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A estrela de Belém Dezembro 2007 Viaje no tempo e descubra detalhes sobre os fenômenos que iluminaram os céus do hemisfério norte à época do nascimento de Jesus Marcelo Gleiser, de 48 anos, é professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento "Em 12 de agosto do ano 3 a.C., ocorreu uma conjunção muito luminosa dos planetas Júpiter e Vênus na constelação do Leão" Poucos símbolos são tão evocativos quanto a Estrela de Belém. Todo presépio com a cena da Natividade mostra os Reis Magos, vindos do leste, guiados pela estrela cujo brilho dominava os céus, adornando a noite com o augúrio de um bom presságio, o nascimento de Jesus. Já bem antes dessa época, os céus representavam a escrita dos deuses. Para os babilônios, que inventaram a astrologia, a posição relativa dos planetas e estrelas era carregada de significado, determinando o futuro de um rei ou a fertilidade das colheitas vindouras. Para os chineses, cometas eram um sinal de que algo de terrível iria acontecer. Sem compreender o aparecimento imprevisível de luminárias celestes, as

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A estrela de Belém

Dezembro 2007

Viaje no tempo e descubra detalhes sobre os fenômenos que iluminaram os céus do hemisfério norte à época do nascimento de Jesus

Marcelo Gleiser, de 48 anos, é professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento

"Em 12 de agosto do ano 3 a.C., ocorreu uma conjunção muito luminosa dos planetas Júpiter e Vênus na constelação do Leão"

Poucos símbolos são tão evocativos quanto a Estrela de Belém. Todo presépio com a cena da Natividade mostra os Reis Magos, vindos do leste, guiados pela estrela cujo brilho dominava os céus, adornando a noite com o augúrio de um bom presságio, o nascimento de Jesus. Já bem antes dessa época, os céus representavam a escrita dos deuses. Para os babilônios, que inventaram a astrologia, a posição relativa dos planetas e estrelas era carregada de significado, determinando o futuro de um rei ou a fertilidade das colheitas vindouras. Para os chineses, cometas eram um sinal de que algo de terrível iria acontecer. Sem compreender o aparecimento imprevisível de luminárias celestes, as civilizações antigas atribuíam a elas mensagens divinas, boas e más.

O que sabemos da Estrela de Belém? Segundo o Evangelho de São Mateus, a melhor pista que temos, deduzimos que deve ter sido um objeto celeste novo, já que serviu para guiar os Reis Magos do leste. A "estrela" apareceu duas vezes: primeiro, quando os reis tiveram uma audiência com Herodes em Jerusalém; depois, ela "pairou" sobre Belém. Mateus não diz que a estrela era particularmente brilhante, e Herodes não a viu, pois perguntou aos reis quando ela surgiu.

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Temos, claro, que supor que a "estrela" de fato existiu e que não era uma aparição sobrenatural. Nesse caso, a questão que vários astrônomos e historiadores da ciência vêm se perguntando há anos é: que tipo de fenômeno astronômico poderia ter causado a aparição celeste?

Para obtermos uma resposta, temos que datar o nascimento de Jesus. Isso é um tanto complicado, pois não existe um registro definitivo. O período mais aceito pelos historiadores é entre os anos 8 e 1 a.C. - ou seja, Jesus provavelmente nasceu antes de Cristo. Mesmo esse intervalo é ainda muito longo. Afinal, coisas interessantes ocorrem nos céus todos os anos. Fontes mais recentes localizam o nascimento em torno de 3 a.C. Quais os candidatos astronômicos da época para a Estrela de Belém?

Se supormos que o evento foi luminoso o suficiente para ser visto em outros países do hemisfério norte, podemos descartar a possibilidade de que a estrela era um cometa ou uma explosão de supernova. Ambos os eventos teriam sido registrados por astrônomos em outras partes do mundo, especialmente na China, onde essas coisas eram levadas a sério. Ademais, cometas eram considerados um mau presságio. Se tivesse sido uma supernova, poderíamos ver seus vestígios até hoje. Por exemplo, a Nebulosa do Caranguejo corresponde aos restos de uma supernova que explodiu no ano 1054 e que foi devidamente registrada por astrônomos chineses e árabes.

Outra possibilidade sugerida é uma chuva de meteoros ou mesmo um meteoro de órbita irregular. A probabilidade, porém, é muito pequena, pois meteoros são vistos por pouco tempo, e a "estrela" pairou nos céus por um período relativamente longo.

Que possibilidade resta, então? Se olharmos para o céu em torno de 3 a.C. - e isso é possível hoje com computadores que recriam exatamente a posição dos planetas e estrelas em qualquer momento do passado -, encontramos um candidato para o evento: uma conjunção planetária especialmente brilhante. Conjunções ocorrem quando vemos dois ou mais planetas ocuparem o mesmo ponto no céu. Na verdade, estão muito distantes, mas, vistos da Terra, parecem se sobrepor. No ano 3 a.C., ocorreram nada menos do que nove conjunções. Mas, no dia 12 de agosto, ocorreu uma conjunção dos planetas Vênus e Júpiter na constelação do Leão,

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que, além de muito luminosa, tinha um forte significado astrológico. E devemos lembrar que os "reis" eram, muito provavelmente, astrólogos. Para os babilônios, Vênus era Ishtar, a deusa da fertilidade, e Júpiter, o planeta-rei. O casamento celeste deu origem ao nascimento do menino-deus.

Não podemos comprovar, ao menos sem mais dados históricos, se foi esse o evento astronômico que transformou-se na Estrela de Belém. De qualquer forma, é importante meditar sobre a relação entre a Bíblia e a História sob a luz da ciência.

Marcelo Gleiser, de 48 anos, é professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento

Fonte: Revista Galileu – edição 197 – dezembro 2007 – Horizontes – (pág. 39) – http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDR80140-8076,00.html

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Informações complementares

CIÊNCIA

O senhor do Universo

Ele está em jornais, nos livros, no cinema e agora na TV. Ao traduzir as maiores questões do cosmo de um modo que todos entendem, o físico Marcelo Gleiser se transformou em um cientista pop

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Eliane Brum

Foto: Claudia Kamergorosdky

O FENÔMENO GLEISERComo cientista, ele ganhou prêmio na Casa Branca. Como escritor, recebeu dois Jabutis. Um roteiro de cinema dele circula por Hollywood. Ele ainda faz palestras em cruzeiros pelo mundo e inspira a nova geração de brasileiros

Aos 19 anos, Marcelo Gleiser desejou deitar no divã do psicanalista Hélio Pellegrino. Ele tinha sofrido muitas perdas, todas em circunstâncias trágicas. Achava que era hora de olhar para dentro. Hélio não foi um dos intelectuais mais brilhantes de sua geração por acaso. Ele ouviu os dramas do estudante de Física e disse: "Você não precisa de psicanálise. O mais importante na vida é a pró-cura. Você já encontrou seu caminho, você procura por meio da Ciência".

Foi assim que Gleiser teve alta do divã de Hélio Pellegrino antes mesmo de experimentá-lo. E seguiu procurando, como procura até hoje. Usou o medo da morte para construir uma vida extraordinária. Em sua procura, o astrofísico Marcelo Gleiser mergulhou nas grandes questões que afligem a todos nós. Quem somos? De onde viemos? Como tudo começou? O mundo pode acabar? Como? Gleiser consegue traduzir essas e outras grandes questões do Universo de uma forma que todos entendem. Graças a isso, transformou-se no primeiro cientista pop do Brasil. O que ele conta poderia ser resumido numa frase do poeta romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822): "Sou o olho com que o universo contempla a si mesmo e sabe que é divino". Ou, como dizia Carl Sagan, o mais popular divulgador científico do Ocidente, apresentador de Cosmos, uma série de TV de grande sucesso nos anos 70: "Poeira de estrelas que somos, ao buscarmos a resposta para as grandes questões é como se o universo estivesse olhando para dentro e tentando entender a si mesmo".

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A partir do domingo, 20, o cientista de 47 anos, olhos azuis e sorriso enigmático da fotografia que ilustra essa página passará a participar do jantar de domingo de 40 milhões de brasileiros. Essa é a audiência média do Fantástico, onde Gleiser vai apresentar uma série de 12 episódios, cada um deles com 10 minutos, batizada Poeira das Estrelas. Nela, Gleiser vai responder às grandes questões que nos assaltam desde que descemos das árvores. Uma amostra das respostas de Gleiser e da sua capacidade de tratar de modo simples os problemas mais complexos da ciência você encontra nas respostas que ele próprio preparou para esta reportagem.

A série do Fantástico é apenas uma das novidades de Gleiser. Ele é um cientista capaz de escrever livros, fazer filmes, apresentar programas de TV e - sim - até de fazer ciência e desvendar mistérios do universo. Não no mesmo espaço e tempo, mas quase. Ganhou dois Jabutis, o prêmio mais importante da literatura brasileira, por seus livros de não-ficção. O primeiro best-seller, A Dança do Universo, já vendeu quase 70 mil exemplares. Os direitos do segundo, O Fim da Terra e do Céu, foram comprados pelo diretor global Luiz Fernando Carvalho para virar uma minissérie. Neste domingo, ele completa 457 colunas de ciência na Folha de S.Paulo. Ganha até US$ 10 mil por palestra e é pago para falar para uma espécie muito particular de turistas - os caçadores de eclipses - pelos mares do mundo. Colaborou na concepção de O Maior Amor do Mundo, o novo filme de Cacá Diegues, e tem um roteiro de ficção científica de US$ 120 milhões circulando por Hollywood. É o professor mais popular do Dartmouth College, uma das mais importantes universidades americanas, e já publicou 80 artigos em revistas científicas. Suas descobertas como astrofísico foram tão relevantes que ganhou, em 1994, um prêmio do governo dos Estados Unidos. O cientista que decifra o cosmos para brasileiros e americanos lança na próxima semana seu sexto livro.

Desta vez, um romance.

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NO QUINTAL DE CASAMarcelo Gleiser vive em Hanover. No estado de New Hampshire. É como se morasse dentro de uma paisagem de calendário. Na foto, está no pátio de casa

O título - A Harmonia do Mundo - é o mesmo da principal obra de Johannes Kepler (1571-1630), um dos gigantes sobre cujos ombros a Ciência se apoiou para enxergar ainda mais longe. É sobre a trajetória do astrônomo alemão que Gleiser estréia na ficção, mas fiel aos fatos históricos. Kepler é possivelmente o gênio de caráter mais forte na história da Ciência. Numa Europa em convulsão por guerras entre católicos e luteranos, ele olhou para o céu em busca da harmonia que não encontrava na vida. Com os pés sobre o charco da intolerância religiosa - qualquer comparação com o que vivemos hoje não é mera coincidência -, Kepler elevava a cabeça até as estrelas. Para isso, jamais renegou nem sua fé nem sua ciência.

Depois de ler o livro, o anglo-americano Freeman Dyson, grande divulgador científico e um dos maiores físicos do século XX, disse a Época: "Considero Skybound (o título em inglês) uma obra-prima. Eu nunca havia lido um livro escrito para o público leigo que retratasse de forma tão vívida o momento em que o pensamento científico se desprende da religião". Outra estrela da Ciência, Roald Hoffmann, Nobel de Química de 1981, afirmou a Época: "O livro é maravilhoso. Ele nos faz sentir como Kepler construiu sua ciência, a tensão interna entre observação e imaginação. Quando indicar o livro aos amigos, vou dizer que é o único que conheço que mostra o que significava ser cientista durante o período histórico da Reforma."

Kepler sofreu – e não foi pouco – ao descobrir que as órbitas dos planetas não eram os círculos que atestavam a perfeição divina. Mas, fiel ao que acreditava ser a "mente de Deus", respeitou os resultados de seus cálculos. Com base nas medições do colega dinamarquês Tycho Brahe, ele apresentou ao mundo as elipses (entenda mais no quadro da pg 86). E as elipses mudaram o mundo. Apesar de ter sido perseguido, exilado e excomungado, até a morte Kepler pregou a paz entre as religiões. É, porém, menos popular que seu contemporâneo Galileo Galilei. Uma injustiça que Gleiser tenta corrigir com seu romance.

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"Uma nova maneira de fazer divulgação científica é usar os recursos da ficção", diz Gleiser. Para construir o personagem de Kepler, Marcelo Gleiser usa o conhecimento de suas próprias dores, seu precoce mergulho nas trevas. Como Kepler, ele precisou indagar o universo para lidar com sua alma em convulsão. Caçula de três filhos, Gleiser perdeu a mãe, Haluza, aos seis anos, de maneira trágica. Essa morte foi uma espécie de big-bang pessoal. "Sou resultado dessa perda. Quando você se coloca como ser cósmico, poeira de estrelas, a perda se transforma em algo mais aceitável porque é a lei do universo. Quando você destrói alguma coisa, outra é criada", diz. "Existe um mecanismo de constante compensação. Quando você perde algo muito importante, passa o resto da sua vida tentando criar para equilibrar a balança. Eu crio para compensar essa destruição."

Debaixo da cama, aos 11 anos Gleiser guardava uma mala preta abarrotada de páginas sobre vampiros garimpadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Era um menino carioca que sonhava em se tornar um discípulo de Drácula para alcançar a imortalidade onde acreditava encontrar a mãe. De certo modo, ao se tornar adulto, passou da busca mágica para a científica. Seu novo livro é uma síntese desses dois mundos que o habitam. "Quem conhece a história da minha vida vai entender porque escrevi esse livro", diz.

A mãe de Kepler foi julgada por bruxaria e só escapou da fogueira porque foi salva pelo filho. "Quisera eu ter podido salvar a minha mãe como o Kepler fez", diz Gleiser. Katharina é descrita em todas as biografias do astrônomo como uma mulher terrível. No romance de Gleiser, é mostrada com compaixão e ternura. Ao levar Kepler, então um menino de seis anos, para ver a passagem do "grande cometa", em 1577, a mãe abriu sua mente para os mistérios do universo. O episódio, real na vida de Kepler, também o foi na de Gleiser. Ele recorda que, pouco antes de morrer, em 1965, Haluza o levou pela mão até a calçada em Copacabana para ver um eclipse parcial do sol. "Minha busca pelo significado oculto das coisas e pela origem da vida é uma forma de me aproximar da minha mãe", diz. Foi Freeman Dyson que, numa passagem pelo Dartmouth College, sugeriu a Gleiser que compartilhasse sua busca com o público escrevendo um livro. O jovem astrofísico brasileiro dava um curso – Física para Poetas – que arrastava multidões de estudantes das áreas mais diversas. Nele contava a história da Ciência em linguagem sedutora. Dyson o desafiou a escrever o primeiro capítulo e mandar para ele. Gleiser não resistiu ao convite. Assim

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surgiu Dança do Universo, em 1998, escrito primeiro em inglês, como Gleiser costuma fazer, e depois traduzido para o português.

PAPAI GLEISER Kari, à direita na foto, foi aluna de Gleiser em seu curso mais popular - Física para Poetas. Lucian Jacob, no colo do pai, nasceu há menos de três meses. É o quarto filho dele e o primeiro dela

O sucesso do livro em ambas as línguas mudou para sempre a vida do cientista. O Fim da Terra e do Céu (The Prophet and the Astronomer), quatro anos depois, recebeu excelentes críticas na imprensa americana. "Além de ampliar a visão histórica do leitor, Gleiser o estimula a ir além, a continuar descobrindo por conta própria", disse a Época Lauren Porcaro, editora da conceituada revista The New Yorker.

Física para Poetas não foi apenas o início da mais bem-sucedida carreira de divulgação científica protagonizada por um brasileiro. Foi o começo de uma história de amor que dura até hoje. Há 10 anos, uma das estudantes fascinadas pela fluência com que Gleiser traduzia o universo era uma bela estudante de Literatura chamada Kari. Quando o curso acabou, ela se ofereceu para opinar sobre o primeiro livro do ex-professor. Acabaram de ter um bebê, o primeiro de Kari e o quarto filho de Gleiser. Lucian Jacob tem menos de três meses de vida. Seu nome sintetiza a luz, de Lucian, e uma homenagem aos dois avôs de Gleiser, ambos chamados Jacob - judeus ucranianos que desembarcaram no Brasil fugindo da revolução bolchevique, de 1917. Para descrever no romance as feições suaves de Susanna, a segunda mulher de Kepler, Gleiser se inspirou no rosto real de Kari. "Foi uma declaração de amor", diz.

É o segundo casamento de Gleiser. O primeiro, com uma agente imobiliária, ele atribui à solidão de um cientista brasileiro nos Estados Unidos. Os três filhos vivem em ponte-aérea entre Chicago, onde vive a mãe, e Hanover, no estado de New

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Hampshire, onde Gleiser mora. O mais velho, Andrew, de 17 anos, é fascinado pela cultura japonesa, fala japonês e no momento faz um intercâmbio no Japão. Eric, de 13, mora com o pai e é considerado por um ele "um geniozinho que inventa seus próprios jogos de videogame". Tali, de 10, é vegetariana e costuma dizer que quer ser cantora de rock. Punk-rock, mais especificamente.

Gleiser planejava voltar ao Brasil quando Tali entrasse na universidade. Sentia-se só na cultura puritana de New Hampshire e tinha saudades de "sentar num bar com um amigo e largar a alma na mesa". O projeto ainda existe, mas ele começa a pensar se é mesmo uma boa idéia. "Estamos muito assustados com as notícias de violência, tiros, seqüestros no Brasil", diz. "Temos uma grande qualidade de vida nos Estados Unidos."

Quando Gleiser fala em "qualidade de vida", não se refere apenas a sair de casa sem medo de levar um tiro num sinal. Ele praticamente mora dentro de uma paisagem turística. Sua casa é emoldurada por um bosque, e o rio passa no quintal, a menos de 20 metros de sua porta. Quando quer relaxar, pesca trutas no jardim - e as joga de novo na água. "Pescar é uma terapia maravilhosa. Tem uma coisa meio misteriosa nessa linha que conecta o seu mundo a um mundo submerso, completamente invisível para você. Acho meio metafórico", diz. "Mas não quero matar os peixes, embora saiba que o anzol sempre machuca. Tenho pensado em pincelá-lo com iodo, mas nunca coloco essa idéia em prática."

UMA CASA NO BOSQUEEste é o lar da família Gleiser. Nos fins de semana, o cinetista cozinha, faz pequenos consertos, lava roupa e corta a grama. Qunado não está fazendo tudo isso, rema de caiaque no rios

Nos finais de semana, Gleiser conta que rema de caiaque pelos rios e lagos da região, faz a manutenção da casa, corta grama, lava roupa. Todas aquelas atividades da vida bucólica de uma de pequena cidade americana, comum os filmes de Hollywood. Afirma ser um conhecedor de vinhos - não gosta de cerveja - e, segundo

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amigos, "é um grande cozinheiro e faz o melhor café do hemisfério norte". Quase não come carne vermelha. Para se manter em forma, corre oito quilômetros três vezes por semana numa estrada de terra perto de sua casa, faz alongamento outras três vezes para amenizar um problema congênito na coluna e tem duas aulas semanais de yoga numa academia. Campeão brasileiro de vôlei em 1975, seu levantador era ninguém menos que Bernardinho, o técnico de ouro do vôlei masculino. Desde a juventude, Gleiser se exercita religiosamente. "Ele ficava maluco se não corria de manhã durante as viagens de gravação da série", diz Frederico Neves, produtor e editor da série do Fantástico.

Gleiser costuma começar a manhã com um capuccino bem forte antes das 7h. Passa a maior parte do dia sozinho. Divide o tempo em vários blocos para dar conta de todas as atividades. Às quartas-feiras à noite, escreve a coluna de Ciência que mantém há nove anos na Folha de S.Paulo. Quando deu a entrevista para essa reportagem, fazia mais de 30°C no verão de New Hampshire.

Gleiser foi trabalhar na universidade de short branco, camiseta cinza e sandálias. É comum ele tentar escapar de uma secretária do departamento que usa um perfume que o cientista-escritor descreve como "uma desgraça". Considera qualquer perfume uma "invasão do espaço". Usa desodorante e loção pós-barba sem cheiro e compra suas roupas - básicas e "não caretas" - por catálogo. Jura que não se importa de estar ficando careca, mas afirma ter saudades "do tempo em que tinha um cabelo lindo".

O roteirista David Glass, um ex-aluno de Darmouth que virou amigo, conta que ele "é provavelmente o mais respeitado e popular professor da universidade". "Gleiser pilotava uma moto muito bacana", diz Glass. "Os alunos o amam." Deverá se tornar ainda mais popular quando iniciar seu novo curso, em março do próximo ano, sobre alienígenas na literatura e no cinema. "Os alienígenas são retratos do que somos, os bons e os ruins, os sábios e os destruidores. Como nós, os sábios são as projeções dos santos e dos anjos, que sabem mais do que sabemos. E os outros são os demônios, os colonizadores que querem destruir tudo, como fizeram os europeus ao invadir as Américas e a África", diz Gleiser. "O curso tem essa reflexão de como o retrato do alienígena através dos tempos representava um retrato da sociedade na época em que as obras foram criadas."

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O curso começa com Somnium (Sonho, em latim), considerado o primeiro conto de ficção científica da História. Seu autor, Johannes Kepler. Nele, o astrônomo sonha que os homens vão à Lua. Descreve um ambiente muito semelhante ao que Neil Armstrong acabaria vendo com seus próprios olhos trezentos anos depois. Sua idéia, ao escrever, era mostrar a Terra a partir de outro ângulo. Uma espécie de "A Terra é azul", a célebre frase do cosmonauta soviético Yuri Gagarin ao se tornar o primeiro homem a ver o planeta do espaço. Uma das acusações de bruxaria que quase levaram a mãe de Kepler à fogueira era justamente que o filho tomava poções mágicas para sair do planeta enquanto dormia. A vida de um cientista do século XVII decididamente não era fácil. Na virada do terceiro milênio, Gleiser se diverte muito mais. Ele e Glass escreveram um roteiro de US$ 120 milhões que tentam emplacar em Hollywood. Em Trindade de Fogo, o sol ameaça a Terra. "Gleiser define o filme como um Armageddon com Ph.D", diz Glass. Recentemente, a dupla conseguiu um admirador influente para ajudar a penetrar no mundo fechado do cinema americano. "Malcolm Mc Dowell leu o roteiro e adorou", afirma Gleiser. McDowell ficou conhecido como o protagonista de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick.

POBRES TRUTAS Gleiser compara o anzol lançado ao desconhecido à investigação científica. Mas os peixes - diferentemente dos resultados de seus cálculos - ele devolve ao rio de onde vieram. Na foto, ele pesca do jardim

A relação de Gleiser com o cinema não pára aí. Em setembro, o cineasta Cacá Diegues lança O Maior Amor do Mundo, filme sobre um astrofísico que volta ao Brasil depois de uma carreira de sucesso no Exterior. Gleiser colaborou no roteiro e deu dicas sobre a vida de cientista para José Wilker, que vive o protagonista, Antonio Santalli. "O Marcelo nos ajudou a compor sua biografia, seus costumes, seus hábitos e seu conhecimento, mas a história de um não tem nada a ver com a do outro", diz Diegues. "Quando eu estava escrevendo o roteiro de Deus é Brasileiro, ele já havia me

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ajudado com algumas falas de Deus, como quando ele explica como criou o universo e de que matéria ele é feito. O Marcelo é um cientista moderno, no sentido de que compreende a poesia, o carisma e sobretudo a carga humana da Ciência que abraçou." Gleiser e Glass também sonham em transformar em filme A Harmonia do Mundo, o livro sobre Kepler. Gleiser acha que Kepler poderia ser vivido por Joseph Fiennes, de Shakespeare Apaixonado. Glass prefere Johnny Deep, atualmente no cinema com Piratas no Caribe II. Glass já iniciou uma abordagem - ainda distante - ao premiado diretor tcheco Milos Forman. Ele dirigiu Amadeus, baseado na peça de Peter Shaffer, sobre a relação entre Mozart e Salieri - este um compositor apenas regular, mas bom o suficiente para reconhecer a genialidade de Mozart .

"Meu livro é o Amadeus da Ciência", diz Gleiser. Em A Harmonia do Mundo, a beleza da criação de Kepler só é totalmente apreendida pelo olhar de seu mentor, o astrônomo alemão Michael Maestlin. Foi ele que, na Universidade de Tübingen, introduziu Kepler ao modelo de Copérnico, em que a Terra e os demais planetas giram em torno do Sol, modelo conhecido como heliocêntrico. Esse fato foi determinante para o caminho que Kepler seguiria. Maestlin também foi decisivo ao colocar Kepler na trilha de uma carreira de astrônomo - e não de pastor luterano, como ele pretendia. Mas Maestlin, um bom astrônomo, não era um gênio. É neste conflito entre mestre e discípulo que Gleiser constrói o seu romance. Só ao terminar de escrever o livro, Gleiser descobriu, numa nota de página, que Kepler tinha dedicado A Harmonia do Mundo a Maestlin. "Chorei", diz Gleiser. "Eu tinha entendido a relação deles". Como testemunho histórico dessa relação, as cartas de Kepler lamentam o "abandono" daquele que chama "Mestre".

Especialmente nos momentos de maior perseguição religiosa, quando Kepler pediu e não recebeu nenhuma ajuda do antigo professor. O restante é criação de Gleiser. Sabe-se muito pouco sobre o destino de Maestlin, exceto que morreu um ano depois de Kepler, em Tübingen, e padecia de melancolia. "O livro de Gleiser é muito preciso em uma série de detalhes. Os leitores terão um ótimo panorama sobre Kepler, sua vida e seu tempo, mas é preciso lembrar que é um romance", afirmou a Época Owen Gingerich, professor emérito de Astronomia e História da Ciência de Harvard e um dos maiores especialistas em Kepler e Copérnico do planeta. "Quando eu li, fiquei chocado com o final, uma interpretação

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psicológica bastante legítima, mas totalmente a-histórica. Os leitores precisam ficar preparados para uma surpresa no final."

Marcelo Gleiser teve a inspiração para o livro numa de suas corridas semanais perto de casa. "Quando percebi o afastamento entre os dois, foi meio lampejante. Eu estava correndo perto de casa e tive uma visão cinematográfica do velho octagenário sentado numa poltrona, vestido num manto preto, com uma corda pendurada numa haste de madeira para que ele pudesse se levantar", diz Gleiser. "O Maestlin é justamente o que eu não quero que aconteça comigo. Não quero chegar ao fim da minha vida arrependido por não ter tido a coragem de ter vivido. Escrever sobre um cara que fez muito e outro que não fez tanto é uma maneira de ensaiar esse conflito na minha cabeça."

Não parece haver muito risco de que Gleiser compartilhe algum dia o sentimento desse Maestlin literário. Mas o professor é o personagem mais denso do romance - e não Kepler, o gênio. "Acho que sou mais Maestlin do que Kepler. Não consegui inventar as leis de Gleiser. Sou um cientista com uma boa reputação, mas não posso dizer que vou ganhar o prêmio Nobel ou que serei um imortal da Ciência", diz. "Se for lembrado daqui a cem anos por alguma coisa, acredito que será mais pelos livros, pelo trabalho de divulgação científica, do que pela minha ciência."

Como saber o que vai acontecer daqui a cem anos? Em 1994, as descobertas de Gleiser sobre o Cosmo foram reconhecidas pelo governo americano. Gleiser, democrata que contribuiu com a campanha de John Kerry na disputa com George Bush, recebeu o prêmio Presidential Faculty Fellows Award na Casa Branca chefiada por Bill Clinton. Como cientista, Gleiser se recusa a receber qualquer tipo de financiamento de órgãos militares dos Estados Unidos, como Marinha ou Pentágono. "É uma questão de princípios bastante difícil", diz. "Em 2005, fui bolsista da Nasa. Neste ano, tenho financiamento parcial da National Science Fundation."

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ATÉ ONDE ELE VAIPara contar a milhões de brasileiros sobre os mistérios do Universo, Marcelo Gleiser e a equipe do Fantástico viajaram pelos Estados Unidos e Europa. Na foto à esquerda, ele está no Grand Canyon para contar a evolução geológica da Terra.

Kepler foi um dos poucos cientistas que deixou por escrito, em minúcias, todas as dores vividas até alcançar resultados que valessem à pena. Em resumo: o gênio registrou para a História toda vez em que se sentiu estúpido. "Hoje mesmo, quando lemos um artigo científico, o cara diz: ' a idéia é essa, a gente fez isso e o resultado foi esse'", diz. "O Kepler não era assim. Ele começava, aí dizia: 'Errei porque sou burro, não era para eu ter tentado assim, tinha de ter feito outras coisas, aí mudei de caminho e também não deu certo, repeti meus cálculos 50 vezes...'" Esse longo caminho de tormentos que pontua todo processo científico é, segundo Gleiser, uma das grandes lições deixadas por Kepler. "Só aqueles que trabalharam durante anos às escuras pra chegar à luz percebem a importância da descoberta", diz.

Gleiser conhece esse sentimento. Sozinho em sua sala, em Dartmouth, ele foi o primeiro a descobrir certas manifestações de energia muito importantes na infância do universo. Ele as batizou de "oscillons". "Eu disse 'uau!'. E dei um pulo", conta ele. "Descobrir algo pela primeira vez é como uma explosão de endorfinas. Durou 10 segundos, mas foram os 10 segundos mais eternos da minha vida."

Depois deles, ligou para compartilhar a descoberta com Rocky Kolb, chefe da Astrofísica do conceituado Fermilab (Fermi National Accelerator Laboratory), nos Estados Unidos. Kolb, um cientista que adora Groucho Marx e tem um bigode muito parecido com o do antológico comediante, foi orientador de Gleiser no pós-doutorado.

Hoje, não perde nenhum de seus livros. "Ele diz que eu o ensinei a pesquisar, mas não é verdade. É impossível ensinar alguém a pesquisar", diz. "Você pode ensinar as técnicas, mas jamais a criatividade e a imaginação necessárias para fazer pesquisa de alto nível. É como ensinar alguém a jogar futebol. Você até ensina a driblar, chutar e dar cabeçadas, mas você não ensina a mágica do esporte. Ela é inata. Marcelo aprendeu técnicas comigo, mas a mágica veio de dentro dele."

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Desde o ano passado, Gleiser está migrando de área na Ciência. Já publicou seus primeiros artigos sobre Astrobiologia – o estudo da vida fora da Terra. "Há 20 anos falar de vida extraterrestre na Ciência era uma coisa meio proibida. Não havia dados. Com o desenvolvimento das metodologias de observação e com o avanço da Genética, da Bioquímica e da Astrofísica, cada vez mais é possível falar sobre vida extraterrestre de maneira científica", diz. "Acho muito provável que exista vida fora do nosso planeta. Já vida inteligente, se existir, será muito rara. Como é rara na própria Terra."

Aluno apenas regular de Matemática na escola, Gleiser queria ser músico. Só tornou-se cientista porque o pai, Isaac, garantiu que, dedilhando o violão para viver, ele morreria de fome. Dentista de profissão, mas pianista e jardineiro sempre que sobrava tempo, Isaac deu ao filho duas lições que Gleiser considera decisivas. "Meu pai me ensinou a amar a beleza e me ensinou que na vida era preciso ralar muito para conseguir as coisas", diz.

O primeiro vestibular prestou para Engenharia. Quando se encantou com Física, Gleiser procurou o irmão mais velho, Luiz, que se recuperava de uma hepatite no hospital. Luiz, hoje diretor de núcleo da TV Globo, tem nove anos a mais que o caçula. "Sempre idolatrei meu irmão mais velho porque era ele o rebelde da família, o desbravador. Perguntei se deveria passar da Engenharia para a Física. O Luiz me perguntou se eu achava que era bom o suficiente. Eu disse que achava que sim", diz Gleiser. "Ele disse então que eu fosse fazer o que gostava, porque, se não fizesse, jamais seria o que poderia ser."

Marcelo toca violão até hoje. "Quando ele apareceu na minha porta interessado em cosmologia, tinha um estojo de violão numa mão e uma pilha de livros de Física na outra", diz Rocky Kolb. De certo modo, Gleiser, um amante de jazz e música erudita, encontrou um caminho para unir Ciência e Música. "A idéia de que existe ritmo em tudo sempre ressoou na minha cabeça de uma forma até inconsciente", diz. "Acho linda essa idéia de que o universo canta, tem ritmos. Isso também me aproximou de Kepler. A harmonia do mundo é uma metáfora belíssima."

O oposto da imagem clássica do cientista de óculos, trancado entre quatro paredes e com cara de louco, Gleiser é aberto para o mundo. Astrologia, por exemplo. "O segredo da Astrologia é a

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vaidade humana. Todo mundo adora ser o centro das atenções, e ela coloca as pessoas no centro do Universo", diz. "Quando acertam, é por intuição." Mesmo assim, o cientista, do signo de Peixes, com ascendente em Áries e lua em Câncer, ficou impressionado com a previsão do astrólogo que desenhou o seu primeiro mapa-astral. "Ele falou que um dia eu ia ficar famoso, mas não pela minha pesquisa em Física, mas por algo ligado ao fato de ser cientista", diz. "Você vê que trabalhei durante 20 anos para satisfazer a previsão do cara."

Marcelo Gleiser recupera-se da vertigem na Torre de Pisa, na Itália

O primeiro mentor de Gleiser, Jorge André Swieca, um dos maiores físicos teóricos do Brasil, morreu de forma trágica quando ele se preparava para iniciar o mestrado. Três meses depois, Gleiser e sua namorada encontrariam o pai dela morto também em circunstâncias terríveis. Gleiser prefere não mencionar o que viu, mas a cena é usada no final do romance sobre Kepler. O físico Francisco Antonio Doria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acolheu Gleiser. Foi seu primeiro Maestlin, mas sem as dores. "O grande matemático Leopoldo Nachbin dizia que o professor só é bom quando aceita ter alunos que o ultrapassem", diz Doria. "O Marcelo é a prova de que sou um bom professor." Em agosto, Doria receberá Gleiser como membro da Academia Brasileira de Filosofia. Ultimamente, Gleiser anda sonhando também com a Academia Brasileira de Letras, onde, segundo ele, "falta um cientista".

Se Gleiser é um discípulo brilhante, é também um ótimo mentor. Esta talvez seja a melhor notícia para o Brasil. Como divulgador científico, ele tem inspirado uma geração de brasileiros. Ficou famoso - e deve ficar bem mais agora, com o romance e a série no Fantástico - como um cientista que traduz a Ciência num país que investe muito pouco em pesquisa. E onde boa parte das crianças

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quer crescer para virar jogador de futebol ou modelo e atriz. O universo é bem mais amplo que isso. E se expande.

"Ele faz um trabalho magnífico, porque, além de tornar a Ciência mais acessível, interpreta, vai além", diz o escritor e médico Moacyr Scliar, fã assumido de Gleiser. "Durante muito tempo houve uma barreira na sociedade, a Ciência parecia ser feita por pessoas que viviam em outra dimensão. Depois da bomba-atômica, percebeu-se a necessidade de um controle social. Como a população vai exercer esse controle se não entende o que está em discussão? Gente como o Marcelo Gleiser dá subsídios para que as pessoas possam decidir o que querem."

Como cientista pop, Marcelo se tornou exemplo. Acompanhe essa história. Em 1998, um garoto de 14 anos chamado Leonardo Motta leu um livro emprestado de um amigo. Era A Dança do Universo. "Depois que eu li, o mundo ficou diferente. Fiquei fascinado. Descobri que eu queria fazer Ciência", diz. Leonardo vivia em Belém do Pará, filho de um bancário e de uma funcionária pública. Não sabia bem por onde começar a virar cientista. Pesquisou na internet e descobriu o e-mail de seu ídolo. "Eu não tinha ninguém para me orientar", diz. Escreveu, todo cheio de dedos, tremendo. "Se ele não respondesse, eu não tinha nada a perder, ficava na mesma. Tentando, eu tinha uma chance", afirma. Perguntava sobre como "seria possível criar matéria no modelo do Big-Bang, a partir do vácuo". Marcelo respondeu, aberto e simpático como ele costuma ser.

Desde então, foram dezenas de e-mails entre os bosques de New Hampshire e a luxuriosa Amazônia. O astrofísico orientou o garoto sobre quais livros devia ler, como resolver problemas, que universidade seguir. "Papai Gleiser, passei no vestibular de Física da USP", é o conteúdo de uma das mensagens. "O Marcelo foi fundamental. Os livros dele mudaram minha vida", diz. "Não sei como eu seria hoje se não fosse ele."

Em setembro, Leonardo embarca para os Estados Unidos. O menino de Belém vai para Yale, fazer doutorado em física de partículas e cosmologia. Yale é uma das melhores universidades americanas - só aceita estudantes de carreira impecável e notas no topo. Leonardo tem 22 anos. Depois de Yale, Leonardo já sabe o que quer: "Quero voltar ao Brasil para retribuir o que eu recebi, ao

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estudar em universidade pública. Quero ajudar a formar as novas gerações".

Quando começar Poeira das Estrelas, a nova série do Fantástico, a capacidade de Gleiser para inspirar futuros cientistas vai se propagar. Especialmente se descobrirem o quanto ele se divertiu em viagens pela Europa e pelos Estados Unidos. "Os primeiros seis capítulos são mais ligados à história da Ciência e Big-Bang. Fomos a Cambridge, onde trabalhou o (Isaac) Newton, e entrevistamos o astrônomo real da Inglaterra. Em Praga, vimos tudo de Tycho (Brahe) e Kepler. Em Florença, falamos do Galileo (Galilei) e, em Roma, de Giordano Bruno", conta Gleiser. "Subi na Torre de Pisa e joguei as bolas de cima." Foi essa a experiência que Galileu teria feito. Ao atirar do alto da torre inclinada objetos de mesma densidade, mas de pesos diferentes, ficou provado que a densidade - e não o peso, como dizia Aristóteles - era proporcional à velocidade de queda . No alto da torre, Gleiser conta que teve vertigem. "Ele não gosta muito de altura, não", diz o editor Frederico Neves.

A história mais curiosa da série, porém, aconteceu no chão. No monumento de Stonehenge, na Inglaterra, onde um círculo de pedras com cerca de três mil anos de idade desafia a imaginação das pessoas, Gleiser ficou dentro do carro para não arriscar as cordas vocais numa temperatura abaixo de zero. A idéia era gravar no nascimento do Sol. Tudo, portanto, era breu, exceto pela iluminação garantida pelos equipamentos. Volta e meia, Gleiser botava a cabeça para fora do carro e fazia algum comentário. "Essas outras pedras aqui também são importantes", disse ele, apontando para alguns pontos escuros. De repente, as "pedras" começaram a se mexer. Eram ovelhas. "Olha, suas pedras acordaram", brincou Neves.

TOCANDO EM KEPLER Em Praga, Gleiser visitou a biblioteca do monastério de Strahov.

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Pôde então examinar um original do astrônomo Johannes Kepler, gênio da Ciência, sobre o qual escreveu seu primeiro romance

É difícil acreditar, mas Gleiser se divertiu ainda mais nos seis últimos capítulos. Neles, discorre sobre a origem da vida e até sobre alienígenas. Ao final da série, Gleiser publicará o livro Poeira das Estrelas, pela Editora Globo. "Voamos de balão sobre uma cratera enorme no Arizona e fomos ao Grand Canyon onde falamos da evolução geológica da Terra. Depois vimos os vulcões do Havaí. Sobrevoamos de helicóptero um vulcão em erupção. Estávamos a um metro da lava em uma casquinha de noz. O helicóptero não tinha porta e eu sentia aquele calorão subindo. Tinha de gritar para falar por causa do barulho", diz. "Chegamos a subir uma montanha de 4 mil metros onde estão os maiores telescópios do mundo, chamada Mauna Kea."

Sofrer, só com o frio. A 2°C negativos, em Praga, seu maxilar congelou. "Ficava dando tapas na minha cara para destravar e conseguir falar. Estava contando sobre a relação entre Kepler e Tycho Brahe", diz. "Vou aparecer de nariz vermelho." O nome da série, Poeira das Estrelas, resume nossa relação paradoxal com o universo. "Você é pequeno porque o universo é tão grande e é grande porque faz parte dele", diz. "Eu acho muito linda essa visão de que a matéria da qual somos feitos veio de estrelas quando estavam morrendo. E que um dia nossa matéria vai fazer parte de outras estrelas que vão estar nascendo. Não sei se serve de consolo para a realidade da morte, mas um dia o Sol vai morrer, e nossa matéria vai se espalhar pelo universo e, quem sabe, voltar a gerar outros planetas e até outras formas de vida."

Criado na religião judaica, Marcelo Gleiser nunca encontrou na fé as respostas para as grandes questões que o assombravam. Ele acredita que "a Ciência leva a Deus". "Não ao Deus judaico-cristão, mas à natureza", diz. "Sou o ateu mais religioso que você vai conhecer na sua vida". Johannes Kepler, o homem que povoou sua mente durante os três anos em que escreveu seu romance, dedicava-se à Astronomia para "decifrar a mente de Deus". Sua fé o levava a Ciência, mas ao encontrar dados que desmentiam o pensamento religioso de sua época, respeitava seu Deus o suficiente para ser fiel ao Universo criado por ele.

Ao final, Kepler encontrou a harmonia do mundo. Gleiser, a imperfeição. Harmonia e imperfeição são pensamentos cietíficos de

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duas épocas distintas. Imperfect Creation será o próximo livro de Marcelo Gleiser. "Vou escrever sobre a importância da imperfeição no universo. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilíbrio, o próprio universo se originou de um desequilíbrio. Quando o sistema está equilibrado, ele não se transforma. Sem transformação não há criação, nada acontece", diz. "Mas o que vemos é a organização, a simetria. Um dos grandes desafios da Ciência é explicar como pode existir harmonia em um universo que tende à desorganização. A idéia que eu quero trazer é explicar como imperfeição e harmonia caminham juntas."

Pela primeira vez, Gleiser vai mesclar - deliberadamente - a Ciência com a própria biografia. Ele quer mostrar qual foi o papel da imperfeição, do desequilíbrio e da morte na criação da sua vida. Como ele acançou à sua pró-cura. E por que, para sorte nossa, ele segue procurando.

 

Marcelo Gleiser responde às principais questões que nos desafiam

1 Como tudo começou?

Ainda não sabemos. Mas estamos cada vez mais próximos de uma resposta, ao menos no que tange à Ciência. Desde meados do século XX, quando o modelo do big bang foi proposto, temos chegado cada vez mais perto do momento inicial. Hoje, podemos dizer que compreendemos bem a História do Universo desde o primeiro segundo de existência. Nada mal. O problema começa com a noção de tempo. Ela deixa de fazer sentido quando nos aproximamos do "começo". Segundo a Física moderna, o tempo que flui como um rio é um conceito que não se aplica ao início de tudo. Tempo e espaço passam a flutuar aleatoriamente. O início de tudo seria o início do tempo que nos é familiar. E esse tempo, como havia dito Santo Agostinho, "surge com a Criação".

2 O que é big bang?

Big bang é o nome dado ao evento que marca a origem do Universo. Mais corretamente, é o nome dado ao processo que marca o início do tempo, a data de aniversário do Universo. O modelo do big bang, usado hoje em cosmologia, descreve de modo preciso várias das propriedades do Universo em que vivemos.

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3 Qual é a origem da vida?

Essa é outra pergunta a que ainda não podemos responder. Não sabemos como átomos inanimados organizam-se de tal forma que, após atingir certo nível de complexidade, passam a ser "vivos". Essa passagem do inanimado ao animado é uma das questões mais fascinantes da Ciência moderna. Entretanto, sabemos que a vida existia na Terra há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Se ela surgiu aqui ou se veio de outro lugar do espaço é assunto de discussão. A maioria dos cientistas acha que ela surgiu aqui mesmo. Experiências mostram que aminoácidos, componentes das proteínas necessárias para a vida, podem ser formados em condições semelhantes às que existiam aqui no passado. É um primeiro passo em direção à resposta. Em ciência, o não-saber é fundamental; só assim geramos conhecimento.

4 O Universo está mesmo em expansão?

Está. Isso significa que as galáxias estão se afastando umas das outras, sua velocidade de afastamento está aumentando com a distância. Como passas num bolo, que se afastam à medida que o bolo cresce no forno.

5 - Somos mesmo feitos de poeira das estrelas

Somos! A matéria que compõe nosso corpo, os átomos de carbono, oxigênio, cálcio, ferro etc., foi toda forjada no interior de estrelas no final de suas vidas. Estrelas geram energia fundindo principalmente hidrogênio em hélio. Quando o hidrogênio no seu interior acaba, elas entram em colapso, forjando elementos químicos cada vez mais pesados. Eventualmente, elas explodem e toda essa matéria é espalhada pelo espaço interestelar. Foi o que ocorreu com a nuvem de hidrogênio que acabou virando nosso sistema solar: outra estrela, nossa vizinha, salpicou-a de átomos ao morrer, criando então a possibilidade de vida aqui. Quando o Sol explodir, será ele que espalhará sua matéria pelo cosmo.

6 - O que é buraco negro?

Buraco negro é a fase final de estrelas com muito mais massa que o Sol (oito vezes ou mais): a estrela entra em colapso e não pára, sua gravidade vai ficando cada vez mais intensa, feito um escorregador que fica cada vez mais inclinado até que fique impossível escalá-lo. É o que ocorre com a própria

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luz num buraco negro: nem ela consegue escapar da força de sua gravidade. Daí o nome, uma região do cosmo de onde nem a luz escapa.

7 - Existe vida extraterrestre?

Não sabemos. Mas tudo indica que a vida não deve ser apenas algo que ocorre na Terra. Isso porque a química da Terra não é tão única, outros planetas espalhados pelo cosmo devem ter algo de parecido. Fora isso, a vida, mesmo aqui, é extremamente criativa e persistente, existindo em condições muito exóticas: altas temperaturas, no gelo, em áreas contaminadas por radioatividade... A questão da existência de vida extraterrestre "inteligente" já é bem mais complicada. Aqui, podemos apenas especular. Em nosso sistema solar, ao menos, sabemos que ela não existe. Dada a ausência de "visitantes" -- não existem provas concretas aceitas por cientistas sérios de que seres extraterrestres tenham vindo até aqui --, devemos aceitar que, se vida inteligente existir fora da Terra, deve ser muito rara. Mas espero que não sejamos a única espécie capaz de produzir tecnologia no Universo. Isso nos tornaria importantes demais. E seria muito triste.

8 - O que é Física Quântica

A física quântica estuda o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas. Muito da tecnologia digital que usamos hoje é produto de aplicações tecnológicas da Física Quântica, desenvolvida nas três primeiras décadas do século XX.

9 - Como os planetas se mantêm em órbita

Newton mostrou em 1686 que as órbitas dos planetas em torno do Sol são como uma "queda livre", como quando um elevador despenca e caímos devido à atração gravitacional da Terra. A diferença é a velocidade horizontal: imagine um canhão sobre uma montanha. Quanto mais forte o disparo, mais longe viaja a bala. Até que, para uma certa intensidade do disparo, a bala continua caindo, mas, devido à curvatura da Terra, não encontra o chão. "Entrar em órbita" é estar sempre caindo com o movimento adicional empurrando na horizontal.

10 - O que é a teoria da relatividade?

Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mostrou que nossas noções de espaço e tempo como

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entidades rígidas e imutáveis são ilusões causadas pelo fato de que nossos movimentos são muito lentos, se comparados à velocidade da luz. Se nos movêssemos a velocidades comparáveis (mas menores), veríamos as coisas encolhendo e o tempo passaria mais devagar para elas. Entre as conseqüências, Einstein demonstra a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possível a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein redefine a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A expansão do Universo e buracos negros são descritos por essa teoria.

11 - É possível viajar no tempo?

Segundo a teoria da relatividade, se pudéssemos construir um veículo capaz de viajar a velocidades próximas à da luz, poderíamos viajar para o futuro. Mas jamais para o passado...

12 - É preciso conhecer profundamente Matemática para entender os grandes conceitos da Ciência?

Do mesmo modo que não precisamos ler uma partitura para apreciarmos música clássica ou tocar guitarra para apreciarmos rock, não precisamos de Matemática para apreciarmos as idéias da Ciência. Mas uma compreensão mais profunda da Física moderna precisa, sem dúvida, de Matemática. Mas nem todo mundo quer ou deve ser compositor ou músico. Ciência faz parte da cultura e precisa de tradutores. Esse é o papel dos divulgadores de Ciência: traduzir a Ciência para que o resto da sociedade possa compartilhar suas descobertas e opinar sobre seu uso.

13 - Existe harmonia no mundo? E qual é o papel da imperfeição?

E como! Basta ver a coreografia dos ciclos naturais, como a vida coexiste e improvisa com o meio ambiente e como padrões simétricos tendem a se repetir, a bifurcação dos troncos das árvores e dos leitos dos rios, as espirais das galáxias e das conchas, a simetria das asas de uma borboleta e dos flocos e neve. Porém, se só houvesse harmonia e simetria, se só houvesse equilíbrio, jamais haveria transformação... Portanto, tudo o que ocorre e que se transforma no mundo o faz devido a imperfeições, ao desequilíbrio. É a tensão entre harmonia e imperfeição que gera a criatividade do mundo natural, das formas mais simples àquelas mais complexas.

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14 - É possível a coexistência entre Ciência e Religião?

Sem dúvida. Basta que cada uma aceite suas limitações e áreas de atuação. O conflito existe quando a Ciência tenta agir como Religião -- o que não pode nem deve fazer -- ou quando a Religião tenta agir como Ciência -- o que não pode fazer também. As duas servem a propósitos diferentes, no máximo complementares. Nunca mutuamente excludentes.

15 - Se houve um começo, haverá um fim?

A questão é que fim é esse? Da Terra? Certamente, quando o Sol explodir em 5 bilhões de anos, levará nosso planeta junto. Da vida? Difícil dizer, depende do quão criativos seremos à medida que o Universo expande e resfria. Do Universo? Talvez. Mas, pelo que sabemos hoje, continuará sua expansão indefinidamente. O fim seria devido à morte das estrelas e das fontes de energia: o cosmo termina no escuro.

 

Entenda por que ele é o cientista mais pop do Brasil

Vai lançar seu primeiro romance, A Harmonia do Mundo, sobre a vida do astrônomo Johannes Kepler

No domingo 20, apresenta o primeiro dos 12 episódios do seriado Poeira das Estrelas, no Fantástico, sobre as origens da vida e do cosmo

Em setembro estréia O Maior Amor do Mundo, filme de Cacá Diegues em que colaborou no roteiro

A Dança do Universo (1997), seu primeiro best-seller, vendeu 69 mil exemplares e ganhou o Prêmio Jabuti

O Fim da Terra e do Céu (2001) também ganhou o Prêmio Jabuti. O diretor global Luiz Fernando Carvalho vai transformar o livro em minissérie

Já escreveu 457 colunas sobre ciência na Folha de S.Paulo

Ganhou um prêmio da Casa Branca, em 1994, por suas descobertas sobre o cosmo

Publicou mais de 80 artigos científicos

Suas palestras custam até US$ 10 mil, mas ele as faz de graça para quem não pode pagar

É convidado para conversar sobre os mistérios da natureza

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em cruzeiros de caçadores de eclipses pelos mares do mundo

 Sem encontrar paz na Terra, Johannes Kepler (1571-1630) buscou a harmonia do mundo nos céus. Durante toda a vida, os homens se destroçaram em conflitos religiosos. Com imaginação e observação, a base da investigação científica, Kepler tornou-se o primeiro a compreender o movimento planetário. Ao constatar que uma força física movia os planetas, ele ajudou a fundar a Ciência moderna. Mas Kepler só conseguiu mudar a maneira de pensar de sua época porque não temia o que descobria. Sua curiosidade sobre seu Deus, dizia Carl Sagan, era maior que seu temor

O astrônomo alemão Michael Maestlin (1550-1631) foi o grande mentor de Johannes Kepler. Professor na Universidade de Tübingen, ele apresentou seu aluno mais brilhante ao Modelo Heliocêntrico de Copérnico (o Sol - e não a Terra - no centro do Universo). Fez seu nome ao descobrir uma estrela nova na constelação de Cassiopéia. Isso até então era considerado impossível porque se acreditava no modelo aristotélico: o céu é imutável. Maestlin, porém, nunca chegou a gênio. Mas era inteligente o suficiente para perceber como nenhum outro a genialidade do discípulo

PRIMEIRA LEI DE KEPLER

Se com o coração Kepler queria acreditar nas órbitas circulares dos planetas, com sua mente - e dados precisos - ele teve a coragem de confrontar seu tempo ao descobrir que as órbitas dos planetas eram uma elipse com o Sol em um dos focos. E não os círculos que refletiam a perfeição de Deus. Essa foi a primeira lei de Kepler

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SEGUNDA LEI DE KEPLER

A segunda lei mostrava que a reta unindo o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais. Isso significa que a velocidade do planeta ao longo da órbita varia de forma regular à medida que se afasta ou se aproxima do Sol. Ou seja: quanto mais distante do Sol, mais devagar o planeta se move; quanto mais perto, mais rápido

 O passo de Kepler nos colocou mais perto da compreensão do cosmo. Mas o mesmo passo que nos aproxima da mente do mundo nos coloca mais longe do centro do Universo. A trajetória do pensamento científico é uma marcha inexorável para a humildade: quanto mais vasto é o horizonte, menor é o tamanho do homem que o vislumbra. No princípio estávamos lá, confortavelmente no centro. No início, era Ptolomeu (87 d.C.-150 d.C.)

Último astrônomo importante da Antiguidade, Ptolomeu compilou o Almagesto, uma série de 13 volumes sobre Astronomia. Ptolomeu construiu o

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Modelo Geocêntrico - a Terra no centro do Universo - mais eficiente de seu tempo. Tanto que permitia prever a posição dos planetas de forma razoavelmente correta

O modelo de Ptolomeu foi dominante por quase 1.500 anos - até a Renascença. Ou até Nicolau Copérnico (1473-1543). Vivendo depois da chegada do homem à Lua e acostumados aos mais diversos alienígenas de Hollywood, o fato de não estarmos no centro do Universo não assusta. No tempo do polonês Copérnico, porém, tal declaração era semelhante a provar hoje que nosso mundo é um mero programa de computador, como na hipótese do filme Matrix. É verdade que Copérnico deve muito a um grego chamado Aristarco de Samos, morto em 230 a.C. Ele chegou a cogitar que o Sol - e não a Terra - seria o centro do Universo

Ao propor o Modelo Heliocêntrico, Copérnico renovou a Astronomia. A Terra seria apenas um dos seis planetas conhecidos a girar em torno do Sol. Mas o livro com essas idéias subversivas - De Revolutionibus - só foi publicado no ano de sua morte. Copérnico não testemunhou o tamanho da ferida causada em sua espécie ao arrancá-la do centro do Universo

Três anos após a morte de Copérnico, nasceu o dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601). Usando instrumentos fabricados por ele mesmo, Tycho fez as observações mais precisas de planetas e estrelas antes da invenção do telescópio.Ele, porém, continuava acreditando no Modelo Geocêntrico de Ptolomeu

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Quem contribuiu para a consolidação do Modelo Heliocêntrico foi o astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642). Entre suas observações astronômicas mais importantes está a descoberta de quatro dos satélites de Júpiter - levando à constatação de que o fato de a Lua girar em torno da Terra não significa que o planeta esteja parado

As evidências em favor do Modelo Heliocêntrico o levaram à Inquisição Romana, acusado de heresia. Galileu renegou sua Ciência para não ser queimado vivo numa fogueira como aconteceu com outro astrônomo italiano, Giordano Bruno (1548-1600). Só menos de três décadas atrás, em 1980, o papa João Paulo II mandou reexaminar o processo de Galileu e eliminou os últimos vestígios de resistência dos católicos ao que Aristarco de Samos sugeriu quase três séculos antes do nascimento da própria Igreja Contemporâneo de Galileu, o luterano Johannes Kepler passou a vida sendo expulso de cidades e países por se recusar a abdicar de sua crença. Tão fiel a sua fé quanto a sua Ciência - mesmo quando uma contrariava a outra -, Kepler desvendou o movimento planetário e as órbitas elípticas com base nas excepcionais medições de Tycho Brahe. Sua terceira descoberta – a Lei Harmônica – mostra que os planetas com órbitas maiores se movem mais lentamente em torno do Sol. Ou seja: quanto maior a distância do planeta, menor é a força exercida pelo Sol

A Lei Harmônica de Kepler levou o inglês Isaac Newton (1643-1727) à Teoria da Gravidade. A "força do Sol", a que o astrônomo se referia, é a gravidade. Graças a Kepler - e não porque uma maçã se espatifou em sua cabeça -, Newton descobriu por que os planetas se movem

Disse Newton, em sua frase famosa: "Se vi mais longe foi por estar em pé sobre os ombros de gigantes". Embora nunca tenha dado o devido crédito a Kepler, foi principalmente sobre os ombros dele que Newton colocou seus pés para enxergar além. Oito dias depois da descoberta da Lei Harmônica começou a Guerra dos Trinta Anos, entre luteranos e católicos. Até o fim da vida, Johannes Kepler só encontrou paz nas estrelas

A Harmonia do Mundo

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O ROMANCE DA CIÊNCIAO livro será lançado pela Companhia das Letras na terça-feira(08/08)

ÉPOCA publica com exclusividade um trecho inédito do novo livro de Marcelo Gleiser, sobre a vida do astrônomo Johannes Kepler

Maestlin [o mestre de Kepler] interrompeu a leitura e ergueu os olhos. Viu o sol, que brilhava com intensidade, já na metade de seu arco, cada dia mais alto, através do firmamento. Viu a sombra espectral da lua crescente, uma mancha sutil no fundo azul, suas imperfeições plenamente visíveis, as mesmas que os aristotélicos diziam ser vapores atmosféricos, os luteranos, os pecados dos homens condensando-se nos céus, e Galileu, a sombra de vales e montanhas como os que temos aqui na Terra. Maestlin sabia que Kepler concordava com o italiano, ou com quem quer que discordasse das posições peripatéticas. Quanto a ele, por toda a vida tinha medido os céus sem se preocupar com as causas por trás dos movimentos. Nunca teria ousado voar tão alto, questionar o estabelecido. E, ainda que o tivesse feito, jamais teria elaborado a pergunta certa, a que levaria ao novo... Veio-lhe à mente a imagem de um cavalo preso por rédeas e com viseiras que só lhe permitiam olhar para a frente. A vida inteira o animal trotou para cima e para baixo na mesma estrada, sem ver a relva viçosa dos campos em volta. Às vezes, quando o vento soprava até ele o perfume fresco do pasto, o pobre, tremendo de prazer, punha-se a trotar na sua direção. Contudo, o chicote do dono rasgava-lhe a carne, forçando-o a continuar na estrada. Um dia, depois de anos de servidão, quando as pernas do bicho já estavam tão cansadas que mal se moviam, suas viseiras e rédeas foram finalmente retiradas. Mas era tarde. Ao ver o que o cercava, o que sempre o havia cercado, o

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cavalo sofreu um choque tão grande, que caiu morto. Maestlin sentiu-se amaldiçoado por não ter morrido ainda. 21 de julho de 1599

(...)As autoridades católicas apertam o cerco a cada dia. Negaram-me o direito de enterrar minha filhinha segundo os ritos luteranos. E, quando descobriram que desobedeci à ordem, obrigaram-me a pagar uma multa de cinco coroas pela "transgressão"! A quantia era ainda maior inicialmente, dez coroas; só consegui diminuí-la depois de protestar muito. Um ultraje! Que sua pobre alma possa descansar em paz. Preciso sair daqui, encontrar refúgio em algum outro lugar antes que seja tarde. A luz da razão tem de continuar a brilhar, não pode ser ofuscada pela ignorância dos homens. Está na hora de escrever uma carta a Tycho, lembrando-lhe seu convite...

Meu único consolo é o trabalho. Tenho passado os dias no escritório, mergulhado em cálculos com intensidade proporcional à da dor que insiste em querer destruir minha vida. No capítulo 10 do livro I de Sobre as revoluções, Copérnico escreveu que uma das vantagens do sistema heliocêntrico é revelar "uma maravilhosa comensurabilidade no arranjo dos céus, uma harmonia expressa na relação entre os movimentos dos planetas e suas distâncias ao Sol, que não é encontrada em nenhum outro arranjo". Ele havia entendido que o conceito-chave na construção do cosmo é a harmonia, o casamento entre a geometria e o movimento. A isso, acrescento que o fato de sermos capazes de perceber a beleza dos padrões geométricos, de sermos enfeitiçados por eles, não é uma coincidência: fomos criados assim para que nossa mente pudesse ler a escrita divina. Deus pôs uma centelha de Sua luz criadora em nossas almas, iluminando-as com a chama da geometria. Agora é claro para mim por que Pitágoras tanto buscou as harmonias do mundo. Não foi ele quem descobriu que, quando duas cordas são soadas conjuntamente e seus comprimentos estão na proporção correta, seus sons ressoam em harmonia? Não era ele capaz de ouvir essa mesma harmonia ressoando em tudo o que existe, das oscilações do relvado ao vento à coreografia das esferas celestes? A chave do mistério cósmico está na música. É ela que faz a alma ressoar em harmonia, transformando geometria em sensação, criando uma ponte entre o mundo das Formas Puras e o mundo dos homens. (...)

Maestlin ouviu Maria chamá-lo, estava na hora de comer. Tentou mover-se, mas a má circulação paralisara-lhe as pernas. Olhou

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para o diário reverentemente antes de fechá-lo e pô-lo de volta no esconderijo. Maria foi ao encontro dele, levando

uma bengala. Ajudou-o a levantar-se e disse algo que ele não ouviu. Só o que o velho mestre via era o cavalo, morto na beira da estrada, cercado pelos campos viçosos. Também era prisioneiro numa cela, procurando as harmonias que haviam lhe escapado, buscando entender por que ainda vivia e Kepler já morrera. Sobre os ombros de Kepler

Sem encontrar paz na Terra, Johannes Kepler (1571-1630) buscou a harmonia do mundo nos céus. Durante toda a vida, os homens se destroçaram em conflitos religiosos. Com imaginação e observação, a base da investigação científica, Kepler tornou-se o primeiro a compreender o movimento planetário. Ao constatar que uma força física movia os planetas, ele ajudou a fundar a Ciência moderna. Mas Kepler só conseguiu mudar a maneira de pensar de sua época porque não temia o que descobria. Sua curiosidade sobre seu Deus, dizia Carl Sagan, era maior que seu temor

O astrônomo alemão Michael Maestlin (1550-1631) foi o grande mentor de Johannes Kepler. Professor na Universidade de Tübingen, ele apresentou seu aluno mais brilhante ao Modelo Heliocêntrico de Copérnico (o Sol - e não a Terra - no centro do Universo). Fez seu nome ao descobrir uma estrela nova na constelação de Cassiopéia. Isso até então era considerado impossível porque se acreditava no modelo aristotélico: o céu é imutável. Maestlin, porém, nunca chegou a gênio. Mas era inteligente o suficiente para perceber como nenhum outro a genialidade do discípulo

PRIMEIRA LEI DE KEPLER

Se com o coração Kepler queria acreditar nas órbitas circulares dos

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planetas, com sua mente - e dados precisos - ele teve a coragem de confrontar seu tempo ao descobrir que as órbitas dos planetas eram uma elipse com o Sol em um dos focos. E não os círculos que refletiam a perfeição de Deus. Essa foi a primeira lei de Kepler

SEGUNDA LEI DE KEPLER

A segunda lei mostrava que a reta unindo o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais. Isso significa que a velocidade do planeta ao longo da órbita varia de forma regular à medida que se afasta ou se aproxima do Sol. Ou seja: quanto mais distante do Sol, mais devagar o planeta se move; quanto mais perto, mais rápido

 

O passo de Kepler nos colocou mais perto da compreensão do cosmo. Mas o mesmo passo que nos aproxima da mente do mundo nos coloca mais longe do centro do Universo. A trajetória do pensamento científico é uma marcha inexorável para a humildade: quanto mais vasto é o horizonte, menor é o tamanho do homem que o vislumbra. No princípio estávamos lá, confortavelmente no centro. No início, era Ptolomeu (87 d.C.-150 d.C.)

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Último astrônomo importante da Antiguidade, Ptolomeu compilou o Almagesto, uma série de 13 volumes sobre Astronomia. Ptolomeu construiu o Modelo Geocêntrico - a Terra no centro do Universo - mais eficiente de seu tempo. Tanto que permitia prever a posição dos planetas de forma razoavelmente correta

O modelo de Ptolomeu foi dominante por quase 1.500 anos - até a Renascença. Ou até Nicolau Copérnico (1473-1543). Vivendo depois da chegada do homem à Lua e acostumados aos mais diversos alienígenas de Hollywood, o fato de não estarmos no centro do Universo não assusta. No tempo do polonês Copérnico, porém, tal declaração era semelhante a provar hoje que nosso mundo é um mero programa de computador, como na hipótese do filme Matrix. É verdade que Copérnico deve muito a um grego chamado Aristarco de Samos, morto em 230 a.C. Ele chegou a cogitar que o Sol - e não a Terra - seria o centro do Universo

Ao propor o Modelo Heliocêntrico, Copérnico renovou a Astronomia. A Terra seria apenas um dos seis planetas conhecidos a girar em torno do Sol. Mas o livro com essas idéias subversivas - De Revolutionibus - só foi publicado no ano de sua morte. Copérnico

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não testemunhou o tamanho da ferida causada em sua espécie ao arrancá-la do centro do Universo

Três anos após a morte de Copérnico, nasceu o dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601). Usando instrumentos fabricados por ele mesmo, Tycho fez as observações mais precisas de planetas e estrelas antes da invenção do telescópio.Ele, porém, continuava acreditando no Modelo Geocêntrico de Ptolomeu

Quem contribuiu para a consolidação do Modelo Heliocêntrico foi o astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642). Entre suas observações astronômicas mais importantes está a descoberta de quatro dos satélites de Júpiter - levando à constatação de que o fato de a Lua girar em torno da Terra não significa que o planeta esteja parado

As evidências em favor do Modelo Heliocêntrico o levaram à Inquisição Romana, acusado de heresia. Galileu renegou sua Ciência para não ser queimado vivo numa fogueira como aconteceu com outro astrônomo italiano, Giordano Bruno (1548-1600). Só menos de três décadas atrás, em 1980, o papa João Paulo II mandou reexaminar o processo de Galileu e eliminou os últimos vestígios de resistência dos católicos ao que Aristarco de Samos sugeriu quase três séculos antes do nascimento da própria Igreja Contemporâneo de Galileu, o luterano Johannes Kepler passou a vida sendo expulso de cidades e países por se recusar a abdicar de sua crença. Tão fiel a sua fé quanto a sua Ciência - mesmo quando uma contrariava a outra -, Kepler desvendou o movimento planetário e as órbitas elípticas com base nas excepcionais medições de Tycho Brahe. Sua terceira descoberta – a Lei Harmônica – mostra que os planetas com órbitas maiores se movem mais lentamente em torno do Sol. Ou seja: quanto maior a distância do planeta, menor é a força exercida pelo Sol

A Lei Harmônica de Kepler levou o inglês Isaac Newton (1643-1727) à Teoria da Gravidade. A "força do Sol", a que o astrônomo se referia, é a gravidade. Graças a Kepler - e não porque uma maçã se espatifou em sua cabeça -, Newton descobriu por que os planetas se movem

Disse Newton, em sua frase famosa: "Se vi mais longe foi por estar em pé sobre os ombros de gigantes". Embora nunca tenha dado o devido crédito a Kepler, foi principalmente sobre os ombros dele

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que Newton colocou seus pés para enxergar além. Oito dias depois da descoberta da Lei Harmônica começou a Guerra dos Trinta Anos, entre luteranos e católicos. Até o fim da vida, Johannes Kepler só encontrou paz nas estrelas  

Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR74976-6014,00.htmlCIÊNCIA –