos

organizavam-se dentro de uma lógica da partilha e da solidariedade, na qual o cuidado das

crianças, por exemplo, era compartilhado pelo grupo. Neste período da história, os papéis de

homens e mulheres não eram hierarquizados, e a mulher era especialmente valorizada, tendo

em vista que era por meio dela que se oportunizava a geração da vida.

No transcurso da história, a necessidade do homem sair em busca do alimento por

meio da caça fez com que as divisões de trabalho ficassem mais delimitadas e,

simultaneamente, a força física passou a determinar a supremacia masculina, em razão da

subsistência (RAMIRES, 1997). Ou seja, competia ao homem o espaço público da rua e à

mulher a permanência no espaço privado, que necessitava de cuidados e de um ordenamento

moral. Nesta direção,

Coube ao homem a não-participação em qualquer situação de cuidado; ao contrário das mulheres, o âmbito de atuação masculina deu-se no público,

Page 105: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

105

exigindo destes uma postura de enfrentamento de riscos e obstáculos. Seu papel seria o de produzir e administrar riquezas, garantindo o sustento familiar, além de garantir segurança e valores morais para a família. [...] Essa polarização entre homens e mulheres e seus respectivos espaços de atuação configuraram uma relação de dominação/subordinação que ocasionou um “enquadramento” e a conseqüente limitação do poder de participação feminina nas decisões sócio-políticas, assim como a supressão da figura masculina como fonte de cuidado (LYRA, 2003, p. 82).

Esta contextualização do cuidado não se refere apenas a um tempo passado; ao

contrário, evidenciamos isto nos relatos familiares que, não raras vezes, faziam menção à

importância da irmã mais velha como substituta dos cuidados da genitora, no momento em

que esta vir a faltar.

No relato da família de Armando, observamos que a rotina diária é definida em

razão das suas necessidades; o horário da mãe dormir, acordar, enfim, tudo é orquestrado

conforme a demanda do filho. Estamos, neste caso, nos referindo a uma mãe cuja idade é

superior a 82 anos e que, no seu discurso, expressa a angústia da incerteza de quem irá

assumir o seu papel posteriormente, assumi-lo de fato, integralmente, com todos os cuidados e

altruísmo que sempre lhe foram peculiares. Ou ainda, o pesar de não poder contar com uma

outra figura feminina, para repassar a responsabilidade da genitora com relação aos cuidados

dispensados a pessoa com necessidades especiais.

Percebemos isto especialmente na família de Gustavo, em que a genitora

verbaliza, entre lágrimas, sua maior frustração: “porque, se eu tivesse uma filha... Irmã

sempre já é outra coisa, iria com certeza cuidar de Gustavo. Esta é a minha maior tristeza, a

de não ter tido uma filha mulher. O meu filho é muito querido, mas tu sabes, ele é homem”.

Diante disto, não podemos restringir a discussão acerca do cuidado como sendo

algo pontual e isolado, mas compreendê-la no seu paralelo com o mundo feminino, motivado

maciçamente pela mídia que, por meio das propagandas de novas bonecas, e casinhas,

incentiva as meninas desde cedo a terem habilidades no tocante ao cuidado com as crianças,

além do espaço físico da casa. Em contrapartida, aos meninos fica designado o espaço da rua,

sendo eles incentivados com brincadeiras que, na maioria das vezes, exigem habilidades

físicas, além de gerar um certo tipo de competição em que o enfrentamento de riscos aparece

como algo natural e desafiador. Com esta naturalização de papéis, percebemos que há uma

indissociada relação entre gênero feminino e cuidado. Por meio do exercício da maternidade,

o cuidado foi “naturalizado como ‘instinto feminino’, como instinto materno" (Ibid., p. 85).

Page 106: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

106

Desta maneira, compreender a noção de cuidado é associá-la à dimensão do

universo feminino, da construção de uma ética feminina em que o homem, na maioria das

vezes, continua sendo poupado das ações de cuidado, como também se exclui desta demanda.

Nesta perspectiva, a mulher/mãe assumiu a figura de proa (SOUZA; TAKASHIMA,

1997), seja no estabelecimento e manutenção de redes de sociabilidade e solidariedade, seja

no universo cotidiano da reprodução. Compete a ela a maximização dos parcos recursos

disponíveis, transformando-os em bens e serviços, em prol do atendimento das necessidades

dos membros da família. Ou ainda, quando a mulher tem um vínculo empregatício, seu tempo

livre fica organizado conforme a demanda do lar, seja na manutenção de um espaço ordeiro,

seja na educação e cuidado dos filhos e do companheiro, visto que raramente esta figura

participa dessas atividades.

Um outro fator que Sarti (2003) aponta, refere-se à vulnerabilidade da mulher em

relação ao mundo externo que, na maioria das vezes, é mediado pelo homem. Para a autora,

assumir o papel masculino de provedor não se configura necessariamente como um problema,

posto que a mulher está acostumada a trabalhar; porém, o grande desafio é manter a dimensão

do respeito, legitimada apenas pela presença masculina. Isto significa dizer que, "mesmo nos

casos em que a mulher assume o papel de provedora, a identificação do homem com a

autoridade moral, a que confere respeitabilidade à família, não necessariamente se altera”. É

como se a aprovação da inserção feminina no mundo público, fosse sacramentada pela

presença do homem.

Observamos este paralelo na família de Gustavo, em que a genitora, viúva, tem

um dos filhos como sustentáculo, como o intermediador entre o seu mundinho privado, e a

sua inserção no espaço público. A mãe trabalha, luta para garantir para Gustavo melhores

condições de vida; no entanto, embora o esforço seja unicamente seu, ele tem uma outra

constatação, um outro valor, quando pode contar com a figura masculina de seu filho.

Atrelado a esta complexidade do papel da mulher/mãe, ainda está a figura da

pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento, no caso específico desta

pesquisa, posto que a dimensão de sua condição especial já exige outras estratégias de

sobrevivência e de cuidados que, na maioria das vezes, fica sob a responsabilidade da genitora

ou de uma substituta. Exemplo disto encontramos na família de Fernando, na qual após o

falecimento dos pais, a irmã mais velha ficou responsável pela manutenção da vida deste

familiar, mesmo possuindo outros irmãos: “homem já é mais difícil cuidar. Eles até vêm fazer

visita e tudo, mas fui eu que fiquei com ele, não dava pra contar com os meus irmãos”.

Page 107: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

107

Reportamo-nos a Hannah Arendt (1983) para justificar o relato da irmã, tendo em

vista que a família se constitui como um universo de relações diferenciadas e as alterações,

motivadas interna ou externamente, atingem de modo distinto cada uma dessas relações, e

cada um de modo particular. Ou seja, a existência de uma pessoa com necessidades especiais

no âmbito da família impôs aos demais familiares a necessidade de responder a este

fenômeno, e isto ocorreu de forma diferenciada para cada membro.

Qualificando estas argumentações, Sarti (2003, p. 20) problematiza que um fator

preponderante e determinador destas posturas diz respeito à questão moral, já que há algumas

renúncias em favor do outro. Neste sentido, “a dificuldade aparece como uma incongruência

em seu universo moral, onde os elos de obrigações em relação a seus familiares prevalecem

sobre os projetos individuais”.

A concepção moral da família, corre paralelamente a esse processo: de um lado,

está o homem, que representa a autoridade, embora não cumpra muitas vezes o seu papel e, de

outro, a mulher, que acaba tendo intensificado o seu papel ativo nas decisões familiares. Isto

que, em parte, significa um avanço no espaço da mulher, demonstra ademais a não

modificação dos papéis masculinos, o que sobrecarrega de tal modo o cotidiano destas

mulheres que, nesta pesquisa, estão representadas pela mãe, pela irmã e pela sobrinha destes

sujeitos. É diante dele, do homem, "que socialmente tem sobre ela uma autoridade que não se

justifica a seus olhos, [que] ela exibe sua disposição de se virar, de não precisar mais dele,

como uma vingança, reiterando o fracasso dele e a frustração de ambos” (Ibid., p. 72).

Segundo Lisboa (2003, p. 124), não obstante as conquistas garantidas pelas

mulheres, bem como as mudanças ocorridas nos papéis de gênero, de uma forma geral, “a

estrutura das unidades domésticas ainda discrimina a mulher e a mantém numa condição de

subalternização, quer dentro de casa, quer no domínio público”.

Em muitas situações, são as mulheres que assumem sozinhas todas as

responsabilidades da casa, inclusive as despesas, o que é caracterizado como a “feminização

da pobreza”. São mulheres cujo fardo é demasiadamente árduo, conforme categoriza

Friedmann (apud LISBOA, 2003, p. 125), em três dimensões:

fisicamente, em termos de puro gasto de energia necessária para cumprir o trabalho diário; psicologicamente, pela constante ansiedade para resolver os problemas da subsistência diária, do isolamento social e da luta quase constante que as mulheres empreendem com os homens; e, materialmente, em termos de produzir o que a unidade doméstica necessita para sobreviver.

Page 108: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

108

Podemos observar a materialização disto no discurso da genitora de Gustavo que,

relatando um episódio em que teve que acompanhar o seu filho em uma internação hospitalar,

desabafou: “quando ele tinha 12 anos, precisou ficar internado, e eu fiquei doze dias e noites

ao seu lado, sentada numa cadeira. Fiquei toda inchada. Só uma mãe para fazer isto mesmo,

sem ninguém para te substituir”.

Compreender isto é analisar o contexto das famílias, que atualmente estão

configuradas de uma forma diferenciada, já que as redes de parcerias entre Estado e sociedade

têm apresentado uma proposição nostálgica. Ou seja, há uma supervalorização da família e da

sociedade, no tocante à necessidade de assumirem sozinhas os cuidados diretos junto a

crianças, idosos debilitados, enfermos e, nesta pesquisa especificamente, as pessoas com

necessidades especiais em processo de envelhecimento, posto que, para isto, o Estado devolve

a estas esferas o protagonismo que havia retirado delas há 50 anos.

Tal proposição esquece que a família mudou e que os valores e as circunstâncias que mantinham a mulher presa ao lar, para assumir estes encargos, alteraram-se sensivelmente. Hoje em dia, a realidade revela que a maioria das famílias é chefiada por mulheres as quais, por isso (embora não só), necessitam trabalhar fora de casa, o que requer a proteção social devida do Estado (PEREIRA, 1996, p. 83).

Neste sentido, não podemos ignorar as novas configurações da família, que é

sobrecarregada com um peso árduo e repleto de expectativas, como se ela fosse a única

responsável pela produção e reprodução da vida dos indivíduos. Para Estivill (2000, p. 170),

é importante salientar o peso que a família, inicialmente dilatada, depois nuclear, e agora dispersa, teve como núcleo pertencente ao bairro ou à terra; na camaradagem, na amizade, nos intercâmbios recíprocos e em especial a mulher, na cobertura das principais necessidades.

A edificação destes argumentos não vem favorecer um mero pleonasmo, mas sim

qualificar a relevância desta discussão, acerca daquilo que oprime e aprisiona a mulher, que é

a única protagonista e responsável pelo cuidado. A inoperância do Estado atribui não somente

à família, mas em especial à mulher, este tomar conta e dar conta das necessidades da sua

prole e dos sujeitos mais fragilizados, ou que demandam maiores cuidados no seu grupo.

É dentro deste contexto de incertezas públicas que balizaremos o tópico seguinte,

tendo como referência o universo destas famílias, lembrando que o fantasma da desproteção

com relação a esta população, assombra hodiernamente o cotidiano destes grupos específicos.

Page 109: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

109

3.3 A desproteção social perpassando o universo familiar

O reconhecimento das necessidades especiais dessas famílias e indivíduos, como

matéria e conteúdo do direito social e da sua tradução em política pública e serviços

especializados, certamente não se sustenta apenas com base no apelo ou na motivação

emocional ou meramente moral. O campo dos direitos e das políticas sociais encerra-se na

esfera pública, sendo o Estado o principal agente e afiançador das garantias governamentais

decorrentes da afirmação jurídica dos direitos e, conseqüentemente, agente promotor do

financiamento e do desenvolvimento dos programas e ações sociais. Portanto, sendo matéria

da coisa pública, requer como elemento motivador a razão, o compromisso, a ética. É nesse

sentido que deve se processar o trânsito do campo do sentimentalismo e da piedade para o

universo das virtudes éticas, aqui encarnadas na compaixão, intensificada pelos valores da

igualdade, solidariedade e justiça social, que devem ser a base do sistema de proteção social

numa sociedade democrática de fato.

Dentre os filósofos humanistas, Rosseau é o mais invocado como o primeiro e

mais importante formulador do valor da compaixão (e da sua dimensão recíproca, a piedade)

como a virtude-mãe, da qual todas as demais derivam. “Difícil não evocá-lo, tanto soube ele

dizer, e foi um dos primeiros, o essencial”, reconhece Comte-Sponville (1995, p. 124 - grifo

do autor), que assim nos ensina:

É bom reler a passagem do Segundo discurso, em que Rosseau mostra que a piedade é a primeira de todas as virtudes e a única natural. É que ela é um sentimento antes de ser uma virtude, “sentimento natural”, diz Rosseau, ainda mais forte por derivar sem dúvida do amor a si (por identificação com os outros) e temperar, assim, em todo homem, “o ardor que tem por seu bem-estar com uma repugnância inata a ver seu semelhante sofrer”. Compaixão sem margem, ou sem outra margem que não a dor, pois tudo o que sofre é, por isso mesmo, meu semelhante em alguma coisa. Compadecer é comungar no sofrimento; e essa comunidade, que é inumerável, nos impõe sua lei, ou antes, a propõe, e é uma lei de doçura: “Faz teu bem com o menor mal possível a outrem”.

Se é a piedade que nos separa da barbárie (MANDEVILLE apud COMTE-SPONVILLE)

é a compaixão que “permite passar de um ao outro, da ordem afetiva à ordem ética, do que

sentimos ao que queremos, do que somos ao que devemos ser” (COMTE-SPONVILLE, 1995,

p.128-9).

Page 110: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

110

Neste sentido, politizar a esfera subjetiva das famílias traz à tona a necessidade

premente de publicizar suas particularidades, como demanda primordial do Estado enquanto

promotor e legitimador dos direitos sociais. A simplificação e a prerrogativa atual de

transferência de suas competências à sociedade civil, família e mercado, denotam o grande

desafio posto, tendo em vista que o protagonismo dos direitos sociais não deve ser objeto de

renúncia por parte do Estado, seja frente a diversidade das demandas apresentadas

cotidianamente, seja porque é tido, no discurso neoliberal, como ineficiente e dispendioso.

Problematizar o espaço (em tese, privado) das famílias requer que recuperemos a

noção de risco social que, na cultura liberal e neoliberal, está atrelada a uma questão

meramente pessoal e individual, já que a superação das dificuldades depende unicamente do

sujeito ou, no máximo, da sua família, que deve assumir todos os ônus dessas mesmas

limitações. Nesta lógica, as “incertezas da vida, de acordo com o pensamento liberal, devem

ser enfrentadas e respondidas por cada um, de acordo com as suas possibilidades”. Esta

afirmação vai de encontro à de Marx (a cada um de acordo com suas necessidades). É

fundamental o compromisso da coletividade, aqui compreendida também como a participação

efetiva e não apenas abstrata do Estado, na superação dos prováveis riscos sociais31 da

população.

Tendo em vista as particularidades do segmento social composto pelas famílias

das pessoas com necessidades especiais, especialmente aquelas em processo de

envelhecimento, cabe reconhecer a condição permanente de risco social vivenciado por elas

de forma veemente. As complexidades são ampliadas, quando, na expressão do seu cotidiano

de lutas, estes grupos vulnerabilizados percebem a ausência de um sistema de proteção social,

no qual poderiam e deveriam ser incluídos, de forma que fossem atendidas suas necessidades.

A quimera, e porque não afirmar, a realidade das preocupações que circundam e

ilustram o universo destas famílias, diz respeito à ausência de um sistema de proteção social

para atendimento de suas especificidades, mesmo não sendo desta forma que estes grupos

traduzem estes receios. São expressões traduzidas pela incerteza do cuidado com esta pessoa

31 A extensão da noção de risco para o domínio dos problemas sociais vem sendo utilizada tanto no debate teórico das ciências sociais, quanto na formulação técnica das políticas públicas, especialmente na saúde e assistência social. As contribuições essenciais de Ulrieh Beek a respeito dos riscos ambientais são reprocessadas por Giddens (1999), nas suas análises referentes às profundas mudanças ocorridas nas instituições sociais, como por exemplo o fato de que “os novos modelos de família ou de estilos de vida, tornam os resultados das decisões individuais em certos domínios da vida quotidiana menos previsíveis e aumentam o grau de risco [...] Casar, empregar-se, montar um negócio são acompanhados hoje de um grau de incerteza muito elevado quanto aos seus resultados porque os contornos das instituições que suportam tais atividades não são mais os mesmos” (HESPANHA, 2002, p. 14).

Page 111: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

111

com necessidades especiais, quando um de seus cuidadores, especialmente os genitores

maternos, falecem, como observamos nos relatos de quase todas as famílias.

As histórias destas famílias são marcadas, desde o nascimento desta pessoa com

necessidades especiais, visto que o processo de sua existência traz, desde sua infância, uma

necessidade premente de atender à sua condição especial, seja por meio da viabilização de

atendimentos educacionais adequados, seja na busca incessante de intervenções médicas

dignas. Enfim, várias são as expressões apontadas por estas famílias, que são complexificadas

com o envelhecimento desta pessoa com necessidades especiais, cuja especificidade de

condição demanda, ao lado dos cuidados anteriores, outros, que correspondem ao próprio

processo de envelhecimento.

São dificuldades que culminam na materialização de sentimentos como medo e

insegurança, conforme observamos na família de Pedro Henrique, em que esta situação ficou

explicitada na seguinte representação: o “maior medo, a maior preocupação mesmo que eu

tenho, é a gente ir, e com quem ele vai ficar?” Situação semelhante é a da família de Cleide.

No entanto, neste caso específico, a irmã mais velha já se responsabilizou pelos cuidados com

Cleide, caso os seus pais faleçam, tendo em vista que a grande preocupação destes era a de

que “quando a gente ir [referem-se ao falecimento], quem ficará com ela? É porque a gente

não é pra vida toda, não é pra sempre. Então quando a gente for embora, com quem ela vai

ficar?” Em resposta a estas incertezas dos pais, a filha mais velha comprometeu-se com os

cuidados necessários para a vida da irmã, afirmando que: “não precisariam se preocupar;

quando vocês partirem desse mundo para outro, ela vai ficar bem. Vai ficar comigo”.

No caso da família de Rebeca, a preocupação com relação ao falecimento da

genitora se materializou na organização legal dos cuidados dirigidos a esta pessoa, já que uma

das irmãs ficará com a sua curatela, e este processo já foi viabilizado.

Compreender os processos de insegurança e incerteza dos quais as famílias destas

pessoas são reféns reporta-nos não a uma atitude de condescendência frente a estas realidades,

mas de inquirição e compromisso técnico e político, que exige, de partida, sua qualificação

enquanto uma temática das políticas públicas que necessita de intervenções adequadas. Dizem

respeito, portanto, a situações de vulnerabilidade que se inserem no cotidiano destes grupos,

cuja conceituação de riscos foi redimensionada por Sposati (2001, p. 69) e, na sua nova

formulação,

não implica somente a iminência imediata de um perigo, mas quer dizer também a possibilidade de, num futuro próximo, ocorrer uma perda de

Page 112: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

112

qualidade de vida pela ausência de uma ação preventiva. A ação preventiva é irmã siamesa do risco, pois não se trata tão-só de minorar o risco de forma imediata, mas de criar prevenções para que este se reduza significativamente ou deixe de existir.

Dentro desta lógica, não se trata de romper com a sociedade de risco, até porque é

inerente ao capitalismo, mas sim de reconhecê-los e de enfrentá-los em duas dimensões

complementares: a primeira se concretiza através de medidas e políticas públicas de caráter

preventivo, que eliminem as contingências sociais ameaçadoras e que contribuam na

minimização dos fatores sociais que fragilizam a capacidade de resistência dos indivíduos e

das famílias diante das situações de vulnerabilidade, que as colocam em ameaça ou risco; a

segunda atua por meio de ações reparadoras das seqüelas decorrentes da exposição contínua

às situações de risco, ameaça ou insegurança que afetam os segmentos populacionais, em

graus distintos, mas igualmente vulnerabilizadores.

No caso do universo entrevistado, há que ressaltar que a família e, neste caso

específico, a família das pessoas com necessidades especiais, tem sido a única responsável

pelo enfrentamento ou pela superação isolada do próprio risco.

A indiferença com relação a estas famílias embrutece o processo civilizatório da

humanidade e transforma o Estado em mero aparelho burocrático, ignorando as suas funções

sociais, em favor dos interesses mercadológicos que atualmente vêm assumindo a agenda

política e deteriorando os espaços garantidos e conquistados dos direitos sociais. Esta “visão

reducionista que cerca o debate sobre o Estado comprime e apequena qualquer projeto”

(NOGUEIRA, 2004, p. 182) contrário à noção atual, que entende os serviços públicos como

direcionados a atender a política econômica, e o Estado como óbice para a modernização, e

apregoa uma espécie de evolução em busca do pseudo-desenvolvimento econômico que se

idealiza na corrida pela obtenção do tão sonhado objetivo, que é pertencer à esfera do Mundo

Desenvolvido. “Em conseqüência, estabelece-se que, quanto menor for o Estado e quanto

menos investido de poderes e de atribuições estiver ele, melhor para a sociedade. O Estado

converte-se, assim, em algo vazio de densidade e sentido” (loc. cit.).

A ausência de segurança e a prevalência das incertezas nestes grupos fazem com

que situações vivenciadas por famílias como a de Gustavo revistam-se não de comoção, mas

especialmente de compaixão, como no caso do acidente que culminou no falecimento do

genitor de Gustavo. Uma das pessoas que presenciou o episódio do afogamento disse que as

últimas palavras proclamadas pelo pai foram um pedido de socorro, não objetivando apenas o

salvamento de sua vida, mas a necessidade de atender as demandas apresentadas pelo filho:

Page 113: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

113

“Enquanto o meu marido estava morrendo, ele dizia para o meu vizinho, que estava junto

com ele: - Me salva, me ajuda, que o meu filho precisa de mim”.

O dado de realidade desta mãe, ou seja, o fato de sentir-se só, desamparada,

insegura, frente as necessidades de seu filho, denota uma preocupação a mais quanto à

possibilidade de seu falecimento. Essa possibilidade já motivou sua busca incessante, por uma

instituição que possa atendê-lo posteriormente. Isto, que de certa forma deveria tranqüilizá-la,

trouxe-lhe mais desconforto, pois percebeu-se inserida num contexto em que o suporte

primordial que deveria possuir, quanto aos cuidados dispensados ao seu filho, não está

disponível. Ou seja, não há serviços de retaguarda que atendam esta população, reforçando a

lógica de que a família ou o indivíduo devem assumir e dar respostas aos seus infortúnios, à

sua cruz que, mesmo sendo pesada demais, deve ser carregada sem qualquer ajuda.

Diante desta certeza, que se refere à incerteza dos atendimentos a esta população,

a genitora se vê numa travessia em que a ponte não dá acesso à outra margem e cujo trajeto,

mesmo sendo necessário, é duvidoso e incerto, apontando as mazelas e fragilidades deste

modelo de proteção social, ou melhor, de desproteção.

Os duelos travados pela genitora já remetem ao apelo divino, posto que não

vislumbra no mundo dos homens a resposta às suas necessidades e que, ao menos no universo

do sagrado, sente-se acalentada: “todo dia de manhã eu penso assim: “Meu Deus, tu não vai

me levar e deixar essa criatura [refere-se a Gustavo]. Leva ele primeiro, que depois eu tô

pronta a hora que for [...] às vezes de noite, eu perco o sono, fico pensando, porque não é

fácil”.

Associada aos reflexos da desproteção social, está a nulidade da genitora

permanecer vivendo caso o seu filho faleça, posto que se percebe enquanto cumpridora de

uma missão cujos objetivos já teriam sido alcançados, ou seja, seu filho foi cuidado e agora

não lhe resta mais nada. Tanto é que os apelos ou as propostas dirigidas ao divino referem-se

a uma espécie de permuta, valendo-se do atendimento das necessidades da família, ou seja, do

receio da genitora em falecer antes do filho, cujas tentativas de acordo direcionam-se para

uma troca, em que a mãe “reza todo o dia e [...] assim: “Meu Deus, se tu tiveres que me

levar, eu hoje, e meu filho amanhã, tu inverte, leva ele hoje, e eu amanhã”.

Neste sentido, é necessário garantirmos inicialmente um sistema de proteção

social que atenda o conjunto dos direitos de civilização “de uma sociedade e/ou o elenco das

manifestações e das decisões de solidariedade de uma sociedade para com todos os seus

membros” (SPOSATI, 2001, p. 71). O objetivo é atrelar estas políticas ao cumprimento de

Page 114: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

114

ações que garantam conjuntamente a preservação, a dignidade e a segurança de todos os

cidadãos, sendo esta última compreendida como

uma exigência antropológica de todo indivíduo, mas sua satisfação não pode ser resolvida exclusivamente no âmbito individual. É também uma necessidade da sociedade que se assegure em determinada medida a ordem social e se garanta uma ordem segura a todos seus membros. As políticas sociais representam um dos instrumentos especializados para cumprir essa função (VILLALOBOS apud SPOSATI, 2001, p. 70).

As políticas sociais devem ser a materialização dos direitos, não simplesmente

desenhados nas leis, mas na relação direta de suas aplicações e legitimidade. Para Arendt

(apud CASTRO, 1999), a existência de leis, direitos e outras dimensões da política, configuram

instrumentos que devem ser efetivados na prática, haja visto que a própria existência deles

requer seu exercício efetivo. Desta forma, a garantia de transpor o espaço privado em direção

ao público, muito mais que a publicização das problemáticas das famílias que possuem uma

pessoa com necessidades especiais, reporta-nos à cadeia de elementos normatizados pela ação

política.

Ampliar a esfera da solidariedade familiar, transportando-a para o espaço público,

torna-se fundante, posto que os elementos básicos de proteção oferecidos aos indivíduos por

meio das mediações primárias frente às agressões externas e à exclusão social, hodiernamente

em plena expansão, de antemão não respondem a todas as demandas apresentadas, e

restringem, desta forma, a intervenção apenas ao núcleo familiar. A transmutação da

intervenção restrita ao espaço privado para o público deve ser contemplada prioritariamente,

visto que

o antigo modelo de comunidade local com alto grau de solidariedade e contatos primários tende a ser cada vez mais raro, quando não inexistente. Esta mudança resulta da atual reorganização dos vínculos sociais, tornando as relações entre os mais próximos menos endógenas do que no passado e mais preocupadas com a autonomia dos indivíduos. Sendo assim, a comunidade não pode contribuir efetivamente com a provisão social requerida pelo pluralismo de corte liberal, a menos que ela regrida no tempo (PEREIRA, 1995, p. 111).

E, como aponta a família de Clóvis com relação à preocupação da genitora em

falecer antes de seu filho, pois sabia que enquanto tivesse vida viveria em função das

necessidades apresentadas por ele: “Mas eu disse pra mãe que nós iríamos nos virar, apesar

de todo mundo já ter as suas funções: meu marido trabalha, eu trabalho, meus filhos, minhas

Page 115: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

115

cunhadas e irmãos também, então todo mundo tem a sua vida, a família é grande, mas numa

hora dessas ela se reduz”.

Neste sentido, compreender as condições atuais das famílias torna-se fundamental

e imprescindível, já que as demandas apresentadas atualmente denotam um crescimento e

uma exigência cada vez maior dirigida a estes grupos que devem suprir, além dos fatores

inerentes ao espaço restrito de seus lares, outros que se traduzem na ausência de emprego, no

aumento de condutas violentas e práticas que lucram com a criminalidade, na dependência

química, na fome, na ausência de perspectivas para a juventude, na desproteção na infância,

adolescência, velhice e deficiência, como também na crise dos “padrões coletivos de proteção

social pública e privada, decorrentes, neste último caso, da perda de capacidade socializadora

das famílias” (PAF, 2003, p. 5).

O esforço de articular estes contextos familiares não objetiva apenas tornar

público o universo das famílias pesquisadas, mas sim atentar para a problematização e o

patenteamento da classificação destas, como expressão de inauditas temáticas sociais

destinadas às políticas públicas, que está posta e que deve receber intervenções que primem

pela dignidade e eqüidade destes grupos sociais vulneráveis. É neste caminho que

construiremos as Considerações Finais deste trabalho em que propomos identificar e justificar

que a família das pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento

deflagram uma incipiente problemática dirigida às políticas públicas. É concluindo este

processo que pretendo estar “em paz com a minha guerra” (Camões).

Page 116: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

116

CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS FFIINNAAIISS

O que é um justo? É alguém que põe sua força a serviço do direito e dos direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer. [...] É por isso que o combate pela justiça não terá fim. [...] Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados! (COMTE-SPONVILLE)

O propósito central desta dissertação foi desvendar o universo das famílias das

pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento mediatizado pelas

medidas de proteção pública.

É sabido que as pessoas com necessidades especiais, que anteriormente não

alcançavam uma expectativa de vida superior à idade da adolescência, hoje chegam

satisfatoriamente à velhice. Velhice32 que, neste contexto, não deve estar atrelada apenas à

idade, haja vista que o sentido cronológico desse termo deve ser requalificado quando referido

a pessoas com necessidades especiais, pois nestas a debilidade física e mental configura-se em

fator determinante.

São pessoas que, indiferentemente da idade cronológica, apresentam

especificidades que demandam, em razão de suas necessidades, vários tipos de estratégias

para atendê-las, constituindo-se em carências que se aproximam, em parte, do universo da

terceira idade, visto que manifestam algumas debilidades físicas, motoras, associadas, ainda,

às mentais, que acentuam em proporções maiores do que os demais indivíduos. Nesse sentido,

“não é possível estabelecer conceitos universalmente aceitáveis e uma terminologia

globalmente padronizada para o envelhecimento” (VERAS, 2003, p. 10).

É possível, entretanto, traçar uma analogia entre o idoso e a população que

apresenta alguma deficiência com relação ao fato de serem pessoas com necessidades

32 No estudo de Berzins (2003) há uma historicização e problematização sobre o aumento da expectativa de vida populacional, fenômeno que a espécie humana nunca havia experienciado. A evolução do envelhecimento humano decorre das épocas, lugares e condições de vida em que se processa o envelhecimento, sendo que na Pré-história, no Império Romano e na Grécia Antiga a idade média da população era em torno de 25 anos; no século XVII este patamar subiu para 30 anos; e foi apenas na metade do século XIX que esse número aumentou mais cinco anos. Ou seja, para se ganhar 10 anos de vida foram necessários quase dois mil anos. No entanto, em 1950 a expectativa de vida nos países industrializados perfazia os 65 anos, e atualmente esta média é de 76 anos nos países considerados desenvolvidos.

Page 117: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

117

especiais, o que incide diretamente na expropriação dessas pessoas, enquanto sujeitos de

direitos. No tocante à velhice, sua “apropriação imagética” (ALMEIDA, 2003, p. 35) adotada

pela modernidade é a de uma fase degenerativa e de decrepitude, sendo que “à condição do

‘outro’ ou da diferença deve ser negada e afastada dos olhos e do pensamento. À velhice foi

destinado um lugar muito pouco confortável, sinônimo de recusa e banimento”, espaço

similar ao que tem sido relegado às pessoas com necessidades especiais e suas famílias.

É preciso combater a idéia de uma segmentação artificial entre a população idosa

e as pessoas com necessidades especiais, quanto à exigência de uma opção política mais

apropriada para um segmento em detrimento do outro. Não devemos perder de vista que o

“envelhecimento, não é um problema, e sim, uma vitória” (BERZINS, 2003, p. 19), quando

compreendido como uma conquista da humanidade, inclusive para os indivíduos com

necessidades especiais, embora a desproteção das famílias, em termos das fragilidades socio-

econômicas, se acentue com o envelhecimento dos pais e filhos com necessidades especiais.

Nesse sentido, essa desproteção social constitui-se em um fator de vulnerabilização adicional,

cuja debilidade e imprescindibilidade de atendimento às suas demandas expressam-se de

forma mais ávida na medida em que o Estado, como responsável pelas garantias sociais

decorrentes dos direitos constitucionais, tem-se mostrado omisso. A diferenciação, neste caso

específico, objetiva o reconhecimento do outro como sujeito, o que nos exigirá a superação da

lógica de restringi-lo apenas a referências negativas, partindo somente de hipóteses do que

lhes falta.

Isto significa dizer que, embora devamos reconhecê-los como sujeitos de direitos,

há uma demanda ainda não totalmente evidenciada, ou seja, existe à priori uma

particularidade dessa população que requer cuidados especiais durante todo o percurso de

suas vidas. Para Hespanha (2001, p. 40-1):

A existência de membros dependentes de cuidados constitui mais um dos fatores de vulnerabilidade para as famílias e põe a claro a insuficiência da resposta dos serviços públicos a necessidades deste tipo. Cuidar das crianças, dos idosos, dos inválidos e dos deficientes constitui um encargo extremamente pesado para a maioria das famílias dados os seus baixos rendimentos e a escassez de apoios formais e informais com que podem contar.[...] No caso dos idosos que cuidam de familiares seus, geralmente filhos inválidos, a incerteza quanto ao futuro dos dependentes depois da sua morte torna-se numa preocupação constante e assume proporções dramáticas à medida que tempo passa.

Essas problematizações trazidas por Hespanha (2001) são extremamente

oportunas para análise das experiências das famílias pesquisadas, tendo em vista que estão

Page 118: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

118

claramente inseridas nesse contexto que denota a ausência de perspectivas, que deveriam ser

engendradas, a fim de minimizar seus dramas pessoais e suas necessidades sociais.

Percebemos, ademais, que a limitação maior em causa é a impotência para ultrapassar óbices

decorrentes de tamanha precariedade. Observamos, indistintamente em todas as famílias em

tela, que o sentimento de permanente insegurança quanto ao futuro assombra o presente. São

famílias que têm na figura da mãe, sobrinha, irmã e, em menor escala, no pai, a

obrigatoriedade de, além de garantir a sobrevivência cotidiana, com sacrifícios muitas vezes,

também desempenhar atividades múltiplas referentes ao cuidado especial. Tudo isso apenas

lhes assegura um horizonte restrito ao limiar da subsistência, sem alterações significativas do

estado de vulnerabilidade e desproteção crescentes, talvez porque essas estratégias de

sobrevivência permaneçam restritas ao mundo privado da família, das paredes de suas casas e

da pseudo-proteção de seus muros. No entanto, enquanto essas realidades ficarem veladas,

invisíveis ao público e ignoradas pelo Estado, que permanece omisso, o fardo a ser carregado

tornar-se-á muito mais difícil e árduo diante do envelhecimento. Segundo Karsch (2003, p.

106):

Este fato reflete bem como a sociedade brasileira percebe a problemática dos idosos doentes, [incluímos neste segmento a população portadora de deficiência] incapacitados e dependentes: na medida em que uma mulher de uma família toma a si a responsabilidade pelos cuidados de um idoso dependente, e, com muito esforço e sem tréguas, procura suprir as necessidades por ele apresentadas dentro das paredes de casa, seu desempenho permanece escondido, impedindo o reconhecimento do seu papel social e mascarando a importância de uma rede de serviços que poderia estar dando o necessário suporte [...]

Portanto esse processo perpetua a ausência ou insuficiência de apoio institucional

a essas famílias, cujos reflexos são perceptíveis em três domínios, definidos por Hespanha

(2001, p. 41) como: “uma sistemática subavaliação das necessidades reais das pessoas; uma

insuficiente capacidade de resposta; e uma incompatibilidade dos serviços oferecidos com as

necessidades e as condições da população”.

Dentro dessa perspectiva, concluímos ser relevante chamar atenção para a grave

situação social da população de indivíduos com necessidades especiais, que não tem o mesmo

acesso que os outros aos bens de consumo, posto que estes benefícios pouco corresponderiam

às necessidades daqueles sujeitos que, além de tudo, nem sempre obtiveram o status de

sujeitos, compreensão esta historicamente muito recente. Diante disso, não estamos falando

de competidores de um jogo cujas regras e condições são igualitárias, como se estivéssemos

em uma arena naturalizada, mas estamos, sim, nos referindo a uma população segregada que,

Page 119: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

119

pela lógica evolutiva, constitui-se dos considerados menos aptos, o que redundaria no seu

próprio confinamento, à mercê de sua própria sina (VÉRAS, 1999).

Esta lógica darwiniana, que não corresponde obviamente a uma perspectiva ética

de justiça social, pode ser observada nos preceitos da organização da lógica capitalista, que

conta com uma tradução exemplar na materialização do Estado Mínimo neoliberal. Nessa

lógica, prega-se a responsabilidade pela superação da própria exclusão33 como sendo atribuída

unicamente ao indivíduo excluído, posto que o aparelho estatal exime-se de inserir na rede de

proteção social ou no sistema de garantia de direitos especiais as pessoas consideradas

diferentes, pois permanecem reduzidas a seres dispensáveis, visto que não possuem utilidade

econômica, valor de mercado. Sintetizando esta idéia, Santos (apud VÉRAS, 1999, p. 26)

reflete que “estar incluído é estar dentro, no sistema, mesmo que desigualmente”. Por outro

lado, “estar fora, ser diferente, não se submeter às normas homogeneizadoras, é estar excluído

ou ‘empurrado’ para fora” (loc. cit.).

O pertencimento ao grupo dos excluídos expõe a marca, o estigma degradante.

Goffman (1975) se utiliza dessa categoria para referendar um atributo meramente

depreciativo, alertando para a necessidade de rompermos com esta realidade, construindo uma

linguagem de relações e não de atributos. Vale ressaltar que, no caso dos sujeitos que não se

enquadram nos padrões definidos como normais e ideais à reprodução do capital, tais

atributos ficam confinados à idéia de incompetência pessoal perante o mercado e a sociedade.

Conforme essa ótica, não se questionam as contradições do sistema capitalista,

mas sim se reduz a sua interpretação ao embrutecimento da própria fatalidade. Nesta direção,

Martins (apud VÉRAS, 1999, p. 27) pondera que:

33 Em detrimento da simplificação do conceito de exclusão, o autor Serge Paugam (1999, p. 60) propõe complementá-lo com a conceituação de desqualificação social, pois o primeiro foi sendo generalizado a situações e realidades adversas, em que é necessário a ponderação de elementos distintos, visto que “só exclusão não é suficiente”. Nesse sentido, iremos diferenciar essas conceituações. Inicialmente definiremos a noção de exclusão que, para o autor, tem três grandes orientações teóricas, a saber: a primeira é a noção de trajetória, buscando compreender o processo, tanto do ponto de vista individual como coletivo, objetivando analisar as transformações no modo de vida dessas pessoas e as dificuldades que enfrentam; o segundo reflete o conceito de identidade, muitas vezes restrito à identidade negativa, pois retrata a incapacidade de o indivíduo socializar-se dentro dos parâmetros considerados normais; e, por fim, a temática pode ser abordada considerando-se o território, observando de que forma os processos de exclusão estão concentrados em determinados territórios. Com relação ao conceito de desqualificação social, há quatro elementos a serem verificados: o primeiro retrata a questão da estigmatização dos considerados assistidos; o segundo é proveniente da forma como esse indivíduo é integrado no sistema de proteção social, visto que a assistência, por exemplo, tem uma função clara que é a de regulação social; o terceiro elemento “é que os assistidos estão sempre mobilizando meios para continuarem a ser assistidos. Portanto, não são passivos” (ibid. 1999, p. 77). E o último é a dimensão do processo, ou seja, a passagem de uma fase a outra no decorrer do processo.

Page 120: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

120

O rótulo acaba se sobrepondo ao movimento que parece empurrar as pessoas, os pobres, os fracos, para fora da sociedade, para fora de suas “melhores” e mais justas e “corretas” relações sociais, privando-os dos direitos que dão sentido a essas relações. Quando, de fato, esse movimento as está empurrando para “dentro”, para a condição subalterna de reprodutores mecânicos do sistema econômico, reprodutores que não reivindicam nem protestam em face de privações, injustiças e carências.

Compartilhamos a compreensão de Véras (1999), na medida em que ela revela a

dinâmica capitalista, em seu permanente processo de produção da exclusão sociocultural,

embora contraditoriamente queira propagar em seu discurso as possibilidades de inclusão e de

oportunidade para todos. O momento transitório da ilusória passagem da condição de excluído

para a de incluído tem marcado o modo de vida dessa população, que não alcança os

patamares exigidos em termos de (re)inclusão, numa demonstração clara da derrocada desse

restrito padrão de igualdade de oportunidades. Os determinantes e os resultantes desse modo

de vida incidem diretamente na capacidade de o indivíduo com necessidades especiais de ser

cidadão pleno, na sua condição humana, do ponto de vista moral e político, o que compromete

acima de tudo a sua dignidade.

Dessa maneira, chegamos ao limite, à ressignificação do próprio apartheid em que

as classes dominantes evidenciaram, por meio da adoção de políticas segregadoras, que não

estão mais interessadas sequer na “integração” dessa população, nem para a produção, nem

para a cidadania. Pretendem, sim, é esgarçar e demarcar ainda mais essa diferenciação, seja de

classes, seja decorrente da condição física e mental, o que tem aumentado o distanciamento e

a incomunicabilidade entre esses indivíduos e o resto da sociedade, o que se traduz na própria

desconfiança do excluído, culpabilizado pelo processo que vivencia. Os reflexos dessa lógica

descaracterizam o espaço público como possibilidade de luta e de garantia de direitos,

aumentando o confinamento dessa população, já encarcerada pela exclusão sociocultural.

Nesse percurso, as classes dominantes têm atuado decisivamente na busca da conceituação de

novos valores, sob a prerrogativa da satanização do Estado e da política, associada à idéia da

desnecessidade do público.

Para Nogueira (2001), as particularidades que estão intrínsecas nesse processo de

satanização da política têm nos trazido reflexos consideráveis, pois passamos a assumir

voluntariamente o papel do Estado, restringindo-o à regulação do mercado. Contextualizando

o Brasil, o autor aponta que estamos vivenciando “a política sem política” ou, ainda, “pouca

política”, posto que é necessário que se acene uma outra idéia de política, de gestão e

governo, em que seja possível projetar um outro futuro.

Page 121: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

121

Justamente porque estamos inseridos numa época de fragmentação, apatia e confusão, que parece eternizar o presente mediante o cancelamento de toda idéia de construção do futuro, é indispensável fazer a defesa da política. Fazer isso é defender a “política com muita política”. É, em boa medida, defender a idéia de que, sem política, tornam-se menores as chances de uma transição que nos retire da quase barbárie em que vivemos e nos projete numa cidadania autoregulada, capaz de se organizar com autonomia, inteligência e justiça (NOGUEIRA. Ibid., p. 65).

Para Oliveira, (apud VÉRAS, 1999, p. 34) o espetáculo das questões públicas,

experenciado por meio da comunicação midiática, se traveste de defesa dos interesses

populares, porém acaba por transferir ao monopólio privado o que pertence ao público. Nesse

sentido,

[...] caminhando sobre o chão pavimentado pelo preconceito dos pobres contra os pobres [os segmentos socialmente vulneráveis], as classes dominantes no Brasil começaram a extravasar uma subjetividade anti-pública que segrega, elabora pela comunicação midiática uma ideologia anti-estatal.

Pode parecer intempestivo fazer referência à discussão sobre as classes sociais, já

na conclusão deste estudo. No entanto, pretendemos com estas ponderações traçar um

paralelo entre a pobreza e os segmentos socialmente vulneráveis34, cuja possibilidade de

inclusão no mercado de trabalho não tem sido vislumbrada, ora pela competitividade e

qualificação excessiva do meio laboral, ora pela restrição decorrente das condições humanas

que a população portadora de deficiência apresenta, assemelhando-se ambas pelo “tipo de

privação, discriminação ou banimento” (VÉRAS, 1999, p. 36).

Poderíamos, inclusive, considerar a materialização de uma nova exclusão, tendo

em vista seu caráter ambíguo, como aponta Luciano Oliveira (apud VÉRAS, 1999, p. 36). Para

esse autor, verifica-se, de um lado, a não inserção no mundo do trabalho, observável pelo

gigantesco contigente de pessoas que se tornaram desnecessárias e dispensáveis ao mercado e,

por outro lado, “abate-se sobre eles um estigma, por viverem em condições precárias e

subumanas em relação aos padrões ‘normais’ de sociabilidade, de que são perigosos

ameaçadores e, por isso mesmo, passíveis de serem eliminados”.

34 Este conceito foi subtraído do texto de Mioto (2000, p. 217) intitulado “Cuidados sociais dirigidos à família e segmentos sociais vulneráveis”, onde o pertencimento e a significação dos segmentos sociais vulneráveis podem ser considerados, de uma maneira geral, “as crianças e adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências, as mulheres. Aqueles que estão associados ao termo vulnerabilidade. Este termo, originário da área dos Direitos Humanos, é utilizado para designar grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia de seus direitos de cidadania”.

Page 122: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

122

Nessa ótica o contingente dos excluídos não teria lugar no mundo, onde são

designados como seres aquém da humanidade, ou simplesmente submetidos à condição de

subumanidade, conforme diz Arendt (1997).

Referidas à essa lógica estão as famílias das pessoas com necessidades especiais,

sujeitos da pesquisa ora analisada. No decorrer das entrevistas realizadas, observamos

situações de riscos sociais extremamente complexas, que não permitem isolar um fator ou

processo. Concomitantemente, são deflagradas, nas trajetórias de vida dessas famílias, uma

combinação de problemas sociais diversos, como: precariedade econômica, fomentada pela

ausência de emprego e baixos rendimentos financeiros; precariedade no acesso à saúde,

educação, transporte e demais serviços públicos; e péssimas condições de habitação, entre

outras configurações. Evidenciamos, dessa maneira, que não se trata de famílias que

apresentam apenas a questão da necessidade especial, mas antes congregam diversos fatores

adicionais de risco “que se alimentam continuamente, contribuindo para a manutenção de

situações de exclusão social. Para além da multiplicidade de problemas é assinalável também

a sua diversidade” (HESPANHA, 2000, p. 307).

Esses processos evidenciam a ausência do Estado e o afrouxamento dos vínculos

sociais, observáveis nas diferentes esferas da vida coletiva, seja devido aos processos de

socialização, seja porque, paradoxalmente, a sociedade se torna, ao menos na aparência, mais

democrática.

Desta feita precisamos superar a atitude de desconhecimento, que se restringe à

percepção da realidade apenas naquilo que fica documentado em papéis. Como revelou-nos

Yazbek (1993, p. 31) “os relatos de vida, combinados ao uso da pesquisa documental,

configuram-se como via particularmente fecunda para a questão em estudo”. Por essa razão,

foi vital não só o grande respeito pela dignidade das famílias que, neste estudo, descortinaram

partes importantes de suas vidas, desnudaram sentimentos e sensibilidades perante o

dramatismo das suas necessidades, seus desejos, seu mundo simbólico e sua individualidade,

mas, sobretudo, a permanente cumplicidade entre profissional pesquisador e as próprias

famílias, no esforço de desvendamento dessas parcelas do real, aqui reelaboradas.

Contemplar essa realidade implica abrir espaço para a superação de abordagens

conservadoras de intervenção nas famílias, que dão primazia à interpretação do “indivíduo

problema”, onde qualquer espécie de direcionamento das ações recai sobre aquele indivíduo.

Essa perspectiva não vislumbra, nem como princípio, nem tampouco como possibilidade de

estratégia, um investimento real no grupo familiar, no sentido do entendimento e

enfrentamento das suas vulnerabilidades, nas suas diversas expressões. O novo enfoque dado

Page 123: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

123

à família, no sentido de compreendê-la na sua amplitude, considerando-a, ao mesmo tempo,

como público alvo e parceira, imprime um inaudito compromisso com resultados que não

culminem somente no atendimento das situações emergenciais, mas que oportunizem um

espaço de potencialização e implementem ações emancipadoras junto a esses segmentos, com

a garantia de seus direitos.

Por fim, com este estudo, dedicado a identificar e analisar o cotidiano das famílias

que possuem na sua constituição pessoas com necessidades especiais em processo de

envelhecimento, frente ao sistema de proteção social é que divisamos o despontar de novas

possibilidades de conclusões, cujos desafios estão colocados, certamente em um contexto

deveras adverso. Carlos Drummond de Andrade, entretanto, é portador de uma vital

mensagem de esperança e, com sua poesia, nos renova para a batalha cotidiana, quando diz:

Não serei poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei cantor de uma mulher, de uma história Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, Não distribuirei entorpecentes ou cartas suicidas, Não fugirei para às ilhas, nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, A vida presente.

Page 124: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

124

RREEFFEERRÊÊNNCCIIAASS BBIIBBLLIIOOGGRRÁÁFFIICCAASS

ACOSTA, Ana Rojas et al. Famílias beneficiadas pelo Programa de Renda Mínima em São José dos Campos/SP: aproximações avaliativas In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE; FALLER, Maria Amalia (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE, PUCSP, 2003. p. 137-163.

ALBUQUERQUE, José de. Falsos caminhos a que o falso pudor conduz. Rio de Janeiro, Marisa editora, 1978.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

_____. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988.

BALERA, Wagner. A seguridade social: conceito e polêmicas. In: Ações afirmativas de enfrentamento à exclusão social: Núcleo de Estudo de Seguridade e Assit6encia Social; PUC-SP: São Paulo, 1999, p. 32-47.

BRANT, Maria do Carmo. A proteção social destinada às famílias brasileiras. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 42, São Paulo: Cortez, 1993, p. 68-77.

CALDERÓN, Adolfo Ignacio; GUIMARÃES, Rosamélia Ferreria. Família: a crise de um modelo hegemônico. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 46, São Paulo: Cortez, 1994, p. 21-34.

CAPONI, Sandra. Da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência médica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. 100 p.

CANZIONE, Maria de Lourdes. A política de atenção às pessoas com necessidades especiais. In: SILVA, Luiz A. Palma; STANISCI, Silvia Andrade (org.). Assistência Social: parâmetros e problemas, Brasília: MPAS/SEAS; São Paulo: Fundap, 1999, p. 129-134.

CARVALHO, Luiza. Família chefiadas por mulheres: relevância para uma política social dirigida. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 57, São Paulo: Cortez, 1998, p. 74-96.

CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. A priorização da família na agenda da política social. In: KALOUSTIAN, Sílvio Manoug (Org.). Família brasileira: a base de tudo. 5ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNICEF, 2002. p. 93-108.

_____. Famílias e políticas públicas In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE; FALLER, Maria Amalia (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE,PUCSP, 2003. p. 267-274.

CASTRO, Alba Tereza Barroso de. Espaço público e cidadania: uma introdução ao pensamento de Hannah Arendt. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 59, São Paulo: Cortez, 1999, março, p. 9-23.

COLLIÈRE, M. F. Promover a vida. Lisboa: ed. SEP, 1989.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 392 p.

Page 125: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

125

DEMO, Pedro. “Focalização” de políticas sociais: debate perdido, mais perdido que a “agenda perdida”. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 76, São Paulo: Cortez, 2003, novembro, p. 93-117.

DRAIBE, S. M. O Welfare State no Brasil, características e perspectivas. In: Revista da ANPOCS, n. 12. São Paulo, 1988.

FALCÃO, Maria do Carmo. O conhecimento da vida cotidiana: base necessária a prática social. In: NETTO, José Paulo; FALCÃO, Maria do Carmo. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1989, p. 13-62.

FALEIROS, Vicente de Paula. Estratégias em Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997. 208 p.

FARIA, Carlos Aurélio pimenta de. Desenvolvimento da política sueca para a família: múltiplas lógicas e inflexões. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 64, São Paulo: Cortez, 2000, p. 97-120.

FONSECA, Maria Thereza Nunes Martins. Famílias e políticas sociais: subsídios teórico e metodológicos para a formulação e gestão das políticas com e para famílias. Belo Horizonte, 2002, 151p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Governo Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte. Programa de Mestrado em Administração Pública.

FONSECA, Ana Maria Medeiros da. Família e política de renda mínima. São Paulo: Cortez, 2001. 232 p.

FONSECA, Márcio Alves. Direito e exclusão: uma reflexão sobre a noção de deficiência. IN: Instituto Brasileiro de Advocacia Pública: São Paulo, Max Limonad, n. 1, 1999, p. 117-127.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1992. 295 p.

GARRIDO DE PAULA, P. A.,MORTARI, L. M. A defesa dos interesses da pessoa com necessidades especiais. IN: Instituto Brasileiro de Advocacia Pública: São Paulo, Max Limonad, n. 1, 1999, p. 129-134.

GODOY, Paulo de. Eugenia e seleção. São Paulo. Tese (Doutorado) Faculdade de Medicina e cirurgia de São Paulo, São Paulo, 1927.

GOMES, Ana Lígia. O significado e o alcance social do benefício de prestação continuada. In: Cadernos do CEAM. Conflitos de interesses e a política de regulamentação da política de assistência social. Brasília: CEAM/NEPPOS, 2002, p. 81-112.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra S/A, 1985.121 p.

HESPANHA, Pedro et al. (2000), Entre o Estado e o Mercado, As fragilidades das instituições de protecção social em Portugal. Coimbra: Quarteto.

______ et al. (2002), A globalização do risco social: uma introdução. In: HESPANHA, Pedro; CARAPINHEIRO, Graça (orgs.) Risco Social e Incerteza: pode o Estado Social recuar mais? Porto: Afrontamento, p. 13-23.

Page 126: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

126

HOFMEISTER, Wilhelm. Prefácio. In: ACOSTA, Ana Rojas et al. Famílias beneficiadas pelo Programa de Renda Mínima em São José dos Campos/SP: aproximações avaliativas In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE; FALLER, Maria Amalia (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE, PUCSP, 2003. p. 13-17.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. O serviço Social na contemporaneidade: dimensões históricas, teóricas e ético-políticas. CRESS – CE. Ceará, 1997.

JANNUZZI, Gilberta. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1985. p. 123.

KOMEYAMA, Nobuco. Filantropia empresarial e entidades da sociedade civil. In: Capacitação em serviço social e política social: módulo 4: o trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: UnB, Centro de Educação Aberta, Continuada a Distância, 2000. p. 197-213.

LISBOA, Teresa Kleba. Gênero, classe e etnia: trajetórias de vida de mulheres migrantes. Florianópolis: editora da UFSC; Chapecó: Argos, 2003. 192 p.

LYRA, Jorge et al. Homens e cuidado: uma outra família? In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE; FALLER, Maria Amalia (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE, PUCSP, 2003. p. 79-91.

LOSACCO, Silvia. O jovem e o contexto familiar. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE; FALLER, Maria Amalia (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE,PUC-SP, 2003. p. 63-76.

MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002. 228 p.

MENDES, Enicéia Gonçalves. Deficiência mental: a construção científica de um conceito e a realidade educacional - São Paulo, 1995, p. 385. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia. Curso de Pós-Graduação em Psicologia.

_____. Um rótulo a procura de significado. In: Vivência: Revista da Fundação Catarinense de Educação Especial. Santa Catarina: Secretaria de Estado da Educação e Desporto, 1996, p. 9-23.

MIOTO, Regina Célia Tamaso. Família e Serviço social: contribuições para o debate. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 55, São Paulo: Cortez, 1997, p. 114-130.

_____. Família e saúde mental: contribuições para reflexão sobre processos familiares. In: Revista Katálysis - Universidade Federal de Santa Catarina; Centro Sócio Econômico; Departamento de Serviço Social. Florianópolis: editora da UFSC, 1997, p. 20-26.

_____. Cuidados sociais dirigidos à família e segmentos sociais vulneráveis. In: Capacitação em serviço social e política social: módulo 4: o trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: UnB, Centro de Educação Aberta, Continuada a Distância, 2000. p. 215-224.

MOTA, Ana Elizabete. Seguridade Social. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 50, São Paulo: Cortez, 1996, abril, p. 191-195.

Page 127: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

127

MURARO, Rose Marie. Homem/Mulher: início de uma nova era. Rio de Janeiro: Artes e Contos, 1994.

NETTO, José Paulo. Para a crítica da vida cotidiana. In: NETTO, José Paulo; FALCÃO, Maria do Carmo. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1989, p. 63-93.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Em defesa da política. São Paulo: Editora SENAC, 2001. (Série Livre Pensar 6). 151 p.

_____. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez, 2004. 263 p.

NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. O direito à saúde na reforma do estado brasileiro: construindo uma nova agenda. 2002. 347f.. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

OLIVEIRA, Jaime A. de e TEIXEIRA, Sonia M. F. (Im) previdência Social. 60 anos de história da previdência no Brasil, Coleção Saúde e Realidade Brasileira. 2a. ed. Petropólis: Vozes/ABRASCO. 1989.

PAIVA, Beatriz Augusto de. A assistência como política pública: uma contribuição para o estudo da LOAS. Rio de Janeiro, 1993. Tese de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

_____. Algumas considerações sobre Ética e Valor. In: BONETTI, Dilséa Adeodata, et al. Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 1996, p. 105-110

_____; ROCHA, Paulo E. (2001), O financiamento da política de assistência social em perspectiva. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n.68, São Paulo: Cortez, novembro, p. 83-110.

Paiva, Beatriz. A política de financiamento da assistência social: a imprecisa tradução da loas. Aldaíza Sposati - São Paulo, 2003, 474. f il.; anexos. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social.

PAUGAM, Serge. As formas elementares da pobreza nas sociedades européias. In: VÉRAS, Maura Pardini Bicudo; SPOSATI, Aldaíza; KOWARICK, Lúcio. Por uma sociologia da exclusão social: o debate com Serge Paugam. São Paulo: Educ, 1999. 142 p.

PEREIRA, Potyara. Desafios contemporâneos para a sociedade e a família. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 48, São Paulo: Cortez, 1995, agosto, p. 103-114.

_____. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 2002. p. 215.

PESSOTTI, I. Deficiência Mental da superstição à ciência. São Paulo: T. A. Queiroz editor Ltda. EDUSP, 1984.

PORTO, Maria Célia da Silva. Cidadania e “(des)proteção social”: uma inversão do Estado brasileiro? In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 68, São Paulo: Cortez, 2001, novembro, p. 17-31.

Page 128: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

128

Programa de proteção sócio-ssistencial a grupos familiares: uma estratégia de qualificação da LOAS. 2003. Mimeo.

QUINTANEIRO, Tânia; BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardência de. Um toque de clássicos: Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995. 157 p.

RAICHELIS, Raquel. 10 anos depois da constituição cidadã. In: Revista Inscrita, no. 03. Rio de Janeiro. CFESS, 1998.

RAMIRES, Vera R. O exercício da paternidade hoje. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1997.

REGEN, Mina; ARDORE, Marilena; HOFFMANN, Vera Maria Bohner. Mães e filhos especiais: relatos de experiência com grupos de mães de crianças com deficiência. Brasília: CORDE, 1993. 137 p.

REGEN, Mina; ARDORE, Marilena; HOFFMANN, Vera Maria Bohner. Eu tenho um irmão deficiente... Vamos conversar sobre isto? São Paulo: Edições Paulinas, 1988. 108 p.

RIBEIRO, Maria Salete. A questão da família na atualidade. Florianópolis: Ioesc, 1999. p. 49.

SARTI, Cyntia Andersen. Famílias enredadas. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE; FALLER, Maria Amalia (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE, PUCSP, 2003. p. 21-36.

_______ . A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2003a. 152 p.

SAWAIA, Bader B. Família e afetividade: a configuração de uma práxis ético-política, perigos e oportunidades. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, FALLER, Maria Amalia. (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE/PUCSP, 2003. p. 39-50.

SOUZA, Marli P.; TAKASHIMA, Geney M. Karazawa. A “cidadanização” da mulher em seu contexto familiar: um desafio ético ao Serviço Social. In: Revista Katálysis - Universidade Federal de Santa Catarina; Centro Sócio Econômico; Departamento de Serviço Social. Florianópolis: editora da UFSC, 1997, p. 85-90.

SPOSATI, Aldaíza. Conjuntura da Assistência Social brasileira. In: Cadernos ABONG, n. 19. São Paulo: Peres, outubro, 1997, p. 11-23.

_____. Desafios para fazer avançar a política de Assistência Social no Brasil. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 68, São Paulo: Cortez, 2001, novembro, p. 54-82.

SZYMANASKI, Heloiza. Ser criança: um momento do ser humano. In: In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, FALLER, Maria Amalia. (Orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE/PUCSP, 2003. p. 53-60.

TAKASHIMA, Geney M. Karazawa. Família e saúde mental: contribuições para reflexão sobre processos familiares. In: Revista Katálysis - Universidade Federal de Santa Catarina;

Page 129: A experiência das famílias com pessoas com necessidades ... · envelhecimento e sua caracterização histórica singular, ... seja, configuram a existência singular da pessoa com

129

Centro Sócio Econômico; Departamento de Serviço Social. Florianópolis: editora da UFSC, 1997, p. 29-40.

_____. O desafio da política de atendimento à família: dar vida às leis - uma questão de postura. In: KALOUSTIAN, Sílvio Manoug (Org.). Família brasileira: a base de tudo. 5ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNICEF, 2002. p. 77-92.

THOMAE, Inceborg; FRYERS, Thomas. Pessoas deficientes mentais idosas ou em processo de envelhecimento. Brasil: Mensagem da APAE, 1982, julho/setembro, p. 28-30.

VÉRAS, Maura Pardini Bicudo; SPOSATI, Aldaíza; KOWARICK, Lúcio. Por uma sociologia da exclusão social: o debate com Serge Paugam. São Paulo: Educ, 1999. 142 p.

VIEIRA, Evaldo A. As políticas sociais e os direitos sociais no Brasil: avanços e retrocessos. In: Serviço Social e Sociedade, ano XVIII, no. 53. São Paulo, Cortez, março, 1997, p. 67-73.

ZIMMERMANN, Tarcísio. Uma nova agenda para a cidadania no governo Lula: a implantação da Lei Orgânica da Assistência Social. Brasília: Centro de Documentação e Informação - Coordenação de Publicações, 2003. 28 p.

YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e Assistência Social. São Paulo: Cortez, 1993.

_____. A política social brasileira nos anos 90: a refilantropização da questão social. In: Cadernos ABONG. São Paulo: CNAS/ABONG/apoio UNICEF, Série Especial - subsídios à Conferência Nacional de Assistência Social, 1995.