a Ética na utilizaÇÃo de animais silvestres em ... (1).pdf · a Ética na utilizaÇÃo de...
TRANSCRIPT
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 7
A ÉTICA NA UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS SILVESTRES EM
EXPERIMENTAÇÃO CIENTÍFICA
Diego Corrêa FURTADO1, Iêrêcê Amaral CORÔA
2, Stefano Juliano Tavares
ANDRADE2, Sheyla Farhayldes Souza DOMINGUES
2,3
1Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas, Universidade Federal do Pará.
2Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Pará.
3Programa de Pós-graduação em Ciência Animal, Universidade Federal do Pará.
Email: [email protected]
RESUMO
Buscamos, nesse trabalho, discutir sobre a ética na utilização de animais silvestres na
experimentação científica. Percebendo que a ética é frequentemente confundida com
representações de bondade/maldade, decidimos assumir uma posição conceitual que
desvencilha a ética de demais sistemas de pensamento (emotivos, legais, religiosos), a
fim de construirmos um debate com a clareza esperada. Através do caso do macaco-
prego e dos problemas envolvidos com sua classificação taxonômica, ilustramos o
perigo a que estão expostas as espécies biológicas quando seu manejo é tratado a partir
de perspectivas superficiais, sem verificações científicas que subsidiem tais pontos de
vista. Desse modo, chegamos à conclusão de que a experimentação científica com
animais silvestres pode ser considerada uma prática ética, quando voltada à obtenção de
informações e desenvolvimento de tecnologias de suporte à conservação dessas
espécies. Igualmente, reconhecemos a necessidade de que os espécimes utilizados nas
pesquisas sejam tratados respeitosamente, considerando a sensibilidade inerente à vida.
Palavras-chave: Ética. Experimentação em animais. Fauna silvestre.
ABSTRACT
We discuss, in this paper, the ethics of using wild animals in scientific experimentation.
Aware that ethics is often confused with representations of goodness/ badness, we
decided to take a conceptual position that disengages the ethics from other systems of
thought (emotional, legal, religious), in order to build a debate with the expected clarity.
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 8
Through the case of capuchin monkey and the problems involved with their taxonomic
classification, we illustrate the danger to which biological species are exposed when its
management is handled from a superficial perspective, without scientific verification
that support such views. Thus, we concluded that scientific experimentation with wild
animals can be considered an ethical practice, when focused on obtaining information
and developing technologies to support the conservation of these species. Equally, we
recognize the need that the specimens used in research be treated respectfully,
considering the sensitivity inherent to life.
Keywords: Ethics. Animal experimentation. Wildlife.
INTRODUÇÃO
Muito se questiona, por parte da opinião pública, acerca da utilização de animais
silvestres, retirados de seus habitats, em pesquisas científicas, como “cobaias em
experimentos desumanos”, como colocado pelas vozes mais dramáticas do ativismo
ambiental. Em alguns meios acadêmicos, igualmente, a atenção parece se voltar às
questões relacionadas aos animais silvestres, especialmente àqueles ameaçados de
extinção. Tanto no meio ativista, com suas faixas, bandeiras e movimentos, como no
meio científico, com os mais diversos tipos de pesquisas sendo desenvolvidas, no
entanto, por várias vezes se utiliza a palavra “ética”, como um meio de se por em xeque
as virtudes humanitárias daqueles que utilizam animais silvestres em experimentos
científicos.
A partir desta situação-problema, buscou-se estabelecer uma discussão sobre as
implicações éticas envolvidas na utilização de animais silvestres para experimentação
científica. Tal debate foi pautado, inicialmente, em considerações acerca da natureza
filosófica da ética, evitando, portanto, predefinições nebulosas desse conceito.
Destacamos a importância deste texto, ao apontar os riscos decorrentes do populismo
teórico construído em torno da preservação da fauna silvestre, que nem sempre gera
trabalhos com o rigor metodológico esperado, e pode dar bases a discursos bem-
intencionados, embora sem fundamentos concretos. Utilizou-se, como ilustração da
reflexão aqui sugerida, o macaco-prego (Sapajus apella), a quem nos reportaremos de
modo aprofundado mais adiante.
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 9
Estabelecendo parâmetros:
Princípios para um conceito de ética
O termo ‘ética’ foi cunhado e estudado ostensivamente por uma série de
filósofos no decorrer da trajetória intelectual humana. Apesar disso (e, também, devido
a isso), a multiplicidade de entendimentos formulados em torno deste conceito ilustra
sua polissemia. Como, ao escrevermos sobre ética no uso de animais silvestres em
experimentação animal, não quisemos expor o presente texto a interpretações
incompatíveis com a concepção de ética aqui adotada, tornou-se necessário realizar este
investimento prévio, no esclarecimento acerca da noção de ética ora assumida.
Esta precaução se deve à própria natureza deste trabalho, o qual pretende
conjugar uma realidade rotineira às ciências biológicas – a experimentação animal –
com um campo de pensamento forjado na filosofia – a ética. Partindo deste princípio,
qualquer conceituação apriorística de ética, possivelmente considerada óbvia por alguns
pesquisadores pragmáticos e experimentados das ciências biológicas, pode ser perigosa,
por considerar pouco interessante uma definição mais precisa deste termo.
Por isso, sem adentrar nas nuances mais profundas dessa discussão, porém
tecendo as devidas considerações, no intuito de viabilizar uma argumentação
fundamentada, buscou-se apontar o quadro conceitual onde se insere a perspectiva
teórica que parece mais adequada. A mera imposição de uma definição para ética, no
entanto, pareceu ser insuficiente para demonstrar a dimensão da compreensão que se
pretende construir. Portanto, ao invés de informar o que entendemos por ética, preferiu-
se contribuir para que o leitor possa, por si, formar (ou reformar) uma imagem mental
coerente sobre esta simples palavra.
A primeira consideração relevante para as observações aqui levantadas diz
respeito à associação automática, feita por um número surpreendente de pessoas, entre
ética e direito. Embora a ética, de fato, sirva como base para vários princípios jurídicos,
ela, em si, não se constitui enquanto lei. Por aspectos práticos, no cotidiano da pesquisa
científica, o pesquisador pode satisfazer suas responsabilidades éticas ao deter suas
atenções às normas legais e institucionais referentes à utilização de animais em
experimentos científicos. O que não deveria ocorrer, entretanto, é a cristalização da
ideia segundo a qual ética e legislação sobre ética são equivalentes (COMPARATO,
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 10
2006). Por exemplo, caso a visão legalista prevalecesse em uma discussão sobre a ética
no uso de animais para experimentação, nada mais ocorreria, que não a mera repetição e
reafirmação das leis já existentes.
Além da necessidade de que a ética seja compreendida à parte do direito
(embora, certamente, não desconexa), também se verifica a urgência de que seja
desassociada dos pontos de vista religiosos. As religiões, como construtos culturais,
foram, e ainda o são, formuladas pelos seres humanos, que comunitariamente as
praticam, a partir de cosmologias compartilhadas, afins, estruturadas a partir de
determinadas experiências de vida, representações e simbologias (BERGER;
LUCKMAN, 1973). A filosofia, por sua vez, parte de uma lógica universalizada, na
qual, não importando em qual cultura estejam imersas, as pessoas continuam sendo
pessoas, seres humanos, com mais características humanas que as aproximam do que
características sociais que as distanciem (LINTON, 1962).
Portanto, religião e filosofia (que engloba a ética, deve-se frisar) provêm de
origens diferentes: uma nasce da elaboração coletiva de símbolos fundamentados na
espiritualidade, e a outra é construída a partir do exercício intelectual, pautado na
observação e na reflexão, e de natureza iminentemente individual. Ao misturar as duas
visões, o debate acadêmico pode ser enfraquecido, ideologizado, pondo em risco o
avanço da ciência e ignorando os verdadeiros princípios éticos que devem regê-lo.
Apesar dessas observações, percebem-se, em alguns artigos, posicionamentos
pretensamente baseados na ética, que partem de esquemas legalistas ou religiosos para
atribuir valores à conduta científica na experimentação com animais, ignorando a
natureza essencialmente filosófica desse conceito. Aristóteles, Immanuel Kant, Jürgen
Habermas e outros teóricos da ética, cada qual a seu tempo, trataram a ética como um
sistema de pensamento particular (assim como o direito, cada religião e os costumes de
cada sociedade também o são, porém de naturezas distintas, como já colocado). Este
sistema capacitaria os seres humanos a exercer a crítica sobre os comportamentos
adotados, atribuindo-lhes valores, geralmente tendo, como referência (mas não
determinante), o sistema moral (dos costumes, tradições) do lugar onde o indivíduo
mora (ARANHA; MARTINS, 1997).
Embora divirjam em vários pontos, os filósofos da ética enfatizam a importância
das atitudes críticas, como meios pelos quais qualquer forma de violência deve ser
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 11
combatida, com o objetivo de se chegar à felicidade e ao bem comum. Longe das
imposições legais e dos dogmas religiosos, a ética estaria preocupada, mais exatamente,
com a reflexão, com a fundamentação da ação humana e sua relevância para o bem
comum (e não apenas para o bem dos seres humanos, ou somente para o bem dos
financiadores das pesquisas). Esses princípios devem ser levados em consideração em
qualquer discussão séria que pretenda abranger os aspectos éticos da pesquisa científica.
Retornaremos a eles tão logo apresentemos o caso do macaco-prego.
O caso concreto do macaco-prego
O macaco-prego (Sapajus apella), conhecido por alguns, de forma pejorativa,
como “macaco-praga”, pode parecer, a princípio, um fraco candidato ao posto de objeto
de estudos em biotecnologia de reprodução com fins conservacionistas, devido ao
tamanho supostamente grande de sua população. A desconstrução dessa crença se
desenrolou na cidade de Belém do Pará, que, congregando expressivo número de
primatologistas, figurou como palco de uma surpreendente revelação. Uma das
pesquisadoras – porventura a ministrante desta comunicação – que se dignou a trabalhar
em biotecnologia de reprodução da espécie até aquele momento conhecida como Cebus
apella (tornando-se uma das principais referências no tema), em 15 anos de práticas
científicas, nunca havia trabalhado nem mesmo com um único espécime do gênero
Cebus.
Esta pesquisadora em seu curso de graduação em medicina veterinária,
aprendeu, com base nos livros de taxonomia de primatas, que os animais do gênero
Cebus eram divididos em macacos com tufo e sem tufo, mas todos seriam do gênero
Cebus. No entanto, após uma detalhada revisão de caracteres anatômicos, estudos
citogenéticos e de distribuição geográfica, realizados pelo Dr. José de Sousa e Silva
Júnior (Cazuza), pesquisador do Museu Paraense Emílio Goedi, e que lhe renderam sua
tese de doutorado, foi comprovado que os macacos do gênero Cebus, antes classificados
como macacos-prego com tufo e sem tufo (tufted and untufted capuchin monkey), na
realidade, seriam espécies de gêneros diferentes.
Os macacos com tufo, bem como a espécie erroneamente denominada de Cebus
apella, na realidade pertencem ao gênero Sapajus, enquanto os macacos sem tufo são os
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 12
verdadeiros detentores do gênero Cebus. Além disso, dentro da espécie Sapajus apella¸
até pouco tempo atrás ainda denominada de Cebus (Sapajus) apella, eram listadas doze
subespécies, hoje alçadas ao status de espécies. Consequentemente, nos mais diversos
zoológicos e criatórios conservacionistas e de pesquisa espalhados pelo Brasil, pode
haver uma grande quantidade de “macacos-pragas”, mas não há certeza sobre sua
verdadeira classificação. Dentre estes animais, deve haver um considerável número de
híbridos, devido à formação de grupos de reprodução mistos, com a presença de várias
espécies, que outrora se pensava serem apenas uma.
Até hoje considerados como pragas em alguns lugares, onde os macacos-prego
ainda não conseguiram ser visualizados como um conjunto de espécies, estes animais
não recebem atenções especiais, compatíveis com a possibilidade de que os equívocos
em seu manejo estejam causando o comprometimento da viabilidade reprodutiva dos
representantes de cada espécie associada ao mesmo nome vulgar. Esse exemplo
provavelmente acontece com outras espécies que ainda não tiveram sua taxonomia
revisada por um pesquisador obstinado, como no caso dos nossos “macacos-praga”, e
todas elas estão sendo extintas geneticamente em cativeiro (ex situ), por acasalamentos
que geram híbridos, e in situ, pela destruição de seus habitats.
O hoje reconhecido Sapajus apella (ALFARO et al., 2012), embora envolvida
em todo este novelo taxonômico, até então não foi listada pelo governo brasileiro
(IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
– e ICMBIO – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), nem por
órgãos de grande conceituação internacional, como a IUCN (International Union for
Conservation of Nature), como uma espécie ameaçada de extinção.
A dicotomia ética nas experimentações com animais silvestres: dinâmicas em
reconfiguração
De posse do conhecimento sobre os princípios da ética e a par da situação
concreta das espécies reconhecidas como macacos-prego, é válido, neste ponto,
realizarmos um exercício de imaginação. Imaginemos, primeiramente, um cenário em
que o meio ambiente natural exibisse poucos sinais de degradação. Ao longo de muitos
anos, mesmo com a existência de civilizações humanas avançadas, a natureza manteve-
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 13
se, em grande parte, não intocada, mas ainda íntegra. Naqueles tempos, adentrar na mata
para caçar ou pescar era considerada uma atividade relacionada à subsistência de
populações humanas. O nível de retirada dos recursos naturais era baixo, combatível
com a estabilidade dos ecossistemas (STEFFEN et al., 2007).
A utilização de animais silvestres em experimentação científica seria, nesse
contexto, fonte de questionamentos acerca dos objetivos de tais pesquisas. De fato,
pesquisas com animais, com procedimentos como a vivissecção, têm um histórico
longo, e muito demorou para que surgissem os primeiros questionamentos referentes ao
bem-estar dos animais junto à comunidade científica. Na atualidade, porém, quando
refletimos sobre o passado da ciência ocidental (da qual temos maior acesso aos
registros), parece inacreditável o quanto os pioneiros da ciência recorreram a
procedimentos que, hoje, consideramos cruéis, desumanos (CAPRA, 1982).
Com o avanço da ciência e a consolidação do sistema capitalista, o mundo se
tornou um laboratório, em que as novas tecnologias passaram a ser empregadas em
larga escala, com vistas ao incremento nos lucros dos empresários. A natureza foi uma
das principais vítimas da ambição humana, sendo devastada, poluída, vista como
inimiga do progresso. Os impactos ambientais também passaram a ocorrer em escala
ampliada, e um número expressivo de espécies vegetais e animais ficou seriamente
ameaçado. O cenário, antes equilibrado, se transformou em uma cena caótica, sem
solução aparente (STEFFEN et al., 2007).
Mas logo surgiram sugestões, especialmente vindas do campo científico.
Conscientes de que pouco poderia ser feito no intuito de frear a degradação ambiental, o
objetivo de vários pesquisadores passou a ser a conservação das espécies, para que este
patrimônio biológico não fosse perdido. Esta nova configuração não somente permite,
mas requer a presença de pesquisadores em campo e nos laboratórios, estudando as
espécies mais vulneráveis, propondo sugestões para que tais espécies continuem
existindo. Aquilo que era feito no passado, tão criticado até hoje, caso seja feito hoje,
pode representar algo diametralmente diferente. Se, antes, a intervenção (e o modo
como ela se dava) junto aos animais poderia ser considerada contra a ética, nos dias
atuais, o que iria contra a ética seria, sim, o imobilismo frente às condições de
devastação ambiental e extinção de espécies.
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 14
Voltando ao caso do macaco-prego, pensava-se ser, ele, um “macaco-praga”,
mas a pesquisa apurada permitiu demonstrar que sua classificação taxonômica estava
equivocada, e, de praga, veio a ser um potencial alvo de extinção. O balançar bandeiras,
os gritos pela defesa dos animais, por si, não seriam suficientes para os macacos-prego.
Neste sentido, ética também não pode ser confundida com emotividade.
A discussão ética relacionada à utilização de, por exemplo, macacos-prego em
experimentos científicos de biotecnologia de reprodução, perpassa pelo objetivo de
encontrar meios de proteger a continuidade dessa espécie que, de modo singular, ilustra
a necessidade de que a consciência ambiental esteja, sim, amparada em dados concretos,
em critérios realistas, e não apenas na emoção. A discussão ética relacionada à
utilização de animais silvestres em experimentos científicos se complementa justamente
naquilo em que os pioneiros da ciência mais nos chocaram: os métodos de pesquisa e a
preocupação com o estresse dos animais.
O bem-estar do animal em cativeiro como possibilidade
Estudos sobre o repertório comportamental e a história natural são importantes
para entender a biologia e a ecologia de uma sociedade de organismos (KREBS;
DAVIES, 1993). Os vertebrados em geral têm mecanismos elaborados através dos quais
lidam com seu ambiente. Isso inclui aspectos do sistema nervoso autônomo, do sistema
imunológico, dos sistemas comportamental e emocional, como também do sistema
neuroendócrino, como o eixo hipotalâmico pituitário. Tais sistemas, que respondem ou
preparam o organismo para responder às mudanças ambientais, podem ser identificados
como sistemas de enfrentamento. Os meios pelos quais mantemos e usamos animais em
cativeiro têm influências bastante significativas sobre seu comportamento, fisiologia e
respostas imunológicas, e trazem consequências para suas experiências subjetivas,
saúde física e capacidade reprodutiva (YAMAMOTO; VOLPATO, 2007).
A complexidade do ambiente físico depende bastante do tamanho do animal e,
criticamente, das adaptações das diferentes espécies. Macacos-prego (Sapajus apella),
por exemplo, podem passar um tempo no chão, mas eles são predominantemente
arbóreos, têm a cauda preênsil e se locomovem acima do chão. Consequentemente, as
gaiolas devem ser planejadas com essas adaptações em mente. As gaiolas também
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 15
devem permitir todo o repertório locomotor de pular, correr, escalar, sentar e se segurar
pela cauda. Enfatiza-se a importância da convivência social, posto que a ausência aguda
ou crônica de coespecíficos e a instituição de ambientes sociais inapropriados podem
influenciar a responsividade comportamental e fisiológica dos indivíduos
(VISALBERGHI; ANDERSON, 1999). Vários estudos mostram que animais sociais de
diferentes espécies, quando abrigados sozinhos, desenvolvem altas frequências de
comportamento anormal e infecções (LEWIS, 2000).
O conhecimento adequado do comportamento social e desenvolvimento em
condições naturais e vida livre é claramente importante para o controle de todas as
espécies sociais. O alojamento deve levar em conta as interações sociais, considerando
variáveis como o espaço disponível, familiaridade dos membros do grupo, idade e sexo
dos animais alojados juntos (YAMAMOTO; VOLPATO, 2007). Há evidências para
várias espécies de que o suporte social não apenas influencia a habilidade do indivíduo
em superar as dificuldades de seu ambiente, mas também promove a saúde e a
capacidade reprodutiva (NEWBERRY, 1995; YAMAMOTO; VOLPATO, 2007).
Segundo Reinhardt (1990), a provisão de um parceiro social é mais eficaz para
melhorar o bem-estar do que estímulos inanimados, e, para animais, tais como os
primatas, o alojamento em grupos é o meio mais natural e confiável de promover o
bem-estar, mesmo quando o estímulo é apenas um outro animal. Há uma escala muito
maior de reações possíveis aos estímulos sociais do que aos estímulos inanimados, pois
aqueles requerem monitoramento de variações de humor e de contexto social.
Segundo Yamamoto e Volpato (2007), os animais que são mantidos em cativeiro
por períodos longos e especialmente aqueles que são criados em cativeiro por gerações,
sofrendo processo de domesticação, podem apresentar respostas comportamentais e
fisiológicas aos desafios ambientais, tal como a novidade, bastante diferentes do
esperado. As “cinco liberdades”, um termo proposto por Webster (1985), reconhece
necessidades comportamentais e físicas e, embora às vezes elas possam ser
contraditórias, são frequentemente consideradas como um ponto inicial para o bem-estar
animal. São elas:
1. Estar livre da fome e da sede por acesso livre à água fresca e a uma dieta que
mantenha a saúde e o vigor.
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 16
2. Estar livre de desconforto pela promoção de um ambiente apropriado, incluindo
abrigo e um lugar confortável para descansar.
3. Estar livre de dor, maus-tratos ou doença, pela prevenção ou diagnóstico rápido
e tratamento.
4. Estar livre para expressar o comportamento normal através de espaço suficiente,
situações propícias e companhia de animais da sua espécie.
5. Estar livre de medo e sofrimento através de condições e tratamentos que evitam
o sofrimento mental.
Porém, Yamamoto e Volpato (2007) afirmam que o bem-estar de qualidade não
deve ser considerado como uma vida livre de estresse. Sendo assim, lidar com desafios
ambientais, fisiológicos e imunológicos também facilita o bem-estar e orienta as
respostas dos animais aos parâmetros de normalidade. Nesse sentido, os estressores
leves são benéficos para o enfrentamento, e realistas quanto à validade dos resultados
experimentais.
Mesmo que os indivíduos em cativeiro apresentem muitos hábitos comuns aos
animais em liberdade, pode-se melhorar sua qualidade de vida através do
enriquecimento ambiental da área, para que o recinto assemelhe-se mais ao habitat
natural desses animais.
Trabalhos recentes têm demonstrado a influência do comportamento e da
organização social sobre os processos fisiológicos e celulares. Algumas variações no
ambiente social podem inibir ou estimular a ovulação, produzir sincronia menstrual ou
induzir abortos (DEL-CLARO, 2004). A qualidade do ambiente social também tem
efeito direto sobre o funcionamento do sistema imunológico. Pesquisadores em
fisiologia e imunologia necessitam ser orientados sobre estas influências
comportamentais e sociais para garantir um controle adequado de seus próprios estudos
(SNOWDON, 1999).
A conservação de espécies ameaçadas de extinção também requer que nós
tenhamos bastante conhecimento sobre o comportamento natural dessas espécies
(padrões migratórios, tamanho de território, interações com outros grupos, demandas de
forrageio, comportamento reprodutivo, comunicação, entre outros), para serem criadas
medidas efetivas de proteção. A relocação ou reintrodução de animais não é possível
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 17
sem um conhecimento detalhado da história natural da espécie (KREBS; DAVIES,
1996).
Estudos básicos sobre o comportamento reprodutivo levaram ao
aperfeiçoamento de técnicas de criação e reprodução em cativeiro de mico-leão-
dourados (Leontopithecus rosalia) e muitas outras espécies ameaçadas de extinção.
Criadouros que ignoram o comportamento reprodutivo natural da espécie são
geralmente malsucedidos (LORENZ, 1995). Somente os seres humanos interferem na
ordem, no equilíbrio e na evolução natural dos ecossistemas. Então, é somente a eles
que cabe minimizar os efeitos de suas ações.
CONCLUSÃO
Após a argumentação elaborada, conclui-se ser necessário aprofundar as
discussões sobre a ética na utilização de animais silvestres em experimentos científicos,
pois, embora seja constantemente mobilizada atualmente, a palavra ética ainda é mal
empregada em uma série de discursos pretensamente ambientalistas e até em alguns
trabalhos acadêmicos e científicos. Percebemos, também, que os projetos que visem ao
conservacionismo e à proteção da biodiversidade precisam se apoiar em estudos sólidos,
fundamentados nas ciências biológicas de base, para que as boas intenções não se
diluam em meio à ausência de rigor técnico e metodológico. Por fim, foi possível notar
que, sendo eticamente aceitável a utilização de animais silvestres em experimentos, o
trato dos animais em cativeiro também pode seguir preceitos éticos, relacionados à
atenção às condições de vida e bem-estar dos espécimes.
REFERÊNCIAS
ALFARO, Jessica W. Lynch; SILVA JÚNIOR, José de Sousa e; RYLANDS,
Anthony B. How different are Robust and Gracile capuchin monkeys? An
argument for the use of Sapajus and Cebus. American Journal of Primatology, v.
74, n. 4, p. 273-286, 2012.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de
filosofia. São Paulo: Moderna, 1992.
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 18
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A sociedade como realidade objetiva. In:
A construção social da realidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1973. p. 69-172.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a cultura e a sociedade emergente.
São Paulo: Cutlrix, 1982.
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
DEL-CLARO, Kleber. Comportamento Animal: uma introdução à ecologia
comportamental. Jundiaí: Livraria Conceito, 2004.
LEWIS, Kerrie P. A comparative study of primate play behaviour: implications
for the study of cognition. Folia Primatologica, Basel, v. 71, n. 6, p. 417-421, 2000.
LINTON, Ralph. Introdução. In: O homem: uma introdução à antropologia. São
Paulo: Livraria Martins Editora, 1962. p. 15-17.
LORENZ, Konrad. Os fundamentos da etologia. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1995.
KREBS, John R.; DAVIES, Nicholas Barry. Introdução à ecologia
comportamental. São Paulo: Atheneu. 1996.
NEWBERRY, Ruth C. Environmental enrichment: increasing the biological
relevance of captive environments. Applied Animal Behavioural Science, v. 44, p.
229-243, 1995.
REINHARDT, Viktor. Social enrichment for laboratory primates: a critical
review. Laboratory Primate Newsletter, v. 29, p. 7-11, 1990.
Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial
Ciência Animal, 22(1), 2012
Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,
27 a 29 de junho de 2012. 19
SNOWDON, Charles T. O significado da pesquisa em comportamento animal.
Estudos de Psicologia (Natal), Natal, v. 4, n. 2, 1999.
STEFFEN, Will; CRUTZEN, Paul J.; MCNEILL, John R. The anthropocene: are
humans now overwhelming the great forces of Nature? Ambio, v. 36, n. 8, p. 614-
621, 2007.
VISALBERGHI, Elisabetta; ANDERSON, James R. Capuchin monkeys. In:
POOLE, T. (Ed.). The universities federation for the welfare of animals handbook
on the care and management of laboratory animals. Oxford: Blackwell, 1999. p.
601-610.
WEBSTER, John. Animal welfare: a cool eye towards Eden. Oxford: Blackwell
science, 1985.
YAMAMOTO, Maria Emília; VOLPATO, Gilson Luiz. Comportamento animal.
Natal: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2007.