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A EXCLUSÃO NO ACESSO À TERRA PÚBLICA NO ESTADO DE
SÃO PAULO
Júlia Azevedo Moretti
Advogada, formada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mestre em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável pela University College London (UCL), [email protected], Rua Caiubi,
1277 ap.45, São Paulo SP CEP 05010-000
Ricardo de Sousa Moretti
Engenheiro Civil, Mestre em Engenharia de Solos e Doutor em Construção Civil e Urbana pela Universidade
de São Paulo, professor da Universidade Federal do ABC, [email protected], (11) 3673 1567, Rua
André Casado, 271, São Paulo SP, 01259-040.
Carolina L. M. de Castro
Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo,
professora da Universidade Federal de São Carlos, [email protected], 11-29592963, Rua Altinópolis, 91
ap.54, São Paulo- SP, 02334-000.
Maria Lúcia D’Alessandro
Engenheira Civil, Mestre pela Fundação Getúlio Vargas, engenheira da Prefeitura Municipal de São Paulo
cedida para a Secretaria do Patrimônio da União, [email protected], Rua Domingos Oswaldo
Bataglia, 67 - Bairro Mirandópolis, CEP 04051-090 São Paulo - SP.
Patricia Zandonade
Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, doutoranda no
programa de pós-graduação em Energia da UFABC, [email protected], (11) 3926 9859, Rua André
Casado, 271 São Paulo SP 01259-040
Resumo
O estudo visa à compreensão dos processos de transferência das terras públicas
para uso privado, com ênfase na análise dos processos ocorridos no Estado de São
Paulo. Apresenta-se um breve histórico da gestão de terras no Brasil, o embasamento
normativo para a destinação de terras, seguindo-se uma análise sobre a gestão das terras
públicas nas três esferas de governo. A pesquisa busca elementos para o entendimento
dos processos e mecanismos utilizados para viabilizar o registro e oficialização do
1
domínio privado sobre grandes extensões de terra, produzindo e reproduzindo um modelo
que exclui parcela significativa da população do acesso à terra urbana e rural e gerando
profundos conflitos fundiários, além de inesgotáveis irregularidades.
Palavras-chave: gestão de terras, patrimônio público, propriedade privada, concentração
fundiária.
Introdução
A concentração fundiária, no campo e na cidade, e a exclusão de grandes parcelas da
população aos direitos de propriedade ou mesmo de segurança na posse, são problemas
de base quando se tem como perspectiva uma sociedade com condições dignas de vida
para todos. No Brasil, a gestão das terras públicas e a sua distribuição para uso particular
estão na raiz da concentração fundiária existente. Como se verá neste artigo, grande
parte das terras públicas foram repassadas para uso particular em passado recente. A
complexa estrutura normativa sobre os processos de transferência, longe de proteger o
pequeno usuário da terra, viabilizou a grande propriedade. Segundo Holston (2008)
intricados mecanismos legais, além de reforçarem modelos de apropriação e
gerenciamento fundiário que excluem a maioria da população, tornaram sistemática a
inviabilidade de resolução dos conflitos pela terra.
A informalidade foi a tônica da produção dos espaços urbanos e continua a ser um
grande problema, afetando entre 40% e 70% daqueles que vivem nas cidades
(FERNANDES, 2006, p. 56). Essa informalidade está intimamente relacionada com a
impossibilidade prática de acesso à terra pelos mecanismos legais e formais. Em todas as
cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes encontram-se assentamentos
informais, com péssimas condições de vida, encontrando-se esses assentamentos
também em 80% dos municípios médios, com população entre 100 mil e 500 mil
habitantes (IBGE, 2008).
Na área rural, a inviabilidade de acesso à terra insere-se no âmbito do processo de
concentração fundiária, que permanece praticamente inalterado desde 1985. Segundo o
Censo Agrário de 2006, divulgado pelo IBGE em 2008, enquanto as propriedades de
menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área agrícola, a área dos
estabelecimentos de mais de 1.000 hectares concentram mais de 43%. O Índice de Gini -
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medida internacional de desigualdade - no meio rural chegou a 0,8721, superando o dos
anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856).
A história da propriedade no Brasil indica que a maior parte do território nacional
encontrava-se no domínio público há menos de cem anos. A grande transferência de
terras públicas para uso privado aconteceu em passado recente, muitas vezes por meio
da utilização de subterfúgios que, contrariando objetivos legais, facilitaram o acesso de
ricos e poderosos a grandes extensões de terra em nome da geração de riqueza nos
termos dos processos produtivos dominantes.
A concepção normativa fundada no individualismo que orientou a ordem jurídica
da primeira metade do século XX aliada a uma concepção liberal do direito de
propriedade, baseada em títulos abstratos e não na relação efetiva do homem com a
terra, levaram à sub-utilização dos imóveis e à desigualdade na sua distribuição. Isso
pode ser ilustrado com os dados de um recenseamento realizado em 1920 que indicam
que a somatória de áreas dos estabelecimentos rurais privados correspondia a pouco
mais que 20% do território nacional (LIMA, 1988 p. 107). No caso de São Paulo, em 1886
toda a porção oeste do estado, área que ainda não havia sido alcançada pela malha
ferroviária, encontrava-se despovoada (figura 1)2.
1 Pela tabela de Gini, que vai de zero a 1, quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade na renda.2 As dimensões de áreas vazias são significativas ainda que não se possa afirmar que todas essas terras eram públicas (devolutas), pois parte delas pode ter sido objeto de títulos de domínio válidos, embora não tenha sido ocupada.
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Figura 01: Mapa da Província de São Paulo – 1886 (da Sociedade Promotora de Immigração de São Paulo)
Fonte: Cavenaghi, Airton José. Anais do Museu Paulista v.14 n.1 São Paulo-SP. Junho- 2006 em
www.scielo.br, acessado em 01 de julho de 2008.
Considera-se importante avançar no conhecimento sobre a gestão das terras
públicas e sobre o recente processo de transferência para o domínio privado. Como foi
possível viabilizar a regularização fundiária considerando a existência de limitações legais
para a transferência de grandes extensões de terra ao domínio privado? Como isso
ocorreu no Estado de São Paulo, uma vez que a partir de 1891 a gestão das terras
públicas é transferida para o âmbito estadual? São essas questões que norteiam o
esforço de investigação apresentado nesse trabalho.
Histórico de gestão de terras no Brasil
A história da propriedade no Brasil mostra o poder público como um grande
proprietário imobiliário até o final do século XIX. A transferência do domínio público para o
domínio privado operou-se por meio de instrumentos jurídicos de repasse de direitos
sobre a terra. Assim foi o instituto das sesmarias, utilizado no período colonial, até 1822.
Inicialmente utilizado em conjunto com o regime das capitanias hereditárias, os donatários
recebiam gratuitamente da Coroa Portuguesa um título (Carta de Sesmaria) que
legitimava sua posse sobre a terra e lhes concedia direitos, inclusive os de fundar vilas e
dar novas sesmarias.
Na transposição do regime das sesmarias ao Brasil o instituto adquire um espírito
latifundiário: na prática, o limite máximo legal de três léguas era excedido graças a
benesses do soberano3 e acabou deixando como legado terras despovoadas, apesar de
estarem quase todas repartidas, famílias pobres vagando pelo território sem condições de
se estabelecer definitivamente em terreno algum enquanto alguns proprietários possuíam
verdadeiros latifúndios e, ainda assim, a agricultura pouco desenvolvida (Gonçalves
Chaves apud LIMA, 1988).
3 O Alvará de 5 de outubro de 1795, reconhecendo irregularidades e abusos no processo de distribuição de sesmarias, estabeleceu que o limite de 3 léguas (6.600 m) deveria ser compatibilizado com as necessidades de aumento do cultivo, afirmando no item XI que “sendo, como he, por huma parte justo que cada Sesmeiro não tenha mais terra de Sesmaria que aquella, que póde cultuvar por si, e seus Escravos, não se lhes concedendo mais que huma só Sesmaria, e esta quando muito de três Legoas (...) possa cada hum dos seus Sesmeiros possuir duas, ou mais Sesmarias, com tanto que tenhão possibilidades, e numero de Escravos, que inteiramente cultivem humas, e outras terras” (IUS LUSITANIAE, s/d).
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Em 1822 foi suspensa a doação de sesmarias e até 1850, na ausência de leis
regulamentando a questão fundiária, predominou a ocupação como forma de obtenção da
terra. Segundo Leandro Silva, nesse período “predominaram a esperteza, a prepotência e
a ilegalidade nos apossamentos de terra. A maior parte dos pequenos posseiros
sucumbiu diante das arbitrariedades existentes no campo” (SILVA, 2008, p.88). Com a
promulgação da Lei de Terras em 1850 as posses do período entre 1822 a 1850, desde
que acompanhadas do cultivo efetivo, foram reconhecidas como meio legítimo de
aquisição de domínio. No entanto, o regime da posse acabou beneficiando grandes
fazendeiros que compravam posses ou simplesmente se apropriavam da posse de
pequenos agricultores e expandiam suas plantações (TORRES, 2007).
Com a promulgação da Lei de Terras (Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850) foi
estabelecido um novo regime jurídico: a aquisição da propriedade se dava pela venda a
vista e a preços mínimos, via de regra em hasta pública, após a realização dos trabalhos
de medição, divisão e demarcação das terras devolutas. As terras devolutas foram
definidas na lei como aquelas que não se achavam destinadas a algum uso público e
tampouco se encontravam no domínio particular.
Os recursos obtidos com a venda da terra eram destinados a financiar o processo
de substituição da mão-de-obra escrava por meio da colonização. O novo regime jurídico
transformou a terra em capital, mercadoria acessível somente aos que pudessem explorá-
la lucrativamente, um bem suficientemente caro de forma a garantir que grande parte dos
trabalhadores permanecesse presa ao latifúndio e vendesse sua força de trabalho. Fica,
portanto, evidente a relação umbilical entre a política de terras e a de mão-de-obra,
ambas tratadas por uma lei que teve seu debate pautado pelos interesses da grande
lavoura de exportação e pela necessidade de substituição da mão-de-obra escrava.
A Lei de Terras é uma errata da política de terras anterior: foram revalidadas as
sesmarias cultivadas, independentemente do cumprimento das condições de validade do
titulo, por exemplo, medição e confirmação; bem como foram legitimadas as posses com
cultura efetiva e morada habitual. Por meio da lei, também foram regularizadas as vendas
de posses e de sesmarias (Gráfico 01).
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Gráfico 01: Possibilidade de origem dos títulos legítimos
De forma geral, a legislação estabelecia limites para a extensão das propriedades
privadas: como já afirmado, as sesmarias tinham limites máximos e as posses a serem
revalidadas não poderiam exceder o tamanho de uma sesmaria de cultura ou criação (art.
44, Decreto 1.318/1854). A fixação legal de um tamanho para os lotes se aplicava
inclusive às terras devolutas a serem vendidas (Art. 14, §1º Lei 601/1850 e Art. 12
Decreto 1.318/1854), ainda que não houvesse limitação à aquisição de mais de um lote.
Apenas nos casos de compra e venda é que foi assegurado o domínio privado
independentemente da extensão de terras (art. 22, Decreto 1.318/1854). Interessante
notar que os títulos de venda e compra eram amplamente aceitos, independentemente de
maiores formalidades como no das posses que ficavam sujeitas a um processo de
legitimação.
A legislação também criou um sistema de levantamento dos possuidores de terras,
um registro com finalidade estatística que subsidiaria a formação de um registro geral de
terras. Todos os possuidores de terra estavam obrigados a declarar, dentro de prazo
máximo de 2 anos (art. 92, Decreto 1.318/1854), a extensão de suas terras. Os registros
ficaram a cargo dos vigários4. Os registros paroquiais, feitos a partir de declaração dos
4 Os emolumentos eram cobrados de acordo com o número de letras da descrição (art. 103, Decreto 1.318/1854) sendo que tal sistema de cobrança originou registros sucintos, com indicação de perímetros a
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sesmaria originária
posse originária
posse derivada, sem título
título de venda e compra
válida
em comisso (sem medição/validação)
legitimação
legitimação
sesmarias derivadas
posses derivadas
revalidação
TíTULOS LEGíTIMOS (LEI DE TERRAS E DECRETO, 1854):
A
B
C
próprios possuidores, não tinham a atribuição de gerar domínio ou transferir propriedade
(art. 94, Decreto 1.318/1854)5.
Mesmo não sendo título de domínio, o registro paroquial foi e continua sendo
admitido, no âmbito de ações judiciais, como evidência de posse apta a gerar domínio.
Após a proclamação da República, a Constituição de 1891 adotou um caráter
descentralizador e atribuiu aos Estados o domínio sobre as terras devolutas existentes no
seu território. Essa descentralização, porém, “concorreu para o aumento das grandes
fazendas improdutivas, fortalecendo ainda mais o sistema de latifúndios, que se tornou
mais consistente” (SILVA, 2008, p. 97).
Em São Paulo, leis estaduais ampliaram significativamente as formas de aquisição
do domínio privado. Em 1934, por meio do Decreto 6.473, foram admitidos como legítimos
títulos obtidos até 1878, estendendo em 24 anos o prazo anteriormente fixado pelo
decreto regulamentador da Lei de Terras como limite para que títulos particulares fossem
considerados válidos.
Em relação à usucapião de terras públicas, o supramencionado decreto estadual
reconheceu o domínio privado em duas situações: ocupação consumada até 1889 e
posse por trinta anos até a promulgação do Código Civil de 1916, neste caso apenas se
houvesse cultura efetiva e morada habitual. Por se tratarem de hipóteses diferentes,
pode-se entender que a ocupação consumada até 1889 tem o condão de gerar domínio
independentemente de utilização e aproveitamento efetivos. Logo em seguida, a
legislação estadual ampliou ainda mais o prazo para usucapião de bens públicos,
admitindo posses até 1945 (Decreto nº 14.916/45).
A jurisprudência também facilitou a usucapião de terras públicas ao adotar
entendimento de que a proibição para aquisição de bens públicos por usucapião, apesar
de estipulado pelo Código Civil de 1916, somente passou a vigorar com a promulgação do
Decreto nº 22.785/33. Esse entendimento postergou em 17 anos a possibilidade de
usucapião de terras públicas, contrariando o próprio texto do Decreto, verdadeiro ato de
interpretação autêntica que se destinava a espancar dúvidas sobre a insuscetibilidade de
partir de feições geográficas e confrontantes. Essa vagueza tem reflexos até os dias de hoje em conflitos decorrentes da sobreposição de títulos e dificuldades em se estabelecer limites precisos a imóveis.5 Nesse sentido, podemos citar a jurisprudência incorporada na sentença proferida pelo Juiz Vito José Guglielmi nos autos da ação discriminatória do 15º perímetro Teodoro Sampaio (http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista4/parte3.htm em 10/03/2008), em especial “O registro do vigário não é título de domínio (Acórdão n. 12.007 – RT, v. 60, p. 86).
7
usucapir bens públicos, além de destoar da posição adotada pelo Supremo Tribunal
Federal6 e de atual dispositivo constitucional (art. 183, §3º, CF).
Vale lembrar que o regime de posses raramente beneficiou os pequenos
proprietários que tradicionalmente tiveram limitado acesso à justiça, portanto não se
valeram de ações judiciais para converter suas posses em propriedades, tampouco se
beneficiaram dos regimes jurídicos favoráveis à posse, pois colocados à margem do
sistema legal e, em condição de hipossuficiência, subjugados a arbitrariedades.
Independentemente de pertencerem ao Governo Federal, Estadual ou Municipal,
as terras devolutas deveriam ter sido discriminadas do domínio privado para então serem
destinadas, inclusive por venda. A recorrente dificuldade em identificar as terras públicas
aliada a descrições precárias das terras possuídas por particulares, ao cipoal normativo e
ao descompasso entre a lei e a capacidade de gestão, criam um quadro de incerteza
dominial que beneficia grileiros e latifundiários.
Bens públicos: gestão e transferência para o domínio privado.
A instituição de um conceito legal de terras devolutas foi fundamental para, no
esforço inicial empreendido com a promulgação da Lei de Terras, distinguir os bens de
domínio público da propriedade privada e estabelecer um sistema de transferência de
terras públicas aos particulares.
Assim, uma vez identificados os bens públicos7 é necessário verificar em que
hipóteses há interesse em manter o bem sob a égide do poder público e, por outro lado,
quais são os casos em que o bem pode ser plenamente transferido para particulares
(ABE, 2006)
Ainda que os bens públicos estejam submetidos a um regime jurídico específico
sendo, via de regra, inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis, a inalienabilidade não é
absoluta e os bens dominicais podem ser transferidos a particulares, transferências essas
que podem implicar na passagem de domínio pleno ou na cessão de direitos. Quando há
transferência de domínio pleno, o bem se torna particular e o único meio de o poder
público reavê-lo é pela desapropriação. Nos casos de cessão de direitos, apenas alguns
6 Súmula STF nº 340 - “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”.7 No tocante à administração direta, a relação dos bens pertencentes à União encontra-se no art. 20 da Constituição e em leis específicas, por exemplo, Decreto-lei 9.760/46, Os bens dos Estados encontram-se relacionados no art. 26 do texto constitucional, enquanto as terras públicas municipais são compostas, principalmente, por terras devolutas existentes na área urbana e pela doação de áreas públicas por ocasião do parcelamento do solo para fins urbanos.
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dos poderes elementares do domínio são transferidos e, após a outorga do título, a terra
continua sendo pública.
A transferência plena de domínio opera-se, normalmente, por meio de venda,
permuta ou doação8. No caso de cessão de direitos, os instrumentos jurídicos permitem
um desmembramento dos direitos inerentes à propriedade, viabilizando o uso privativo de
imóveis por particulares e assegurando, simultaneamente, sua manutenção sob o domínio
estatal para o atendimento de interesses públicos.
3.1 União
Em relação aos bens da União, os imóveis administrados no Estado de São Paulo
correspondem a uma área de 4.632 km², o que representa apenas 1,86% da superfície do
Estado (figura 02). Não obstante inclui bens valiosos quando se considera a significativa
parcela de terrenos de marinha e seus acrescidos, bens responsáveis pela manutenção
do equilíbrio entre o continente e o oceano exercendo, portanto, uma função ambiental,
localizados especialmente em municípios litorâneos, onde há significativa concentração
populacional de atividades econômicas.
Figura 02: Espacialização das áreas cadastradas e administradas pela Gerência Regional do Patrimônio da
União no Estado de São Paulo (GRPU/SP), conforme dados dos sistemas de informação. O mapa indica as
8 No âmbito do Estado de São Paulo, o procedimento discriminatório prevê ainda a legitimação de posse (art. 49 e seguintes, Decreto nº 14.916/45) por meio da qual o domínio de terras devolutas é plenamente repassado aos ocupantes.
9
municipalidades onde se concentram as maiores extensões de áreas de propriedade da União, já
cadastradas. Fonte: dados da SPU
Em termos percentuais, a pequena superfície poderia ser explicada, ao menos em
parte, pela paulatina transferência de imóveis aos particulares e pelo repasse das terras
devolutas ao Estado, com o advento da Constituição de 1891. Ainda assim o dado causa
estranheza e a compreensão do fenômeno passa pela lógica arrecadatória que orienta
inclusão de informações nos sistemas utilizados pela Secretaria do Patrimônio da União
(SPU). A relação de imóveis cadastrados nos sistemas cadastrais informatizados9 inclui
apenas os bens com destinação certa, uso conhecido e, preferencialmente, passíveis de
cobrança. Existem áreas que, apesar de pertencerem à União, não estão incluídas nos
sistemas cadastrais, por exemplo, as áreas que não foram demarcadas, inclusive as que
se ganhou do mar e dos rios por aterros, parte delas inclusive já ocupada, áreas com
destinação gratuita, ou mesmo terrenos dominicais já demarcados, mas sem uso.
Para a transferência de direitos aos particulares, com manutenção do domínio
público da União, os instrumentos mais comumente utilizados são aforamento e inscrição
de ocupação. O aforamento, espécie de direito real, divide o domínio em direto e útil,
sendo este último transferido ao particular em proporção equivalente a 83% do domínio
pleno do terreno (art. 123, Decreto-lei 9.760/46). Originalmente, o aforamento objetivava
servir como estímulo à produção com a colaboração do particular e “tornar possível o
aproveitamento de terras incultas ou abandonadas” (BEVILAQUA, 1953, p. 248),
mantendo-se o bem sob a égide da União em razão de interesse público, nos termos da
legislação federal (art. 64, §2º, Decreto-lei nº 9.760/46). Com o passar do tempo, houve
um desvirtuamento do instrumento, que foi utilizado principalmente para finalidades
arrecadatórias: o Poder Público não adotou a prática de incluir nos contratos de
aforamento obrigações de fazer compatíveis com o interesse público que determinou a
aplicação do regime enfitêutico: a obrigação de pagar foros e laudêmios10 é o único ônus
ao qual o enfiteuta fica submetido. Também não é prática comum a revisão de
aforamentos concedidos, com objetivo de verificar se subsiste o interesse público em
9 Existem dois sistemas de gestão de imóveis: o Sistema Integrado de Administração Patrimonial (SIAPA), no qual são cadastrados os bens dominicais, que correspondem a quase 63 mil km² em todo o Brasil e, no Estado de São Paulo, totalizam 67.640 imóveis cadastrados, abrangendo pouco mais de 4 mil km²; e o Sistema de Gerenciamento dos Imóveis de Uso Especial da União (SPIUNet) no qual são cadastrados bens de uso especial, que correspondem à 1,4 mil imóveis cadastrados no Estado de São Paulo que abrangem uma área de cerca de 566 km².10 O particular fica obrigado a pagar anualmente o foro (0,6% do valor do imóvel) e, em cada transferência, o laudêmio ( 5% do valor do domínio pleno e benfeitorias).
10
manter a terra sob o domínio da União ou se é o caso de remir o aforamento11. Além
disso, não se verifica o exercício do direito de preferência12 na aquisição do domínio no
caso de transferências que, por exemplo, poderiam significar uma destinação contrária ao
interesse público.
A inscrição de ocupação é um ato administrativo precário por meio do qual se
reconhece a posse exercida por um particular sem título outorgado pela Administração
Pública, sendo mero ato administrativo revogável a qualquer tempo. O reconhecimento de
uma situação de fato gera apenas a obrigação de pagar anualmente a taxa de ocupação
(correspondente a 2% ou 5% do valor do imóvel) e do laudêmio nos casos de
transferência. Apesar de ser o instituto mais comumente utilizado (67% dos imóveis
cadastrados são ocupados) a extensão dos imóveis ocupados é menor do que das áreas
aforadas que, em algumas cidades, chegam a constituir pequenos latifúndios urbanos.
A lei 11.481/2007 ampliou o rol de instrumentos que a União pode utilizar,
especialmente nos casos de regularização fundiária de interesse social, incluindo
expressamente a possibilidade de utilização da concessão de uso especial para fins de
moradia e da concessão de direito real de uso para a destinação de imóveis da União,
inclusive terrenos de marinha e seus acrescidos. Além dos instrumentos previstos no
Decreto-lei 9.760/46, na Lei 9.636/98 e na Lei 11.481/07, a União pode fazer uso de
outros institutos, inclusive aqueles previstos no Estatuto da Cidade.
A supramencionada lógica arrecadatória que orientou a gestão do patrimônio
público durante muitos anos não favoreceu a justa distribuição de terras, mas sim, a
alocação para aqueles que pudessem pagar. Não se destinavam os imóveis àqueles sem
acesso a terra pelo mercado, mas dava-se preferência aos que apresentavam títulos de
propriedade da área e os que, tendo ocupado, se dispunham a pagar e regularizar junto à
União. Apesar de objetivar que “todo imóvel da União cumpra sua função socioambiental
em equilíbrio com a função de arrecadação” (SPU, 2005), ainda são inúmeros os desafios
à gestão do patrimônio público desde a correta identificação e cadastro dos bens até a
administração dos imóveis já cadastrados.
3.2 Estado de São Paulo
11 Remissão é o ato de consolidação do domínio nas mãos de uma única pessoa.12 O aforamento cria co-propriedade que tem como uma de suas regras gerais a preferência no caso de alienação dos poderes pertencentes a qualquer dos condôminos. Nesse sentido a necessidade de o poder público autorizar a transferência do domínio útil (art. 3º, §2º, Decreto-lei 2.398/87).
11
Em relação aos bens do Estado de São Paulo, a gestão das terras devolutas foi
regulamentada pelo Decreto nº 14.916/45, recentemente revogado pela Lei 12.392 de 13
de maio de 2006 e atualmente, as ações discriminatórias são regidas por lei federal, Lei
6.383/76, e a legislação estadual está centrada na legitimação de posse (Decreto nº
28.389/88 e Lei 11.600/03).
O Decreto nº 14.916/45 preservou, em linhas gerais, o espírito da Lei de Terras de
1850, que previa a transferência de terras públicas por meio de venda, olhando para o
passado e resguardando direitos possessórios. Estabeleceu que as terras devolutas
poderiam ser transferidas ao domínio privado por meio de alienação onerosa, após
processo de concorrência pública (art. 71 e 73), por meio da legitimação de posse ou por
meio de concessão gratuita aos respectivos ocupantes, em lotes não maiores que 25
hectares (art. 72). Além disso, as terras poderiam ser reservadas pelo governo para uso
especial de interesse público, como aquelas necessárias para a alimentação,
conservação e proteção de mananciais. As vendas, concessões e arrendamentos não
poderiam exceder 300 ha de terras de matas, e 500 ha em terras de campo, cerrados ou
caatingas, consideradas dimensões adequadas para evitar a constituição de latifúndios
(art. 77). A legislação atualmente em vigor (Lei Estadual nº 3.962 de 24 de julho de 1957 e
Decreto n. 28.389/88) concentra esforços na legitimação de posse, que é o
reconhecimento das posses existentes em terras devolutas devidamente discriminadas,
com a possibilidade de aquisição do domínio por parte daquele que se encontra no
imóvel. Apesar de ter como objetivo privilegiar o uso social das terras devolutas, os
diplomas legais não estabelecem limite de área passível de legitimação além de fixar
expressivas taxas de transferência a serem pagas pelo posseiro (10% do valor da terra).
Apesar das diretrizes estabelecidas nas leis estaduais, é possível afirmar que, no
Estado de São Paulo, ao longo de mais de um século, se assiste o transcorrer de
processos político-administrativos e ações judiciais, que em sua maioria, ou restaram
inconclusos ou ineficientes na preservação do interesse público. Este foi pouco a pouco,
eivado pelo “fato consumado”, envolvendo seguidas incursões de invasores e grileiros em
terras públicas. Segundo Marés, “o instrumento jurídico da concessão e a
discricionariedade do poder público, no século XIX e quase todo o século XX, esteve
subordinado diretamente aos interesses dos poderes oligárquicos (...). Com o poder da
concessão de terras devolutas nas mãos dos Estados, as oligarquias locais, que
passaram a ter competência legislativa, assumiram o incontrolado direito de distribuição
de terras devolutas, inclusive podendo alterar as regras contidas na Lei 601/1850,
12
‘reproduzindo, aprofundando e ampliando o injusto sistema do latifúndio, com as
correspondências que até hoje assistimos de violência no campo e miséria na cidade’.
”(MARÈS, 2003, p.73 e 77, apud COSTA NETO, 2007, p.105).
Na primeira metade do século XX, na direção do Vale do Rio Ribeira do Iguape e
do Centro e Extremo-Oeste do Estado, particularmente no Pontal do Rio Paranapanema,
áreas públicas, quer fossem reservadas por lei ou não, foram invadidas e negociadas,
derrubando-se matas para a instalação de latifúndios. As investidas sobre o domínio do
Estado foram lançadas em um grande leque do seu território, reveladas pela extensão
dos conflitos e da violência. Resultaram no extermínio de populações indígenas e
enfrentamentos armados entre grileiros e posseiros, culminando com mortes e expulsão
dos ocupantes de pequenas áreas, que foram agregadas para formar grandes fazendas.
Visando esclarecer e regularizar a situação fundiária, identificando a exata
localização e extensão das terras devolutas bem como os limites entre propriedades
públicas e privadas, foram propostas ações discriminatórias para perímetros específicos
muitas delas marcadas por profundos conflitos de interesses.
Como se verifica na Figura 03, os principais vetores onde se situam as ações
discriminatórias de terras são: Pontal do Paranapanema, Vale do Rio Ribeira do Iguape,
Vale do Rio Paraíba do Sul, incluindo o Litoral Norte, e a Região de Sorocaba. Os
perímetros de abrangência das ações discriminatórias são pequenos se comparadas com
a extensão territorial do Estado de São Paulo, mas estão lançados sobre porções do
território com concentração de conflitos fundiários, com interesse para o desenvolvimento
de planos de aproveitamento das terras, ou com incidência de unidades de conservação
ambiental.
13
Figura 03: Áreas Prioritárias do Estado de São Paulo para Ação Discriminatória das terras públicas.
Fonte: ITESP - Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo José Gomes da Silva
3.3 Municípios
No tocante aos Municípios, embora não haja, entre os milhares de municípios
brasileiros, um cenário único quanto à gestão das terras públicas municipais, destacam-se
algumas características comuns.
O histórico fundiário municipal está associado ao rossio, que eram terras
concedidas às Câmaras das Vilas para fins de colonização e povoamento. A autonomia
das áreas urbanas durante o período colonial é ressaltada por Roberto Mônaco, segundo
quem “ao longo do período colonial se manteve inalterado o raio de meia légua (3,3 km)
no interior do qual pertenciam ao município as terras devolutas ali contidas. As leis,
alvarás e atos expedidos pela Coroa portuguesa e destinados à questão fundiária, não
tinham por objeto o espaço urbano”(MÔNACO, 2004 p. 48).
14
Parte das terras do rossio podia ser doada ou aforada para particulares para fins
de povoamento e os foros contribuíam para as finanças da Câmara. Porém, no momento
de criação das vilas e municípios e conseqüentemente da constituição do patrimônio
fundiário municipal, constatava-se algum grau de ocupação prévia e, portanto, a área
destinada para o rossio já estava ocupada por particulares, não constituindo terra
devoluta que podia ser utilizada pela Câmara.
Era no rossio que se estabelecia a mediação entre os interesses do Rei e dos
poderosos locais. A Câmara era administrada pelos chamados “homens bons”, que tendia
a não reconhecer qualquer direito dos grupos sociais então excluídos.
No caso de São Paulo, o perímetro do rossio, se manteve inalterado por todo o
período imperial e após a primeira Constituição Republicana (1891) houve um processo
de descentralização da gestão das terras devolutas. Foram repassadas para as
municipalidades áreas contidas no raio de 6 km medido a partir do ponto central dos
núcleos urbanos com população superior a mil habitantes (SILVA, 1996 apud MÔNACO,
2004, p. 51). Posteriormente há uma ampliação do raio para 8 quilômetros (Lei Estadual
nº 2.484/1935) e 12 quilômetros para a capital (Decreto nº 14.916/45). A legislação
paulista do ano de 1891 estabelecia que o perímetro seria demarcado a custo dos
municípios, porém, no caso paulistano, isto não se realizou.
Vale destacar que as terras devolutas administradas pelo município
representavam uma pequeníssima parcela do território total. Essas terras, pouco
expressivas quando analisadas em termos de extensão territorial, têm valor significativo,
quando se leva em conta o alto valor da terra urbana, que cresce quando se intensifica o
processo de urbanização.
Também paras as áreas devolutas urbanas havia regulamentações legais de
tamanho máximo das áreas públicas a serem transferidas para uso privado, fixadas em
22 metros de testada por 110 metros de profundidade. Da mesma forma que na área
rural, a operacionalização prática não atende ao espírito da lei. Não se conseguiu avançar
na demarcação das terras devolutas urbanas e as demarcadas foram sistematicamente
vendidas ou concedidas ultrapassando os limites legais. Tampouco foram implementadas
medidas de taxação sobre a terra ociosa.
Uma única operação realizada pelo governo do Estado de São Paulo permitiu a
transferência de 50.000 hectares de terras devolutas para o Engenheiro Ricardo Medina,
(que depois as repassa para o Banco Evolucionista) em área situada imediatamente junto
ao raio de 6 km, administrado pelo município de São Paulo. A transferência foi justificada
15
pela construção de núcleos agrícolas às margens do Rio Tietê e para tanto concedia uma
faixa de 13.200 metros da cada lado do rio, nos municípios de São Paulo e Mogi das
Cruzes. Essa transferência foi transcrita no Primeiro Cartório de Registro de Imóveis da
Capital em 17 de outubro de 1892, e não foi até hoje cancelada, apesar das obrigações e
cláusulas do contrato não terem sido atendidas.
Além das terras devolutas, outra origem das terras públicas municipais são as
doações efetuadas por ocasião dos projetos de parcelamento do solo para fins urbanos.
No caso do município de São Paulo, os loteamentos se multiplicam a partir de 1930,
gerando a doação de terras públicas para o sistema viário e para a implantação de
equipamentos públicos. Uma tônica desses projetos é o empenho em reservar as piores
áreas para a transferência e doação à municipalidade, na perspectiva de ampliar a
lucratividade na venda dos lotes. Por outro lado, poucos municípios estabeleceram regras
para que os equipamentos públicos (praças e equipamentos institucionais) fossem
construídos pelos próprios empreendedores por ocasião do parcelamento do solo. Dessa
forma, em especial nos municípios de maior porte, parte das áreas doadas ao Poder
Público, que ficava ociosa, era irregularmente ocupada pela população de baixa renda,
que não encontrava alternativa para sua moradia.
Na gestão das terras públicas municipais, cumpre destacar que nem sempre o
município tem uma estrutura de gestão de seu patrimônio fundiário. São ainda pioneiros
os esforços de gestão municipal que visam inventariar e localizar em bases digitais, a
localização das terras públicas, como parte de um esforço de melhor gerenciamento do
patrimônio público. Usualmente as administrações municipais têm informações
incompletas quanto à localização e a destinação dos imóveis que possuem.
Pouquíssimas são as administrações municipais que têm um órgão gestor de projetos
realizados no espaço público municipal. Isto é especialmente grave com relação às
intervenções realizadas no sistema viário, que recebe obras de diversos agentes, tanto da
esfera pública quanto particular. As obras de trânsito se chocam com aquelas de
saneamento, que se chocam com as iniciativas dos proprietários lindeiros e com as obras
de empresas privadas que operam sistemas como o de telefonia e eletricidade. Cada
órgão opera com projetos concebidos a partir de seus próprios interesses, ficando o
espaço de propriedade pública à mercê de iniciativas fragmentadas e desintegradas.
16
4. Mecanismos de transferência das terras públicas para uso privado no Estado de
São Paulo
A legislação sobre transferência de terras públicas tradicionalmente teve por
princípio subjacente limitar a dimensão das terras a serem repassadas para o domínio
privado. Era esse o objetivo da legislação portuguesa, da Lei de Terras e da legislação
estadual sobre terras devolutas. Porém, na prática o espírito latifundiário predominou e o
acesso à terra para aqueles que detinham poder, político ou econômico, sempre foi
facilitado. Resta saber de que forma essa posse transformou-se em domínio, ou seja,
como foi legalizada a transferência plena e definitiva de propriedade aos particulares. No
decorrer dos estudos realizados, foi possível identificar três fases desse processo de
legalização. Uma primeira relacionada com a formação de um documento que associa um
determinado imóvel a um dado particular. Uma segunda, de validação, em que esse
documento, muitas vezes precário, é aperfeiçoado na forma e conteúdo e passa a ter
validade jurídica. Por fim, o documento validado produz efeitos de transferência jurídica
da propriedade.
A formação de um documento relaciona-se ao surgimento de uma representação
gráfica ou escrita que liga uma pessoa a um imóvel. Destacam-se, por serem
significativos no processo de transferência das terras públicas, o Registro Paroquial, a
grilagem13 de documentos, bem como a outorga de um título pela Administração Pública,
seja venda ou cessão de direitos.
Na validação os fatos indicados no documento são reconhecidos como
verdadeiros e válidos, na sua forma e conteúdo, conforme as prescrições legais. A
validação se dá, por exemplo, com a lavratura de documento em Cartório de Notas,
fazendo surgir um instrumento dotado de fé pública. A judicialização de questões relativas
a imóveis também é significativa na validação, uma vez que o judiciário se manifesta e
emite sentenças em processo de inventário, de usucapião ou ainda em litígios entre
particulares que têm por objeto um determinado imóvel. No tocante às sentenças judiciais,
pode-se dar como exemplo um processo de inventário no âmbito do qual é apresentado
um documento relativo a um imóvel que, ao final, é partilhado entre os herdeiros – o
formal de partilha passa a ser um documento válido, apto a transferir a propriedade de
imóveis que, a princípio, podiam ser públicos, mas apropriados por particulares.
13 Processo de adulteração de documentos com o objetivo de legalizar a propriedade, falsificações que se utilizam de técnicas de envelhecimento artificial de documentos, adulteração de certidões, aparecimento de inventários inexistentes em cartórios, entre outros.
17
A transferência jurídica da propriedade imobiliária se dá, via de regra, pelo registro
do título em cartório a partir do qual é constituído um direito real resguardável contra o
pleito de qualquer outra pessoa (erga omnes).
Desde o Código Civil de 1916, o registro do título é a forma mais importante de
aquisição da propriedade imóvel. Em seu art. 530 indicava que a propriedade era
adquirida pela transcrição do título de transferência no Registro de Imóveis, pela acessão
(acréscimo), pela usucapião e pelo direito hereditário. Percebe-se, então, o papel que
cumpriram as sentenças judiciais especialmente de partilha não só na validação, mas
também na transferência da propriedade. A legislação civil atual (Código Civil – Lei
10.406/02) indica explicitamente que a aquisição se dá pelo registro do título (art. 1.245),
determinando inclusive o registro das sentenças de usucapião (art. 1.241, parágrafo
único).
Nem sempre o processo de transferência da propriedade pelo registro do título em
cartório exige que sejam superadas as três fases antes mencionadas. Em alguns casos
ocorre a transferência direta, sem passar pela etapa de validação. Essa transferência
direta pode se dar de forma regular, por exemplo, quando um título expedido pela
Administração Pública é registrado. Se esse título não for de venda, mas de cessão de
direitos, o registro regular pressupõe que se identifique como proprietário do imóvel o
poder público e, na seqüência, sejam registrados os direitos transferidos ao particular, por
exemplo, um aforamento. Há casos, porém, em que a transferência direta, sem passar
pela etapa de validação, se dá de forma irregular, por exemplo, nos casos em que há uma
cessão de direitos sobre imóveis públicos, mas o registro em cartório não faz o devido
desmembramento dos atributos da propriedade, fazendo constar apenas o particular
como titular de direitos sobre o imóvel. Dessa forma, o atributo de imóvel público
desaparece do registro. Outro exemplo de transferência direta de domínio feita de forma
irregular é o registro de títulos possessórios ou paroquiais, como no caso do título de
Pirapó/Santa Anastácio14, no Pontal do Paranapanema: em 1850, um agrimensor fez uma
medição de 400 mil alqueires em 4 dias fato a indicar grilagem, uma vez que não havia
técnica disponível na época que permitisse tal rapidez na medição. A planta com o
perímetro foi apresentada ao presidente da província para homologação, mas foi negada.
Apesar disso, houve uma troca de grandes extensões de terra e o instrumento particular
de permuta foi levado a registro. Como durante muito tempo os registros foram feitos por
meio de transcrições, todos os negócios envolvendo os imóveis eram transcritos em livros
14 Relato de Gabriel Veiga – ITESP, entrevista realizada em 08 de maio de 2008.
18
próprios. Assim, ambos particulares envolvidos puderam registrar seus imóveis,
transcrevendo-se o negócio de permuta.
Cumpre tecer algumas observações sobre o registro de imóveis. Ainda que a Lei
de Terras tenha introduzido um sistema dominial que atribuiu significativa expressão à
propriedade privada, somente em 1973, com a promulgação da Lei nº 6.015/73, é que
cada imóvel passa a ter uma única matrícula (unicidade matricial (art. 176, §1º, I, Lei
6.010/73), na qual são registrados todos os atos relativos àquele bem. Durante séculos
verificou-se a ocorrência das superposições documentais, assim, em relação a um
mesmo imóvel pode haver tantas transcrições quantos forem os negócios realizados com
esse imóvel15. Cumpre destacar que, via de regra, as terras públicas eram apenas
cadastradas pela administração Pública e não levadas a registro. Isto porque se
considerava suficiente a presunção de veracidade das transferências de direitos
cadastradas no órgão público competente, que pela própria natureza pública já dava
publicidade às transações (LIMA, 1988). Os sistemas de cadastros de terras públicas e de
registro, portanto, conviveram de forma paralela.
Gráfico 02: Seqüências de legitimação de domínio das terras públicas repassadas regular ou irregularmente
para uso privado.
15 Uma das primeiras leis sobre registros públicos no Brasil, a Lei n° 1.237/1864, não era uma regulamentação completa, pois diversos atos ficavam de fora do sistema de registros, por exemplo, as transmissões causa mortis e os atos judiciários. Também não havia uma individualização precisa do imóvel (especialidade), o que foi instituído com o Decreto nº 169-A/1890, regulamentado pelo Decreto n° 370/ 1890, instituiu a especialidade. A idéia de que o registro serve como prova de domínio e a publicidade registral foram introduzidos com o Código Civil de 1916.
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FASE BFASE A
FASE C
FORMAÇÃO DO DOCUMENTO:registro paroquialdocumento outorgado pelo
Poder Público (venda, cessão de direitos, etc.)
grilagem
VALIDAÇÃO:sentença de formal de
partilhasentença de processo de
usucapiãosentença para disputa entre
particularesescritura pública (cartório de
notas)
TRANSFERÊNCIA JURÍDICA DA PROPRIEDADE
indireta
indiretadireta
Em cada Estado brasileiro, o mecanismo de legalização da propriedade territorial foi
construído com particularidades advindas da descentralização da gestão de terras
ocorrida a partir de 1891. Especificamente no Estado de São Paulo, considerou-se
conveniente, em um primeiro momento, conduzir um conjunto de entrevistas na
perspectiva de avaliar se as fases anteriormente mencionadas eram também identificadas
por profissionais que acompanharam processos de gestão de terra pública. Foram feitas 4
entrevistas: Prof. Irineu Idoeta, da Base Aerofotogrametria, Gabriel Veiga, da Fundação
Instituto de Terras do Estado de São Paulo – ITESP, Pedro Kreidel e Mário Ruffolo,
ambos da Gerência Regional do Patrimônio da União no Estado de São Paulo. Com
essas entrevistas objetivava-se também o levantamento de informações quanto aos
mecanismos de legalização dominantes no Estado de São Paulo.
Em linhas gerais, a estrutura foi considerada adequada. Dentre as alterações
sugeridas Irineu Idoeta apontou a distinção entre cartórios de registro de notas e cartórios
de registro de imóveis, uma vez que nos primeiros foram lavradas as escrituras de posse,
validando-as, enquanto nos cartórios de imóveis foram feitas transcrições e transferências
de domínio para o particular. Já Mário Rufollo apontou que sentença de partilha também
poderia ser incluída na fase de formação do documento, pois, em alguns casos, a mesma
é emitida sem que haja um documento possessório.
Não houve uniformidade quanto à indicação do processo dominante. Dependendo
da experiência pessoal de cada entrevistado, houve indicação de um ou outro mecanismo
de legalização, passando-se por praticamente todos os processos mencionados no
Gráfico 2 (usucapião, registro de partilhas, grilagem, títulos outorgados pelo Poder Público
e registros). Curiosas algumas distinções sobre os processos dominantes no tempo e no
espaço - Pedro Kreidell indica que no litoral os documentos gerados por sesmarias foram
mais comuns que nas terras interiores, onde a grilagem foi intensa, e Gabriel Veiga
acredita que, no passado, os atos dos cartórios de lavratura de títulos e registros tiveram
maior impacto enquanto, atualmente, a atuação do Judiciário tem grande impacto na
criação do domínio privado16. Avalia-se que para chegar à conclusão acerca do
mecanismo de legitimação dominante em números de casos e em extensão territorial
seria necessário ampliar significativamente os estudos e o número de entrevistas.
Considera-se importante avançar nesse sentido, inclusive como forma de resgatar, em
16 Essas decisões judiciais, em alguns casos, reconhecem a usucapião por posse anterior a 1916 e ainda pelo fato de que a Administração Pública recebeu impostos (IPTU, ITBI, etc.) relativos a terra como se essa fosse particular. Em outros, a propriedade é reconhecida como pública, mas em consideração às quantias que teriam de ser desembolsadas pelo Estado para indenizar as benfeitorias, a terra é conferida ao particular.
20
nosso passado histórico, como se constrói a distribuição desequilibrada das terras e, por
conseguinte, quais são as origens do processo de desigualdade que nos assola.
Considera-se ainda conveniente realizar estudos na mesma perspectiva, de forma a
entender os processos que ocorreram em outros estados brasileiros.
Interessantes os relatos sobre as imprecisões dos títulos, sobre as empreitadas
para melhor precisar os limites e confrontações das terras e sobre o “milagre da
multiplicação do chão” decorrente desses processos. Gabriel Veiga narrou um caso no
qual 6 alqueires foram transformados em 6.000 hectares por meio de uma escritura de
reconhecimento de divisa. Irineu Idoeta menciona que o levantamento topográfico
realizado a partir da descrição de feições geográficas (confluência de rios e divisores de
água) fez com que a área de uma fazenda em Capão Bonito, cuja descrição no registro
paroquial indicava que o imóvel possuía para mais de 800 alqueires, tivesse sua área
apurada em 27.800 alqueires.
Outro ponto abordado tanto por Irineu Idoeta quanto por Gabriel Veiga é o valor da
terra. Ambos destacaram que enquanto a terra não tinha valor, o apossamento era
comum. A partir da construção de acessos e da ampliação do número de cidades, houve
a valorização da terra, provocando um aumento das disputas possessórias e
intensificando os esforços para a formação e validação de um título.
5. Conclusões
A dificuldade de saber quais são as terras públicas perpassa os cinco últimos
séculos, a partir da chegada dos portugueses ao Brasil. As informações quanto ao uso
dessas terras, de forma legal ou irregular, foram e continuam sendo precárias. Não se
encontram registros de que tenha sido possível preparar um mapa consolidando a
localização exata das terras devolutas, em algum momento de nossa história. Em nome
do estímulo ao desenvolvimento e à utilização produtiva do solo foi facilitada a
transferência de grandes extensões de terra àqueles que se consideravam mais
habilitados a dar utilização às mesmas, ou seja, àqueles que dispunham de recursos
financeiros. A maior parte das transferências de terras públicas para uso particular
consolidou-se em passado recente, nos últimos cem anos, contrariando o imaginário
usual de que essas transferências tenham se consolidado já no momento das capitanias
hereditárias e sesmarias.
Apesar do acelerado processo de transferência, as terras públicas ainda em mãos
públicas constituem um patrimônio de grande valor e importância, mesmo tratando-se de
21
um patrimônio pequeno em extensão, quando comparado com o do início do século XX.
Existem sérias dificuldades de gestão dessas terras, nas três esferas de governo. As
dificuldades têm início na própria identificação do patrimônio público, restando
inconclusos diversos procedimentos para precisar os exatos limites e confrontações dos
bens públicos. Também o patrimônio já identificado esbarra em dificuldades de
destinação, a exemplo da União que tenta buscar um equilíbrio entre a arrecadação e a
função socioambiental em uma orla ocupada de forma desordenada e cada vez mais
intensa. Ou, o Governo do Estado de São Paulo, que promove investidas para arrecadar
terras já discriminadas e declaradas como devolutas, com objetivo de destiná-las para
assentamentos. As dificuldades de gestão se ampliam em face da pulverização,
especialmente no caso da União Federal, ou seja, embora a extensão territorial seja
pequena, são milhares e milhares de registros a serem geridos.
O registro paroquial previsto na Lei de Terras de 1850 foi um esforço aflito de
constituir informações mínimas quanto aos usuários das terras. Foi na ocasião previsto
apenas com caráter censitário, ou seja, na busca de informações fornecidas pelo próprio
interessado, que pudessem fornecer um quadro, mesmo que impreciso, sobre as terras
que já tinham alguma destinação de uso ou posse. O registro paroquial não tinha caráter
legal de reconhecimento dos direitos de posse, mas acabou constituindo base para um
número significativo de registros de transferência de terra pública para uso particular. A
legitimação de posse é prevista ainda hoje na legislação estadual e é o eixo de ação do
ITESP. Quando se analisa a legislação recente, verifica-se a tendência a flexibilizar ainda
mais os procedimentos de legitimação de posse.
Historicamente, diversos mecanismos de operacionalização da lei facilitaram a
segurança na posse e a emissão de documentos de regularização da propriedade dirigida
para os grandes ocupantes da terra pública. Simultaneamente, conviveu-se e convive-se
com dificuldades, de diversas naturezas, para que o pequeno posseiro consiga direitos de
propriedade ou mesmo a segurança na posse.
Embora o espírito da lei, ao longo de toda nossa história, tenha sido evitar repasse
de grandes extensões de terra para o particular, o arcabouço normativo é vago, impreciso
e repleto de situações excepcionais. Por um lado, as situações excepcionais beneficiaram
àqueles que tinham informações privilegiadas. Por outro lado, a fragilidade dos sistemas
de registro de informações sobre o patrimônio público e dos organismos encarregados de
sua gestão tendem a beneficiar aos que têm mais recursos e mais fácil acesso ao poder.
22
A articulação desses fatores desencadeou a estrutura fundiária que temos hoje, com o
predomínio da grande propriedade.
Em muitos estados brasileiros é grande a extensão territorial remanescente de
domínio público. Mesmo nas situações, como a do Estado de São Paulo, em que a
extensão territorial é relativamente pequena, os bens que são de todos constituem um
valor patrimonial que exige um esforço especial de gestão. Melhorar a qualidade da
gestão do patrimônio público e assegurar que se cumpra a função social dessa
propriedade é fundamental, tanto na ótica ambiental quanto na ótica da justiça social e da
redução das desigualdades. Considera-se que para o aperfeiçoamento da qualidade de
gestão, o acesso à informação é uma das chaves, inclusive para viabilizar que uma
parcela maior de cidadãos possa exercer o controle e fiscalização dos bens que lhe
pertencem. Espera-se que o presente estudo consiga, pelo menos, indicar o tamanho do
desafio e consiga ressaltar a necessidade de novas investigações para melhor
entendimento do processo histórico que modelou a transferência das terras públicas para
uso particular no Brasil.
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Entrevistas
Irineu Idoeta - Base Aerofotogrametria,
Gabriel Veiga - Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo – ITESP,
Pedro Kreidel – Superintendência Regional do Patrimônio da União no Estado de São
Paulo
Mário Ruffolo - – Superintendência Regional do Patrimônio da União no Estado de São
Paulo
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