a esfinge sem segredo_oscar wilde

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  • 7/27/2019 A Esfinge Sem Segredo_Oscar Wilde

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    A ESFINGE SEM SEGREDO

    por Oscar Wilde

    UMA GUA FORTE

    Achava-me numa tarde sentado no terrao do Caf Paz, contemplando o fausto e apobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto bebericava o meu vermute, sobre oestranho panorama de orgulho e misria que desfilava diante de mim, quando ouvialgum pronunciar o meu nome. Voltei-me e dei com os olhos em Lord Murchison. Nonos tnhamos tornado a ver desde que estivramos juntos no colgio, havia isto uns dezanos, de modo que me encheu de satisfao aquele encontro e apertamos as mos

    cordialmente. Tnhamos sido grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Erato bonito, to comunicativo, to cavalheiresco. Costumvamos dizer dele que seria omelhor dos sujeitos, se no falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, oadmirvamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito mudado.Parecia inquieto, perturbado e em dvida a respeito de alguma coisa. Senti que no podiaser o cepticismo moderno, pois Murchison era um dos conservadores mais inabalveis eacreditava no Pentateuco com a mesma firmeza com que acreditava na Cmara dos Pares.De modo que conclui que havia alguma mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda no sehavia casado.

    - No compreendo as mulheres bastante bem - respondeu.

    - Meu caro Geraldo - disse -, as mulheres esto feitas para serem amadas e no paraserem compreendidas.

    - No posso amar sem ter confiana absoluta - replicou.

    - Creio que h um mistrio na sua vida, Geraldo - exclamei. - Conte-me isso.

    - Vamos dar um passeio de carro - respondeu. - H gente demais aqui. Esse carroamarelo, no. Um de qualquer outra cor... aquele ali, verde escuro serve.

    Dentro de poucos minutos estvamos a descer a trote o bulevar na direo daMadalena.

    - Para onde vamos? - perguntei.

    - Oh! para onde voc quiser! - respondeu. - Para o restaurante do Bosque.Jantaremos ali e contar-me- tudo a respeito da sua vida.

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    - Primeiro quero que voc me conte a sua. Revele-me o seu mistrio.

    Tirou do bolso uma pequena carteira de marroquim com fecho de prata e entregou-me. Abri-a. Dentro havia a fotografia de uma mulher. Era alta e esbelta e de aspectosingular com grandes olhos misteriosos e cabelos soltos. Parecia uma clairvoyante (1) e

    achava-se envolta em ricas peles.

    - Qual a sua opinio a respeito desse rosto - perguntou ele. - Inspira confiana?

    Examinei o retrato atentamente. Parecia-me o rosto de algum que guarda umsegredo, mas o que no podia dizer era se o segredo fosse bom ou mau. Aquela belezaparecia feita de muitos mistrios reunidos, uma beleza, de fato, mais psicolgica do queplstica, e o ligeiro sorriso que lhe flutuava nos lbios era demasiado subtil para terrealmente encanto.

    - Bem - exclamou ele, impaciente - que me diz?

    - a Gioconda em vestes de luto - respondi. - Conte-me tudo quanto a ela se refere.

    - Agora no; depois do jantar - disse ele e comeou a conversar a respeito de outrascoisas.

    Quando o empregado trouxe o nosso caf e os cigarros, lembrei a Geraldo a suapromessa. Ele levantou-se da sua cadeira, caminhou duas ou trs vezes acima e abaixo nasala e, deixando-se cair numa cadeira de braos, contou-me a seguinte histria:

    - Uma tarde, a pelas cinco horas, descia eu pela Rua Bond. Havia uma terrvel

    aglomerao de veculos e o trfego quase parado. Perto do passeio estava parado umcarrinho fechado, amarelo, que, por esse ou aquele motivo, atraiu a minha ateno. Aopassar ao seu lado, vi surgir dele, a olhar para fora, o rosto que lhe mostrei ainda hpouco. Fascinou-me imediatamente. Fiquei a noite inteira a pensar nele e o dia seguintetambm. Subi e desci vrias vezes por entre aquela maldita confuso, lanando um olharperscrutador para dentro de todo carro, espera do carro fechado amarelo. Mas no pudedescobrir ma belle inconnue (2) e afinal comecei a pensar que era ela apenas um sonho.Cerca de uma semana depois, estava a jantar com Madame de Rastail. O jantar estavamarcado para as oito horas, mas s oito e meia ainda nos achvamos espera na sala devisitas. Por fim o criado abriu a porta e anunciou Lady Alroy. Era a mulher que euestivera a procurar. Entrou muito devagar, parecendo um raio de lua cercado de renda

    cinzenta, e, para intenso deleite meu, pediram-me que a conduzisse sala de jantar.Depois de nos sentarmos, observei-lhe com a maior inocncia:

    Creio que j a vi, h algum tempo, na Rua Bond, Lady Alroy.

    Ela ficou muito plida e disse-me, em voz baixa:

    Por favor, no fale to alto. Podem ouvi-lo.

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    Senti-me desditosssimo por ter comeado to mal e mergulhei cegamente numadissertao sobre peas francesas. Ela falava pouqussimo, sempre com a mesma vozbaixa e musical, parecendo receosa de que algum a estivesse escutando. Senti-meapaixonadamente, estupidamente enamorado e a indefinvel atmosfera de mistrio que acercava excitava, a mais no poder, a minha curiosidade. Quando ela se retirou, logo aps

    o jantar, perguntei-lhe se poderia visit-la. Hesitou um momento, olhou em redor para verse algum estava perto de ns e depois disse:

    Sim; amanh a um quarto para as cinco.

    Roguei a Madame de Rastail que me desse informaes a respeito dela; mas tudoquanto pude saber que era uma viva, morando numa bela casa em Park Lane e, comonaquele momento um desses cientistas cacetes comeasse uma dissertao a respeito devivas, para exemplificar a sobrevivncia dos matrimonialmente mais ajustados, despedi-me e fui para casa.

    No dia seguinte cheguei pontualmente a Park Lane, no momento exato, mas omordomo disse-me que Lady Alroy tinha acabado de sair. Dirigi-me ao clube, bastantedesiludido e confuso e, depois de muito refletir, escrevi-lhe uma carta, perguntando-lhese me seria permitido tentar a sorte em alguma outra parte. Por vrios dias no recebiresposta, mas afinal chegou-me s mos um bilhetinho, dizendo-me que estaria ela emcasa no domingo, s quatro e com este extraordinrio ps-escrito: Por obsquio notorne a escrever para mim aqui; explicar-lhe-ei, quando o vir. No domingo, recebeu-mee mostrou-se perfeitamente encantadora. Mas quando me despedia, pediu-me que, sealguma vez tivesse ocasio de escrever-lhe de novo, dirigisse a minha carta para Sra.Knox, aos cuidados da Biblioteca Whittaker, Rua Verde. H motivos - disse ela - pelosquais no posso receber cartas em minha prpria casa.

    Durante toda a temporada via-a amiudadas vezes e a atmosfera de mistrio semprese manteve em torno dela. s vezes pensava que se achava ela em poder de algumhomem, mas parecia to inabordvel que no podia acreditar naquilo. Era realmentedifcil para eu chegar a qualquer concluso, pois ela era como um desses estranhoscristais que a gente v em museus e que so, num momento, claros, e em outro, turvos.Por fim, decidi-me a pedi-la em casamento. Senti-me doente e cansado daqueleincessante segredo que impunha a todas as minhas visitas e s poucas cartas que lheenviei. Escrevi-lhe para a biblioteca, perguntando-lhe se podia ver-me na segunda-feiraseguinte, s seis horas. Respondeu que sim e senti-me transportado ao stimo cu. Estavaapaixonado por ela, a despeito do mistrio, pensava ento... em conseqncia dele, vejoagora. No; era a mulher mesma que eu amava. O mistrio perturbava-me, enlouquecia-me. Porque o acaso fez-me descobrir a pista?

    - Descobriu-a ento? - exclamei.

    - Receio que sim - respondeu. - Julgue voc por si mesmo. Quando chegou asegunda-feira, fui almoar com meu tio e cerca das quatro horas encontrava-me emMarylebone Road. Meu tio, como voc sabe, mora em Regent's Park. Queria alcanar

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    Piccadilly e, para atalhar, meti-me por uma enfiada de becos miserveis. De repenteavistei minha frente Lady Alroy, com um espesso vu e caminhando muito apressada.Ao chegar derradeira casa da rua, subiu os degraus, tirou do bolso uma chave, abriu aporta e entrou. Aqui est o mistrio, disse a mim mesmo e apressei-me em examinar acasa. Parecia uma espcie de prdio de aluguer. No degrau da porta estava cado o leno

    dela. Apanhei-o e meti-o no bolso. Depois comecei a refletir no que devia fazer. Cheguei concluso de que no tinha o direito de espion-la. Tomei um carro e segui para o clube.s seis horas fui visit-la. Estava sentada num sof, em traje de ch, um tecido prateado,preso por uns broches de certas estranhas pedras lunares que sempre usava. Era de umabeleza perfeita.

    Alegra-me tanto v-lo - disse. - No sa hoje durante o dia.

    Olhei para ela, estupefato e tirando o leno do meu bolso, entreguei-lhe.

    Deixou cair isto esta tarde, Lady Alroy, na Rua Cumnor - disse eu, calmamente.

    Ela olhou para mim, aterrorizada, mas no fez o menor gesto para pegar no leno.

    Que estava a fazer ali? - perguntei.

    Que direito tem o senhor de fazer-me perguntas? - replicou.

    O direito de um homem que a ama - respondi-lhe. - Vim aqui para pedi-la emcasamento.

    Ocultou o rosto nas mos e desfez-se em pranto.

    Tem de responder-me - continuei.

    Ela ergueu-se e, fitando-me o rosto, disse:

    Lorde Murchison, nada tenho a dizer-lhe.

    Foi encontrar algum - exclamei. - esse o seu mistrio.

    Ela ficou terrivelmente plida e disse:

    No fui encontrar ningum.No pode dizer a verdade? - exclamei.

    J a disse - replicou ela.

    Eu estava a enlouquecer, alucinado. No sei o que disse, mas foram coisas terrveis.Por fim, sa pressa da casa. Escreveu-me uma carta no dia seguinte. Devolvi-lhe, intacta

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    e parti para a Noruega, em companhia de Alan Colville. Um ms depois regressei e aprimeira coisa que vi no Morning Post foi a notcia da morte de Lady Alroy. Apanharaum resfriado na pera e morrera, dentro de cinco dias, de congesto pulmonar. Fechei-me em casa e no quis ver ningum. Tinha-a amado tanto, tinha-a amado to loucamente!Meu Deus! Quanto amara eu aquela mulher!

    - E voc, foi quela rua, quela casa? - perguntei.

    - Sim - respondeu.

    - Um dia, fui Rua Cumnor. No podia deixar de faz-lo. Vivia torturado peladvida. Bati porta e uma mulher de aspecto respeitvel abriu-a para mim. Perguntei-lhese havia quartos para alugar.

    Bem, meu senhor - respondeu ela - as salas podem ser alugadas, mas h trs mesesque no tenho visto a senhora e como os alugueres esto-se a acumular, o senhor poder

    alug-las. esta a senhora? - perguntei, mostrando-lhe a fotografia.

    ela, sim, com toda certeza - exclamou a mulher. - E quando estar de volta,meu senhor?

    Morreu - respondi.

    Oh! meu senhor, no diga! - disse a mulher. - Era a minha melhor inquilina.Pagava-me trs guinus por semana simplesmente para vir sentar-se nesta minha sala de

    vez em quando.Encontrava-se com algum aqui? - perguntei, mas a mulher garantiu-me que tal

    no ocorria, que ela sempre vinha sozinha e no via ningum.

    Mas afinal que fazia ela aqui? - exclamei.

    Ficava simplesmente sentada na sala, meu senhor, lendo livros e s vezes tomavach - respondeu a mulher.

    No sabia o que dizer, de modo que lhe dei um soberano e sa. Agora, que pensa

    que significava tudo aquilo? No acredita que a mulher estivesse a dizer a verdade?- Acredito.

    - Ento por que ia Lady Alroy ali?

    - Meu caro Geraldo - respondi - Lady Alroy era simplesmente uma mulher com amania do mistrio. Alugava aqueles quartos somente pelo prazer de ir ali, de vu descido

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    e imaginando ser uma herona. Tinha paixo pelo segredo, mas no passava de umasimples esfinge sem segredo.

    - Estou convencido disto - repliquei.

    Lorde Murchison tirou do bolso a carteira de marroquim, abriu-a e olhou afotografia.

    Quem sabe? - disse afinal.

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    Notas:

    1 vidente2 Minha bela desconhecida

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    Verso para Acrobat Reader porMarcelo C. Barbo

    Abril de 2002

    Permitida a distribuio

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