a excelÊncia guerreira do herÓi clÁssico · explorada. É o caso do estudo sobre o herói, tão...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM A EXCELÊNCIA GUERREIRA DO HERÓI CLÁSSICO JOÃO PESSOA, PB MARÇO, 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM

A EXCELNCIA GUERREIRA DO HERI CLSSICO

JOO PESSOA, PB

MARO, 2012

ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM

A EXCELNCIA GUERREIRA DO HERI CLSSICO

Tese de Doutoramento apresentada ao Curso de Ps-Graduao em

Letras, da Universidade Federal da Paraba, em cumprimento s

exigncias para obteno do Grau de Doutor.

rea de Concentrao: Linguagens e Cultura

Linha de Pesquisa: Estudos Clssicos

Orientador: Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior

JOO PESSOA, PB

MARO 2012

A329e Albertim, Alcione Lucena de. A329e Albertim, Alcione Lucena de.

A excelncia guerreira do heri clssico / Alcione Lucena

de Albertim.-- Joo Pessoa, 2013.

174f.

Orientador: Juvino Alves Maia Jnior

Tese (Doutorado) UFPB/CCHLA

1. Eneias - crtica e interpretao. 2. Virglio - crtica e

interpretao. 3. Literatura e cultura. 4. Heri clssico.

5. Excelncia guerreira.

UFPB/BC CDU: 82(043)

ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM

A EXCELNCIA GUERREIRA DO HERI CLSSICO

Orientador:

Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior (UFPB)

Examinadores:

Prof. Dr. Anderson D'Arc Ferreira (UFPB)

Prof . Dr . France Yvone Murachco (USP)

Prof. Dr. Henrique Graciano Murachco (USP)

Prof. Dr. Jos Rodrigues Seabra Filho (USP)

Prof. Dr. Alexandre Maia (UFPE)

Prof. Dr. Arturo Gouveia (UFPB)

Agradecimentos

Agradecemos a todos que direta ou indiretamente contriburam para a realizao deste

trabalho: professores, colegas, alunos, amigos e familiares!

Resumo

A proposta do presente trabalho analisar a excelncia guerreira do heri clssico, que

concerne a aret, no mundo grego, e a virtus, no mundo latino. O corpus a ser pesquisado a

Eneida, de Virglio, no entanto, faremos um estudo prvio acerca do heri clssico,

delineando o seu perfil e analisando as caractersticas que o compem. Para isso,

estabeleceremos um estudo comparativo acerca do processo de formao daquele que

consideramos o primeiro heri, Zeus, e de outros grandes heris, a saber, Heracls, Aquiles e

Eneias, de modo a identificar as semelhanas e as diferenas nas etapas constitutivas desse

processo de formao. Tomaremos como subsdio para esse estudo, alm da Eneida, a Ilada,

O escudo de Heracls, a Teogonia, e Trabalhos e Dias. Veremos que a aret e a virtus

exprimem valor semelhante, a excelncia guerreira do heri, porm, configuram-se de

maneira diferente. Mostraremos, a partir da anlise etimolgica dos vocbulos, que os dois

valores percorrem caminhos distintos at chegar ao sentido guerreiro que lhes atribudo.

Aps essa discusso, seguiremos ao estudo mais detido do corpus proposto, analisando a

virtus de Eneias a partir da estrutura binria do poema por ns proposta, que tem no Livro VI

a sua linha divisria, onde ocorre a katbasis do heri, que consideramos ser a sua 'bela morte'

simblica.

Palavras-chave: heri clssico, excelncia guerreira, bela morte, Eneias, Virglio

Resum

La proposition de ce travail est danalyser lexcellence guerrire du hros classique, qui

concerne aret dans le monde grec, et virtus dans le monde latin. Le corpus

rechercher est lneide, de Virgile, cependant, nous ferrons une tude prliminaire sur le

hros classique, en traant son profil et en analysant les caractristiques qui le composent.

cette fin, nous tablirons une tude comparative propos du processus de formation de celui

que nous considrons le premier hros, Zeus, ainsi comme dautres grands hros, savoir,

Hracls, Achille et ne, afin didentifier les similitudes et les diffrences dans les tapes

constitutives de ce processus de formation. Outre lneide, nous prendrons aussi comme base

pour cette tude lIliade, Le bouclier d'Hracls, Thogonie et Les Travaux et les Jours.

Nous verrons que aret et virtus expriment une valeur semblable, lexcellence

guerrire du hros, pourtant elles se configurent de faon diffrente. Nous montrerons, partir

de lanalyse tymologique des mots, que les deux valeurs parcourent des chemins distincts

pour arriver au sens guerrier qui leur est attribue. Aprs cette discussion, nous procderons

ltude la plus prcise du corpus propos, en analysant la virtus dne partir de la

structure binaire du pome propos pour nous, qui a dans le VIe livre sa ligne de dmarcation,

o se produit la katbasis du hros, qui nous considrons sa belle mort symbolique.

Mots-cls : hros classique, excellence guerrire, belle mort, ne, Virgile.

Abstract

The present research intends to analyse the warrior excellence, which concerns to arete, in

Greek world, and to virtus, in Latin world. The corpus to be researched is Aeneid, by Virgil,

but firstly, we will accomplish a previous study about classical hero, tracking his character

and analysing the characteristics that constitute it. With this porpose, we set up a comparative

study about the process of formation of that one which we consider as being the first hero,

Zeus, and of others great heroes, nay, Heracles, Achilles and Aeneas, so as to identify

similarities and differences in their warrior formation process. We will make use of Iliad,

Odyssey, Shield of Heracles, Theogony, Workd and Days, and also Aeneid, as subsidy to

this study. We will observe that arete and virtus express a similar value, warrior excellence of

the hero, but, they are configurated in a diferent way. It will be proved that, starting from the

etymological analysis of the vocables, arete and virtus, they perceive distinct paths so as to

reach the warrior sense which is attributed to them. After this discussion, we will follow to the

specific analysis of the corpus, researching Aeneas' virtus form the binary structure of the

poem which we propose, that has in the Sixth Book its demarkation line, where the hero's

katabasis occurs, which we consider the Aeneas' symbolic 'beautiful death'.

Key-words: classical hero, warrior excellence, beautiful death, Aeneas, Virgil

SUMRIO

INTRODUO, 11

CAPTULO I: O HERI CLSSICO

1. Perfil do heri, 20

2. A 'bela morte', 27

3. A raa dos heris, 31

4. A aret grega e a virtus romana, 37

4. 1. A aret guerreira, 38

4. 2. A etimologia do vocbulo aret, 40

4. 3. A aret do heri individual, 44

4. 4. A aret do heri coletivo, 46

4. 5. A virtus guerreira, 52

4. 6. Virtus e a busca da 'bela morte', 57

4. 7. A etimologia do vocbulo virtus, 60

CAPTULO II - AS ARMAS DO HERI

1. O valor das armas, 65

2. A importncia do escudo, 72

3 Zeus, o heri divino, 78

3. 1. Os atributos de Zeus, 85

3. 2. A gide de Zeus, 89

4. Heracls, o heri divinizado, 98

4.1. O escudo de Heracls, 101

5. Aquiles, o heri individual, 105

5.1. O escudo de Aquiles, 107

CAPTULO III - ENEIAS E A ENEIDA

1. Eneias, heri homrico, 110

2. Estrutura da Eneida, 113

3. A bela morte simblica de Eneias, 120

4. Estrutura binria da Eneida, 134

5. O destino de Eneias, 138

6. A virtus de Eneias, 156

CONSIDERAES FINAIS, 166

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS, 169

INTRODUO

A Eneida, como fonte inexaurvel de pesquisa, suscita muitas possibilidades de estudo,

mesmo quando a categoria escolhida para a anlise parece j haver sido suficientemente

explorada. o caso do estudo sobre o heri, to reiteradamente visitado. Entretanto, a

proficuidade do poema permite-nos a audcia da realizao de novas pesquisas acerca do

heri, que resultar em um trabalho indito, que certamente trar uma positiva contribuio

aos estudos clssicos. Com efeito, o presente estudo pretende analisar a excelncia guerreira

do heri clssico, focando, sobretudo, a figura de Eneias, protagonista da Eneida, de Virglio,

corpus principal do nosso trabalho. Para isso, recorreremos tambm s epopeias Ilada e

Odisseia, de Homero, a Teogonia e a Trabalhos e Dias, de Hesodo, e ao poema O Escudo,

tambm atribudo a Hesodo, como textos subsidirios, a fim de realizar uma anlise mais rica

sobre o heri e a sua formao guerreira. Nesse sentido, necessrio se faz a apresentao

dessas obras, mesmo que sucinta, de modo a apontar o ponto de convergncia entre elas, a

partir do qual faremos a nossa anlise acerca da excelncia guerreira. Este ponto de

convergncia diz respeito figura do heri, em torno do qual gira a narrativa desses poemas.

A Eneida trata das errncias de Eneias, heri membro da famlia real troiana, filho do

mortal Anquises e da deusa Vnus, por terra e por mar, durante dez anos, aps a destruio de

Troia pelos aqueus, e da sua chegada Itlia, com a misso de fundar um novo reino, as bases

da futura Roma. A Eneias est determinada a tarefa de conduzir os sobreviventes e para eles

fundar uma nova cidade, pois assim determinaram os deuses. Mas essa escolha provem do

fato de ele reunir em si os trs valores basilares do carter troiano, os quais formaro tambm

a base da ideologia romana, a saber, a pietas (devoo e respeito aos deuses e aos familiares),

a fides (confiana) e a virtus (a virtude guerreira). Imbudo desses trs valores, Eneias se

transformar no mito fundador, pois no decorrer do priplo empreendido por ele e pelos

companheiros, de Troia ao Lcio, erigir cidades, sempre com o intuito de edificar a nova

Troia. O seu destino ser reiteradamente reafirmado ao longo da sua trajetria. Auxiliado por

Vnus, sua me, e por Apolo, deus das profecias, enfrentar perigos e adversidades que

contribuiro para a lapidao da sua personalidade, a fim de tornar-se o pai da ptria, o pai da

futura e soberana Roma. O poema canta o varo, insigne pela piedade, que sado dos litorais

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troianos, impelido pelo destino, vai para a Itlia e funda uma cidade, Lavnio, sob os augrios

dos deuses ptrios, os Lares. Depois Ascnio, filho de Eneias, fundar Alba Longa, de cujos

reis nascer o fundador da altiva Roma, Rmulo, semelho ao seu ancestral Eneias quanto aos

valores constitutivos do carter. No decurso da narrativa os valores heroico-guerreiros so

postos em evidncia, sobretudo no que concerne a Eneias, objeto da anlise proposta neste

trabalho.

A Ilada canta a fria funesta de Aquiles, provocada por causa da perda do seu amigo

dileto Ptrocles, atravs das mo de Heitor. Tendo sido ultrajado em sua honra guerreira por

Agammnon, o comandante da coalizo grega junto a Troia, que toma o seu gras, o butim de

guerra que lhe era devido como mostra da sua excelncia, Aquiles se retira da guerra, o que

leva os troianos a ganhar fora e sobrepor-se aos aqueus, a ponto de conseguirem invadir o

acampamento e atingir os navios com um incndio. Durante a sua ausncia do campo de

batalha, muitos morrem, tanto do lado troiano quando da parte dos helenos. Ptrocles, ento,

pede ao filho de Peleu que lhe empreste sua armadura, a fim de poder afastar o inimigo dos

navios, tendo em vista que pensariam ser ele o prprio Pelida. O seu pedido atendido, mas

Ptrocles no obedece advertncia de Aquiles quanto a no ousar se afastar do

acampamento e querer sozinho conquistar as muralhas da grande Troia. Ele ser morto por

Heitor. Quando Aquiles informado da sua morte, tomado de fria, e retorna para a guerra

com imensa sede de sangue. Ele promove a ida para o Hades a muitos troianos antes de

realizar o seu maior intento, que matar Heitor. E o poema termina exatamente nos funerais

do heri. A base de sustentao da narrativa da Ilada a guerra. Praticamente apenas vemos

episdios de batalhas sangrentas, em que os heris dos lados adversrios se enfrentam, e em

que a tica e os valores constitutivos do carter guerreiro so postos em evidncia, dando-nos

abundantes subsdios para a discusso alentada.

A Odisseia relata a histria do retorno de Odisseu para taca, sua terra ptria, onde era rei,

e onde deixara a esposa e o filho recm-nascido para ir lutar na guerra de Troia, pois estava

vinculado a um juramento que lhe obrigara a seguir os demais heris na empresa. Odisseu o

nico heri dentre os que estiveram lutando em Troia que passa vinte anos para conseguir

voltar para casa, pois permaneceu dez anos no cerco at que a cidade fosse destruda, e depois

mais dez anos errando por terras e por mar, perseguido pelo deus dos mares, Poseidon, por

causa do seu filho, o ciclope Polifemo, que fora cegado por Odisseu. Ao chegar em casa, com

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a ajuda da deusa Atena, obrigado a se metamorfosear em mendigo, a fim de conseguir entrar

em seu palcio sem ser assassinado por invasores que pretendem a mo de sua esposa

Penlope, enquanto dilapidam os seus bens em banquetes extravagantes. Vemos, na Odisseia,

o heri em busca da humanizao, pois diferentemente do Odisseu que atua na Ilada, que

lutava a fim de obter a imortalidade da sua glria, este aspira a voltar para casa, para junto do

filho e da esposa, com quem deseja passar o restante dos seus dias. A narrao do priplo de

Odisseu, assim como da sua luta para reaver o seu lar, precisando para isso metamorfosear-se

em um velho mendigo, o que representa, no campo simblico, a sua prpria transformao

para um heri em busca da humanizao, traz tona a discusso acerca da transio do heri

de um para outro patamar. possvel observar processo semelhante com o personagem

Eneias, na Eneida, que no incio de sua jornada apresenta o perfil do heri individual

homrico em busca da glria pessoal, e paulatinamente, no decorrer da sua viagem de Troia

Itlia, assume as caractersticas do heri coletivo, eminentemente romano.

A Teogonia um canto s faanhas guerreiras de Zeus, pai dos deuses e dos homens. Na

luta para o estabelecimento do Cosmos, o mundo transforma-se em um campo de batalha, em

que lutam, em lados adversrios, os Tits, liderados por Cronos, e os deuses Olmpios,

comandados por Zeus, filho de Cronos. Est em jogo a disputa pelo poder, e o Cronida, com a

ajuda dos seus tios, os Hecatonquiros, Briareu, Coto e Gige, unindo inteligncia fora bruta,

consegue vencer e realiza, aps a vitria, a justa diviso das honras entre os irmos. Assim se

estabelece a ordem do universo, tendo Zeus, por aquiescncia das demais divindades, como

fora mantenedora dessa ordem. No transcorrer da narrao desses acontecimentos, a

formao guerreira de Zeus est patente, e ser a partir da anlise desse processo de formao

que buscaremos os elementos delineadores do perfil do heri. Assim, temos, na Teogonia,

matria abundante para o estudo do heri, servindo-nos de subsdio para o anlise proposta.

Trabalhos e Dias traz, como ponto pertinente ao nosso trabalho, a narrativa das cinco

raas dos homens mortais. Dentre elas, a raa dos heris descreve-nos as caractersticas dos

homens pertencentes a ela, filhos de uma divindade com um mortal, destacam-se por serem

mais justos e mais nobres. Viveram no tempo da guerra em Tebas de sete portas, pelos

rebanhos de dipo, e do cerco a Troia, na disputa pela espartana Helena, esposa do Atrida

Menelau. Ao morrer, o pai Cronida lhes deu sustento e casa, e os alocou nos limites da terra,

na ilha dos bem-aventurados, onde trs vezes ao ano a terra lhes oferecia frutos.

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O Escudo trata, sobretudo, do embate entre Heracls e Cicno, mas tem como cerne da

narrativa, a descrio do escudo fabricado por Hefestos para o heri. O embate serve apenas

como pretexto para o foco principal, o escudo. Nele, esto gravadas imagens concernentes ao

prprio Heracls, visto que Zeus ordena a Hefestos fabricar o escudo a fim de que sirva para

dar ainda mais glria ao seu filho. Cicno filho de Ares. Homem violento e sanguinrio,

surpreendia os viajantes que peregrinavam em direo a Delfos, matava-os e com os despojos

oferecia sacrifcios a seu pai. Isso atraiu sobre ele a ira de Apolo, que incitou Heracls a mat-

lo. Cicno e o heri bateram-se em combate singular. Aps o filho ter morrido, Ares avana

para vingar a sua morte, mas Atena desvia a lana do deus e Heracls fere-o na coxa,

obrigando-o a fugir para o Olimpo. Para esse embate, Heracls veste sua armadura e arma-se

com a espada, com a clava, com a lana, com a aljava portando as flechas, e, finalmente, com

o escudo. Desse modo, o poema nos fornece inmeros elementos passveis de anlise para o

estudo do heri.

Quanto excelncia guerreira, ela expressa pela aret, no mundo grego, e pela virtus,

no mundo latino. Ambos os valores refletem o contexto blico no qual o heri est inserido, e

tm importncia fundamental para a realizao dos feitos que iro lhe outorgar a glria

imperecvel, consolidada atravs da bela morte (a bela morte configura-se quando o

guerreiro, jovem, perece no campo de batalha, enquanto luta com um adversrio to ou mais

valoroso do que ele prprio. Aps a morte, imprescindvel que o heri receba os ritos

fnebres, o que lhe garantir a imortalidade. Na bela morte, o heri encontra a consagrao

da sua glria, que atravs daquela se torna imperecvel. Essa glria consiste em ter o heri os

seus feitos cantados pelos aedos, trazidos lembrana da coletividade a fim de servir de

modelo a ser seguido pelas novas geraes.). Esses feitos sero relembrados e reverenciados

atravs do canto do aedo e serviro de exemplo a ser seguido pelas geraes vindouras, assim

garantindo a imortalidade do heri. Entretanto, preciso destacar que aret e virtus, sendo

valores similares, pois so expresso da excelncia guerreira, configuram-se de modo

diferente, possuindo caractersticas peculiares que concernem, sobretudo, origem

etimolgica e ao modo como se realizam atravs da atuao do guerreiro no campo de

batalha. Quanto etimologia, no vocbulo aret, encontramos a raiz , que, segundo o

Greek-English Lexical1, traz o sentido de ajustar, adequar conjuntamente, e que est no

verbo , ajustar, adaptar, encaixar, construir, prover de, e encontra-se tambm nos

1 LIDDELL, Henry George and SCOTT, Robert. A greek-english lexicon. Oxford: Claredon Press, 1996.

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vocbulos , e , superlativo e comparativo de superioridade respectivamente,

do adjetivo 2. Partindo, ento, do sentido etimolgico, +

(sufixo de superlativo)] significa aquele que mais se ajusta, aquele que mais se adqua.

Em relao ao heri, ele deve adequar-se ordem estabelecida, onde a natureza divina e a

natureza humana so de ordem ontolgicas. Apesar de semideuses, conforme a tradio

hesidica, haja vista que para Homero o heri no necessariamente filho direto de um deus,

mas apenas seu descendente, so humanos, e assim devem se comportar, como humanos,

respeitando a hierarquia dos deuses. Nesse sentido, sendo reverentes aos deuses, tero seus

feitos reconhecidos e lembrados, permanecendo vivos na memria das novas geraes. Virtus

aquela disposio do esprito que sobrepuja as outras. Ela demanda coragem e resistncia

para assim ser nomeada, tendo em vista que se trata do valor mais elevado do homem, cujos

deveres mximos so o desprezo pela morte e pela dor. Etimologicamente, a palavra virtus

tem com uir, conforme Ernout3, a mesma relao de derivao que iuventus e senectus tm

com iuvens e senex, respectivamente. Do mesmo modo que iuventus denota a atividade e a

qualidade de jovem, e senectus, a atividade e a qualidade de velho, do mesmo modo, virtus

diz respeito atividade e s qualidades tpicas do varo, do homem. Vir, varo, tem a mesma

raiz de vis, fora. Dessa relao, possvel perceber que ser homem possuir a fora, cuja

raiz a mesma da palavra grega , fora, resistncia. Logo, virtus a qualidade daquele que

possui, em mximo grau, a capacidade de resistir. Dessa resistncia vem, por extenso, o

sentido de coragem, que impele o heri ao combate.

Diante do que foi exposto, foquemos no cerne do presente trabalho, que consiste em

analisar a excelncia do heri clssico a partir da sua formao guerreira que demanda a

passagem por um rito inicitico, cujas caractersticas so o afastamento do lar a fim de

enfrentar vicissitudes como requisito para o amadurecimento da personalidade, assim obtendo

a tmpera necessria para o cumprimento posterior de uma misso para a qual foi destinado

e da sua atuao no campo de batalha. As caractersticas que delineiam o perfil do heri

2 CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire tymologique de la langue grecque: histoire des mots. Paris: Klincksieck,

1999, p. 6. "Exprime les qualits viriles de force, defficacit (epithte dAgamemnon, dAchille, etc.) du hros, ce qui entraine, mais par voie de consquence, le sens de courageux et de noble ." [Exprime as qualidades viris de fora, de eficcia (epteto de Agammnon, de Aquiles, etc.) do heri, o que carrega, porm, por consequncia, o sentido de 'corajoso' de 'nobre'.] 3 ERNOUT, Alfred & MEILLET, Alfred. Dictionnaire tymoligique de la langue latine: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001.

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clssico so essencialmente sua filiao, a misso para a qual ele est destinado, a sua estatura

e o seu desempenho fsico denotando fora descomunal, e a sua intrepidez. Seguindo essa

linha de raciocnio, pretendemos analisar vrios episdios dentro, sobretudo, da Ilada e da

Eneida, em que esses elementos constitutivos do universo heroico esto presentes.

Eneias, por exemplo, encaixa-se no elenco dos heris homricos do ponto de vista de sua

formao como heri guerreiro. Ele, assim como outros grandes heris, tem filiao divina,

pois filho da deusa Vnus e neto de Jpiter, e ir sofrer o rito inicitico, sendo, ainda

criana, afastado da famlia. Adulto, Eneias ser exaltado pelas faanhas guerreiras realizadas

durante o cerco dos gregos a Troia, lutando com denodo frente ao inimigo. Porque ele justo

e reverente aos deuses, ser-lhe- conferida, pelos deuses, uma misso, dar continuidade raa

troiana. Se por um lado Eneias foi escolhido para esta misso por causa da sua pietas, por

outro, a sua virtus que o impulsionar a enfrentar as provas e as vicissitudes a fim de fundar

um novo reino para o seu povo. Nesse sentido, vemos um personagem cujas caractersticas se

enquadram no quadro acima descrito, quanto ao perfil do heri. E com o intuito de ratificar

essa ideia, propomos analisar a formao guerreira de outros grandes heris, a saber, Zeus, o

primeiro heri, divino, Heracls, heri semidivino, e Aquiles, o heri individual, de modo a

identificar as mesmas caractersticas em relao a esses personagens.

O presente trabalho ser composto por trs captulos: I) O heri clssico, II) As armas do

heri, III) Eneias e a Eneida. O captulo primeiro trar um estudo sobre o heri, concernente

s caractersticas constitutivas do seu perfil. Discutir tambm acerca dos valores pertinentes

ao universo guerreiro, colocando em foco a conceituao de aret e de virtus, buscando

analisar esses valores no mbito do heri individual, que busca o campo de batalha para a

obteno da glria pessoal, e no do heri coletivo, cujas aes so realizadas em prol,

primeiramente, do grupo, sendo a glria pessoal uma consequncia disso. O captulo segundo

tratar da implicncia e importncia essencial das armas na atuao guerreira do heri,

sobretudo o escudo, smbolo que representa o universo especfico do heri que o porta,

portanto, no transfervel a nenhum outro guerreiro. Diz respeito ao heri para quem foi

fabricado. Tomando este smbolo como ponto de convergncia entre Zeus, Heracls e

Aquiles, faremos um estudo comparativo quanto formao guerreira desses personagens,

mostrando os pontos semelhantes desse processo de formao, a fim de provar que Zeus o

primeiro heri. No captulo terceiro, o foco de anlise ser a Eneida, corpus principal da tese,

mais especificamente, Eneias, protagonista da epopeia. Nele, faremos um estudo acerca do

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processo formador de Eneias como heri, considerando a discusso j estabelecida no captulo

segundo do trabalho quanto formao guerreira de Zeus, Heracls e Aquiles, de modo a

comprovar a excelncia guerreia de Eneias. Para isso, traaremos a trajetria do filho de

Vnus, considerando-o, em princpio, um heri homrico, cujas caracteres principais so a

busca da honra pessoal para a obteno da glria imperecvel. Aps a sua catbases, a descida

aos Infernos, que consideramos a bela morte simblica do heri, a qual buscaremos

comprovar atravs de uma anlise comparativa entre a incurso do Anquisada pelo mundo

subterrneo e as etapas que compem a bela morte, Eneias torna-se um heri romano,

edificador e pai da futura Roma nascente. Eneias descendente de deuses, filho de Vnus e

neto de Jpiter. Tem como misso fundar as bases de um grande imprio, para isso, precisar

adquirir a tmpera atravs das vicissitudes enfrentadas durante sua errncia antes de chegar ao

Lcio, provando a sua virtus. Ele comparado a um leo que na fora confia, ao tentar

proteger o corpo de Pndaro, morto por Diomedes, comprovando a sua fora fsica e destreza.

E sua coragem o leva a enfrentar Aquiles. Assim, vemos que Eneias se enquadra no perfil do

heri clssico, pois rene todas as caractersticas a ele pertinentes. o que tentaremos provar

atravs da anlise da atuao desse heri no decurso do poema cujo ttulo provem do seu

nome.

Quanto metodologia utilizada para a realizao do trabalho, buscaremos, primeiramente,

efetuar a leitura direcionada dos poemas picos, que tm como figura central o heri, em

torno de quem gira a histria tratada em cada poema, na tentativa de apreender o seu universo

e os valores que compem a sua personalidade. Na Ilada, por exemplo, Aquiles, o baluarte

dos aqueus, tem sua honra guerreira ultrajada por Agammnon - o senhor de reis, pois foi

quem conduziu a empreitada do cerco a Troia - ao lhe ter sido retirado o seu gras, que em

geral, inadequadamente, traduzimos por 'butim de guerra', justamente por no haver uma

palavra que expresse com exatido o sentido maior que o termo possui. O gras significa um

prmio a mais, dado a um heri pelos companheiros na diviso de algum esplio, como

reconhecimento pblico da sua excelncia, razo maior da busca do combate pelo guerreiro. E

sabendo que o filho de Peleu foi para Troia unicamente para obter a glria imperecvel,

compreendemos melhor a gravidade do ato de Agammnon e a atitude aparentemente

intempestiva de Aquiles ao se retirar da frente de batalha. Apenas o conhecimento do texto

literrio possibilita a apreenso desse contexto, de outro modo, seria invivel qualquer

tentativa de argumentao. Na Odisseia, Odisseu, o heri de muitas astcias, h vinte anos

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ausente de taca, seu lar, pois passara dez anos em Troia e mais dez anos para conseguir

chegar em casa, mata os serviais que lhe foram infieis ao se aliar aos pretendentes a mo de

Penlope, sua esposa, invasores e dilapidadores da sua fortuna. Se desconhecermos que se

trata de uma sociedade patriarcal, em que o pai da famlia tambm o juiz, e que por isso

mesmo tem todo o direito de aplicar a justia que ele pensar ser a mais conveniente, corremos

o risco de fazer uma interpretao errada do texto, construindo um pensamento que no

condiz com o que de fato o poema expressa. Na Eneida, Eneias sempre aquiesce s ordens

dos deuses, colocando-as em primeiro plano no campo de suas aes. Se no estivermos

familiarizados com o significado da pietas e com o valor que ela expressa, e tambm que se

trata da caracterstica mais marcante do filho de Anquises, o que o leva a ser reverente

vontade divina, julgaremos inadvertidamente que ele uma personalidade sem deliberao e

sem iniciativa prpria. Diante disso, faze-se imprescindvel a leitura detida e detalhada desses

textos bsicos e ao mesmo tempo primordiais para o trabalho em questo.

Aps a leitura dos textos literrios, partiremos para a pesquisa de ensaios diversos sobre a

Eneida, a fim de ter uma noo de outras vises acerca do poema e da categoria escolhida

para anlise, e assim averiguar a pertinncia e o ineditismo do pensamento que venhamos a

desenvolver em nossa tese. Esses ensaios estaro referidos na bibliografia.

Depois dessa compilao dos textos, seja os literrios, seja os crticos, trataremos de tecer

as informaes a fim de transform-las em conhecimento, e a partir desse ponto, construir o

nosso prprio pensamento, procurando empregar um aspecto inovador presente discusso.

Esse aspecto diz respeito, sobretudo, especificidade do modo que a abordagem ser feita,

pois buscar respaldo nos textos literrios gregos e latinos para a comprovao argumentativa

das ideias desenvolvidas. Trataremos de analisar os excertos de modo a ratificar a ideia

proposta em cada momento da discusso. Por outro lado, haver tambm inovao

concernente interpretao dada ao texto literrio, trazendo novos pontos de vista acerca do

assunto em pauta.

A obra base sobre a qual teceremos o estudo proposto, o corpus, ser a Eneida.

Tomaremos como foco principal Eneias, protagonista do poema, analisando o seu perfil de

heri a partir das caractersticas que lhe so peculiares, a saber, a pietas (reverncia e respeito

aos deuses), a fides (fidelidade palavra dada) e a virtus (excelncia guerreira), entretanto,

outros textos sero utilizados a fim de enriquecer a argumentao da nossa tese, que consiste

em provar a excelncia guerreira de Eneias nos diferentes momentos do heri dentro da

19

narrativa. Estes esto acomodados em uma estrutura binria do poema por ns proposta, cuja

linha divisria ser a 'bela morte' simblica do heri, ocorrida em sua katbasis aos Infernos.

A partir dela mostraremos que a virtus de Eneias, no primeiro momento da narrativa,

individual, pois visa, sobretudo, a glria pessoal. No segundo momento, ela coletiva, pois

ocorre em prol do bem do grupo. A edio crtica da Eneida que adotaremos ser da Les

Belles Lettres, devidamente referenciada ao final do trabalho.

Mencionamos acima a utilizao de outros textos literrios a fim de enriquecer nosso

trabalho de anlise, a eles recorrendo como subsdio para a nossa argumentao. As edies

crticas utilizadas estaro listadas nas referncias bibliogrficas. So eles Teogonia, traduo

de Jaa Torrano, da Iluminuras, Ilada e Odisseia, da Harvard University Press, Trabalhos e

Dias, Hinos Homricos, especificamente, o Hino a Afrodite e o Hino a Zeus, e O Escudo de

Heracls, tambm estes trs ltimos da Harvard University Press.

A base terica em que nos apoiaremos ser, essencialmente, mile Benveniste, Le

vocabulaire des institutions indo-europennes, Pierre Chantraine, Dictionnaire

tymologique de la langue grecque, Alfred Ernout, Dictionnaire tymoligique de la langue

latine, cuja contribuio ser de fundamental importncia para o estudo da etimologia de

alguns vocbulos implicados na anlise do texto, Jean-Pierre Vernant e Jean Pierre-Naquet,

tericos especialistas do mundo grego, cujos estudos sero indispensveis para o melhor

entendimento do contexto helnico, e Pierre Grimal, estudioso conceituado no que concerne

ao mundo romano, que possibilitar uma viso mais precisa da respectiva cultura. A partir

deles, entenderemos melhor o universo dos heris, os valores e o contexto a que pertencem.

Faremos, tambm, a anlise sobre o significado dos vocbulos aret e virtus, que apesar de

convergir para uma acepo guerreira, divergem quanto ao seu sentido etimolgico. Esse

estudo ser necessrio tendo em vista que buscaremos averiguar a correspondncia entre a

palavra que expressa excelncia, valor guerreiro no mundo grego, aret, e no mundo latino,

virtus, tendo em vista ser fato a antiguidade do mundo helnico em relao ao romano.

preciso levar em considerao que estes so valores inerentes ao heri, sua formao

guerreira e ao universo em que est inserido.

Quanto s tradues dos textos gregos e latinos, elas tero um carter operacional, todas

sendo realizadas por ns no decurso do trabalho.

20

CAPTULO I

O heri clssico

1. Perfil do heri

A figura do heri clssico est presente em dois momentos precisos dentro do contexto

histrico-literrio grego. Dentro da periodizao histrica, ele pertence tanto ao perodo

arcaico, sculo VIII- VI a. C., quanto ao perodo clssico, sculo V-IV a. C. No que concerne

ao gnero literrio, ele figura central na Epopeia, produto do perodo arcaico, como tambm

protagonista na Tragdia, fruto do perodo clssico, auge da democracia grega. Entretanto, a

atuao do heri configura-se de modo diferente em relao a cada um dos genros

mencionados. Esta discusso, no entanto, ser tecida em momento mais propcio, no decurso

do presente trabalho.

Quanto tradio latina, vemos, na literatura, a construo de um heri nacional,

precisamente no perodo clssico da respectiva tradio, sculo I a. C. - I d. C., Eneias, a qual,

desde os primrdios, aponta-o como mito fundador das bases da civilizao romana, mas cuja

caracterizao respalda-se no modelo grego de heri.

As caractersticas que delineiam o perfil do heri clssico so essencialmente sua filiao,

a misso para a qual ele est destinado, a sua estatura e o seu desempenho fsico denotando

fora descomunal, e a sua intrepidez.

H duas tradies quanto filiao dos heris. A hesidica define-o como filho de um

mortal com um deus. Eles so semideuses. A homrica caracteriza-o como descendente de

uma divindade, no necessariamente uma descendncia direta, como o caso de Aquiles,

filho da deusa marinha Ttis e do mortal Peleu. jax Maior, por exemplo, filho de dois

mortais, Telamon e Peribeia, no entanto, em sua linhagem ascendente, encontra o deus

Poseidon como seu ancestral.

Os heris esto imbudos da thmis justia divina. Eles tm uma funo a desempenhar,

uma tarefa ou misso a cumprir, de modo a fazer valer a justia que rege a convivncia

entre os homens aplicando-a. Na Ilada, podemos observar exemplos dessa afirmao. No

21

Canto I, durante a assembleia dos aqueus para discutir acerca da peste enviada por Apolo,

Nestor, o harmonioso orador de Pilos ' ... ' (Ilada, I,

247-248), tenta apaziguar os nimos entre Aquiles e Agammnon, que entram em desacordo

por causa do gras, butim de guerra, prmio a mais a que um grande heri tem direito por se

destacar entre os seus pares. O ancio tenta fazer ver a ambos a posio que ocupam. O

Atrida, rei e ao mesmo tempo senhor de reis, detm o cetro concedido por Zeus o qual

representa a thmis, e o qual, por sua vez, faz valer a dke ele, o nax, reina sobre muitos,

possuindo a fora da soberania. O Pelida, no entanto, possui a fora guerreira; ele a grande

defesa para os Acaios contra os males da guerra '

' (Ilada, I, 284). preciso, pois, que haja concrdia entre

aquele que detm a fora do cetro e aquele que detm a fora da espada, aplicando-se assim a

dke. No Canto IX, na embaixada a Aquiles, Fnix, enviado por Peleu guerra a fim de

proteger e aconselhar o seu filho, visto ser ele ainda muito jovem, tenta persuadir o Pelida a

voltar para o combate. Ele remete sua atitude irredutvel de no ceder ao pedido de

reconciliao de Agammnon, incorrendo na cegueira do esprito, influenciado por te, a

personificao do erro. Pois at os deuses aquiescem queles que, tendo cometido alguma

desmedida, suplicam-lhes, atravs de libaes, preces e sacrifcios, alguma benevolncia. As

Preces, Ltai, filhas de Zeus, perseguem te, onde quer que ela v, tentando curar o mal por

ela provocado. Mas se os homens no as escutam, elas vo ao pai e pedem-lhe que os puna,

fazendo com que essa divindade os persiga. Fnix pede a Aquiles que d o devido acatamento

s deusas, e que, pela reverncia a thmis, a dke seja aplicada, na anuncia por parte de

Aquiles ao ato de splica dos aqueus a ele direcionado, a fim de que voltasse para o combate

em socorro dos companheiros.

Thmis o termo utilizado para designar a divindade que personaliza a Justia Divina.

Filha das foras primordiais Urano e Geia, ela uma das Titnides e segunda esposa de Zeus.

Sendo da primeira gerao divina, ela est diretamente vinculada fora bruta da natureza,

designando assim o estgio em que o ser humano se encontra. Ele regido por esta natureza

com a qual busca identificar-se e com a qual convive. Da sua unio com o Cronida, nascem as

4 Todos os textos gregos e latinos so retirados da Bibliotheca Augustana (www.hs-augsburg.de/~harsch/augustana.html). Edies crticas utilizadas: HOMER. Iliad. Traslated by A. T. Murray. London: Harvard University Press, 1999; Hesiod, Homeric Hymns, Epic Cycle, Homerica. Translated by Hugh G. Evelyn-White. Harvard University Press: London, 2002; VIRGILE. nide. Tome I, II, III. Texte tabli et traduit par Jacques Perret. Paris: Les Belles Lettres, 2006.

22

Horas, (Boa Lei), (Paz) e (Justia), divindades cuja incumbncia

velar as portas do Cu - " ,/

/

" (Ilada, V, 749-751): "as portas autmatas do cu rangem, as quais as Horas, a

quem o vasto cu e o Olimpo so confiados, guardam, tanto para abrir quanto para fechar a

densa nuve". Antes do advento da plis, a lei de thmis rege os homens, para os quais o

mundo perceptvel apenas pelo crivo religioso. Dke representa uma extenso de Thmis, a

quem est diretamente submetida. Ela adquire autonomia na medida em que as leis deixam de

ser consuetudinrias, tornando-se escritas, e o Estado assume a funo de aplic-las. Nesse

contexto, a lei de Thmis, estritamente religiosa, circunscreve-se apenas ao mbito familiar,

ao okos.

No Canto XVIII da Ilada, a deusa Ttis, me de Aquiles, pede a Hefestos que faa novas

armas para o filho, visto que as suas foram espoliadas por Heitor ao matar Ptrocles. Uma das

armas o escudo, no qual o deus gravou, dentre outras imagens, duas cidades. Em uma delas,

celebram-se bodas alegres, os noivos saindo do tlamo e seguidos pelos convivas, a fim de

comemorar o casamento. No mercado, uma contenda, em que dois homens discutem acerca

da quantia a ser paga por causa de um assassinato. Um rbitro pleiteado para decidir a

questo, o povo e os arautos ficam divididos entre um e outro partido. Os mais velhos

renem-se no centro, segurando o cetro dos arautos, perto do altar sagrado, sentados em

pedras polidas, a fim de ouvir as partes. Aquele que melhor pronunciasse a justia, receberia

dois talentos de ouro como recompensa.

Nesse episdio, podemos observar um exemplo dos primrdios da plis, quando thmis e

dke ainda no esto completamente dissociadas, mas j abrem espao para um julgamento.

Os ancios so convocados para julgar o litgio entre os dois cidados, concernente ao

pagamento devido por causa de um assassinato. No contexto social anterior ao tratado, antes

da plis, a lei mandava que, havendo um crime, a famlia se encarregasse de vingar a morte

do parente, matando algum da outra famlia, que, por sua vez, vtima agora, tem o direito de

vingar a morte do seu parente, no cabendo ao estado interferir. No episdio referido, vemos

um momento social posterior, em que se abre espao para um acordo mediante um

julgamento, sendo possvel uma quantia ser paga pela parte devedora, ao invs de haver outro

crime, sanando, dessa forma, as mortes interminveis. A cena acima descrita retrata bem esse

momento. Thmis, representada pelo cetro nas mos dos ancios, est presente, para a

23

aplicao da dke, cuja presena se faz no julgamento das partes pelo corpo de juzes: os

ancios, o povo e os arautos.

Benveniste5 observa que a raiz do vocbulo thmis a mesma indo-europeia dhe -, que

significa pousar, colocar, estabelecer. A palavra sanscrita dhaman - lei, sede, lugar - tem sua

formao simtrica dharman - lei -, cuja raiz indo-iraniana dhar-, segurar firmemente,

corresponde provavelmente do latim firmus, que tem uma formao em -m-, como dharman.

Mas a formao de dhaman provm de dha-, indo europeu dhe-, raiz que deu facio em latim e

ththemi em grego. Logo, thmis designa aquilo que est estabelecido. Em relao thmis, o

linguista ainda pontua:

La thmis est l'apanage de basiles, qui est d'origine cleste, et le pluriel

thmistes indique l'ensemble de ces prescriptions, code inspir par les dieux,

lois non crites, recueil de dits, d'arrts rendus par les oracles, qui fixent dans la conscience du juge (en l'espce, le chef de la famille) la conduite tenir

toutes les fois que l'ordre du gnos est en jeu.6 (BENVENISTE, 1969, p.103)

A thmis aquilo que est estabelecido firmemente, desde o princpio, pelos costumes, e

sendo ela de origem divina, proferida, sobretudo, pelos orculos, essa lei designa a vontade de

Zeus, que, por sua vez, o executor do Destino, fora maior que est acima at mesmo dos

deuses.

Thmis foi a segunda esposa de Zeus, deus ordenador do universo. Essa unio simboliza

o estabelecimento do valor que a deusa exprime, e a aplicao deste valor a partir da unio

das duas divindades d-se pelos desgnios de Zeus7. O deus pe-se ao lado da Justia. Diante

disso, ele o distribuidor da thmis, velando para que a dke seja exercida, seja aplicada, e

atribuindo essa funo aos heris e aos reis. O heri est imbudo da justia divina, thmis,

concedida por Zeus, para fazer valer a justia, a lei entre os homens, dke.

Na proposio da Ilada, temos um exemplo da aplicao da thmis:

5 BENVENISTE, mile. Le vocabulaire des institutions indo-europennes (2. Pouvoir, droit, religion). Paris: Les

ditions de Minuit, 1969. 6 A thmis o apangio dos basilus, que de origem celeste, e o plural thmistes, indica o conjunto dessas

prescries, cdigo inspirado pelos deuses, leis no escritas, coletnea de ditos, nas expresses exprimidas pelos orculos, que fixam na conscincia do rbitro (no caso, o chefe da famlia) a conduta a seguir todas as vezes que a ordem do gnos est em jogo. 7 Hinos Homricos. Ver Hino a Zeus. A edio utilizada encontra-se citada na nota de rodap 1.

24

M

, ,

,

, ,

. (Ilada, I, 1-7)

Canta, deusa, a fria funesta de Aquiles Pelida, que aos Acaios provocou

muitas dores e que muitas almas robustas de heris enviou ao Hades, e fazia

eles mesmos pasto para os ces e para todas as aves; cumpria-se a vontade de Zeus, desde o incio; o Atrida, senhor de heris, e o divo Aquiles, tendo

querelado, enfrentaram-se.

8: e a vontade de Zeus se cumpria. A voz mdia do verbo

denota o desgnio de Zeus como algo intrnseco ao deus, visto que se confunde com a

sua prpria vontade. Ele o responsvel pela execuo do Destino, que uma vez traado, no

pode ser nem por ele mesmo modificado. H neste verso uma referncia ao estabelecimento

da thmis, visto que foi pela vontade do deus que a guerra entre aqueus e troianos aconteceu.

O motivo mtico da destruio de Troia seria que Geia, estando com o ventre muito cheio,

pedira a Zeus que a aliviasse, diminuindo o nmero de homens, de seres humanos existentes.

O deus, ento, juntamente com Thmis, arquitetou a guerra, que deveria ocorrer em Troia,

visto que a cidade, desde a sua edificao, estava destinada a ser destruda Ilo, seu fundador,

edificou-a sobre a colina de te, a colina do Erro. A divindade foi lanada do Olimpo pelo

Cronida, por t-lo enganado, tendo cado na regio da Trade, local onde, no futuro, seria

fundada a cidade. Portanto, foi a Justia Divina que determinou a destruio de lio, tendo se

realizado pela vontade de Zeus, o verdadeiro general da guerra entre gregos e troianos, a qual

se configura tambm no plano divino. Os deuses, alm de tomar partido seja pelos argivos

seja pelos dardnidas, do mesmo modo se enfrentam em combate (ver Ilada, Canto XX).

Zeus paira acima, comandando a guerra. Ele decide acerca do destino dos heris, confere-lhes

glria e pesa na balana o cumprimento da moira de alguns deles. Ele veda como tambm

sanciona a participao dos deuses na batalha. De cima do monte Ida, ele observa e dirige a

luta.

8 A mesma frmula encontra-se nos Cantos Cprios, exatamente quando Thmis e Zeus decidem pela guerra entre Gregos e Troianos.

25

Outro exemplo de aplicao da thmis, levando-se em considerao que seja um

privilgio dos reis, dos basileus, encontra-se na Odisseia9, Cantos XXII-XXIV. Odisseu,

tendo retornado para taca aps vinte anos de ausncia, encontra seu palcio invadido e seus

bens sendo dilapidados pelos pretendentes mo de sua esposa Penlope. Imbudo da thmis,

haja vista ser ele o patriarca da casa, o basileu, mata todos os invasores e tambm os escravos

que o traram durante a sua ausncia, tendo eles se aliado aos pretendentes. O morticnio no

lhe traz punio, pois foi aquiescido pelos deuses. No momento em que os pais dos prncipes

mortos vo tomar satisfao do ocorrido, em busca de vingana, Atena, sob a ordem de Zeus,

intervm, estabelecendo a concrdia e a paz.

Em relao dke, Benveniste pontua que preciso fazer um trabalho de anlise a fim de

distinguir o sentido de 'justia' que a palavra exprime, tendo em vista que a raiz que a compe,

deik-, tem o sentido de 'mostrar'. Trata-se da mesma raiz iraniana dis-, que tem numerosos

empregos denotando 'ensinar'. Logo, deik- pode exprimir o sentido de 'mostrar verbalmente,

pela palavra'. O emprego de deik- se faz juntamente com ius - iu-dex -, que implica mostrar

com autoridade. Essa raiz est presente no verbo grego deknimi, 'mostrar' e no latino dico,

'dizer'. O fato de nem sempre deknimi exprimir este sentido ocorre pelo enfraquecimento da

raiz. Em relao ao verbo dicere, toda a histria evidencia um mecanismo de autoridade no

seu uso, pois apenas o juiz pode dicere ius.

Assim, o lingusta informa:

Voici le dernier trait de la signification de *deik-: c'est montrer ce qui doit tre, une prescription qui intervient sous la forme, par exemple, d'un arrt de

justice.

Ces indications permettent de prciser le sens initial de gr. dke, en tant que terme d'institution. En comparant les formes skr. dis et lat. dicis causa, on

voit que *dix nonce cette fonction comme normative; dicis causa signifie

"selon l'nonciation formelle", ou comme nous disons "pour la forme". On

rendra donc *dix littralement comme "le fait de montrer avec autorit de parole ce qui doit tre", c'est--dire la prescription imprative de justice.

10

(BENVENISTE, 1969, p. 109)

9 Edio utilizada: HOMER. Odyssey. Translated by A. T. Murray. London: Havard University Press, 2002.

10 Eis o ltimo trao do significado de *deik-: mostrar o que deve ser, uma prescrio que intervm sob a

forma, por exemplo, de uma sentena de justia. Estas indicaes permitem precisar o sentido inicial do greg. dke, enquanto termo de instituio. Comparando as formas skr. dis e lat. dicis causa, v-se que *dix enuncia esta funo como normativa; dicis causa significa segundo o enunciao formal, ou como ns dizemos pela forma. Traduziremos, pois *dix literalmente como o fato de mostrar com autoridade da palavra aquilo que deve ser, isto , a prescrio imperativa de justia.

26

O heri aquele que mostra com autoridade, a ele investida por Zeus, a manuteno

daquilo que est posto, o mtron, a medida que etabelece o liame entre homens e deuses.

A respeito da singularidade do heri quanto a seu porte fsico e a sua fora descomunal,

remetemos, na Ilada, Canto VII, ao episdio do combate singular entre Heitor e jax, para

melhor exemplificar essas caractersticas do heri guerreiro. Os dois heris, aps atirar um

contra o outro as lanas, que foram encravar-se no escudo de cada um, encaminham-se para o

enfrentamento, e so comparados a lees devoradores de carne crua, ou javalis, cuja fora no

facilmente extinguvel "

,

" (Ilada, VII, 255- 257). A comparao estabelecida pe em evidncia a

voracidade e a fora bruta de ambos, tpicas do heri guerreiro. Essa ideia ser reiterada na

continuao da referida cena, quando Heitor, apesar de ferido pela lana de jax, ergue uma

pedra, de tamanho descomunal, spera e escura, que dificilmente um homem comum

levantaria, e lana contra o escudo do Telamnio, fazendo-o ressoar. Ele, por sua vez, tambm

pega uma pedra, ainda maior, e lana contra o Priamida, atingindo-lhe o elmo, fazendo o

troiano cambalear e cair no solo. Apolo, porm, restitui-lhe as foras, e quando ambos,

segurando o prprio escudo, sacam a espada, preparando-se para lutar novamente, os arautos

interrompem, visto que a noite j havia chegado.

Quanto intrepidez, caracterstica peculiar do heri, ela o leva a enfrentar o perigo

destemidamente, sobretudo quando se trata de ir ao encalo de um inimigo que lhe seja igual

ou superior em valor, provando assim a sua aret, a sua excelncia. Podemos tomar como

exemplo dessa afirmao o episdio, no Canto VI da Ilada, em que Heitor, tendo ido

cidade a fim de pedir a Hcuba, sua me, que oferecesse um sacrifcio deusa Atena para que

ela favorecesse os troianos, aproveita o ensejo para ver sua esposa, Andrmaca. Ela roga a

Heitor que dos muros no se afaste, lembrando que, para ela, ele ao mesmo tempo pai,

esposo, amigo e irmo, pois tendo Aquiles matado sua famlia, apenas ele lhe restava.

Andrmaca dirige-se a Heitor nestes termos: " " (Ilada,

VI, 407) "demnio11

, teu ardor te perder". Em seguida, na tentativa de demover o esposo

11 Demnio ( ) significa a parte do divino que inerente ao homem (ver Mito de Er, Repblica, de Plato)

27

da ideia de voltar ao campo de batalha, remete ao filho dos dois, Astinax, que, morrendo o

pai, ficaria rfo e desprotegido, assim como a ela mesma que, viva, ficaria a merc dos

aqueus. Ele responde-lhe, ento:

,

,

. (Ilada, VI, 441-446)

Na verdade, mulher, tudo isso a mim preocupa. Mas muito temo os Troianos

e as Troianas de peplos compridos, conquanto mau, assim longe da guerra eu escapasse. No me exorta o corao desde que aprendi a ser sempre valoroso

e a lutar entre os primeiros Troianos, conservando a grande glria do meu

prprio pai e a minha.

Assim vemos a coragem de Heitor. A despeito da splica da esposa, ele pe em primeiro

plano o desejo de enfrentar o inimigo, pois fugir luta seria pior morte do que perecer no

campo de batalha, tendo em vista que seria morrer em vida, sendo motivo de oprbrio e de

vergonha diante de todos, sobretudo de seu prprio filho, a quem deveria deixar o exemplo

guerreiro a ser seguido.

2. A bela morte

A bela morte configura-se quando o guerreiro, jovem, perece no campo de batalha,

enquanto luta com um adversrio to ou mais valoroso do que ele prprio. Aps a morte,

imprescindvel que o heri receba os ritos fnebres, o que lhe garantir a imortalidade. Na

bela morte, o heri encontra a consagrao da sua glria, que atravs daquela se torna

imperecvel. Essa glria consiste em ter o heri os seus feitos cantados pelos aedos, trazidos

lembrana da coletividade a fim de servir de modelo a ser seguido pelas novas geraes. o

que afirma Helena, no momento em que Heitor vai ao palcio de Pris, a fim de traz-lo de

volta para o combate, depois que Afrodite o salvou de ser morto por Menelau: "

,

28

" (Ilada, VI, 357-358) "sobre estes Zeus colocou um desgraado destino,

assim como no passado, tambm sejamos cantados pelos homens que ho de existir". Cair no

campo de batalha salva o guerreiro da inelutvel decrepitude do corpo e consequente

deteriorao de todas as qualidades que constituem a aret, a saber, fora fsica, ardor

guerreiro, coragem. Pramo, no momento em que tenta persuadir Heitor a no enfrentar

Aquiles em um combate singular, remete ao fato de ser belo a um jovem morrer no campo de

batalha, exatamente por possuir essas qualidades. Mas a um velho, cuja honra repousa na

vivncia de muitas batalhas, podendo assim, aconselhar e direcionar os mais jovens em

relao ao melhor caminho a seguir, infamante ter as suas vergonhas expostas, enquanto jaz

morto. Diante da real possibilidade de Heitor morrer pelas mos de Aquiles, Pramo, falando

como pai, no como rei pois no leva em considerao a desonra que adviria para Heitor

caso fugisse do embate com o Pelida procura demover o filho da empreitada de lutar contra

o mais forte dos aqueus, pois sabe o que acarretaria para si e para os seus a sua morte, a runa

da sua famlia e de Troia:

...........................

,

. (Ilada, XXII, 71-76)

Mas a um jovem todas estas coisas convm: jazer assassinado no campo de

batalha, trespassado por um bronze afiado; tudo belo, tendo morrido, tudo

mostre. Mas quando, tendo um velho sido morto, os ces ultrajem tanto a cabea grisalha quanto a barba e o pudor, tudo isso se torna lamentvel aos

infelizes mortais.

A um jovem belo morrer trespassado pela espada, no campo de batalha, pois estando

morto, o cadver exposto aos olhos de todos, sobretudo aos do inimigo, deixa vista a beleza

do corpo, cuja magnificncia ser sempre lembrada e admirada. A fala do ancio remete

bela morte, , respeitante ao jovem guerreiro, que enfrentando um

adversrio to ou mais valoroso que ele prprio, tomba no campo de batalha. Este receber,

posteriormente, as honras fnebres, as quais lhe conferiro o mnema, a lembrana da sua

juventude, da sua fora e dos seus feitos, a qual lhe outorgar a imortalidade. O mnema ser

29

evocado pelo sema, o signo, representado pelo tmulo, que receber os ossos, o qual

responsvel por trazer lembrana das geraes vindouras os feitos gloriosos desse heri, que

assim ter sua glria eternizada, o que podemos inferir dos versos abaixo, concernentes fala

de Heitor no episdio do combate singular entre o troiano e jax, heri grego:

,

,

,

,

.

, ,

,

,

,

,

.

,

.

. (Ilada, VII, 76-91)

Assim falo, e seja Zeus testemunha para ns. Caso este homem me mate com

o bronze de longa ponta, tendo espoliado as armas, leve para cima das curvas

naus, mas meu corpo d de volta ptria, a fim de que da pira os Troianos e as esposas dos Troianos recebam-me morto. Mas se eu mat-lo, e a mim

Apolo der o triunfo, tendo espoliado as armas, levarei para lio sagrada,

suspenderei diante do templo de Apolo que atira ao longe, mas o cadver restituirei aos navios bem equipados, a fim de que os Acaios de longas

cabeleiras o enterrem e construam para ele a sepultura sobre o vasto

Helesponto, e quando algum dentre os homens nascidos posteriormente, navegando em navio rico em remos sobre o mar vinhoso, diga tambm: este

o tmulo de um varo morto h muito tempo; ele, distinguindo-se, um dia

o ilustre Heitor matou. Assim algum dir, e minha glria no perecer.

Heitor prope os termos do embate entre ele e o dnao que se dispusesse a lutar em

combate singular. Caso fosse morto, que seu corpo fosse entregue aos seus, depois de

espoliada as armas, para que assim recebesse as honras fnebres. Caso matasse o adversrio,

30

Heitor tomaria a mesma atitude. Espoliaria as armas, consagrando-as posteriormente a Apolo,

e devolveria o cadver, para que fosse pranteado pelos aqueus e fosse sepultado com as

devidas honras. A sepultura a ele erigida sobre o Helesponto seria smbolo perene da sua

glria e tambm da de Heitor, pois todos que por ali passassem, lembrariam, ao ver o tmulo,

os grandes feitos do morto, e consequentemente, de quem o matou, conferindo a este glria

eterna.

Contrapondo a bela morte, , existe a 'morte monstruosa',

, detestada e temida pelo heri. Ela marcada, sobretudo, pelo ultraje ao

corpo, que privado das honras fnebres, ou ser comido pelas aves e pelos ces, ou sofrer a

deteriorao prpria da putrefao advinda da perda da energia vital, sendo comido pelos

vermes. Ambos os quadros aterrorizam o guerreiro, pois representa o aniquilamento total,

ocorrendo a perda da forma fsica e consequentemete da imagem com a qual quer ser

lembrado pelos que vivem. J receber as honras fnebres aps perecer na guerra, garantir-lhe-

a preservao dessa forma, pois ser cremado, no havendo a deteriorao do corpo.

Heitor12

, por ser reverente aos deuses, por eles estimado, e tem o seu corpo preservado aps

ser morto por Aquiles, apesar de ser maltratado por ele e pelos outros argivos "

, "

(Ilada, XXIV, 422-423): "assim, para ti, os afortunados deuses cuidam do valoroso filho, e

embora estando morto, visto que lhes era querido de corao". Neste mesmo episdio, em que

Pramo vai ao acampamento grego a fim de resgatar o corpo do seu primognito, possvel

perceber o quo importante a questo da preservao do corpo. Hermes, deus mensageiro,

enviado por Zeus para que acompanhe o ancio na empreitada. Disfarado em um jovem, o

deus aproxima-se dele, sob o pretexto de gui-lo, dizendo-se escudeiro de Aquiles. Diz que

no ir fazer-lhe mal, ao contrrio, defend-lo-, pois v no velho a figura do seu pai. Pramo,

ento, questiona-o acerca do corpo de Heitor, se ainda encontra-se junto s naus, ou se

Aquiles j o havia entregado aos ces. Hermes tranqiliza-o, pois o corpo do Priamida

continuava intacto " " (Ilada, XXIV,

411): " velho, ainda no o devoraram os ces nem os pssaros". Apesar de j haver passado

12 Na Ilada, XXII, 168-173, Aquiles, tendo voltado para a guerra, persegue Heitor a fim de mat-lo pela morte de Ptrocles. Os deuses assistem perseguio, quando Zeus lamenta tal espetculo, pois Heitor lhe caro, tendo-lhe ofertado em sacrifcio, muitas vezes, gordos animais, o que denota o carter pio do heri. Ser piedoso, reverente aos deuses, , antes de tudo, oferecer-lhes rituais de sacrifcios e libaes.

31

doze dias desde a sua morte, e Aquiles diariamente ao alvorecer arrastar o corpo ao redor do

tmulo de Ptrocles, ele permanecia conservado " ,

, " (Ilada, XXIV, 414-415):

"nem a carne lhe apodrece, nem os vermes o comem, os quais facilmente devoram os homens

mortos em batalha". imprescindvel, pois, que o corpo esteja em perfeito estado para que

com essa forma seja lembrado e imortalizado na memria das pessoas.

A trajetria de Heitor culmina com a bela morte. Ele, tendo realizado grandes feitos,

perece no campo de batalha, no auge da sua juventude, pelas mos do maior heri grego,

Aquiles, em combate singular. Aps sua morte, recebe as honras fnebres. O povo troiano

chora o heri. Seu corpo cremado na pira. O fogo apagado com vinho, e seus ossos

recolhidos pelos parentes, os quais so depostos em um tmulo para ele construdo. Um

banquete oferecido. Heitor ser sempre lembrado como o maior heri troiano.

3. A raa dos heris

Em Trabalhos e Dias, Hesodo elenca as cinco raas de homens mortais. Dentre elas, a

raa dos heris criada por Zeus para combater a injustia praticada pelos homens da raa de

bronze. Com o intuito de traar com mais acuidade as caractersticas do heri, partamos da

estruturao proposta por Vernant13

ao mito das raas hesidicas. Ele, a partir de uma

antinomia entre e , prope uma estrutura tripartida das cinco raas dos homens,

que representa as trs funes indoeuropeias atribudas aos reis e heris. Nela, a raa de ouro

estaria associada raa de prata, denotando a funo jurdico-religiosa; a raa de bronze,

unida raa dos heris, exprimiria a funo guerreira; e a raa de ferro, pemanecendo

sozinha, simbolizaria a funo empreendedora, que reflete a fecundidade. Tendo uma

estrutura binria, esta raa envolveria dois momentos distintos da humanidade.

Os homens da raa de ouro, criada pelos imortais, existiram no tempo de Cronos. Eles

eram jovens e respeitavam a justia, . Vivendo como deuses, no sofriam os reveses da

velhice. Longe de penas, de misrias e de males, a terra brotava espontaneamente para eles,

proporcionando-lhes uma vida de abundncia. Aps sua morte, que os atingia sem dor, como

13 VERNANT, Jean. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 25-132.

32

se fossem tomados pelo sono, eles iam compor o squito dos seres epictnicos, guardies,

, dos mortais, velando pela prtica da justia e pela piedade, , aos deuses.

Os homens da raa de prata, inferior de ouro, nem na forma e nem no talhe parecida a

ela, foram criados pelos imortais. Eles eram homens pueris e agiam pautados pelo

descomedimento, . Viviam durante cem anos na infncia, junto s suas mes. Quando

atingiam a adolescncia, padeciam horrveis dores, por causa da sua louca desmedida e da sua

insensatez. mpios, no sacrificavam aos deuses nos altares sagrados e no serviam aos

imortais. Zeus, encolerizado, aniquilou-os, pois no honravam as divindades que habitam o

Olimpo. Mas mesmo assim, receberam a honra de serem transformados em seres

hipoctnicos, chamados venturosos, , pelos homens mortais.

As duas primeiras raas correspondem funo sacerdotal na estrutura tripartida indo-

europia, representando cada uma delas uma feio desta funo. A raa de ouro diz respeito

piedade, figura do soberano respeitoso a ; a raa de prata, ao contrrio, diz respeito

soberania mpia, praticam a hbris. Neste contexto, e atuam estritamente

no campo religioso, pois os homens destas raas desconhecem a guerra e a fadiga.

A terceira e a quarta raas so compostas por homens guerreiros, adultos,

correspondendo, portanto, funo guerreira. Elas so estruturalmente semelhantes s

anteriores; cada uma delas simboliza uma feio desta funo. Nelas, e

concernem guerra. A raa de bronze filha do freixo "

" (Teogonia, 187) rvore de cuja madeira se faz a lana

do guerreiro. Criada por Zeus, s se ocupa dos terrveis trabalhos de Ares, apraz-lhes a

guerreira. Homens violentos, de corao adamantino, , no se

alimentam de po. Suas armas e suas casas so de bronze e sua fora invencvel.

Sucumbiram sob o peso dos prprios braos, na guerra. Depois de mortos, annimos, suas

almas vo ocupar o reino de Hades, deixando definitivamente a luz do sol. A raa dos heris,

criada por Zeus para combater a da raa de bronze, mais justa, , e mais

corajosa, mais nobre, , do que a anterior, o que lhes garante como recompensa a volta

Idade de Ouro aps perecer, uns em Tebas de sete portas, outros, em Troia, impelidos pela

guerra m, , e pelo grito temvel da tribo, . Eles vo habitar a

ilha dos Bem-aventurados, livres de inquietaes, onde trs vezes ao ano a terra lhes fornece

33

uma colheita abundante. Diante disso, segue abaixo o trecho do poema em que a raa dos

heris descrita, a fim de melhor percebermos as caractersticas acima elencadas:

,

, ,

,

, .

, ,

,

.

[ ]

.

,

,

.14 (Trabalhos e Dias, 156-173)

Mas quando tambm a terra cobriu esta raa, novamente Zeus Cronida criou

outra ainda, a quarta, sobre a terra muito fecunda, mais justa e mais corajosa, raa divina de vares heris, que so nomeados semideuses, raa precedente

sobre a terra sem limites. Destruiu-os a batalha cruel e o grito de guerra

tenebroso, uns sob Tebas de sete portas, terra Cadmeia, lutando por causa

dos rebanhos de dipo, e outros, nas naus sobre a grande profundeza do mar em direo a Tria, tendo-os conduzido por causa de Helena da bela

cabeleira. L, em verdade, o termo da morte os envolveu por completo. Para

eles, Zeus pai, o Cronida, tendo dado uma vida e uma morada separadamente dos homens, estabeleceu-os nos confins da terra. E eles, heris afortunados,

tendo o corao livre de inquietaes, habitam na ilha dos bem-aventurados,

s margens do Oceano turbilhonante; para eles, trs vezes ao ano a terra fecunda leva uma florescente e doce colheita.

O liame entre , a medida, e , o excesso, o descomedimento, a linha que

traa o limite entre justia, , e injustia, , e nesse liame que o homem deve

manter-se de modo a no trazer sobre si as consequncias provocadas pela ultrapassagem do

que consiste, sobretudo, em no esquecer-se o homem da sua condio humana,

14 Edio adotada: HSIOD. Thogonie Les travaux et les jours Le bouclier. Texte tabli et traduit par Paul Mazon. Paris : Les Belles Lettres, 1996.

34

ousando querer assemelhar-se aos deuses. Neste contexto, no h como dissociar essa justia

do valor religioso, pois o homem vive vinculado divindade, sob sua tutela, podendo essa

divindade ser favorvel ou contrria, a depender da conduta que o homem tenha. Trata-se de

um dos ideais gregos, ligado ao sentimento religioso e conduta do homem na sociedade.

Exemplo da ultrapassagem do e da sua consequente punio pode ser observado

no personagem Agammnon, no episdio em que a frota argiva encontra-se reunida em

ulis.15

O Atrida, penetrando no bosque sagrado da deusa rtemis, caa um cervo e se gaba

do feito. A deusa, cuja caracterstica mais marcante ser a deusa da caa, pune-o por sua

soberba vaidade. Ela envia uma calmaria que impede os gregos de seguir viagem rumo a

Tria e, consequentemente, entrava a possvel vitria dos aqueus sobre os troianos, no cerco

que durar dez anos. Consultado o adivinho Calcas acerca do motivo da calmaria, ele revela

que a deusa est irada com o comandante da tropa por ter-lhe violado o bosque e ainda

matado um dos seus cervos; e mais ainda, ter-se vangloriado por isso. A soluo seria

Agamemnon oferecer em sacrifcio deusa o seu melhor fruto, que ser a sua filha Ifignia. O

heri, no podendo recuar em seu empreendimento, de conduzir a frota e assim obter os

louros da conquista de Tria, aquiesce, e oferece o seu melhor fruto a rtemis.

Outro exemplo de hbris encontra-se no episdio de Miseno, trombeteiro da frota troiana,

ao desafiar o deus Trito, divindade marinha, na arte de tocar trombeta16

(Eneida, VI, 156-

182). Eneias, chegado a Cumas, tem a incumbncia de ir ao encontro da Sibila, sacerdotisa de

Apolo, a fim de saber como conseguir praticar com a alma de seu pai Anquises, no mundo dos

mortos. Para isso, sero necessrios alguns requisitos: fazer um sacrifcio s divindades

infernais, achar o ramo de ouro para oferec-lo a Proserpina, e prestar as honras fnebres a

um dos seus companheiros, visto que contamina toda a frota no apenas por estar insepulto,

mas, sobretudo pela natureza da sua morte. Miseno foi morto por Trito por causa da

que cometeu ao querer igualar-se a um deus. preciso, pois, que Eneias conceda-lhe

sepultura, realizando concomitantemente um ritual de purificao a fim de limpar o grupo,

que fora contaminado pela de Miseno, haja vista o vnculo religioso a que todos esto

submetidos, por cultuarem os mesmos deuses.

15 Euripide. Iphignie Aulis. Paris: Les Belles Lettres, 2002. 16

Edio adotada: VIRGILE. nide: Livres V-VIII. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

35

Quanto aos homens da raa dos heris, a recompensa por serem justos e no

ultrapassarem o voltar Idade de Ouro, indo habitar a ilha dos Bem-aventurados,

onde a terra brota espontnea e abundantemente, livres de fadiga e de sofrimentos.

A raa de ferro tem a existncia dividida em dois momentos. O primeiro, em que os

homens so adultos, tem como caracterstica a presena da e da , vivendo os

homens neste liame, sob o jugo de fadigas incessantes. Mas ainda assim, misturam-se para

eles, ao mesmo tempo, tambm bens aos males "

" (Trabalhos e Dias, 179). O segundo momento desta raa, em que os homens so

velhos, caracterizado pela presena unicamente da Nele, os homens tero como

consequncia da sua impiedade e da prtica da injustia, o seu aniquilamento total. Os

homens j nascero com as tmporas encanecidas. Tamanha ser a iniquidade existente entre

os homens desta raa, que e subiro para o Olimpo, abandonando-os,

deixando-lhes apenas tristes pesares. No haver fora contra o mal. Zeus destruir

completamente essa raa.

A raa divina de homens heris, que so denominados semideuses,

, , pois so filhos de uma divindade com um mortal,

deve ter como mola propulsora das suas aes a justia. importante ressaltar que, para

Homero, o heri no necessariamente filho de uma divindade com um mortal, mas um

homem cuja excelncia, sobretudo guerreira, faze-o sobrepujar os homens comuns.18

No

entanto, sua ascendncia sempre chega a Zeus. Aquiles filho de uma deusa, Thtis, e de um

mortal, Peleu. reverenciado por sua excepcional aret e aclamado como o melhor dos

aqueus. Por outro lado, Heitor filho de dois mortais. Ele o primognito de Pramo, rei de

Troia, e da rainha Hcuba, sua esposa legtima. Maior guerreiro de Troia, ele o grande

defensor da cidade.

, mais justa, e , mais nobre, assim denominada a raa dos homens

heris, raa precedente, em tais valores, sobre a terra sem limites

17

: personificao do Pudor, responsvel por fazer valer o senso de vergonha em pblico. : personificao da Retribuio divina; da distribuio de recompensa ou punio, a depender do juzo em relao ao. Na Ilada, canto XIII, 121-122, Poseidon incita os aqueus a reagir e lutar contra a investida dos troianos, que, na ocasio, encontram-se em vantagem, ordenando a cada um colocar, no ntimo, o senso de

vergonha e de justia distributiva 18

Plato. Repblica, III, 391cd.

36

. Os prefixos - e - de comparativo de superioridade situam os

heris em um patamar superior ao da raa de bronze, cuja caracterstica essencial a

guerreira, que a leva a sua prpria destruio.

o homem justo, aquele que observa os costumes e as leis, e tambm cumpre

com os deveres em relao aos deuses e aos homens. Levemos em considerao que, neste

contexto, est diretamente vinculada divindade, sacralidade19

:

, ,

,

,

,

. (Trabalhos e Dias, 256-262)

E existe uma virgem, Dke ( ), nascida de Zeus, honrada e reverenciada

pelos os deuses, os quais habitam o Olimpo. E, facilmente, sempre que

algum a fere, tortuosamente injuriando (-a), de imediato ela, sentando-se ao

lado do pai Cronida, Zeus, faz ressoar o injusto pensamento dos homens injustos, at que o povo pague as insolncias dos reis, que, tramando

sofrimentos, por outra parte desviam tortuosamente as sentenas, proferindo-

as.

, comparativo de superioridade de , o termo utilizado para qualificar o

nobre, bem-nascido e de acendncia divina, cujo ardor guerreiro e coragem no campo de

batalha so honra conferida aos melhores. Os dois adjetivos referidos, que caracterizam os

homens da raa dos heris, tm sua gnese no prprio Zeus, criador desta raa. O deus, cujos

desgnios de estabelecimentos da ordem so determinados antes mesmo do seu nascimento,

levando-se em considerao o tempo mtico, que cclico, o , o astucioso, o

prudente, o sagaz, tambm o , aquele que v largo, que tudo v, o que lhe garante

a conquista da soberania e a permanncia no poder.

19

parqnoj gr Adoj Dkh lgeta te kantwj erhtai, yedoj de ado ka dkV nemeshtn

kat fsin (Plato. Leis, 943 e): Pois virgem, filha do Pudor, Justia chama-se e verdadeiramente dita; falsidade, detestvel por natureza ao pudor e Justia.

37

Diante do que foi explanado em relao ao heri, cabe agora completar essa

caracterizao discorrendo sobre a sua excelncia guerreira, valor intrnseco ao heri, que o

torna guerreiro. Trata-se do ponto nevrlgico do presente estudo, haja vista a necessidade

dessa discusso prvia a fim de realizarmos aquilo que foi estabelecido como proposta do

nosso trabalho, que , sobretudo, provar a excelncia guerreira de Eneias, protagonista da

Eneida, poema latino que canta a consagrao da glria romana.

4. A aret grega e a virtus romana

A excelncia guerreira do heri clssico se traduz, no mundo grego, pela , e pela

virtus, no que concerne ao mundo latino. Diante disso, faz-se necessrio analisar o sentido

expresso por esses vocbulos, dentro do contexto a que respectivamente pertencem. Assim,

tendo em vista a anterioridade da civilizao helnica em relao civilizao romana,

preciso que faamos o estudo primeiramente do vocbulo , analisando-o a partir da

sua etimologia at chegar ao sentido de excelncia que exprime. Com o intuito de tornar o

presente estudo mais profcuo, analisaremos a no mbito do heri individual, e em

seguida, no mbito do heri coletivo, tendo em vista que o primeiro pertence ao perodo

arcaico grego, e o segundo, ao clssico, o que significa mudana de valores sociais, que, por

sua vez, esto refletidas na figura do heri. Esta anlise se faz necessria, pois a base para

estudarmos posteriormente a trajetria de Eneias, cujo carter, no que concerne, sobretudo,

sua excelncia guerreira, modifica-se ao longo da sua jornada desde Troia at a Itlia, pois,

sendo a princpio o heri individual homrico, ele se torna o heri coletivo romano. Diante

disso, trataremos da virtus guerreira, estabelecendo uma comparao com a , de modo

a verificar as semelhanas e as diferenas entre os dois valores, que aparentemente expressam

o mesmo sentido, mas, no entanto, configuram-se de modo diferente. Assim, faremos um

estudo etimolgico da palavra virtus, sua formao e aplicao do sentido no texto virgiliano.

38

4. 1. A aret guerreira

Valor intrnseco ao heri guerreiro, a denota, acima de tudo, excelncia. Neste

contexto, esta excelncia tem dois campos de atuao, a guerra, momento em que o guerreiro

prova a sua intrepidez e destreza blica, e a gora, lugar onde ele demonstra a sua habilidade

de persuaso atravs do discurso. possvel ter uma compreenso mais precisa dessa

afirmao a partir da fala do narrador da Ilada, no episdio concernente retirada de Aquiles

da guerra, aps a querela com Agammnon:

,

, . (Ilada, I, 488-492)

Mas ele irava-se, estando junto s rpidas naus, o divino Aquiles, rpido

quanto aos ps, filho de Peleu; nunca frequentava a gora, que d glria,

nem guerra, mas consumia o caro corao, l permanecendo, e desejava ardentemente tanto ao grito de guerra quanto batalha.

essencialmente no campo de batalha que a aret se desvela, atravs da coragem e da

fora do combatente, mas ela tambm pode ser exercitada na assembleia, atravs da arte de

persuadir. Esse o ideal do heri guerreiro, ser excelente nos dois mbitos. Quanto maior a

excelncia, a , maior a honra, a e Aquiles o expoente mximo desse ideal. Ele

no apenas coaduna em si, como suplanta tanto o que Odisseu20

de um lado, o melhor no

20 As referncias a seguir dizem respeito a episdios da Ilada que ratificam a ideia acima alentada, de que Odisseu, dentre os aqueus, aquele que possui maior excelncia na arte de persuadir. No Canto III, versos 200-223, no momento do combate singular entre Menelau e Pris, Helena convocada por Pramo, que se encontra na torre da cidade olhando para o campo de batalha, a discorrer sobre os heris gregos que ali se encontram. Odisseu, ento, apontado por ela como o astucioso filho de Laerte,

, conhecedor de todo tipo de dolos e truques,

. Nesse momento, Antenor toma a palavra, e confirma a fala de Helena, dizendo que em uma ocasio em que o heri fora, junto com Menelau, a Troia como embaixador, a fim de tratar da devoluo de Helena e dos tesouros roubados, ele surpreendeu a todos, pois tendo estatura menor do que a do Atrida, quando assumia a palavra na assembleia, era imbatvel, ningum se assemelhando a ele. No Canto IX, versos 179-181, Nestor aconselha Agammnon que se forme uma embaixada para ser enviada a Aquiles, de modo a convenc-lo a voltar para a guerra. O ancio, ento, escolhe Odisseu como um dos componentes da embaixada, e no momento das libaes, olha para o filho de Laerte com um olhar expressivo, de modo a faz-lo entender que usasse a maneira mais persuasiva para conseguir convencer

39

poder da argumentao, quanto o que jax21

por outro lado, o baluarte dos aqueus. Na

embaixada ao Pelida, enviada por Agammnon na tentativa de traz-lo de volta guerra,

tendo em vista que os gregos esto quase sucumbindo investida troiana, esto presentes

justamente Odisseu e jax, que simbolizam juntos o heri ideal, e Fnix, preceptor de

Aquiles, que exerce um papel educativo atravs do discurso que profere, o qual, em suma,

remete necessidade de conter a clera, pois at os deuses aquiescem quando requisitados

piedosamente por um suplicante. importante observar que, tendo sido a inteno da

embaixada persuadir Aquiles de voltar guerra atravs do discurso de Odisseu e de Fnix, e

atravs tambm da presena de jax, a visita provocou efeito contrrio, tendo Aquiles

vencido os visitantes atravs da argumentao. Podemos inferir desse fato a superioridade do

heri quanto sua excelncia persuasria. Quanto mais excelente o heri, , maior

a sua honra, a , conferida a ele pelos seus pares. A o reconhecimento pblico da

excelncia de um heri. Por isso Aquiles se sente to ultrajado, pois fora atingido no cerne da

fora que impulsiona os seus atos, a honra, o reconhecimento pblico, que lhe conferir a

glria imperecvel ao sofrer a bela morte. O prmio a mais que lhe fora dado pelos

companheiros no momento da partilha dos despojos de guerra, o , neste caso, uma

escrava, Briseida, e que confirma exatamente a proeminncia de Aquiles, ao ser tomado por

o Pelida. No Canto XIX, versos 154-183, tendo Aquiles voltado para a guerra por causa da morte de Ptrocles, deseja ardentemente entrar em combate, dispensando, inclusive, alimentar-se. quando Odisseu interfere e faz ver ao Pelida, ponderadamente, quo melhor os soldados lutariam se com farto vinho e com alimento se nutrissem, restaurando assim a fora e a coragem. Aquiles aquiesce, deixando-se convencer, apesar dele mesmo no tomar nenhum alimento, tamanha a sua sede de sangue e de luta. 21 As referncias a seguir dizem respeito a episdios da Ilada, que ratificam a idia de que jax, dentre os aqueus, aquele que possui maior excelncia no campo de batalha, excetuando Aquiles. No Canto II, versos 768-770, aps a catalogao das naus, h uma invocao Musa, em que o poeta solicita a ela revelar qual era o melhor dentre os guerreiros que com o Atrida viera para Troia. jax apontado como o que mais de

distingue e aquele que os melhores cavalos possui - /

/ :

dentre os heris era jax Telamnio, de longe, o mais distinguido, enquanto Aquiles estava irado; pois este era

muito mais forte, e os cavalos, que carregavam o irreprochvel filho de Peleu. No Canto III, versos 225-229, no momento do combate singular entre Menelau e Pris, no mesmo episdio em que Helena convocada por Pramo, que se encontrava na torre da cidade olhando para o campo de batalha, para discorrer sobre os heris gregos que ali se encontravam, o ancio pergunta-lhe quem aquele cuja estatura maior, e cujas espaldas so mais largas do que as dos outros. Ela ento responde que se trata do descomunal jax, baluarte dos

Aqueus - . No Canto XVII, versos 277-280, gregos e

troianos disputam o corpo de Ptrocles, que fora morto por Heitor. Em dado momento, os gregos cedem investida dos troianos, afastando-se do corpo. No entanto, no ficam distante por muito tempo, pois jax os insufla a voltar luta. quando ele referenciado, pelo poeta, como o mais valoroso guerreiro dentre os

Acaios, depois de Aquiles

: pois assaz rapidamente jax os fez voltar, que tanto na beleza quanto nos feitos fizera-se acima dos outros Dnaos depois do irreprochvel filho de Peleu.

40

Agammnon, pe em risco a prpria existncia do heri, pois perder a honra o mesmo que

perder a vida. Ele foi a Troia para morrer jovem, no campo de batalha, e receber a bela

morte, garantindo assim a sua imortalidade. No entanto, para que os acontecimentos sigam

este rumo, preciso que lhe seja garantido o reconhecimento pblico em relao ao seu valor

guerreiro. Desse modo, a retirada de Aquiles da guerra uma questo de vida ou de morte

para os gregos, como bem afirma a proposio do poema, mas, sobretudo, para o prprio

Pelida.

4. 2. A etimologia do vocbulo aret

A palavra , conforme Anatole Bailly, Dictionnaire Grec-Franais, significa

mrito ou qualidade pela qual algum se excele. De acordo com H. G. Liddell and R. Scott,

no Greek-English Lexical, significa excelncia, qualidades fsicas que constituem valor,

excelncia, perfeio'. Esse valor deve ser inerente aos , aos homens mais nobres da

classe superior, aos bem-nascidos descendentes de deuses.

A busca da excelncia pelo heri impulsionada pela necessidade de se imortalizar, de

permanecer vivo na memria das geraes vindouras. E para que isso acontea, faz-se

necessria a realizao de grandes feitos, de modo que ele sirva de modelo a ser seguido pelos

mais jovens. Assim, analisemos o termo aret a partir da raiz da palavra, na tentativa de

identificar esse sentido de excelncia na sua etimologia.

A raiz , que, segundo o Greek-English Lexical22

, traz o sentido de ajustar, adequar

conjuntamente, est no verbo , ajustar, adaptar, encaixar, construir, prover de, e

encontra-se tambm nos vocbulos , e , superlativo e comparativo de

superioridade respectivamente, do adjetivo 23

. Partindo, ento, do sentido

etimolgico, + (sufixo de superlativo)] significa aquele que mais se

ajusta, aquele que mais se adqua. De modo a comprovar essa ideia, elenquemos algumas

22

LIDDELL, Henry George and SCOTT, Robert. A greek-english lexicon. Oxford: Claredon Press, 1996. 23

CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire tymologique de la langue grecque: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1999, p. 6. "Exprime les qualits viriles de force, defficacit (epithte dAgamemnon, dAchille, etc.) du hros, ce qui entraine, mais par voie de consquence, le sens de courageux et de noble ." [Exprime as qualidades viris de fora, de eficcia (epteto de Agammnon, de Aquiles, etc.) do heri, o que carrega, porm, por consequncia, o sentido de 'corajoso' de 'nobre'.]

41

palavras oriundas da raiz , as quais exprimem a ideia de adaptar, acordar, ajustar:

(portas firmemente fechadas, fixadas), (ligao, unio, amizade),

(ligar-se, unir-se), (unio, amor), (arranjar, preparar),

(dispor, preparar). Os dois ltimos verbos so provenientes de * , palavra

conhecida seno por glosas, dela provm (colocado junto em ordem). Conforme

Chantraine, a palvara certamente antiga, cf. arm. ard, gn. ardu ordem , lat. m.

artus, -us, skr. rt- momento fixado, ordem , etc.. O linguista assinala ainda que o termo

se aproximaria de atravs de e de . Das observaes

acima, podemos inferir que a ideia de excelncia e de superioridade que provm da palavra

, explica-se, ento, se entendermos, em princpio, que ser excelente ajustar-se,

adequar-se. Resta-nos, conseguintemente, analisar de que modo ocorre esse ajustamento, e em

relao a que. Antes, porm, verifiquemos o que Benveniste discute acerca da raiz .

Setundo o linguista, no alicerce desta raiz est o sentido de ordem, princpio que permite a

organizao e o funcionamento do universo, e sem o qual retornaria o estado de caos. Esse

princpio est na base jurdica, religiosa e moral do indo-europeu, como tambm nos

fenmenos da natureza, e na relao entre homens e deuses. Benveniste elenca alguns

vocbulos que trazem, em sua formao, essa raiz, os quais carregam, em sua acepo, o

sentido de ordem. Ela est presente no vdico rta, iraniano arta, avstico asa. Por intermdio

de uma sufixao de abstrato em -tu-, o indo-iraniano constitui o tema vdico rtu, avstico

ratu-, designando a ordem especialmente das estaes, alm de assinalar o sentido de regra,

norma de uma maneira geral. Todas essas formas se vinculam a uma raiz , presente na

forma grega "ajustar, adaptar, harmonizar", a qual se ligam vrios derivados

nominais. Com -ti-, d a forma latina ars, artis "disposio natural, qualificao, talento",

com -tu-, artus "articulao" tambm com outra forma do radical, em latim dar ritus ordem,

rito; e em grego, (arm. ard, genitivo ardu ordem) assim como o presente

arranjar, equipar; com *-dhmo- gr. vnculo, juno; com *-dhro-, gr.

articulao, membro, etc. A mesma raiz est na base da palavra snscrita dharman,