a essência da constituição no pensamento de lassale e hesse

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  • 8/14/2019 A essncia da constituio no pensamento de Lassale e Hesse

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    Braslia a. 35 n. 139 jul./set. 1998 71

    1 . In t r oduoNa introduo de sua obra ber die

    Verfassung, traduzida para a edio brasileiracomo A Essncia da Constituio, FerdinandLassalle afirma o carter cientfico da suapalestra1, exortando o pblico ouvinte a sedespir de quaisquer idias ou conhecimentosprvios a respeito do tema, como se deletomasse conhecimento pela primeira vez, paraque melhor acompanhasse e compreendesse odesenvolvimento do seu pensamento.

    Tal posio se justifica pelo carter daconferncia proferida, que, como o prprio textosugere, talvez tivesse como objetivo consci-entizar o proletariado ouvinte. Aspectosbiogrficos, traados por Aurlio Wander

    Bastos no prefcio da obra, fornecem-nos umperfil de Ferdinand Lassalle, que no teria sepreocupado em dar uma tonalidade jurdica aoseu discurso, nem tampouco em fornecersubsdios lgicos para a formulao de uma

    A essncia da Constituio nopensamento de Lassalle e de KonradHesse

    I AC YR D E A GU I L A R V I E IRA

    Iacyr de Aguilar Vieira Professora Assistenteno Departamento de Direito da Universidade Federalde Viosa-MG. Mestre em Direito pela UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.

    SUMRIO

    1. Introduo. 2. A Constituio no pensamento

    de Ferdinand Lassale. 3. A Constituio no pensa-mento de Konrad Hesse. 4. Concluso.

    1 Segundo Aurlio Wander Bastos (em NotaExplicativa edio brasileira de ber die Verfassung,traduzida como A Essncia da Constituio, Riode Janeiro : Liber Juris, 1985. p. ix), trata-se de umaconferncia proferida em 1863, para intelectuais eoperrios da antiga Prssia. Segundo Konrad Hesse

    (A fora normativa da Constituio.Traduo deGilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre : S.A. Fabris,1991. p. 9. Traduo de: Die normative Kraft derVerfassung), trata-se de conferncia sobre a essnciada Constituio, proferida em 16 de Abril de 1862,numa associao liberal-progressista de Berlim.

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    teoria da Constituio, mas, sim, em cons-cientizar o ouvinte, numa preocupao eminen-temente poltica.

    O texto analisado trata de questes rele-vantes tais como: poder constituinte, processode formao das leis, reforma constitucional,

    supremacia da Constituio, distino entreConstituio formal e Constituio material etc.,sem conferir-lhes tratamento jurdico.

    Coube-lhe, no entanto, o mrito de haverlanado as bases de uma anlise da Constituiono sentido material e sociolgico, ao afirmar anecessidade de distinguir entre Constituiesreais e Constituies escritas. Considerando quea verdadeira Constituio de um pas residesempre e unicamente nosfatores reais e efetivosde poder que dominam nessa sociedade,

    observa que, quando a Constituio escrita nocorresponder a tais fatores, est condenada aser por eles afastada.

    Submetendo-se a tais condies, ou reformada para ser posta em sintonia com osfatores materiais de poder da sociedadeorganizada, ou sucumbe perante esta. Naconcepo de Lassalle, os problemas consti-tucionais no so primariamente problemas dedireito, mas de poder.

    A anlise do texto A Essncia da Consti-tuio ser feita, basicamente, com o subsdioda obra A Fora Normativa da Constituio(traduo efetuada pelo Professor GilmarFerreira Mendes da aula inaugural proferida peloProfessor Konrad Hesse na Universidade deFreiburg RFA, em 1959, sob o ttulo: Dienormative Kraft der Verfassung).

    Konrad Hesse, ao contrapor-se s reflexesdesenvolvidas por Ferdinand Lassalle, no asrefuta de forma peremptria. Relativizando aconcepo de Lassalle, a completa; trazendo-apara uma nova realidade, reala o carternormativo da Constituio.

    Na concepo de Hesse, a realizao daConstituio importa na capacidade de operarna vida poltica, nas circunstncias da situaohistrica e, especialmente, na vontade deConstituio, que procede de trs fatores: daconscincia da necessidade e do valor especficode uma ordem objetiva e normativa que afaste o

    arbtrio; da convico de que esta ordemconstituda mais do que uma ordem legitimadapelos fatos e que necessita estar em constanteprocesso de legitimao, e da conscincia deque se trata de uma ordem que no logra sereficaz sem o concurso da vontade humana,

    principalmente das pessoas envolvidas noprocesso constitucional, isto , de todos ospartcipes da vida constitucional.

    Hesse relativiza as idias de Lassalle aocondicionar a autonomia da Constituio:

    A norma constitucional no tem

    existncia autnoma em face da realidade.A sua essncia reside na sua vigncia,ou seja, a situao por ela reguladapretende ser concretizada na realidade.Essa pretenso de eficcia (Geltungsans-pruch) no pode ser separada das con-dies histricas de sua realizao, queesto, de diferentes formas, numa relaode interdependncia, criando regrasprprias que no podem ser descon-sideradas. Devem ser contempladas aqui

    as condies naturais, tcnicas, econ-micas e sociais. A pretenso de eficciada norma jurdica somente ser realizadase levar em conta essas condies.

    E acrescenta um elemento axiolgico:H de ser, igualmente, contemplado

    o substrato espiritual que se consubs-tancia num determinado povo, isto , asconcepes sociais concretas e o baldra-me axiolgico que influenciam decisiva-mente a conformao, o entendimento ea autoridade das proposies norma-tivas2.

    Como se pode observar nas primeiras linhas,tanto a obra de Lassalle quanto a obra de Hessefornecem elementos para uma teorizao daConstituio; um esforo de elaborao e apro-fundamento de um conceito de Constituio.

    Bem observa Jorge Miranda3 que no causasurpresa o fato de a Constituio surgir comnatureza, significao, caractersticas e funes

    diversas consoante as diferentes correntesdoutrinais que atravessam os sculos XIX e XX.Entre essas correntes, destaca o autor

    portugus as concepes jusnaturalistas(manifestadas segundo as premissas do jusracionalismo nas Constituies liberais einfluenciadas depois por outras tendncias),as positivistas (Laband, Jellinek ou Carr deMalberg e Kelsen), as historicistas (Burke, DeMaistre, Gierke), as sociolgicas (aqui se incluiFerdinand Lassalle), as marxistas, as institu-

    cionalistas (Hauriou, Renard, Burdeau, SantiRomano, Mortati), a decisionista (Schmitt), as2 HESSE, op. cit., p. 14-15.3Manual de Direito Constitucional . 3. ed. Coim-

    bra : Coimbra Ed., 1991. v. 2, p. 53.

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    concepes decorrentes da filosofia dos valores(Maunz, Bachof) e as concepes estruturalistas(Spagna Musso, Jos Afonso da Silva)4.

    No obstante, a riqueza doutrinria que aanlise pormenorizada de cada uma dessasconcepes traria a este estudo no a faremos.

    Vale ressaltar que o quadro histrico em quesurge cada concepo traz seu prprio contornopoltico e econmico, que por sua vez determinao contorno social.

    O Estado, ao tempo em que escreve Lassalle,encontra-se dentro de uma moldura que nocomportaria o Estado ao tempo em que escreveHesse. As estruturas polticas, econmicas esociais oferecem ao constitucionalismo dosculo XIX conotaes diversas das oferecidas doutrina constitucional do sculo XX.

    Alm das experincias vivenciadas duranteas duas grandes guerras e o desenvolvimentocientfico e industrial verificado no sculo XX,podemos apontar ainda a instituio das formasde controle jurisdicional da constitucionalidadeque, tambm neste sculo, constituram fatoresde modificao sobre a ordem constitucional.

    Conforme realado por Jorge Miranda5, oconceito material de Constituio vai acusar nosculo XX as repercusses dos acontecimentosque o balizam, vai ser assumido ou utilizado por

    diferentes regimes e sistemas polticos e abrir-se, portanto, a uma pluralidade de contedos.

    A influncia histrica se revela de forma clarano posicionamento de Lassalle. Tal fator melhorobservado quando confrontamos seu pensa-mento com o de Konrad Hesse.

    Para melhor clareza na exposio, dividiremoseste trabalho em duas partes: A Constituiono pensamento de Ferdinand Lassalle e AConstituio no pensamento de Konrad Hesse.

    2 . A C onst i t u io no pensament o d eFerdinand Lassalle*

    Assim como a interpretao jurdica dependesempre da concepo que o intrprete tenha doDireito6, saber o que seja a essncia da Cons-tituio depender sempre da concepo quese tenha da Constituio.

    Lassalle inicia sua obra com uma indagao:qual a verdadeira essncia, qual o verdadeiroconceito de uma Constituio?

    No basta apresentar a matria concreta dedeterminada Constituio, tampouco bastabuscar, na legislao precedente, seus dispo-

    sitivos para alcanarmos um conceito deConstituio e, portanto, a sua essncia.Analisando a resposta de um jurisconsulto:

    Constituio um pacto juramentado entre orei e o povo, estabelecendo os princpiosalicerais da legislao e do governo dentro deum pas, ou, tratando-se de um pas repu-blicano: A Constituio a lei fundamentalproclamada pela nao, na qual baseia-se aorganizao do Direito Pblico do Pas, o autorentende que as respostas jurdicas distanciam-

    se muito e no explicam cabalmente a perguntafeita, limitando-se a descrever exteriormentecomo se formam as Constituies e o que fazem;fornecem critrios, notas explicativas paraconhecer juridicamente uma Constituio, pormno esclarecem onde est o conceito de todaConstituio, isto , onde pode ser encontradaa sua essncia7; tambm no servem para nosorientar se uma Constituio boa ou m, factvelou irrealizvel, duradoura ou insustentvel.

    Somente possvel verificar se a Carta

    Constitucional determinada e concreta queestamos examinando se acomoda, ou no, sexigncias substantivas aps sabermos qual a verdadeira essncia de uma Constituio, oque no possvel por meio das definiesjurdicas, pois podem ser aplicadas a todos ospapis assinados por uma nao ou por esta eseu rei, proclamando-as Constituies, seja qualfor o seu contedo, sem penetrarmos na suaessncia.

    4 Ibidem, p. 53-4.5

    Ibidem, p. 20.* As transcries entre aspas, sem refernciaexpressa, pertencem ao texto A Essncia daConstituio.

    6 AGUIAR JR. Ruy Rosado de. Interpretao.Ajuris, Porto Alegre, n. 45, 1989.

    7 Atualmente pode-se apontar como elementosessenciais da Constituio o seu carter temporal,isto , abertura ao tempo, historicidade; o seu carter

    processual, isto , como quadro normativo, insere-seno processo histrico que determina a sua muta-bilidade; consenso, pois, como projeto dirigido aofuturo, com base na aceitao, para que haja eficciaprogramtica necessrio que haja consenso sob penade perder a legitimidade; unidade, apesar de no serum cdigo, de no ser exaustiva, requer unidade, que alcanada por meio de princpios aglutinadores;abertura ao tempo, o que requer, pela sua incom-

    pletude, uma estrutura aberta cuja concretizao serefetuada pelo Judicirio; e ordem. Notas de aula,quando da apresentao Seminrio Aplicabilidadedas Normas Constitucionais pelo mestrandoHumberto Bergamnn vila. CPG-Mestrado emDireito- UFRGS. 1 semestre de 1995.

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    Lassalle busca encontrar o conceito deConstituio por meio do mtodo da compa-rao. Comparando Lei e Constituio, possvel estabelecer a diferena entre uma eoutra, a partir de uma afinidade entre ambas aessncia genrica comum: Uma Constituio,para reger, necessita de aprovao legislativa,isto , tem que ser tambm lei. Todavia, no uma lei como as outras, uma simples lei: maisdo que isso.

    A diferena fundamental est no fato de sera Constituio mais do que uma simples lei:

    - Diante do grande nmero de leis editadas atodo o tempo no h protesto. H consenso danecessidade de edio de novas leis, que sempremodificam o aparelhamento legal existente.

    - No entanto, h tambm consenso de que o

    mesmo no deve ocorrer quanto Constituio.H uma grande reserva quanto a modificaona Constituio. Muitos protestam.

    - Existem Constituies que dispem taxati-vamente que a Constituio no poder seralterada de modo algum.

    - Outras Constituies dispem que, paraserem reformadas, no o bastante o desejo deuma maioria simples; h necessidade de obten-o de 2/3 dos votos do Parlamento.

    - Existem ainda as que declaram no ser dacompetncia dos corpos legislativos suamodificao, nem mesmo unidos ao PoderExecutivo. Para reform-la, dever ser nomeadauma nova Assemblia Legislativa ad hoc, criada,expressa e exclusivamente, para esse fim, paraque tal Assemblia se manifeste acerca daoportunidade ou convenincia de ser a Consti-tuio modificada.

    Esses fatos demonstram que no espritounnime dos povos, uma Constituio deve ser

    qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme,de mais imvel que uma lei comum.A resposta Constituio no uma lei como

    as outras, uma lei fundamental da nao podefornecer a verdade que est sendo buscada. Maspara que tal acontea, faz-se necessrioresponder a outra pergunta: Como distinguiruma lei da Lei Fundamental? ou, Qual adiferena entre Lei Fundamental e outra leiqualquer?

    No processo de distino, destacam-se osseguintes pontos: a Constituio como leifundamental deve constituir o verdadeirofundamento das outras leis, devendo inform-las e engendr-las: a idia de fundamento traz,implicitamente, a noo de uma necessidade

    ativa, de uma fora eficaz e determinante, queatua sobre tudo que nela se baseia, fazendo-aassim e no de outro modo.

    Sendo a Constituio a lei fundamental deuma nao, ser qualquer coisa que logopoderemos definir e esclarecer, ou, como j

    vimos, uma fora ativa que faz, por uma exignciada necessidade, que todas as outras leis einstituies jurdicas vigentes no pas sejam oque realmente so.

    Assinalando a supremacia da Constituio,conclui:

    Promulgada, a partir desse instante,no se pode decretar, naquele pas,embora possam querer, outras leiscontrrias fundamental.

    pergunta: Ser que existe em algum

    pas alguma fora ativa que possa influir de talforma em todas as leis do mesmo, que as obriguea ser necessariamente, at certo ponto, o queso e como so, sem poderem ser de outromodo? responde:

    Os fatores reais do poder que atuamno seio de cada sociedade so essa foraativa e eficaz que informa todas as leis einstituies jurdicas vigentes, deter-minando que no possam ser, em subs-tncia, a no ser tal como elas so.

    Exemplifica com a hiptese de um incndioque destrusse todos os originais e todas ascpias impressas de todas as leis de um pas,gerando a necessidade de decretao de novasleis. Neste caso, pergunta ele, o legislador,completamente livre, poderia fazer leis decapricho ou de acordo com o seu prprio modode pensar?

    Para responder, comea por enumerar osfatores reais do poder: a monarquia, a aristo-

    cracia, a grande burguesia, os banqueiros, apequena burguesia e a classe operria.A monarquia Mesmo que opovo quisesse

    no reconhecer as prerrogativas que at entolhe tinham sido dispensadas ou no aceitasse amonarquia, no poderia impor a sua vontade,pois, contando com o apoio do Exrcito, omonarca estaria protegido conclui ele: umrei, a quem obedecem o Exrcito e os canhes... uma parte da Constituio.

    A aristocracia A influncia dos nobres,grandes proprietrios de terra, que, formandouma Cmara Alta, fiscalizam os acordos daCmara dos Deputados eleita pelo voto detodos os cidados , aprovando-os ou no, almde contar com o apoio do Exrcito e dos canhes,

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    sentida pelo rei e constitui tambm uma parteda Constituio.

    A grande burguesia A expanso industrialno aceitaria uma Constituio inspirada nomodelo medieval (do tipo gremial). A expansoindustrial requer ampla liberdade de fuso dos

    mais diferentes ramos do trabalho nas mos deum mesmo capitalista e necessita, ao mesmotempo, da produo em massa e da livreconcorrncia aqui no sentido de empregarquantos operrios necessitar, sem restries.

    A implantao de uma Constituio nosmoldes medievais, isto , do tipo gremial,provocaria uma crise no setor industrial e,conseqentemente, no social. O fechamento defbricas e o desemprego levariam os homenssem trabalho s ruas, subsidiados pela grande

    burguesia. Assim, a grande burguesia, tambm,um fragmento da Constituio.

    Os banqueiros O fato de o Governotambm sentir apertos financeiros e necessitarcontrair emprstimos em troca antecipada dettulos da Dvida Pblica faz com que osbanqueiros tambm se tornem parte da Consti-tuio. O Governo deles necessita, como tam-bm necessita da cotao que a Bolsa de Valoresd aos ttulos da Dvida Pblica.

    O Governo, limitado quanto implantaode medidas excepcionais que firam os interessesdos banqueiros e das Bolsas de Valores, conferea estes lugar especial como fator real de poder,isto , como parte da Constituio.

    A conscincia coletiva e a cultura geral daNao tambm so consideradas como part-culas, no pequenas, da Constituio.

    A pequena burguesia e a classe operria Na proteo dos interesses e na manuteno

    dos privilgios da nobreza, dos banqueiros, dosgrandes industriais e dos grandes capitalistas,o Governo poderia privar a pequena burguesiae a classe operria das suas liberdades polticas?

    Lassalle conclui que sim, mesmo que deforma transitria. Mas se o Governo pretendessesubtrair pequena burguesia e classe operriano somente suas liberdades polticas, mas sualiberdade pessoal, transformando-as em escra-vos, no alcanaria tal pretenso, pois a pequenaburguesia e a classe operria protestariam,formando um bloco invencvel. Constitui entoo povo uma parte integrante da Constituio.

    A monarquia, a aristocracia, a grandeburguesia, os banqueiros, a conscinciacoletiva, a cultura geral da Nao e tambm o

    povo (a pequena burguesia e a classe operria)constituem os fatores reais de poder.

    A tese fundamental do pensamento deLassalle pode ser assim resumida: a Constituiode um Pas , em essncia, a soma dos fatoresreais do poder que regem uma nao.

    Estabelece a relao que existe entre essesfatores reais de poder e a Constituio jurdica:Juntam-se esses fatores reais do

    poder, os escrevemos em uma folha depapel e eles adquirem expresso escrita.A partir desse momento, incorporados aum papel, no so simples fatores reaisde poder, mas sim verdadeiro direito,instituies jurdicas. Quem atentarcontra eles atenta contra a lei, e porconseguinte punido.

    Segundo Lassalle, ningum desconhece oprocesso que se segue para transformar essesescritos em fatores reais do poder, transfor-mando-os desta maneira em fatoresjurdicos.Tal fenmeno ocorre de forma diplomtica,no havendo uma declarao expressa de queos senhores capitalistas, o industrial, a nobrezae o povo so um fragmento da Constituio, ouque o banqueiro X outro pedao da mesma.

    Relata uma situao ocorrida na poca, que

    retrata como os fatores reais de poder, dissimu-ladamente, operam por meio da legalidade: oSistema Eleitoral das Trs Classes, que vigorariana Prsssia de 1848 a 1918.

    At 1848, vigia o sufrgio universal, quegarantia a todo cidado, fosse rico ou pobre, omesmo direito poltico, as mesmas atribuiespara intervir na administrao do Estado. Com apromulgao da Lei das Trs Classes (1848),usurparam-se, aos trabalhadores e pequenaburguesia, suas liberdades polticas, sem

    despoj-las, no entanto, de um modo imediato eradical, dos bens pessoais, constitudos pelodireito integridade fsica e propriedade.

    A Lei das Trs Classes dividia a Nao emtrs grupos eleitorais de acordo com os impostospor eles pagos e que eram calculados de acordocom as posses de cada eleitor, chegando aalcanar resultados como: o opulento teria omesmo poder poltico que dezessete cidadoscomuns, ou melhor, nos destinos polticos doPas; o capitalista teria uma influncia dezessetevezes maior que a de um simples cidado semrecursos.

    Outro exemplo apresentado por Lassalle oda formao de uma Cmara Senhorial, umSenado, constituda pelos representantes da

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    grande propriedade sobre o solo proprietriospor tradio e outros elementos secundrios,com atribuies de aprovar ou no os acordoscelebrados pela Cmara dos Deputados eleitapela Nao, que no teriam valor legal se fossemrejeitados por essa Cmara Senhorial, ou Senado.

    A vontade nacional, e de todas as classesque a compem, por mais unnime que seja, ficaminada pela prerrogativa atribuda a um grupode cidados que detm a propriedade do solo.

    Apenas o rei (e o Exrcito) pode superar opoder atribudo s trs classes de eleitores.Como chefe supremo das Foras Armadas, umavez que estas no so obrigadas a prestarjuramento Constituio, mas ao rei, possui esteum poder muito superior ao que goza a Naointeira, mesmo tendo esta um poder efetivo muito

    maior que do Exrcito. Isso porque o Exrcito seconstitui numa fora organizada que podereunir-se a qualquer hora do dia ou da noite eque funciona com disciplina, enquanto o povo,mesmo sendo em nmero superior, no seencontra organizado, alm de no possuircanhes.

    Lassalle, no entanto, no subestima a forado povo, que pode se levantar contra o poderorganizado, opondo-lhe sua formidvel supre-macia, embora desorganizada.

    O autor conclui a primeira parte de suaConferncia entendendo haver demonstrado arelao que guardam entre si as duas Consti-tuies de um pas: a Constituio real e efetiva,integralizada pelos fatores reais de poder queregem a sociedade, e a Constituio escrita, que denomina de folha de papel, numa aluso frase de Frederico Guilherme IV que teria dito:

    Julgo-me obrigado a fazer agora,solenemente, a declarao de que nem no

    presente nem para o futuro permitirei queentre Deus do cu e o meu pas seinterponha umafolha de papel escrita,como se fosse uma segunda Providncia.

    Observando que todos os pases possurame possuiro sempre uma Constituio real eefetiva, afirma ser esta uma necessidade que seimpe, pois no possvel imaginar uma Naoonde no existam os fatores reais de poder,quaisquer que sejam eles.

    Aponta como exemplo a Frana, em que opovo estava habituado a sofrer o peso de todosos impostos e prestaes que lhe quissessemimpor; ressalta a desnecessidade de que talcircunstncia conste de documento escrito, umavez que naquele pas vigorava a expresso

    simples e clara dos fatores reais de poder, noconstando, em nenhum documento escrito, quaisos direitos do povo e quais os direitos doGoverno. Tais tradies de fato assentavam-senosprecedentes que na Inglaterra continuavama ter grande importncia nas chamadas questesconstitucionais.

    Assinala queos fatos e precedentes, os pergaminhos,foros, estatutos e privilgios da IdadeMdia reunidos formavam a Constituiodo Pas e que todos eles eram a expresso,de um modo simples e sincero, dos fatoresreais do poder que regiam o Pas.

    Segundo Lassalle,todos os pases possuem ou possuramsempre, e em todos os momentos de sua

    histria, uma Constituio real e verda-deira. A diferena, nos tempos moder-nos e isto no deve ficar esquecido,pois tem muitssima importncia , noso as constituies reais e efetivas, massim as constituies escritas nas folhasde papel.

    Nos Estados Modernos, com o fenmenodo monoplio do Direito pelo Estado, quesurgem, de modo generalizado, as Constituiesescritas, cuja misso a de estabelecer

    documentalmente, numa folha de papel, todasas instituies e princpios do governo vigente.

    A aspirao de possuir uma Constituioescrita tem como origem o fato de ter-se operadouma transformao nos elementos reais do poderimperantes dentro do pas, num determinadomomento:

    se esses fatores do poder continuassemsendo os mesmos, no teria cabimentoque essa mesma sociedade desejasse uma

    Constituio para si. Acolheria tranqi-lamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os elementos dispersos numnico documento, numa nica CartaConstitucional.

    Como ocorrem essas transformaes queafetam os fatores reais do poder de umasociedade pode-se observar por meio da histria:

    O Estado pouco povoado da Idade Mdia,sob o domnio governamental de umprncipe e

    com uma nobreza que possua a maior parte dapropriedade territorial, necessitava de umaConstituio feudal. A nobreza detinha, almda posse das terras, o poder sobre os feuda-trios, os servos, os colonos, obrigando-os aformar suas hostes e a lutar com os seus

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    vizinhos. Os senhores feudais possuam, ainda,chefes de armas, soldados, escudeiros e criadosque, sob o seu poder, tambm serviam ao rei,que no possua outra fora efetiva que a dosprprios que compunham a nobreza. Oprncipeno poder criar, sem seu consentimento, novosimpostos e ocupar entre eles apenas a posio

    deprimus inter pares.A passagem do feudalismo ao capitalismo

    determina novas mudanas. Novos fatores reaisde poder surgem determinando novo modelode Constituio:

    a populao cresce, a indstria e ocomrcio progridem e seu progressofacilita os recursos necessrios parafomentar novas mudanas, transfor-mando as vilas em cidades. Nasce apequena burguesia e os grmios dascidades comeam a desenvolver-setambm, circulando o dinheiro e formandoos capitais e a riqueza particular.

    A populao urbana no mais depende danobreza; tem interesses opostos a esta que,pouco a pouco, perde as prerrogativas e ospoderes.

    O prncipe alcana maior poder efetivo,chegando a possuir um Exrcito permanente;retira da nobreza a prerrogativa de receber tribu-

    tos, obrigando-a ao pagamento de impostos.Com a transformao dosfatores reais dopoder, transforma-se tambm a Constituiovigente no pas. O absolutismo sucede aofeudalismo, dando razo a uma nova ordem.

    O prncipe, como soberano absoluto,no acredita na necessidade de se prpor escrito a nova Constituio; amonarquia uma instituio demasiadoprtica para proceder assim. Oprncipetem em suas mos o instrumento real e

    efetivo do poder, tem o exrcito perma-nente, que forma a Constituio efetivadesta sociedade, e ele e os que o rodeiamdo expresso a essa idia, dando ao pasa denominao de estado militar.

    O poder efetivo do prncipe reconhecidopela nobreza, que abandona os feudos e seconcentra na Corte, onde recebe uma penso econtribui, com sua presena, para prestigiar amonarquia.

    O prximo passo registrado pela histria etambm analisado por Lassalle o do fortale-cimento da burguesia, por meio do desenvol-vimento da indstria e do comrcio. Ao prncipetorna-se impossvel acompanhar o desenvol-vimento da burguesia, que comea a compre-

    ender que tambm uma potncia polticaindependente.

    Paralelamente ao aumento da populao,aumenta-se e divide-se a riqueza social empropores incalculveis, progredindo tambmas indstrias, as cincias, a cultura geral e aconscincia coletiva; outro dos fragmentos daConstituio.

    Surge o protesto da burguesia. Fato ocorridona Prssia em 18 de maro de 1848.

    Lassalle termina a primeira parte da suaexposio entendendo haver demonstrado queos fatos histricos analisados tiveram o mesmoefeito de um incndio(correspondem aoincndio hipottico apresentado no incio da suaobra) ou de um furaco que tivesse varrido avelha legislao nacional.

    Ao tratar sobre a Constituio escrita e aConstituio real, Lassalle inicia afirmando aprevalncia do direito privado em caso derevoluo e afirmando o desmoronamento dasleis do direito pblico quando num pasarrebenta e triunfa uma Revoluo.

    Foi o caso da Revoluo de 1848, ocorridana Prssia, que demonstrou a necessidade dese criar uma nova Constituio escrita, tendo orei se encarregado de convocar, em Berlim, a

    Assemblia Nacional para estudar as bases deuma Nova Constituio.

    Em 1848 ficou demonstrado que o Poder daNao muito superior ao do Exrcito, masaponta a grande diferena que existe entre um eoutro: a questo da organizao de que dotadoo Exrcito e de que no dispe o povo, que totalmente desorganizado, capaz de vencerapenas em momentos de grande comoo.

    Um erro da Revoluo de 1848 apontado porLassalle foi o fato de a Nao no ter absorvido

    o Exrcito, deixando-o continuar a servio dorei contra os interesses da Nao.Atribui praticidade dos reis e retrica do

    povo o fato de terem os reis melhores servidoresdo que os tem o povo.

    Aps essas observaes, Lassalle apresentatrs conseqncias da Revoluo de 1848 naPrssia:

    a) A preocupao em evitar que fossemafastados os fatores reais de poder dentro do

    pas impediu que a Assemblia Nacional orga-nizasse a sua Constituio por escrito.

    b) Com a dissoluo da Assemblia NacionalConstituinte, coube ao rei proclamar a Consti-tuio; decretou-a voluntariamente e ainda que

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    de acordo, em muitos pontos, com as idias daAssemblia Nacional no correspondia suapretenso, pois no se justificava pelos fatoresreais de poder de que o rei continuava a dispor.

    A disparidade entre a Constituio real,efetiva, e a Constituio escrita se fez notar eacarretou vrias modificaes. A constituiodatada de 5 de dezembro de 1848, em que o reiespontaneamente concordava com uma srie deconcesses, foi alterada pela Lei Eleitoral de1848, que estabeleceu os trs grupos deeleitores.

    A cmara criada raiz desta Lei Eleitoral foio instrumento de reformas Constituio,aproximando-a do poder real, efetivo.

    c) A terceira conseqncia apontada porLassalle:

    Quando uma Constituio corres-ponde aos fatores reais de poder queregem um pas, no h necessidade demodific-la e o respeito a que a ela se tem natural, no lema de um ou de outropartido poltico, porque ela j respeitadae invulnervel. Se, ao contrrio, nocorresponder, ser modificada.

    O pensamento de Lassalle pode ser assimresumido:

    os problemas constitucionais no soproblemas de direito, mas de poder; a verdadeira constituio de um pas

    somente tem por base os valores reais e efetivosdo poder que naquele pas vigem;

    as constituies escritas no tm valor nemso durveis a no ser que exprimam fielmenteos valores que imperam na realidade social. Umaconstituio escrita pode ser boa e duradouraquando corresponder Constituio real e tiversuas razes nos fatores do poder que regem opas. Caso contrrio, irrompe inevitavelmente umconflito impossvel de ser evitado e no qual aConstituio escrita, a folha de papel, sucum-bir, necessariamente, perante a Constituioreal, a das verdadeiras foras vitais do Pas.

    3 . A C onst i tu io no p ensament ode Kon r ad H esse*

    Konrad Hesse apresenta uma concepo

    que pode ser considerada como uma sntese dasdiversas concepes modernas de Constituio:

    Constituio como ordem jurdica fundamental,material e aberta de uma comunidade8.

    Como afirmado na Introduo, Hessecompleta o pensamento de Lassalle. E o fazfortalecido pela expectativa de consolidao doDireito Constitucional moderno.

    Aps considerar como tese fundamental daobra de Lassalle a afirmativa de que questesconstitucionais no so questes jurdicas, massim questes polticas, Hesse, citando GeorgJellinek, que afirmara: o desenvolvimento dasConstituies demonstra que regras jurdicasno se mostram aptas a controlar, efetivamente,a diviso de poderes polticos, cujas forasmovem-se consoante suas prprias leis, queatuam independentemente das formas jur-dicas, observa que esse pensamento nopertence ao passado, que a coincidncia derealidade e norma constitui apenas um limitehipottico extremo e sustenta a necessidadede uma fico uma fora normativa daConstituio como fora determinante paraassegurar a eficcia da Constituio jurdica,uma vez que no mbito da Constituio inexiste,ao contrrio do que ocorre em outras esferas daordem jurdica, uma garantia externa paraexecuo de seus preceitos9.

    concluso de Lassalle de que a verdadeiraConstituio de um pas somente tem por baseos valores reais e efetivos do poder que naquelepas vigem contrape-se Hesse:

    A norma constitucional no temexistncia autnoma em face da realidade.A sua essncia reside na sua vigncia,ou seja, a situao por ela regulada pre-tende ser concretizada na realidade.(...)A pretenso de eficcia de uma normaconstitucional no se confunde com as

    8 MIRANDA, op. cit., p. 59.9A Fora normativa da Constituio, p. 10-12.

    Interessante recordar aqui as palavras do Dr. Plniode Arruda Sampaio na 6 Reunio Ordinria daSubcomisso do Poder Judicirio e do MinistrioPblico, Comisso de Organizao dos Poderes eSistema de Governo da Assemblia NacionalConstituinte, em 27.4.1987: Uma pessoa chegou ame sugerir que houvesse uma lei assim: Artigo tal:Todos os artigos desta Constituio tm que sercumpridos. (Fonte: Dissertao de Mestrado Itiber de Oliveira Rodrigues. CPG-Mestrado emDireito-UFRGS). No obstante a ausncia de talnorma, as Constituies possuem mecanismos dedefesa, principalmente por meio do controle daconstitucionalidade das leis, principalmente aps acriao de Tribunais Constitucionais que atuam comofator de fortalecimento da fora normativa dasconstituies.

    * As transcries entre aspas que no soreferenciadas expressamente pertencem ao textoAFora Normativa da Constituio.

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    condies de sua realizao; a pretensode eficcia associa-se a essas condiescomo elemento autnomo. A Constitui-o no configura, portanto, apenasexpresso de um ser, mas tambm de umdever ser; ela significa mais do que osimples reflexo das condies fticas desua vigncia, particularmente as forassociais e polticas. Graas pretenso deeficcia, a Constituio procura imprimirordem e conformao realidade polticae social. Determinada pela realidadesocial e, ao mesmo tempo, determinanteem relao a ela, no se pode definir comofundamental nem a pura normatividade,nem a simples eficcia das condiesscio-polticas e econmicas. A foracondicionante da realidade e a norma-tividade da Constituio podem serdiferenadas; elas no podem, todavia,ser definitivamente separadas ou confun-didas.

    A questo da Constituio escrita vistapor Hesse da seguinte forma:

    A Constituio jurdica no significasimples pedao de papel, tal comocaracterizada por Lassalle. Ela no seafigura impotente para dominar, efetiva-mente, a distribuio de poder, tal comoensinado por Georg Jellinek e como,hodiernamente, divulgado por um natura-lismo e sociologismo que se pretendectico. A Constituio no est desvin-culada da realidade histrica concreta doseu tempo. Todavia, ela no est condi-cionada, simplesmente, por essa reali-dade. Em caso de eventual conflito, aConstituio no deve ser considerada,necessariamente, a parte mais fraca. Aocontrrio, existem pressupostos reali-zveis (realizierbare Voraussetzungen)que, mesmo em caso de confronto,permitem assegurar a fora normativa daConstituio. Somente quando essespressupostos no puderem ser satis-feitos, dar-se- a converso dos proble-mas constitucionais, enquanto questesjurdicas (Rechtsfragen), em questes depoder (Machtfragen). Nesse caso, a

    Constituio jurdica sucumbir em faceda Constituio real. Essa constataono justifica que se negue o significadoda Constituio jurdica: o Direito Consti-tucional no se encontra em contradiocom a natureza da Constituio.

    H necessidade da vontade de Constituio,isto , h necessidade da vontade de cumpri-lae de conformar a realidade com as normas nelaprescritas, pois alm do serela prescreve umdever ser.

    A vontade de Constituio origina-se de trsvertentes diversas10:

    Baseia-se na compreenso danecessidade e do valor de uma ordemnormativa inquebrantvel, que proteja oEstado contra o arbtrio desmedido euniforme.

    Reside, igualmente, na compreensode que essa ordem constituda mais doque uma ordem legitimada pelos fatos (eque, por isso, necessita de estar em cons-tante processo de legitimao).

    Assenta-se tambm na cons-cincia de que, ao contrrio do que sed com uma lei do pensamento, essaordem no logra ser eficaz sem oconcurso da vontade humana. Essaordem adquire e mantm sua vignciaatravs de atos de vontade. Essavontade tem conseqncia porque avida do Estado, tal como a vida humana,no est abandonada ao surda de

    foras aparentemente inelutveis. Aocontrrio, todos ns estamos perma-nentemente convocados a dar confor-mao vida do Estado, assumindo eresolvendo as tarefas por ele coloca-das. No perceber esse aspecto da vidado Estado representaria um perigosoempobrecimento de nosso pensamen-to. No abarcaramos a totalidade dessefenmeno e sua integral e singular natu-reza. Essa natureza apresenta-se noapenas como problema decorrentedessas circunstncias inelutveis, mastambm como problema de determinadoordenamento, isto , como um problemanormativo.

    Hesse enumera alguns pressupostos, quepermitem Constituio desenvolver de formatima a sua fora normativa:

    Quanto mais o contedo de umaConstituio lograr corresponder

    natureza singular do presente, tanto maisseguro h de ser o desenvolvimento desua fora normativa.

    10 HESSE, op. cit., p. 19-20.

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    Enumera como requisito essencial da foranormativa da Constituio que ela

    leve em conta no s os elementossociais, polticos e econmicos domi-nantes, mas tambm que, principalmente,incorpore o estado espiritual de seu

    tempo, o que ir assegurar Constituioo apoio e a defesa da conscincia geral.Enquanto Lassalle entendia a sujeio da

    Constituio aos fatores reais de poder, Hesseassevera que a Constituio, para ser aceita, parater eficcia, para ser legtima, deve incorporartais elementos, no devendo assentar-se numaestrutura unilateral, se quiser preservar a suafora normativa num mundo em processo depermanente mudana poltico-social, condi-cionando, no entanto, a relao entre Consti-

    tuio e realidade ao efetivo cumprimento dasdisposies constitucionais:

    Um timo desenvolvimento da foranormativa da Constituio depende noapenas do seu contedo, mas tambm desuaprxis. De todos os partcipes da vidaconstitucional exige-se partilhar aquelaconcepo anteriormente por mim deno-minada vontade de Constituio (Wille zur Verfassung). Ela fundamental,

    considerada global ou singularmente.Ressalta o valor do respeito Constituio,

    o perigo da reforma constitucional e o signi-ficado decisivo da interpretao constitucional.

    Quanto preservao da Constituio,Hesse refora o seu pensamento citando WalterBurckhardt (1931), para quem a vontade daConstituio

    deve ser honestamente preservada,

    mesmo que, para isso, tenhamos derenunciar a alguns benefcios, ou at aalgumas vantagens justas. Quem semostra disposto a sacrificar um interesseem favor da preservao de um princpioconstitucional fortalece o respeito Constituio e garante um bem da vidaindispensvel essncia do Estado,mormente ao Estado democrtico.

    Quanto reforma constitucional, afirmaHesse:

    Cada reforma constitucional expres-sa a idia de que, efetiva ou aparente-mente, atribui-se maior valor s exignciasde ndole ftica do que ordem normativavigente.

    Quanto interpretao, tem significadodecisivo para a consolidao e preservao dafora normativa da Constituio. SegundoHesse, o princpio da tima concretizao danorma, ao qual est submetida a interpretaoconstitucional,

    no pode ser aplicado com base nosmeios fornecidos pela subsuno lgicae pela construo conceitual. Se o direitoe, sobretudo, a Constituio tm a suaeficcia condicionada pelos fatos concre-tos da vida, no se afigura possvel que ainterpretao faa deles tbula rasa.

    Da obra de Konrad Hesse pode-se concluir,ainda, que:

    A Constituio jurdica est condicionada

    pela realidade histrica e os limites fora norma-tiva da Constituio podem ser constatadosquando a ordenao constitucional no mais sebasear na natureza singular do presente, nosendo possvel Constituio suprimir esseslimites.

    conferido um papel de destaque inter-pretao construtiva, como condio funda-mental da fora normativa da Constituio e,por conseguinte, de sua estabilidade. Caso elavenha a faltar, tornar-se- inevitvel, cedo outarde, a ruptura da situao jurdica vigente.

    Atribui-se ao Direito Constitucional a tarefade concretizao da fora normativa da Consti-tuio, sobretudo porque esta no est assegu-rada de plano, configurando misso que,somente em determinadas condies poder serrealizada de forma excelente. Conforme Hessea Cincia do Direito Constitucional cumpre seumister quando envida esforos para evitar queas questes constitucionais se convertam em

    questes de poder.

    4 . C onclusoAps o confronto das duas obras, destaca-

    se que o Direito Constitucional busca, neste finalde sculo, firmar-se como cincia, delineando oseu objeto, a se preocupar, no apenas com aorganizao do Estado e a distribuio dospoderes e das competncias. Ela busca contri-buir de forma mais direta e eficaz para o desen-volvimento do sistema jurdico, servindo-lhe defundamento material, por meio da concretizaodos princpios constitucionais, tanto pela vialegislativa quanto via jurisprudencial.

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    Pontes de Miranda, no prlogo aos Comen-trios Constituio de 194611, traa um perfildas Constituies do nosso sculo:

    No sculo XX, principalmente apsa Grande Guerra, no possvel falar-sede Constituio, sem se lhe procurarem

    as causas e a funo sociolgica. Consti-tuio s poltica, sem preocupaes doproblema social, que avulta cada dia,agravado por outro, que o das relaesentre os Estados de tda a Terra, teme-ridade, sbre ser anacronismo. Ao mesmotempo que se observa a tendncia fixao dosfins da poltica, obrigando nitidez dos programas partidrios, ou prpria instalao do unipartidarismo,outra tendncia igualmente inevitvel

    exige que o Estado lance as vistas porsbre todos os setores da vida social,quer se trate das fras culturais ereligiosas, quer de qualquer outra ativi-dade do homem12.

    Uma concepo mais recente, que tambmmerece ser transcrita, -nos fornecida por MauroCappelletti:

    As Constituies modernas no selimitam, na verdade, a dizer estaticamente

    o que o Direito, a dar uma ordem parauma situao social consolidada; mas,diversamente das leis usuais, estabe-lecem e impem, sobretudo, diretrizes eprogramas dinmicos de ao futura.Elas contm a indicao daqueles que soos supremos valores, as rationes, osGrnde da atividade futura do Estado eda sociedade: consistem, em sntese, emmuitos casos, como, incisivamente,

    costumava dizer Piero Calamandrei,sobretudo em uma polmica contra opassado e em um programa de reformasem direo ao futuro13.

    A Constituio que se volta em direo aofuturo exige uma redao muito bem elaborada deve conter disposies fundamentais para o

    estabelecimento da sociedade, de forma que aconstante adaptao da norma constitucional realidade seja feita sem ferir os princpios quelhe deram conformao. O exemplo a que se poderecorrer se encontra na Constituio Federalnorte-americana de 1787, cuja supremacia temsido afirmada, no decorrer de mais de doissculos, perodo em que foi objeto de apenasvinte e uma emendas, a despeito do desen-volvimento verificado no Pas a que serve deestrutura.

    Os mecanismos de controle e a criao deTribunais Constitucionais se revelam comopossveis de efetuar a integrao entre a normaconstitucional e a realidade, expressa tanto emfatos submetidos apreciao do Judicirio,quanto mediante o exame das normas infracons-titucionais. A interpretao em conformidadecom a Constituio possibilita reafirmar, emcada ato praticado ou julgado, a supremacia daConstituio.

    Bib l iogra f ia

    CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial deconstitucionalidade das leis no Direito Compa-rado.Traduo de Aroldo Plnio Gonalves. 2.ed. Porto Alegre : S.A. Fabris, 1992.

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    SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Consti-tucional.10. ed. So Paulo : Malheiros, 1995.

    11 3. ed. Rio de Janeiro : Borsoi, 1960. v. 1, p. 15.12 Nessa mesma obra, pgina 175, Pontes de

    Miranda observa que, durante o sculo XIX e ocomeo do sculo XX, o direito constitucionalobedecia a certos princpios que constituam o eixo,por bem dizer, da civilizao europia e americana(...)e que por cima e base de tal direito, no qual eraimplcito o individualismo jurdico, achava-se todoum sistema de solues facilitadoras do triunfoeconmico e social dos elementospossuidores daspopulaes, ou dos que a estrutura poltica, a educaoe o prprio liberalismo manchesteriano deixavam

    subir classe possuidora. Tais observaes bemdemonstram o esprito individualista do sculo XIXe incio do sculo XX, que se revelava pelasConstituies e que, aps as duas Grandes Guerras,relativiza-se, voltando-se para uma viso mais socialdo Direito.

    13 CAPPELLETTI, Mauro. O Controle judicialde constitucionalidade das leis no Direito Comparado.Traduo de Aroldo Plnio Gonalves. 2. ed. PortoAlegre : S.A. Fabris, 1992. p. 89.