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Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial Ciência Animal, 22(1), 2012 Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil, 27 a 29 de junho de 2012. 7 A ÉTICA NA UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS SILVESTRES EM EXPERIMENTAÇÃO CIENTÍFICA Diego Corrêa FURTADO 1 , Iêrêcê Amaral CORÔA 2 , Stefano Juliano Tavares ANDRADE 2 , Sheyla Farhayldes Souza DOMINGUES 2,3 1 Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas, Universidade Federal do Pará. 2 Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Pará. 3 Programa de Pós-graduação em Ciência Animal, Universidade Federal do Pará. Email: [email protected] RESUMO Buscamos, nesse trabalho, discutir sobre a ética na utilização de animais silvestres na experimentação científica. Percebendo que a ética é frequentemente confundida com representações de bondade/maldade, decidimos assumir uma posição conceitual que desvencilha a ética de demais sistemas de pensamento (emotivos, legais, religiosos), a fim de construirmos um debate com a clareza esperada. Através do caso do macaco- prego e dos problemas envolvidos com sua classificação taxonômica, ilustramos o perigo a que estão expostas as espécies biológicas quando seu manejo é tratado a partir de perspectivas superficiais, sem verificações científicas que subsidiem tais pontos de vista. Desse modo, chegamos à conclusão de que a experimentação científica com animais silvestres pode ser considerada uma prática ética, quando voltada à obtenção de informações e desenvolvimento de tecnologias de suporte à conservação dessas espécies. Igualmente, reconhecemos a necessidade de que os espécimes utilizados nas pesquisas sejam tratados respeitosamente, considerando a sensibilidade inerente à vida. Palavras-chave: Ética. Experimentação em animais. Fauna silvestre. ABSTRACT We discuss, in this paper, the ethics of using wild animals in scientific experimentation. Aware that ethics is often confused with representations of goodness/ badness, we decided to take a conceptual position that disengages the ethics from other systems of thought (emotional, legal, religious), in order to build a debate with the expected clarity.

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Ciência Animal, 22(1): 7-19, 2012 – Edição Especial

Ciência Animal, 22(1), 2012

Palestra apresentada no VI Congresso Norte Nordeste de Reprodução Animal, Fortaleza, CE, Brasil,

27 a 29 de junho de 2012. 7

A ÉTICA NA UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS SILVESTRES EM

EXPERIMENTAÇÃO CIENTÍFICA

Diego Corrêa FURTADO1, Iêrêcê Amaral CORÔA

2, Stefano Juliano Tavares

ANDRADE2, Sheyla Farhayldes Souza DOMINGUES

2,3

1Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas, Universidade Federal do Pará.

2Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Pará.

3Programa de Pós-graduação em Ciência Animal, Universidade Federal do Pará.

Email: [email protected]

RESUMO

Buscamos, nesse trabalho, discutir sobre a ética na utilização de animais silvestres na

experimentação científica. Percebendo que a ética é frequentemente confundida com

representações de bondade/maldade, decidimos assumir uma posição conceitual que

desvencilha a ética de demais sistemas de pensamento (emotivos, legais, religiosos), a

fim de construirmos um debate com a clareza esperada. Através do caso do macaco-

prego e dos problemas envolvidos com sua classificação taxonômica, ilustramos o

perigo a que estão expostas as espécies biológicas quando seu manejo é tratado a partir

de perspectivas superficiais, sem verificações científicas que subsidiem tais pontos de

vista. Desse modo, chegamos à conclusão de que a experimentação científica com

animais silvestres pode ser considerada uma prática ética, quando voltada à obtenção de

informações e desenvolvimento de tecnologias de suporte à conservação dessas

espécies. Igualmente, reconhecemos a necessidade de que os espécimes utilizados nas

pesquisas sejam tratados respeitosamente, considerando a sensibilidade inerente à vida.

Palavras-chave: Ética. Experimentação em animais. Fauna silvestre.

ABSTRACT

We discuss, in this paper, the ethics of using wild animals in scientific experimentation.

Aware that ethics is often confused with representations of goodness/ badness, we

decided to take a conceptual position that disengages the ethics from other systems of

thought (emotional, legal, religious), in order to build a debate with the expected clarity.

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Through the case of capuchin monkey and the problems involved with their taxonomic

classification, we illustrate the danger to which biological species are exposed when its

management is handled from a superficial perspective, without scientific verification

that support such views. Thus, we concluded that scientific experimentation with wild

animals can be considered an ethical practice, when focused on obtaining information

and developing technologies to support the conservation of these species. Equally, we

recognize the need that the specimens used in research be treated respectfully,

considering the sensitivity inherent to life.

Keywords: Ethics. Animal experimentation. Wildlife.

INTRODUÇÃO

Muito se questiona, por parte da opinião pública, acerca da utilização de animais

silvestres, retirados de seus habitats, em pesquisas científicas, como “cobaias em

experimentos desumanos”, como colocado pelas vozes mais dramáticas do ativismo

ambiental. Em alguns meios acadêmicos, igualmente, a atenção parece se voltar às

questões relacionadas aos animais silvestres, especialmente àqueles ameaçados de

extinção. Tanto no meio ativista, com suas faixas, bandeiras e movimentos, como no

meio científico, com os mais diversos tipos de pesquisas sendo desenvolvidas, no

entanto, por várias vezes se utiliza a palavra “ética”, como um meio de se por em xeque

as virtudes humanitárias daqueles que utilizam animais silvestres em experimentos

científicos.

A partir desta situação-problema, buscou-se estabelecer uma discussão sobre as

implicações éticas envolvidas na utilização de animais silvestres para experimentação

científica. Tal debate foi pautado, inicialmente, em considerações acerca da natureza

filosófica da ética, evitando, portanto, predefinições nebulosas desse conceito.

Destacamos a importância deste texto, ao apontar os riscos decorrentes do populismo

teórico construído em torno da preservação da fauna silvestre, que nem sempre gera

trabalhos com o rigor metodológico esperado, e pode dar bases a discursos bem-

intencionados, embora sem fundamentos concretos. Utilizou-se, como ilustração da

reflexão aqui sugerida, o macaco-prego (Sapajus apella), a quem nos reportaremos de

modo aprofundado mais adiante.

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Estabelecendo parâmetros:

Princípios para um conceito de ética

O termo ‘ética’ foi cunhado e estudado ostensivamente por uma série de

filósofos no decorrer da trajetória intelectual humana. Apesar disso (e, também, devido

a isso), a multiplicidade de entendimentos formulados em torno deste conceito ilustra

sua polissemia. Como, ao escrevermos sobre ética no uso de animais silvestres em

experimentação animal, não quisemos expor o presente texto a interpretações

incompatíveis com a concepção de ética aqui adotada, tornou-se necessário realizar este

investimento prévio, no esclarecimento acerca da noção de ética ora assumida.

Esta precaução se deve à própria natureza deste trabalho, o qual pretende

conjugar uma realidade rotineira às ciências biológicas – a experimentação animal –

com um campo de pensamento forjado na filosofia – a ética. Partindo deste princípio,

qualquer conceituação apriorística de ética, possivelmente considerada óbvia por alguns

pesquisadores pragmáticos e experimentados das ciências biológicas, pode ser perigosa,

por considerar pouco interessante uma definição mais precisa deste termo.

Por isso, sem adentrar nas nuances mais profundas dessa discussão, porém

tecendo as devidas considerações, no intuito de viabilizar uma argumentação

fundamentada, buscou-se apontar o quadro conceitual onde se insere a perspectiva

teórica que parece mais adequada. A mera imposição de uma definição para ética, no

entanto, pareceu ser insuficiente para demonstrar a dimensão da compreensão que se

pretende construir. Portanto, ao invés de informar o que entendemos por ética, preferiu-

se contribuir para que o leitor possa, por si, formar (ou reformar) uma imagem mental

coerente sobre esta simples palavra.

A primeira consideração relevante para as observações aqui levantadas diz

respeito à associação automática, feita por um número surpreendente de pessoas, entre

ética e direito. Embora a ética, de fato, sirva como base para vários princípios jurídicos,

ela, em si, não se constitui enquanto lei. Por aspectos práticos, no cotidiano da pesquisa

científica, o pesquisador pode satisfazer suas responsabilidades éticas ao deter suas

atenções às normas legais e institucionais referentes à utilização de animais em

experimentos científicos. O que não deveria ocorrer, entretanto, é a cristalização da

ideia segundo a qual ética e legislação sobre ética são equivalentes (COMPARATO,

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2006). Por exemplo, caso a visão legalista prevalecesse em uma discussão sobre a ética

no uso de animais para experimentação, nada mais ocorreria, que não a mera repetição e

reafirmação das leis já existentes.

Além da necessidade de que a ética seja compreendida à parte do direito

(embora, certamente, não desconexa), também se verifica a urgência de que seja

desassociada dos pontos de vista religiosos. As religiões, como construtos culturais,

foram, e ainda o são, formuladas pelos seres humanos, que comunitariamente as

praticam, a partir de cosmologias compartilhadas, afins, estruturadas a partir de

determinadas experiências de vida, representações e simbologias (BERGER;

LUCKMAN, 1973). A filosofia, por sua vez, parte de uma lógica universalizada, na

qual, não importando em qual cultura estejam imersas, as pessoas continuam sendo

pessoas, seres humanos, com mais características humanas que as aproximam do que

características sociais que as distanciem (LINTON, 1962).

Portanto, religião e filosofia (que engloba a ética, deve-se frisar) provêm de

origens diferentes: uma nasce da elaboração coletiva de símbolos fundamentados na

espiritualidade, e a outra é construída a partir do exercício intelectual, pautado na

observação e na reflexão, e de natureza iminentemente individual. Ao misturar as duas

visões, o debate acadêmico pode ser enfraquecido, ideologizado, pondo em risco o

avanço da ciência e ignorando os verdadeiros princípios éticos que devem regê-lo.

Apesar dessas observações, percebem-se, em alguns artigos, posicionamentos

pretensamente baseados na ética, que partem de esquemas legalistas ou religiosos para

atribuir valores à conduta científica na experimentação com animais, ignorando a

natureza essencialmente filosófica desse conceito. Aristóteles, Immanuel Kant, Jürgen

Habermas e outros teóricos da ética, cada qual a seu tempo, trataram a ética como um

sistema de pensamento particular (assim como o direito, cada religião e os costumes de

cada sociedade também o são, porém de naturezas distintas, como já colocado). Este

sistema capacitaria os seres humanos a exercer a crítica sobre os comportamentos

adotados, atribuindo-lhes valores, geralmente tendo, como referência (mas não

determinante), o sistema moral (dos costumes, tradições) do lugar onde o indivíduo

mora (ARANHA; MARTINS, 1997).

Embora divirjam em vários pontos, os filósofos da ética enfatizam a importância

das atitudes críticas, como meios pelos quais qualquer forma de violência deve ser

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combatida, com o objetivo de se chegar à felicidade e ao bem comum. Longe das

imposições legais e dos dogmas religiosos, a ética estaria preocupada, mais exatamente,

com a reflexão, com a fundamentação da ação humana e sua relevância para o bem

comum (e não apenas para o bem dos seres humanos, ou somente para o bem dos

financiadores das pesquisas). Esses princípios devem ser levados em consideração em

qualquer discussão séria que pretenda abranger os aspectos éticos da pesquisa científica.

Retornaremos a eles tão logo apresentemos o caso do macaco-prego.

O caso concreto do macaco-prego

O macaco-prego (Sapajus apella), conhecido por alguns, de forma pejorativa,

como “macaco-praga”, pode parecer, a princípio, um fraco candidato ao posto de objeto

de estudos em biotecnologia de reprodução com fins conservacionistas, devido ao

tamanho supostamente grande de sua população. A desconstrução dessa crença se

desenrolou na cidade de Belém do Pará, que, congregando expressivo número de

primatologistas, figurou como palco de uma surpreendente revelação. Uma das

pesquisadoras – porventura a ministrante desta comunicação – que se dignou a trabalhar

em biotecnologia de reprodução da espécie até aquele momento conhecida como Cebus

apella (tornando-se uma das principais referências no tema), em 15 anos de práticas

científicas, nunca havia trabalhado nem mesmo com um único espécime do gênero

Cebus.

Esta pesquisadora em seu curso de graduação em medicina veterinária,

aprendeu, com base nos livros de taxonomia de primatas, que os animais do gênero

Cebus eram divididos em macacos com tufo e sem tufo, mas todos seriam do gênero

Cebus. No entanto, após uma detalhada revisão de caracteres anatômicos, estudos

citogenéticos e de distribuição geográfica, realizados pelo Dr. José de Sousa e Silva

Júnior (Cazuza), pesquisador do Museu Paraense Emílio Goedi, e que lhe renderam sua

tese de doutorado, foi comprovado que os macacos do gênero Cebus, antes classificados

como macacos-prego com tufo e sem tufo (tufted and untufted capuchin monkey), na

realidade, seriam espécies de gêneros diferentes.

Os macacos com tufo, bem como a espécie erroneamente denominada de Cebus

apella, na realidade pertencem ao gênero Sapajus, enquanto os macacos sem tufo são os

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verdadeiros detentores do gênero Cebus. Além disso, dentro da espécie Sapajus apella¸

até pouco tempo atrás ainda denominada de Cebus (Sapajus) apella, eram listadas doze

subespécies, hoje alçadas ao status de espécies. Consequentemente, nos mais diversos

zoológicos e criatórios conservacionistas e de pesquisa espalhados pelo Brasil, pode

haver uma grande quantidade de “macacos-pragas”, mas não há certeza sobre sua

verdadeira classificação. Dentre estes animais, deve haver um considerável número de

híbridos, devido à formação de grupos de reprodução mistos, com a presença de várias

espécies, que outrora se pensava serem apenas uma.

Até hoje considerados como pragas em alguns lugares, onde os macacos-prego

ainda não conseguiram ser visualizados como um conjunto de espécies, estes animais

não recebem atenções especiais, compatíveis com a possibilidade de que os equívocos

em seu manejo estejam causando o comprometimento da viabilidade reprodutiva dos

representantes de cada espécie associada ao mesmo nome vulgar. Esse exemplo

provavelmente acontece com outras espécies que ainda não tiveram sua taxonomia

revisada por um pesquisador obstinado, como no caso dos nossos “macacos-praga”, e

todas elas estão sendo extintas geneticamente em cativeiro (ex situ), por acasalamentos

que geram híbridos, e in situ, pela destruição de seus habitats.

O hoje reconhecido Sapajus apella (ALFARO et al., 2012), embora envolvida

em todo este novelo taxonômico, até então não foi listada pelo governo brasileiro

(IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

– e ICMBIO – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), nem por

órgãos de grande conceituação internacional, como a IUCN (International Union for

Conservation of Nature), como uma espécie ameaçada de extinção.

A dicotomia ética nas experimentações com animais silvestres: dinâmicas em

reconfiguração

De posse do conhecimento sobre os princípios da ética e a par da situação

concreta das espécies reconhecidas como macacos-prego, é válido, neste ponto,

realizarmos um exercício de imaginação. Imaginemos, primeiramente, um cenário em

que o meio ambiente natural exibisse poucos sinais de degradação. Ao longo de muitos

anos, mesmo com a existência de civilizações humanas avançadas, a natureza manteve-

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se, em grande parte, não intocada, mas ainda íntegra. Naqueles tempos, adentrar na mata

para caçar ou pescar era considerada uma atividade relacionada à subsistência de

populações humanas. O nível de retirada dos recursos naturais era baixo, combatível

com a estabilidade dos ecossistemas (STEFFEN et al., 2007).

A utilização de animais silvestres em experimentação científica seria, nesse

contexto, fonte de questionamentos acerca dos objetivos de tais pesquisas. De fato,

pesquisas com animais, com procedimentos como a vivissecção, têm um histórico

longo, e muito demorou para que surgissem os primeiros questionamentos referentes ao

bem-estar dos animais junto à comunidade científica. Na atualidade, porém, quando

refletimos sobre o passado da ciência ocidental (da qual temos maior acesso aos

registros), parece inacreditável o quanto os pioneiros da ciência recorreram a

procedimentos que, hoje, consideramos cruéis, desumanos (CAPRA, 1982).

Com o avanço da ciência e a consolidação do sistema capitalista, o mundo se

tornou um laboratório, em que as novas tecnologias passaram a ser empregadas em

larga escala, com vistas ao incremento nos lucros dos empresários. A natureza foi uma

das principais vítimas da ambição humana, sendo devastada, poluída, vista como

inimiga do progresso. Os impactos ambientais também passaram a ocorrer em escala

ampliada, e um número expressivo de espécies vegetais e animais ficou seriamente

ameaçado. O cenário, antes equilibrado, se transformou em uma cena caótica, sem

solução aparente (STEFFEN et al., 2007).

Mas logo surgiram sugestões, especialmente vindas do campo científico.

Conscientes de que pouco poderia ser feito no intuito de frear a degradação ambiental, o

objetivo de vários pesquisadores passou a ser a conservação das espécies, para que este

patrimônio biológico não fosse perdido. Esta nova configuração não somente permite,

mas requer a presença de pesquisadores em campo e nos laboratórios, estudando as

espécies mais vulneráveis, propondo sugestões para que tais espécies continuem

existindo. Aquilo que era feito no passado, tão criticado até hoje, caso seja feito hoje,

pode representar algo diametralmente diferente. Se, antes, a intervenção (e o modo

como ela se dava) junto aos animais poderia ser considerada contra a ética, nos dias

atuais, o que iria contra a ética seria, sim, o imobilismo frente às condições de

devastação ambiental e extinção de espécies.

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Voltando ao caso do macaco-prego, pensava-se ser, ele, um “macaco-praga”,

mas a pesquisa apurada permitiu demonstrar que sua classificação taxonômica estava

equivocada, e, de praga, veio a ser um potencial alvo de extinção. O balançar bandeiras,

os gritos pela defesa dos animais, por si, não seriam suficientes para os macacos-prego.

Neste sentido, ética também não pode ser confundida com emotividade.

A discussão ética relacionada à utilização de, por exemplo, macacos-prego em

experimentos científicos de biotecnologia de reprodução, perpassa pelo objetivo de

encontrar meios de proteger a continuidade dessa espécie que, de modo singular, ilustra

a necessidade de que a consciência ambiental esteja, sim, amparada em dados concretos,

em critérios realistas, e não apenas na emoção. A discussão ética relacionada à

utilização de animais silvestres em experimentos científicos se complementa justamente

naquilo em que os pioneiros da ciência mais nos chocaram: os métodos de pesquisa e a

preocupação com o estresse dos animais.

O bem-estar do animal em cativeiro como possibilidade

Estudos sobre o repertório comportamental e a história natural são importantes

para entender a biologia e a ecologia de uma sociedade de organismos (KREBS;

DAVIES, 1993). Os vertebrados em geral têm mecanismos elaborados através dos quais

lidam com seu ambiente. Isso inclui aspectos do sistema nervoso autônomo, do sistema

imunológico, dos sistemas comportamental e emocional, como também do sistema

neuroendócrino, como o eixo hipotalâmico pituitário. Tais sistemas, que respondem ou

preparam o organismo para responder às mudanças ambientais, podem ser identificados

como sistemas de enfrentamento. Os meios pelos quais mantemos e usamos animais em

cativeiro têm influências bastante significativas sobre seu comportamento, fisiologia e

respostas imunológicas, e trazem consequências para suas experiências subjetivas,

saúde física e capacidade reprodutiva (YAMAMOTO; VOLPATO, 2007).

A complexidade do ambiente físico depende bastante do tamanho do animal e,

criticamente, das adaptações das diferentes espécies. Macacos-prego (Sapajus apella),

por exemplo, podem passar um tempo no chão, mas eles são predominantemente

arbóreos, têm a cauda preênsil e se locomovem acima do chão. Consequentemente, as

gaiolas devem ser planejadas com essas adaptações em mente. As gaiolas também

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devem permitir todo o repertório locomotor de pular, correr, escalar, sentar e se segurar

pela cauda. Enfatiza-se a importância da convivência social, posto que a ausência aguda

ou crônica de coespecíficos e a instituição de ambientes sociais inapropriados podem

influenciar a responsividade comportamental e fisiológica dos indivíduos

(VISALBERGHI; ANDERSON, 1999). Vários estudos mostram que animais sociais de

diferentes espécies, quando abrigados sozinhos, desenvolvem altas frequências de

comportamento anormal e infecções (LEWIS, 2000).

O conhecimento adequado do comportamento social e desenvolvimento em

condições naturais e vida livre é claramente importante para o controle de todas as

espécies sociais. O alojamento deve levar em conta as interações sociais, considerando

variáveis como o espaço disponível, familiaridade dos membros do grupo, idade e sexo

dos animais alojados juntos (YAMAMOTO; VOLPATO, 2007). Há evidências para

várias espécies de que o suporte social não apenas influencia a habilidade do indivíduo

em superar as dificuldades de seu ambiente, mas também promove a saúde e a

capacidade reprodutiva (NEWBERRY, 1995; YAMAMOTO; VOLPATO, 2007).

Segundo Reinhardt (1990), a provisão de um parceiro social é mais eficaz para

melhorar o bem-estar do que estímulos inanimados, e, para animais, tais como os

primatas, o alojamento em grupos é o meio mais natural e confiável de promover o

bem-estar, mesmo quando o estímulo é apenas um outro animal. Há uma escala muito

maior de reações possíveis aos estímulos sociais do que aos estímulos inanimados, pois

aqueles requerem monitoramento de variações de humor e de contexto social.

Segundo Yamamoto e Volpato (2007), os animais que são mantidos em cativeiro

por períodos longos e especialmente aqueles que são criados em cativeiro por gerações,

sofrendo processo de domesticação, podem apresentar respostas comportamentais e

fisiológicas aos desafios ambientais, tal como a novidade, bastante diferentes do

esperado. As “cinco liberdades”, um termo proposto por Webster (1985), reconhece

necessidades comportamentais e físicas e, embora às vezes elas possam ser

contraditórias, são frequentemente consideradas como um ponto inicial para o bem-estar

animal. São elas:

1. Estar livre da fome e da sede por acesso livre à água fresca e a uma dieta que

mantenha a saúde e o vigor.

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2. Estar livre de desconforto pela promoção de um ambiente apropriado, incluindo

abrigo e um lugar confortável para descansar.

3. Estar livre de dor, maus-tratos ou doença, pela prevenção ou diagnóstico rápido

e tratamento.

4. Estar livre para expressar o comportamento normal através de espaço suficiente,

situações propícias e companhia de animais da sua espécie.

5. Estar livre de medo e sofrimento através de condições e tratamentos que evitam

o sofrimento mental.

Porém, Yamamoto e Volpato (2007) afirmam que o bem-estar de qualidade não

deve ser considerado como uma vida livre de estresse. Sendo assim, lidar com desafios

ambientais, fisiológicos e imunológicos também facilita o bem-estar e orienta as

respostas dos animais aos parâmetros de normalidade. Nesse sentido, os estressores

leves são benéficos para o enfrentamento, e realistas quanto à validade dos resultados

experimentais.

Mesmo que os indivíduos em cativeiro apresentem muitos hábitos comuns aos

animais em liberdade, pode-se melhorar sua qualidade de vida através do

enriquecimento ambiental da área, para que o recinto assemelhe-se mais ao habitat

natural desses animais.

Trabalhos recentes têm demonstrado a influência do comportamento e da

organização social sobre os processos fisiológicos e celulares. Algumas variações no

ambiente social podem inibir ou estimular a ovulação, produzir sincronia menstrual ou

induzir abortos (DEL-CLARO, 2004). A qualidade do ambiente social também tem

efeito direto sobre o funcionamento do sistema imunológico. Pesquisadores em

fisiologia e imunologia necessitam ser orientados sobre estas influências

comportamentais e sociais para garantir um controle adequado de seus próprios estudos

(SNOWDON, 1999).

A conservação de espécies ameaçadas de extinção também requer que nós

tenhamos bastante conhecimento sobre o comportamento natural dessas espécies

(padrões migratórios, tamanho de território, interações com outros grupos, demandas de

forrageio, comportamento reprodutivo, comunicação, entre outros), para serem criadas

medidas efetivas de proteção. A relocação ou reintrodução de animais não é possível

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sem um conhecimento detalhado da história natural da espécie (KREBS; DAVIES,

1996).

Estudos básicos sobre o comportamento reprodutivo levaram ao

aperfeiçoamento de técnicas de criação e reprodução em cativeiro de mico-leão-

dourados (Leontopithecus rosalia) e muitas outras espécies ameaçadas de extinção.

Criadouros que ignoram o comportamento reprodutivo natural da espécie são

geralmente malsucedidos (LORENZ, 1995). Somente os seres humanos interferem na

ordem, no equilíbrio e na evolução natural dos ecossistemas. Então, é somente a eles

que cabe minimizar os efeitos de suas ações.

CONCLUSÃO

Após a argumentação elaborada, conclui-se ser necessário aprofundar as

discussões sobre a ética na utilização de animais silvestres em experimentos científicos,

pois, embora seja constantemente mobilizada atualmente, a palavra ética ainda é mal

empregada em uma série de discursos pretensamente ambientalistas e até em alguns

trabalhos acadêmicos e científicos. Percebemos, também, que os projetos que visem ao

conservacionismo e à proteção da biodiversidade precisam se apoiar em estudos sólidos,

fundamentados nas ciências biológicas de base, para que as boas intenções não se

diluam em meio à ausência de rigor técnico e metodológico. Por fim, foi possível notar

que, sendo eticamente aceitável a utilização de animais silvestres em experimentos, o

trato dos animais em cativeiro também pode seguir preceitos éticos, relacionados à

atenção às condições de vida e bem-estar dos espécimes.

REFERÊNCIAS

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argument for the use of Sapajus and Cebus. American Journal of Primatology, v.

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