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Ensinamentos Fundamentais do Budismo Ch'an Amigos professores e estudantes, Entre os oitenta e quatro mil ensinamentos do budismo, o Ch'an [Zen em japonês] é o mais entusiasticamente estudado e discutido no mundo de hoje. Embora uma vez confinado ao leste onde teve origem, nos dias de hoje o estudo do Ch'an captou a atenção e o interesse do ocidente. Por exemplo, muitas universidades dos Estados Unidos estabeleceram grupos de meditação. É encorajador ver que a meditação está se espalhando da reclusão dos monastérios para o mundo moderno, onde está desempenhando papel muito importante. Descrever o Ch'an não é uma tarefa fácil, porque o Ch'an não é algo que possa ser discutido ou expresso em palavras. No momento em que a linguagem é usada para explicar o Ch'an, não estamos mais considerando seu verdadeiro espírito. O Ch'an está além de todas as palavras, contudo não se pode deixá-lo inexpresso. Qual é a origem do Ch'an? O Ch'an é a forma abreviada da transliteração chinesa do termo sânscrito dhyana, que significa contemplação tranqüila. Originado na Índia, a lenda conta que durante uma assembléia no Pico do Abutre (Grdhrakuta), o Buda apanhou uma flor e, levantando-a, mostrou-a à assembléia sem dizer palavra. Os milhões de seres celestiais e humanos que estavam reunidos na assembléia não entenderam o que Buda queria significar, exceto Mahakashyapa, que sorriu. Assim, o Ch'an foi transmitido sem utilizar nenhuma palavra oral ou

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Ensinamentos Fundamentais do Budismo Ch'an 

Amigos professores e estudantes,

Entre os oitenta e quatro mil ensinamentos do budismo, o Ch'an [Zen emjaponês] é o mais entusiasticamente estudado e discutido no mundo dehoje. Embora uma vez confinado ao leste onde teve origem, nos dias dehoje o estudo do Ch'an captou a atenção e o interesse do ocidente. Porexemplo, muitas universidades dos Estados Unidos estabeleceram gruposde meditação. É encorajador ver que a meditação está se espalhando dareclusão dos monastérios para o mundo moderno, onde estádesempenhando papel muito importante.

Descrever o Ch'an não é uma tarefa fácil, porque o Ch'an não é algo que

possa ser discutido ou expresso empalavras. No momento em que alinguagem é usada para explicar o Ch'an,não estamos mais considerando seuverdadeiro espírito. O Ch'an está alémde todas as palavras, contudo não sepode deixá-lo inexpresso.

Qual é a origem do Ch'an? O Ch'an é aforma abreviada da transliteraçãochinesa do termo sânscrito dhyana, que

significa contemplação tranqüila.Originado na Índia, a lenda conta quedurante uma assembléia no Pico doAbutre (Grdhrakuta), o Buda apanhouuma flor e, levantando-a, mostrou-a àassembléia sem dizer palavra. Osmilhões de seres celestiais e humanosque estavam reunidos na assembléia nãoentenderam o que Buda queriasignificar, exceto Mahakashyapa, que

sorriu. Assim, o Ch'an foi transmitidosem utilizar nenhuma palavra oral ou

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escrita: foi transmitido de mente para mente. Mais tarde, o Ch'an foiintroduzido na China. Durante a época do Sexto Patriarca Hui Neng, oCh'an floresceu e desenvolveu-se em cinco escolas, que se tornaram asprincipais correntes do budismo chinês.

O que é o Ch'an? O Mestre Ch'an Ching Yuang disse que o Ch'an é nossamente. Esta mente não é aquela que discrimina e reconhece as coisas. Elaé nossa "verdadeira mente." Essa verdadeira mente transcende toda aexistência tangível, contudo manifesta-se em toda existência do universo.Mesmo as coisas mais comuns no universo estão cheias das sutilezas doCh'an.

O Mestre Ch'an Pai Chang disse que o Ch'an é a vivência diária. Ele disseque rachar lenha, carregar água, vestir-se, comer, ficar de pé e andar,

tudo é Ch'an. O Ch'an não é algo misterioso. O Ch'an está relacionado comnossa vida diária. Portanto, cada um de nós pode experimentar o Ch'an.

Hoje, o mundo interior das pessoas está freqüentemente em conflito como mundo exterior, e a vida torna-se um fardo e um aborrecimento. Elasnão podem ter prazer e captar os momentos oportunos do Ch'an na vidadiária. Em contraste, os mestres Ch'an são bem humorados einteressantes. Apenas com poucas sentenças, eles podem livrar-se dasnossas preocupações e inquietação e guiar-nos para a verdadeirafelicidade. Esta transformação para a felicidade é bem parecida comofazer girar uma máquina complexa simplesmente pressionando um botão.

Nenhum conhecimento complicado ou repetitivo é requerido. O estado damente no Ch'an é muito alegre e vivaz.

Qual é o valor do Ch'an ? Quando aplicado na vida diária, o Ch'anacrescenta colorido. Expande nossas mentes, enriquece nossas vidas,eleva nosso caráter, ajuda-nos a aperfeiçoar nossa moral e leva-nos aoestado em que estaremos tranqüilos quando nos encontrarmos na beira davida e da morte. Quais foram então os ensinamentos maravilhosos que osmestres Ch'an legaram por escrito e passaram para nós? Como podemostentar compreender o deleite do Ch'an através do uso da linguagem?

Ter e Não Ter

Estamos acostumados a pensar que toda existência pode ser diferenciadapor nomes e relatadas em termos de dualidade. Na realidade, as coisasnão podem ser divididas em metades distintas. Por exemplo, a maiorparte das pessoas pensa usualmente que "ter" e "não ter" são doisconceitos opostos; se alguém "tem" então ele não pode estar no estado de"não ter" ; se alguém "não tem" então ele não pode estar no estado de"ter." Para elas "ter" e "não ter" não são coexistentes. A fala e o

comportamento dos mestres Ch'an transcendem os conceitos comuns de

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"ter" e "não ter" abraçando estes conceitos aparentemente opostos ealcançando um nível mais alto de "ter" e "não ter." Suas visões sãodiferentes daquelas das pessoas comuns; se nós nos aproximarmos destemodo de pensar com o nosso conhecimento habitual, não seremos capazesde entender verdadeiramente os mestres Ch'an.

Quando o Quinto Patriarca quis passar o manto e a tigela, símbolos doDharma, a um sucessor, ele pediu a cada um de seus discípulos queescrevesse um verso no qual poderia julgar quem, entre eles, tinharealizado a Verdade. O manto e a tigela apenas seriam entregues àqueleque se tornaria o Sexto Patriarca. Seu discípulo mais velho, Shen-hsu,escreveu o seguinte verso:

O Corpo é uma árvore BodhiA mente é um espelho brilhanteMantenha-o sempre cuidadosamente limpoPara a poeira nele não assentar

Depois de ler este verso, todos elogiaram Shen-hsu dizendo que seuestado de mente era na verdade superior. O Quinto Patriarca pensava demodo diferente e disse "Não é mau, mas o escritor dessa obra ainda nãoviu o caminho."

Hui Neng, que trabalhava no moinho de arroz, pediu nessa noite quealguém escrevesse também seu verso na parede:

Bodhi não tem nada a ver com árvoresE a mente não é um espelho brilhanteDesde que nada existe,Como pode a poeira assentar

Depois de ler este verso, o Quinto Patriarca sabia que Hui Neng tinha vistoa natureza vazia de todos os Dharmas e entrado no caminho de Buda.Assim, ele entregou o manto e a tigela da linhagem da escola Ch'an a HuiNeng que se tornou o Sexto Patriarca.

Shen-hsu possuía um bom entendimento dos princípios do Ch'an e era o

chefe dos discípulos do Quinto Patriarca. Como o Quinto Patriarcatambém havia instruído os outros discípulos a praticar de acordo com osversos de Shen-hsu, todos do monastério esperavam que ele, certamente,se tornasse o Sexto Patriarca. Em vez disso, o Quinto Patriarca escolheuHui Neng de quem ninguém ouvira falar antes. Embora Shen-hsu tivessealcançado um estado espiritual elevado, ainda estava apegado à mente de"ter" e seu conhecimento do Ch'an ainda não era o mais elevado.

O caminho último é aquele que integra o "ter" como o "vazio" (shunyata).Esta é a diferença entre a mente Ch'an e a mente comum. Apenas quando

pudermos transcender o "ter" e o "não ter" é que poderemos realizar a

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mente Ch'an última e experimentar a maravilhosa verdade do Ch'an.

Vamos ilustrar com outro caso bem conhecido na história do Ch'an. Umdia, alguém perguntou ao Mestre Ch'an Chao Chou: "O que significa ChaoChou?"

Chao Chou respondeu: "Portão leste, portão oeste,portão sul, portão norte."

Essa resposta pareceu totalmente irrelevante, mas defato, esta verdade dos quatro portões tinha umsignificado oculto. Queria dizer que o Ch'an de ChaoChou era muito vasto e não era limitado por qualquerescola particular. O Ch'an não é, de modo alguma,

confinado pelo espaço.

Alguém perguntou a Chao Chou: "Os cães têm a natureza de Buda?

Chao Chou respondeu: "Sim."

Uma outra pessoa fez-lhe a mesma pergunta: "Os cães têm a natureza deBuda?"

Desta vez, Chao Chou respondeu: "Não."

Por que o Mestre Ch'an Chao Chou deu duas respostas diferentes para amesma pergunta? Do ponto de vista terreno, era bastante contraditório,mas para o Mestre Ch'an Chao Chou, elas eram um modo vivo de ensinar.Quando ele disse: "sim" queria dizer que os cães têm o potencial para setornar Budas. Quando ele disse "não", significava que os cães ainda nãotinham se tornado Budas. Ao responder uma pergunta, os mestres Ch'antêm o cuidado de determinar a intenção e o estado de mente da pessoaque faz a pergunta antes de dar a resposta apropriada.

O Imperador Wu, da Dinastia Liang, era um dos mais devotados budistas

da história chinesa. Durante seu reinado ele construiu muitos templos,estátuas de Buda, estradas e pontes. Foi nessa época que Bodhidharmaveio da Índia para a China a fim de propagar o Dharma. O Imperador Wuperguntou-lhe: "eu fiz muitas coisas boas, quais os méritos que acumulei?"

Bodhidharma respondeu friamente:"Nenhum mérito, de modo algum."

O Imperador não ficou muito feliz com a resposta e insistiu outra vez.Mais tarde, Bodhidharma foi embora porque não podia se entender com oImperador Wu. Realmente como era possível que os bons feitos doImperador Wu não tivessem produzido nenhum mérito? Quando

Bodhidharma disse: "nenhum mérito, de modo algum", ele queria dizerque na mente de um mestre Ch'an não há este conceito dualístico de "ter"

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e não ter", como é experimentado pela mente comum.

De modo geral, percebemos e diferenciamos as coisas através de nossossentidos. Por exemplo, quando olhamos para uma montanha ou um rio,vemos apenas uma montanha ou um rio. Depois que começamos a praticaro Ch'an, percebemos que tudo na existência é ilusório. Neste ponto, amontanha não é mais montanha e o rio não é mais um rio. Quandoalcançamos completa realização, todos os conceitos relativos de "é" e"não é", "mente" e "matéria", tornam-se completamente integrados. Nesteponto, a montanha é outra vez uma montanha e o rio é outra vez um rio.A mente do Ch'an tornou-se unificada com o ambiente externo. O som queflui dos rios torna-se o Dharma maravilhoso. Montanhas verdes tornam-seos corpos puros dos Budas. O mundo do Ch'an é ilimitado quando arelativa fronteira do "ter" e "não ter" é destruída.

Movimento e Imobilidade

A doutrina básica do budismo são os Três Selos do Dharma, que declaraque "Todos os samskaras (agregados) são impermanentes." "Todos osdharmas não têm um eu substancial", e "O nirvana é a paz verdadeira." Oobjetivo último de estudar o budismo é alcançar o estado de paz perfeita,nirvana.

A "perfeita paz" é diferente do conceito de imobilidade. Em nossa vidadiária, quando dizemos que aquele determinado objeto está se movendo,enquanto aquele outro está imóvel, é devido à ação da mente. Todos osfenômenos são criados por nossa mente. De fato, os fenômenos, elesmesmos, não fazem distinção entre o que está se movendo ou o que estáimóvel. O que faz a distinção de ser é o apego em nossa mente que écausado pela ilusão. Se nós pudermos nos livrar deste apego, nossa menteestará então em paz e tudo ficará em harmonia.

Depois que Hui-Neng, o Sexto Patriarca, recebeu o manto e a tigela doQuinto Patriarca, ele se escondeu durante quinze anos antes de começar

a ensinar. Um dia, quando chegou ao templo, ele viu duas pessoasdiscutindo calorosamente em frente a uma bandeira. Questionavam-se porque a bandeira estava se movendo. Um deles dizia: "Se não houver vento,como poderá a bandeira se mover? Assim, é o vento que está semovendo." O outro disse: "Se a bandeira não se move, como pode vocêsaber se o vento está soprando? Portanto é a bandeira que está semovendo.

Nesse ínterim, Hui-Neng ouvia pacientemente seus argumentos.Finalmente, lhes disse: "Por favor, não discutam mais. Não é o vento nema bandeira que está se movendo. É sua mente que se move." Desta troca

de palavras, podemos ver como os mestres Ch'an observam o mundo: eles

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olham dentro de si, mais do que para a aparência superficial dosfenômenos. Afinal, os fenômenos existem de maneira transitória efragmentada. A diferença surge em nossas mentes por causa da agitaçãode nossos pensamentos. Quando nossas mentes estão tranqüilas, osobjetos não são capazes de fazer distinções por si mesmos. Contudo,quando nossas mentes estão agitadas, diferenciamos os fenômenos,causando distinção e separação entre nós e os outros. Portanto, a chavepara realizar o estado no qual o movimento e a imobilidade estão emharmonia, e não mais diferenciado, é quando tivermos de fato eliminadotodas as discriminações que surgem das diferenças percebidas. Destemodo podemos alcançar a paz perfeita.

O Imperador Hsien Tsung da Dinastia T'ang era um budista muito devotadoe queria mandar alguém a Feng Hsiang para buscar alguma das relíquias

de Buda. Yu Han, um oficial do governo, tentou dissuadir o imperadordessa empreitada. Hsien Tsung ficou muito zangado com ele e demitiu-odo posto da província de Ch'ao Chou.

Ch'ao Chou estava localizada na parte sudeste da China, que não eramuito civilizada naquele tempo. Contudo, um monge bem educado emuito culto chamado Mestre Ch'an Ta Tien estava vivendo lá. Era muitorespeitado pelas pessoas do local.

Sendo um Confuciano erudito, Yu Han era muito orgulhoso de si e,naturalmente, desprezava o Mestre Ch'an. No entanto, já que não havia

ninguém vivendo perto de Ch'ao Chou com quem ele pudesse ter umaconversa inteligente, ele, relutantemente, foi visitar o Mestre Ch'an.

Quando Yu Han chegou ao templo, o Mestre Ch'an estava meditando. YuHan não queria perturbá-lo, assim, decidiu ficar do lado de fora eesperar. Depois de um longo tempo, o Mestre Ch'an ainda permaneciaimóvel. Yu Han começou a ficar impaciente. Vendo isso, o discípulo doMestre Ch'an murmurou para o mestre: "Primeiro, modifique-se através dameditação concentrativa, depois erradique a arrogância através dasabedoria."

Isto foi dito para o mestre Ch'an, porém, de fato, foi dirigido a Yu Han. Oque o discípulo estava indiretamente dizendo era: A meditação do Mestreé um ensinamento sem valor para você; ele está testando sua paciência.No momento em que você passar no teste, ele usará suas palavras desabedoria para livrá-lo de sua arrogância. Neste momento, Yu Han ficouconvencido de que a erudição e a cultura do Mestre Ch'an era umaverdade profunda. Eles mais tarde tornaram-se bons amigos.

Pelos exemplos acima, podemos ver que na mente dos mestres Ch'an,mobilidade e imobilidade são intrinsecamente unidas. Este entendimento

é refletido no modo como eles ensinam. No decurso de seusensinamentos, os Mestres Ch'an, algumas vezes, instruem pelo silêncio e

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outras através de poderosas pregações, como o rugir de um leão. Cadamovimento de um Mestre Ch'an é cheio de sutilezas do Ch'an – seja umlembrete curto, gentil ou uma reprimenda vigorosa; um avanço ou umrecuo de uma postura; uma pergunta ou uma resposta; um franzir desobrolho ou um sorriso; beber chá ou comer arroz. Para a maior parte denós, nossas experiências diárias de vida tendem a convencer-nos quemobilidade e imobilidade são dois estados distintos. Contudo, mobilidadee imobilidade, como acontece através da meditação concentrativa doCh'an são uma verdade unificada, perfeitamente livre e natural.

Prática e Compreensão

Algumas pessoas dizem que o budismo é uma filosofia. Essa é uma

afirmação do ponto de vista intelectual; contudo, a real essência dobudismo é a prática. A Verdade pode ser realizada apenas através daprática.

O real espírito do budismo perder-se-á se nos limitarmos apenas ao estudodas doutrinas e negligenciarmos a prática religiosa. Para um praticantegenuíno do budismo, discussões intelectuais sobre o budismo sem levarem conta a prática é apenas uma forma frívola de debate e deveria serevitado. Se tratarmos o budismo meramente como uma filosofia, nuncaexperimentaremos sua essência. Porque no budismo, compreensão eprática são igualmente enfatizadas. Na escola Ch'an, o que é importante éa experiência da prática real, e não a crença na linguagem escrita oufalada.

Na escola Ch'an, o cultivo e a realização do Caminho são esforçospessoais. Quanto mais extenso for o cultivo, mais perto estaremos dodespertar. Se insistirmos apenas na teoria ou simplesmente decorarmos oque foi ouvido, não conseguiremos nenhum resultado. É como levar umcavalo sedento para beber água; se ele se recusar a beber, eventualmentemorrerá de sede. De igual modo, todos os ensinamentos nos sutrasbudistas servem como uma bússola para guiar-nos em direção à verdade.

Depois de compreendê-los precisamos praticá-los de acordo com o queaprendemos para provar do doce orvalho do Dharma. Portanto o ditadoseguinte lembra-nos que praticar é "como beber água- apenas você saberápor si mesmo se ela é fria ou quente." Se quisermos verdadeiramentecompreender o budismo e o Ch'an, compete-nos praticar e alcançar arealização. Ninguém pode nos dizer o que o budismo e o Ch'an realmentesão.

Como os mestres Ch'an praticam e alcançam a realização? Eles atingem arealização vivendo na comunidade da Sangha e praticando a cadamomento de suas vidas cotidianas. Os virtuosos do passado sempre

diziam: "Apanhar lenha e carregar água tudo é Ch'an. Em nossa vida

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diária, podemos praticar enquanto colocamos nossas roupas, fazemosnossas refeições, acordamos, dormindo e mesmo indo ao banheiro."

O começo do Sutra do Diamante descreve como Buda levava uma vida desabedoria enquanto colocava seu manto, carregava sua tigela, e saía parapedir esmolas. Assim como todos nós, as pessoas iluminadas têm quecolocar roupas e comer; no entanto, elas fazem isso de modocompletamente diferente do resto de nós. Assim dizem que o budismo nãoé para ser encontrado fora da vida do mundo.

Nós sempre acalentamos a concepção errada de que temos que nosentranhar nas montanhas ou florestas para praticar e alcançar arealização. Realmente, não precisamos nos isolar para praticar. Sepudermos extinguir o fogo do ódio em nossos corações e mentes, então

todo ambiente no qual nos encontrarmos será um lugar fresco econfortável. Podemos até praticar no meio do mercado mais barulhento.

Se tivermos um entendimento completo dos ensinamentos do budismo ese praticarmos de acordo com eles, seremos capazes de fazer duas vezesmais progressos com metade do esforço. Por exemplo, o ensino básico dobudismo é a Gênesis Condicionada, que significa que todo fenômenoexistente neste universo acontece devido à reunião de condições e causasapropriadas e cessarão de existir quando as causas e condiçõesnecessárias não estiverem mais presentes. Não há tal coisa como umcriador do universo para moldar os eventos de nossas vidas; é a nós que

compete fazer os requeridos esforços.

Do ensinamento da Gênesis Condicionada, podemos inferir que todos osseres são iguais e têm a Natureza de Buda. Todos os seres têm o potencialde se tornarem Buda. O processo que leva à purificação deste potencial édependente da determinação e prática do indivíduo. Nossas própriasações determinam nosso futuro. Assim, o correto entendimento e aprática diligente do ensinamento budista ajudar-nos-ão a desenvolver umaperspectiva progressista e positiva.

Do ensinamento da Gênesis Condicionada, podemos também inferir queeste universo é uma harmoniosa unidade. Todos os fenômenos e todos osseres são interdependentes. Com este entendimento, podemos facilmentever como a centralização é contraditória à harmonia e porque a distinçãoentre eu versus outros deveria ser abolida. A fim de viver em harmoniacom os outros, deveríamos direcionar nossos cuidados e ajudar a eles enão ficar centrado em nós mesmos.

Pureza e Impureza

A própria natureza não faz nenhuma distinção entre pureza e impureza,

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ou beleza e feiúra. São nossas preferências e aversões subjetivas quefazem a distinção.

É dito no Sutra Vimalakirti: "Quando nossa mente for pura, a terra serápura." As mentes comuns, contudo, são nubladas pelas "cinco poeiras" (osobjetos que são percebidos pelos cinco sentidos) e enganadas pelaaparência exterior de todos os fenômenos, evitando que a natureza detodos os dharmas seja vista. As mentes dos mestres Ch'an realizados sãopuras e desobstruídas. Suas mentes são a Mente de Buda e elas podem vera natureza real de todas as coisas. Para eles não há diferença entre bem e

mal, beleza e feiúra, errado ou certo,enquanto que um ser comum vê o mundocorrupto e impuro. Os mestres Ch'an vêm omundo como a terra pura de Buda.

O estado Ch'an da mente não é alguma coisaque se pode fingir ou argumentar. Uma vez omestre Ch'an, Chao Chou fez uma aposta comum discípulo seu, Wen Yen. Quem pudessecomparar-se com a coisa mais baixa einsignificante seria o vencedor.

O mestre Chao Chou disse: "Eu sou um burro."

Wen Yen disse: "Eu sou o traseiro do burro."

Chao Chou disse: "Eu sou o excremento do burro."

Wen Yen disse: "Eu sou a larva dentro do excremento."

O mestre Chao Chou ficou aturdido e não pôde continuar, mas perguntou:"O que você está fazendo no excremento?"

Wen Yen respondeu: "Estou me refrescando do calor do verão!"

Como as mentes dos mestres Ch'an são puras, eles se sentem confortáveisaté mesmo nos lugares considerados os mais imundos. Para eles, todos oslugares são a terra pura; portanto, sentem-se livres onde quer que vão.

Um dia, o Mestre Ch'an Yi Hsiu saiu com seu discípulo. Os dois chegaram àpraia de um rio onde uma mulher estava hesitando atravessar a correnteveloz da água. Por compaixão, o Mestre Yi Hsiu carregou a mulher atravésdo rio em suas costas. Tendo feito isso, mais tarde esqueceu-se do fato.Seu discípulo, contudo, estava muito incomodado pelo fato do mestre tercarregado uma mulher em suas costas. Um dia, o discípulo disse ao MestreYi Hsiu: "Mestre, uma coisa está me incomodando muito. O senhor pode

me ajudar a resolver este problema?"

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O Mestre Ch'an respondeu: "Oh! O que é?"

O discípulo disse: "O senhor sempre nos ensinou aguardar distância de mulheres. Mas há váriosmeses atrás, o senhor carregou uma mulheratravés do rio. Isto não é contraditório a seusensinamentos?"

Ao ouvir isso, o Mestre Ch'an Yi Hsiu exclamou:"Ah! Eu apenas carreguei aquela mulher de um lado do rio para o outro eela ficou lá, mas você, coitado, tem-na carregado por aí em suas costaspor vários meses!"

Por esta história, podemos ver que o estado de mente dos mestres Ch'an é

aberto e indiscriminado. Os mestres Ch'an não discriminam entre o puro eo impuro, o macho e a fêmea. Eles compreendem que a mente, o Buda, etodos os seres são iguais.

Prática do Ch'an

Hoje conversei com vocês durante um longo tempo. Fico imaginando sevocês foram capazes de provar um pouco do maravilhoso sabor do Ch'an.Contudo, o Ch'an não é alguma coisa que se possa experimentar atravésde meras palavras; é necessário ser praticado. Gostaria de dar algumassugestões de como praticar o Ch'an.

Investigar o Ch'an através da dúvida — Em outras religiões, não há lugarpara a dúvida; temos que acreditar incondicionalmente. Mas o Ch'anencoraja-nos a começar pela dúvida. Uma pequena dúvida levará a umapequena realização. Sem a dúvida, não haverá realização. Procure a realização através da contemplação — Uma vez a dúvidadespertada, precisamos contemplá-la a fim de alcançar a realização.Kung-an e hua-tou como "Qual era nossa face original antes de termos

sido gerados pelos nossos pais?" "Os cães têm a Natureza de Buda?", sãoplanejadas para levantar dúvida pelo praticante Ch'an. Contemplaçãodiligente do Kung-an e Hua-Tou levarão eventualmente à realização.

Estudo do Ch'an pelo questionamento — Quando contemplando hua-toua coisa mais importante é continuar se questionando até a realização seralcançada. É como tentar apanhar um ladrão; temos que continuarperseguindo sem desistir. Por exemplo, quando contemplando "Quem estárecitando o nome do Buda" podemos perguntar, "É a mente que estárecitando?" "Quem é a mente?" Se a mente sou eu, então é a boca queestá recitando o nome do Buda, não eu?" "Se a boca sou eu, então é o

corpo que faz prostrações ao Buda, não eu?" "Se o corpo sou eu, então são

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os olhos que prestam homenagem à imagem deBuda, não eu?" Se prosseguirmos a inquirirdesse modo, a realização será alcançada.

Realize o Ch'an através da experiênciapessoal — Para praticar o Ch'an, temos quecomeçar duvidando, contemplando,questionando; mas o estágio final e maisimportante é a experiência pessoal.

O Ch'an não é algo que é expresso em palavras não contempladas pornossos corações e mentes; de fato, temos que abandonar tudo isso paraexperimentar o Ch'an.

Realização é o estado da mente que não pode ser descrito em palavras. OCh'an pode apenas ser experimentado por aqueles que oalcançaram.

Você já ouviu um riacho murmurante? Isto é o som do Ch'an Você já olhoupara as folhas verdes de um salgueiro? É a cor do Ch'an. Você já viu ocoração do lótus florescer? É a mente do Ch'an.

Através da conversa de hoje, espero que vocês encontrem a mente doCh'an.

Obrigado.

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