a escravidão entre dois liberalismos

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8/12/2019 A Escravidão Entre Dois Liberalismos http://slidepdf.com/reader/full/a-escravidao-entre-dois-liberalismos 1/36 Escravidão tr dois Liberalismos lfre o osi It was freedom to destroy freedom W.E.B. Du Bois Senhores, se isso fosse crime, seria um crime geral no Brasil; mas eu sustento que, quando em uma nação todos os partidos políticos ocupam o poder, quando todos os seus homens políticos têm sido chamados a exercê-lo, e todos eles são concordes em uma conduta, é preciso que essa conduta seja apoiada em razões muito fones; impossível que ela seja um crime, e haveria temeridade em chamá-la um erro " Eusébio de Queirós - Fala à Câmara em 1852. Uma das conquistas teóricas do marxismo foi ter descoberto que é nas práticas sociais e culturais, fundamente enraizadas no tempo e no espaço, que se formam as ideologias e as expressões simbólicas em geral. O núcleo temático de A Ideologia . Alemã, que Marx e Engels escreveram em 1846, expõe a relação íntima que as representações de uma sociedade mantêm com a sua realidade efetiva. As práticas, tomando-se a palavra no seu sentido mais lato, são o fermento das idéias na medida em que estas visam a racionalizar aspirações difusas nos seus produtores e veiculadores. A ideologia compõe retoricamente (isto é, em registros de persuasão) certas motivações particulares e as dá como necessidades gerais. Nos seus discursos, o interesse e a vontade exprimem-se, ou traem-se, sob a forma de algum princípio abstrato ou alguma razão de força maior. A crítica histórica do século XX herdou esse olhar de suspeita. Dizia Andrade Figueira, deputado escravista, ao combater na Câmara a proposta da Lei do Ventre Livre: "Serei hoje a voz dos interesses gerais, agrícolas e comerciais, diante do movimento que a propaganda abolicionista pretende imprimir à emancipação da escravatura no Brasil. Trata-se da conservação das forças vivas que existem no país e constituem exclusivamente a sua riqueza. É questão de damno vitando" 1 . Para entender a articulação de ideologia liberal com prática escravista é preciso refletir sobre os modos de pensar dominantes da classe política brasileira que se impôs nos anos da Independência e trabalhou pela consolidação do novo Império entre 1831 e 1860aproximadamente. O que atuou eficazmente em todo esse período de construção do Brasil como Estado autônomo foi um ideário de fundo conservador; no caso, um complexo de normas jurídico-políticas capazes de garantir a propriedade fundiária e escrava até o seu limite possível. Não é finalidade destas linhas retomar o quadro histórico do sistema agroexportador que caracterizou a sociedade brasileira do século XIX. Obras notáveis já o fizeram com riqueza de dados e abonações textuais. Supõe-se aqui a sua leitura, não importando, antes servindo de l FIGUEIRA, A. Anais do Parlamento. Rio, Tip. Villeneuve, 1871. Apêndice, p. 26.

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Escravidão tr dois Liberalismos lfre o osi

It was freedom to destroy freedomW.E.B. Du Bois

Senhores, se isso fosse crime, seria um crime geral no Brasil; mas eu sustento que, quandoem uma nação todos os partidos políticos ocupam o poder, quando todos os seus homenspolíticos têm sido chamados a exercê-lo, e todos eles são concordes em uma conduta, épreciso que essa conduta seja apoiada em razões muito fones; impossível que ela seja umcrime, e haveria temeridade em cham á-la um erro "

Eusébio de Queirós - Fala à Câmara em 1852.

Uma das conquistas teóricas domarxismo foi ter descoberto que é naspráticas sociais e culturais,fundamente enraizadas no tempo e noespaço, que se formam as ideologias eas expressões simbólicas em geral.O núcleo temático de A Ideologia .Alemã, que Marx e Engels escreveramem 1846, expõe a relação íntima queas representações de uma sociedade

mantêm com a sua realidade efetiva.As práticas, tomando-se a palavra noseu sentido mais lato, são o fermentodas idéias na medida em que estasvisam a racionalizar aspiraçõesdifusas nos seus produtores eveiculadores. A ideologia compõeretoricamente (isto é, em registros depersuasão) certas motivaçõesparticulares e as dá comonecessidades gerais. Nos seusdiscursos, o interesse e a vontadeexprimem-se, ou traem-se, sob aforma de algum princípio abstrato oualguma razão de força maior.A crítica histórica do século XXherdou esse olhar de suspeita.Dizia Andrade Figueira, deputadoescravista, ao combater na Câmara aproposta da Lei do Ventre Livre:"Serei hoje a voz dos interessesgerais, agrícolas e comerciais, diante

do movimento que a propagandaabolicionista pretende imprimir àemancipação da escravatura no Brasil.Trata-se da conservação das forçasvivas que existem no país econstituem exclusivamente a suariqueza. É questão de damnovitando" 1 .

Para entender a articulação deideologia liberal com práticaescravista é preciso refletir sobre osmodos de pensar dominantes da classepolítica brasileira que se impôs nosanos da Independência e trabalhoupela consolidação do novo Impérioentre 1831 e 1860 aproximadamente.O que atuou eficazmente em todo esseperíodo de construção do Brasil comoEstado autônomo foi um ideário defundo conservador; no caso, umcomplexo de normas jurídico-políticascapazes de garantir a propriedadefundiária e escrava até o seu limitepossível.Não é finalidade destas linhasretomar o quadro histórico do sistemaagroexportador que caracterizou asociedade brasileira do século XIX.Obras notáveis já o fizeram comriqueza de dados e abonaçõestextuais. Supõe-se aqui a sua leitura,não importando, antes servindo de

l FIGUEIRA, A. Anais do Parlamento. Rio, Tip. Villeneuve, 1871. Apêndice, p. 26.

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estímulo, a diversidade das posiçõesteóricas que as enformam. CasaGrande & Senzala e Sobrados eMucambos, de Gilberto Freyre;Formação do Brasil Contemporâneo,de Caio Prado Jr.; História do Caféno Brasil, de Affonso de Taunay;Capitalismo e Escravidão, de EricWilliams; Formação Econômica doBrasil, de Celso Furtado; Grandeza eDecadência do Café no Vale doParaíba, de Stanley Stein;Capitalismo e Escravidão no BrasilMeridional, de Fernando HenriqueCardoso; As Metamorfoses doEscravo, de Octavio Ianni; DaSenzala à Colonia, de Emília Viottida Costa; Homens Livres na OrdemEscravocrata, de Maria SylviaCarvalho Franco; A Formação doPovo no Complexo Cafeeiro, de PaulaBeiguelman; Os Últimos Anos daEscravatura no Brasil, de RobertConrad; e O Escravismo Colonial, deJacob Gorender — nos dão a análise doprocesso pelo qual os senhores deengenho e os fazendeiros de caféregularam a vida econômica da novanação e compuseram, desde a rupturacom o pacto colonial, a sua

hegemonia em estreita conexão com ocomércio internacional e o tráficonegreiro.Quanto à obra política dessa classe,encontrou intérpretes de pulso emTavares Bastos (A Província, Cartasdo Solitário), Joaquim Nabuco (UmEstadista do Império), José Maria dosSantos (A Política Geral do Brasil),Victor Nunes Leal (Coronelismo,Enxada e Voto), Raymundo Faoro (Os

Donos do Poder), José HonórioRodrigues (Conciliação e Reforma noBrasil) e Sérgio Buarque de Holanda(Do Império à República).O objetivo deste ensaio é desenhar operfil ideológico que correspondeu,efetivamente, ao regime de cativeiro apartir do momento em que o Brasilpassou a integrar o mercado livre.

Um Falso Impasse: ou escravismoou liberalismo

O par, formalmente dissonante,escravismo-liberalismo, foi, no casobrasileiro pelo menos, apenas um

paradoxo verbal. O seu consórcio sóse poria como contradição real se seatribuísse ao segundo termo,liberalismo, um conteúdo pleno econcreto, equivalente à ideologiaburguesa do trabalho livre que seafirmou ao longo da revoluçãoindustrial européia.

Ora, esse liberalismo ativo edesenvolto simplesmente não existiu,enquanto ideologia dominante, noperíodo que se segue à Independênciae vai até os anos centrais do SegundoReinado.

A antinomia tantas vezes acusada, e otravo de nonsense que dela poderianascer (mas como é possível um

liberalismo escravocrata?), merecemum tratamento rigoroso que osdesfaça.

Para entender o caráter próprio daideologia vitoriosa nos centros dedecisão do Brasil pós-colonial,convém examinar a sua evoluçãointerna que acompanha o ascenso dosgrupos escravistas. Formado ao longodas crises da Regência, o núcleoconservador definiu-se, pela voz dosseus líderes, Bernardo Pereira deVasconcelos, Araújo Lima e HonorioHermeto, como o "Partido daOrdem", no ano crítico de 1837 elogo após a renúncia de Feijó. A suahistória é a de uma aliança estratégica,flexível mas tenaz, entre asoligarquias mais antigas do açúcarnordestino e as mais novas do café noVale do Paraíba, as firmasexportadoras, os traficantes negreiros,os parlamentares que lhes davamcobertura, e o braço militar chamadosucessivas vezes, nos anos de 1830 e40, para debelar surtos de facções queespocavam nas províncias. Aoradicalismo impotente desses gruposlocais opôs-se, desde o começo, ochamado liberalismo moderado, queexerceu, de fato, o poder tanto na faseregencial quanto nos anos iniciais doSegundo Império. As divisões internas

não tocaram sua unidade profunda nahora da ação.

O tráfico, mais ativo do que nunca,trouxe aos engenhos e às fazendascerca de 700 mil africanos entre 1830

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e 1850. As autoridades, apesar deeventuais declarações em contrário,faziam vista grossa à pirataria quefacultava o transporte de carnehumana, formalmente ilegal desde oacordo com a Inglaterra em 1826 e alei regencial de 7 de novembro de1831. A última qualificava comolivres os africanos aqui aportadosdessa data em diante ... Lembro a"Fala do Negreiro", personagem dacomédia de Martins Pena, Os Dous ouo Inglês Maquinista:— Há por aí além uma costa tão larga

e algumas autoridades tãocondescendentes ...

Estávamos em 1842.A observação do comediógrafo rimaperfeitamente com os dadoslevantados por Robert Conrad paraaqueles mesmos anos:"Os juízes dos distritos em que osescravos eram desembarcadospassavam a receber comissõesregulares, referidas como sendofixadas em 10,8% do valor de cadaafricano desembarcado. Os escravoseram trocados diretamente por sacasde café nas praias, reduzindo assim afórmula econômica — 'o café é onegro' — a uma realidade" 2.Conrad ilustra com numerosos fatos aconivência dos governos regencial eimperial a partir de 1837: "No regimede Vasconcelos o tráfico escravista sedesenvolve com uma nova vitalidadeque prosseguiu por aproximadamente14 anos, sob regimes conservadores eliberais, apoiado e sustentado pelaspróprias autoridades cuja tarefa erafazer cessar o tráfico".Para conhecer o ponto de vista dooutro lado (o governo inglês), o

melhor testemunho é o de Gladstone,primeiro-ministro, que, falando àCâmara dos Comuns em 1850,desabafava: "Temos um tratado com oBrasil, tratado que esse país dia a diaquebra, há vinte anos. Forcejamos porassegurar a liberdade dos africanoslivres; trabalhamos até conseguir queos brasileiros declarassem criminosa aimportação de escravos. Esse acordo éincessantemente transgredido" 4.

O tratado anglo-brasileiro de 1826 jáarrancara, de resto, protestosnacionalistas desde a sessão daCâmara de 1827, em que se propôsnada menos que a sua impugnação. Orepresentante de Goiás, brigadeiroCunha Matos, aplaudido por vários

colegas, deplorou que os brasileirostivessem sido "forçados, obrigados,submetidos e compelidos pelogoverno britânico a assinar umaconvenção onerosa e degradante sobreassuntos internos, domésticos epuramente nacionais, da competênciaexclusiva do livre e soberanolegislativo e do augusto chefe danação brasileira" 5. Clemente Pereira,cujas antigas bandeiras maçônicas eilustradas eram notórias, e que foraum dos pilares da Independência,também se pronunciou contra aingerência britânica no controle dosnavios negreiros; medida queverberou como "o ataque mais diretoque se poderia fazer à Constituição, àdignidade nacional, à honra e aosdireitos individuais dos cidadãosbrasileiros" 6 . Para toda a retóricadesse período vale a frase de José deAlencar: "ser liberal significava serbrasileiro" (Cartas a Erasmo, VI).A argumentação conseguiu, de fato,ser nacionalista e bravamente fiel aos

O objetivo deste ensaioé desenhar o perfilideológico quecorrespondeu,efetivamente, aoregime de cativeiro a

partir do momento emque o Brasil passou aintegrar o mercadolivre.

2 CONRAD, R. Os Tumbeiros. São Paulo, Brasiliense, 1985. p. 103-4.3 Ibid., p.118. Veja-se também a análise de Stanley Stein: "O aumento das importações

de escravos na década de 1840 beneficiou tanto os fazendeiros como os cofrespúblicos; em 1848 perto de 60% das contribuições do município de Vassouras,Província do Rio de Janeiro, procediam de impostos sobre a venda de escravos"(Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo, Brasiliense, 1961.

p. 161).4 DUQUE-ESTRADA, O. A Abolição (esboço histórico). Rio, Leite Ribeiro & Maurílio,1918. p. 28.

5 BETHELL, L. A abolição do tráfico escravo no Brasil São Paulo, ED USP, 1976.p. 73-4.

6 Ibid., p. 74.

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princípios do livre-comércio. Em1835, Bernardo Pereira deVasconcelos, ainda moderado,proporia emenda revogando a leiantiescravista de 1831: a sua atituderecebeu apoio maciço dos deputados àAssembléia Provincial de MinasGerais.A defesa patriótica do tráfico não era,aliás, apanágio de parlamentaresmineiros. Na Câmara de Paris, onde érazoável supor que o liberalismoestivesse em casa sob a batuta de LuísFilipe, a maioria dos deputados vetouo acordo que Guizot fizera, em 1841,com a Inglaterra permitindo quefiscais da Marinha britânica

suspeitos de carregar negros 7.Énrichessez-vous Entre os hesitantes,ainda àquela altura, estava Alexis deTocqueville. A defesa da integridadenacional se sobrepunha aosescrúpulos então ditos filantrópicos e,afinal, resguardava os tumbeiros.O discurso dominante de 1836 a 1850foi, entre nós, uma variantepragmática de certas posições jáassumidas pelos chamados patriotasou liberais históricos, que herdaramos frutos do Sete de Setembro. E porque históricos? Porque foram, semdúvida, as lutas da burguesiaagroexportadora que tinham cortadoos privilégios da Metrópole graças àabertura dos portos em 1808; essesmesmos patriotas tinham garantido,para si e para a sua classe, asliberdades de produzir, mercar erepresentar-se na cena política. Daí, ocaráter funcional e tópico do seuliberalismo. Quanto aosconservadores, assim autobatizadosde 1836 em diante, apenassecundaram os moderados, a cujogrêmio até então pertenciam,sucedendo-os nas práticas do poder ebaixando o tom da sua retórica.Mantendo sob controle terras, café eescravos, bastava-lhes o registro seco,prosaico, às vezes duro, da linguagemadministrativa. É o estilo da

eficiência: o estilo "saquarema" deEusébio, Itaboraí, Uruguai, Paraná.

Comércio livre, primeira e principalbandeira dos colonos patriotas, nãosignificava, necessariamente, e nãofoi, efetivamente, sinônimo detrabalho livre. O liberalismoeconômico não produz sponte sua, aliberdade social e política.

O comércio franqueado às naçõesamigas, que o término do exclusivoacarretou, não surtiu mudanças nacomposição da força de trabalho: estacontinuava escrava (não por inércia,mas pela dinâmica mesma daeconomia agroexportadora), ao passoque a nova prática mercantilpós-colonial se honrava com o nomede liberal. Daí resulta a conjunçãopeculiar ao sistema

econômico-político brasileiro, e nãosó brasileiro, durante a primeirametade do século XIX: liberalismomais escravismo. A boa consciênciados promotores do nosso laissez-fairese bastava com as franquezas domercado.Nesse bloco histórico não é deestranhar absolutamente que asupressão do tráfico demorasse, comodemorou, 25 anos para efetuar-se ao

arrepio de tratados que expressamenteo proibiam. Quanto à abolição total,só viria a ser decretada em 1888, istoé, só quando a imigração dotrabalhador europeu já se fizera umprocesso vigoroso em São Paulo e nasprovíncias do Sul.

Volto à compreensão contextual,não-abstrata, do termo liberalismo.Enquanto opção cultural, de corteeuropeu, afim à luta burguesa naInglaterra e na França, o liberalismopolítico se abriria, lentamente aliás,para um projeto de cidadaniaampliada. Essa, porém, não era asituação brasileira onde aIndependência não chegou a ser umconflito interno de classes. Oconfronto aqui se deu,fundamentalmente, entre os interessesdos colonos e os projetosrecolonizadores de Portugal, na

verdade já reduzido àquase-impotência depois da abertura

7 COHEN, W. Français et Africains. Les Noirs dans le regard des Blancs (1530-1880).Paris, Gallimard, 1981. p. 42-9, 271-78.

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dos portos em 1808. Os nossospatriotas ilustrados cumpriram amissão de cortar o fio umbilicaltambém na esfera jurídico-política.Sob a hegemonia dos moderados e,depois, dos regressistas, o liberalismopós-colonial deitou raízes nas práticasreprodutoras e autodefensivasdaqueles mesmos colonos, enfimemancipados. O seu movimentoconservou as franquias obtidas na faseinicial, antilusitana, do processo, masjamais pretendeu estendê-las oureparti-las generosamente com osgrupos subalternos. O nossoliberalismo esteve assim apenas àaltura do nosso contexto."Liberalismo" — diz Raymundo Faoro— "não significava democracia, termosque depois se iriam dissociar, emlinhas claras e, em certas correntes,hostis" 8 .

A pergunta de fundo é então: o quepôde, estruturalmente, denotar o nomeliberal, quando usado pela classeproprietária no período de formaçãodo novo Estado?Uma análise semântico-históricaaponta para quatro significados do

termo, os quais vêm isolados ouvariamente combinados:1) Liberal, para a nossa classe

dominante até os meados do séculoXIX, pôde significar conservadordas liberdades, conquistadas em1808, de produzir, vender ecomprar.

2) Liberal pôde, então, significarconservador da liberdade,alcançada em 1822, derepresentar-se politicamente; ou,em outros termos, ter o direito deeleger e de ser eleito na categoriade cidadão qualificado.

3) Liberal pôde, então, significarconservador da liberdade(recebida como instituto colonial erelançada pela expansão agrícola)de submeter o trabalhador escravomediante coação jurídica.

4) Liberal pôde, enfim, significarcapaz de adquirir novas terras emregime de livre concorrência,alterando assim o estatutofundiário da Colônia no espíritocapitalista da Lei de Terras de1850.

A classe fundadora do Império doBrasil consolidava, portanto, as suasprerrogativas econômicas e políticas.Econômicas: comércio, produçãoescravista, compra de terras. Políticas:eleições indiretas e censitárias. Umase outras davam um conteúdo concretoao seu liberalismo. Que se tornou, porextensão e diferenciação grupai, ofundo mesmo do ideário corrente nosanos 40 e 50.

A historiografia da Regência jácontou, por miúdo, a passagem dopartido moderado, no qual seencontravam todos, Evaristo e Feijó,Vasconcelos e Honorio Hermeto, parao Regresso (tenho adotado a partir de1836), quando os últimos alijaram esubstituíram os primeiros, a pretextode impor a ordem interna ameaçadapelas rebeliões provinciais. É o

significado pontual da arquicitadaprofissão de fé de Vasconcelos,mentor da reação que vai marcar oinício do Segundo Reinado:"Fui liberal, então a liberdade eranova no país, estava nas aspirações detodos, mas não nas leis, nas idéiaspráticas; o poder era tudo; fui liberal.Hoje, porém, é diverso o aspecto dasociedade: os princípios democráticostudo ganharam e muitocomprometeram;

a sociedade, queentão corria o risco pelo poder, correagora o risco pela desorganização epela anarquia. Como então quis, querohoje servi-la, quero salvá-la, e porisso sou regressista. Não soutrânsfuga, não abandono a causa quedefendi no dia de seus perigos, da suafraqueza, deixo-a no dia em que tãoseguro é o seu triunfo que até oexcesso a compromete" .

8 FAORO, R. Existe um pensamento político brasileiro? Estudos Avançados. São Paulo,(1): 44, out./dez. 1987.

9 Apud Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império. 2ª ed. Rio, Ed. Nova Aguilar, 1975.p. 69.

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Em outras palavras, o discurso querdizer: a política de centralização é oantídoto necessário a uma divisão doPaís, que, por seu turno (e aí vem arazão calada), seria fatal ao novocentro econômico valparaibano.O percurso de Vasconcelos e o êxito

político do Regresso fazem pensar quea moderação dos liberais de 1831acabaria, cedo ou tarde, assumindo asua verdadeira face, conservadora. Ostraficantes foram poupados; e osprojetos iluministas, raros e esparsos,de abolição gradual foram reduzidosao silêncio. Deu-se ao Exército opapel de zelar pela unidade nacionalcontra as tendências centrífugas dosclãs provinciais. Vencidos os últimosFarrapos, estava salva a sociedade: nocaso, o Estado aglutinador delatifundiários, seus representantes,tumbeiros e burocracia. A retóricaliberal trabalha seus discursos emtorno de uma figura redutora porexcelência, a sinédoque, pela qual otodo é nomeado em lugar da parte,implícita.

Hermes Lima, no prefácio queescreveu para A Queda do Império deRui Barbosa, entende o Regressocomo um mecanismo político deestratégia dos grupos que se

destacaram do bloco liberal-moderadono exato momento (1835-37) em que aexpansão do café no Vale do Paraíbademandava maior ingresso deafricanos. A propriedade escrava e, noseu bojo, o tráfico, passavam a ser,efetivamente, o eixo de uma economiaque se montara na esteira da liberaçãodos portos e das franquias comerciais."It was freedom to destroy freedom",na frase lapidar de Du Bois.

Nessa altura, os cafeicultoresalmejavam um Estado forte, umaadministração coesa e prestante ou,nos seus repetidos termos, precisavammanter, a todo custo, a unidadenacional. Foi a bandeira do Regresso.O padre Feijó, renunciando ao cargode Regente em meio a dificuldadesextremas, fizera perigar ocumprimento desse desígnio, namedida em que supunha ser inevitávela tendência separatista de algumasprovíncias mais turbulentas comoPernambuco e o Rio Grande do Sul.Somando-se a essa atitude dedesistência de sua luta, outrora tãoferrenha contra as facções locais, teriahavido no padre paulista um maior

empenho de honrar os acordosantitráfico feitos com a Inglaterra esabotados por uma legião de

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coniventes. Em contrapartida, a alasaquarema, que toma em 1837 o lugarde Feijó, reacende manu militari oideal de um Império unido, ao mesmotempo que vai transigindo largamentecom o comércio negreiro, o queinsufla alento às bases do novocomplexo agroexportador.Tudo se apresenta imbricado: ocentralismo se diz nacional e vale-sedo Exército, que toma vulto noperíodo; o tranco é utilíssimo àexpansão do café; enfim, o Partido daOrdem abraça todas essas bandeirasque, plantadas no centro do poder, aCorte fluminense, irão manter-sefirmes até, pelo menos, os fins dosanos 50. O Partido Liberal, em grandeparte desertado, ora alterna com oConservador, ora com este secombina, mas, em ambos os casos, osdiscursos oficiais se alinham com oscompromissos oligárquicos, suamoeda corrente. Joaquim Nabucoacertou em cheio ao historiar asituação: a reação conservadora"pretendia representar a verdadeiratradição liberal do país" 10 . E OctávioTarqüínio de Sousa também advertiuos liames entre os moderados e osregressistas:"Bem consideradas, porém, as coisas,nenhuma divergência substancial osdividia: o 'regresso' de Vasconcelosnão contradizia a 'moderação' deEvaristo: era apenas uma evolução,uma transformação; o 'regresso'consolidava por assim dizer a obra da"moderação'

11 O tom apologético

não infirma a justeza da análise...

Nada haveria, a rigor, de excêntrico,deslocado ou postiço na linguagemdaqueles políticos brasileiros que,usando o termo liberalismo em umsentido datado, pro domo sua,legitimaram o cativeiro por um tempotão longo e só o restringiram sob

pressão internacional. Uma propostamoderna e democrática sustentadapelas oligarquias rurais é que teriasido, nos meados do século XIX, umaidéia extemporânea. Mas esse projetonão se concebeu nem aqui, nem emCuba, nem nas Antilhas inglesas efrancesas que viviam o mesmo regimede plantation, nem no reino doalgodão do Velho Sul americano. Emtodas essas regiões, políticosdefensores do liberalismo econômicoortodoxo velaram pela manutenção dotrabalho escravo.

Nem houve propriamente ficçõesjurídicas, à européia, ocultando olatifúndio, o tráfico, a escravidão.Houve, sim, um uso bastante eficaz

das instituições parlamentares pelossenhores de engenho e das fazendas.As Câmaras serviam de instrumento àclasse dominante que, sem os canaisjurídicos estabelecidos, nãocontrolariam a administração de umtão vasto país. "Máquina admirável",assim chamou o nosso regimeparlamentar e monárquico umpaladino da reação conservadora 12.

No fim do Primeiro Império a

oposição a D. Pedro I fora comandadapor homens fiéis ao parlamentarismoinglês como Bernardo Pereira deVasconcelos que, ao mesmo tempo(1829), escandalizava o reverendoRobert Walsh por sua atitudeescravista: "Entre as fraquezas deVasconcelos está advogar a causa dotráfico de escravos; e o tratado com aInglaterra para sua abolição total embreve, e a nossa disposição em fazê-lo

cumprir se contam entre as suasreservas a nosso respeito" 13. Umressentimento amargo contra osingleses fiscais do oceano, e quelembra a anglofobia dos confederadossulinos, não era peculiar aVasconcelos apenas.

Nada haveria, a rigor,de excêntrico,deslocado ou postiçona linguagem daquelespolíticos brasileirosque, usando o termoliberalismo em umsentido datado, prodomo sua, legitimaramo cativeiro por umtempo tão longo e só orestringiram sobpressão internacional.

10 Id ibid.11 TARQÜÍNIO de SOUSA, O. Evaristo da Veiga. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia —

EDUSP, 1988. p. 153.12 SILVA, P. O Brasil no Reinado do Sr. D. Pedro II. In: —. Escritos políticos e discursosparlamentares. Rio, Garnier, 1862. p. 28. (Escrito na língua francesa e publicado naRevue des deux mondes, de 15 de abril de 1858).

13 TARQÜÍNIO de SOUSA, O. Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo, Itatiaia —EDUSP, 1988. p. 77.

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Mas nada turvava a admiração pelosdiscursos da Câmara dos Comuns ...Os gabinetes e os Conselhos deEstado que congelaram, por largosanos, as idéias de emancipação(mesmo quando bafejadas peloImperador, como ocorreu nas Falas doTrono de 67 e 68) reuniam homenspara os quais os chamados princípiosliberais só adquiriam um sentidoforte, e até concitante e polêmico,quando aplicados ao já clássico debateentre constitucionais e absolutistas. Adiscussão não era acadêmica nembizantina. A luta, que fora crucial naEuropa pós-napoleônica até aRevolução de 1830, encontrou aquivariantes nas arremetidas dos patriotascontra o jugo da metrópole e, poucodepois, contra os ímpetosvoluntariosos de Pedro I. Oliberalismo à inglesa se fazianecessário para que a classeeconomicamente dominante assumisseo seu papel de grupo dirigente. Esse oalcance e limite do nosso liberalismooligárquico.Analisando a conduta autodefensivados liberais, comentava Saint-Hilaireno ano em que se fazia aIndependência:"Mas são estes homens que, noBrasil, foram os cabeças daRevolução; não cuidavam senão emdiminuir o poder do Rei, aumentandoo próprio. Não pensavam, de modoalgum, nas classes inferiores" 14.

O arguto observador poderia ter dito,utilizando o jargão da época: "Esseshomens eram liberais

constitucionais''.Parlamentares ardidos em face daCoroa, antidemocratas confessosperante a vasta população escrava oupobre. Nem rei, nem plebe: nós.

O contrato social fechado eexcludente, propício aos homens quetinham concorrido para desfazer opacto colonial, verteu-se em umdocumento solene. Foi a Constituição

de 1824. A Carta, apesar de outorgada

por um gesto autoritário de Pedro I,satisfez à maioria dos novos pactáriosque detinham, de fato, o poderdecisório da recente nação. Era umaaliança entre os direitos dos beatipossidentes e os privilégios domonarca. O liberalismo restrito do seutexto não destoava das cautelas daCarta restauradora francesa que, em1814, acolhera entre os seusmecanismos de governo a figura doPoder Moderador teorizada porBenjamin Constant. As liberdadesfruidas pelos citoyens(cidadãos-proprietários) exorcizavamo fantasma de uma igualdade tida porabstrata e anárquica, e que, serealizada, somaria imprudentementepossuidores e não-possuidores. E porque esse liberalismo a meias, correntena França cartista, não se ajustariacomo uma luva à mais que exíguaclasse votante do Brasil Império? Poracaso as propostas levadas àAssembléia Constituinte em 1823tinham ido além da proteção àagricultura, ao livre-câmbio, aocomércio franco? Deixara-se intacta ainstituição do trabalho forçado. ARepresentação de José Bonifácio não

chegou a ser matéria de debate.Promulgada a Lei Maior, logoengendrou-se o mito da suaintocabilidade, tônica dos discursos daoligarquia até o fim do regime. Osdeputados conservadores preferiam,ainda em 1864, chamar-se, pura esimplesmente, "constitucionais".Assim fazendo, abriram uma brechapara os liberais se apoderarem de umrótulo que ficara vago e os tentava: na

mesma ocasião criou-se um grupo"liberal-conservador''...A Carta virou um pendão sacralizadopela aura dos tempos heróicos daIndependência. Por trás do seu pesadobiombo auriverde, onde os mesmosfios de seda bordavam ramos de café ede fumo e o escudo dinástico dosBraganças, aninhavam-se o votocensitário, a eleição indireta e odireito inviolável à propriedade

escravista.

14 SAINT-HILAIRE, A. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a SãoPaulo. Trad. revista e prefácio de Vivaldi Moreira. São Paulo, Itatiaia — EDUSP,1974. p. 94.

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A tática centralizante da últimaRegência, que a precoce maioridadede Pedro II viria consumar, foi maisuma garantia para a burguesiafundiária; o fato de ter sido apressadapor alguns militantes da facção liberalnão impediu que seus frutos fossemdepressa colhidos e longamentesaboreados pelos saquaremas. A partirde 1843 a Câmara é invadida por uma"cerrada falange reacionária" 15.Rebatendo para as condiçõeseuropéias: o regresso, difuso ouinstituído, foi também o protagonistaideológico entre o Congresso deViena e a Revolução de 48. A síntesecortante de Eric Hobsbawm diz bem asituação: "O liberalismo e ademocracia pareciam mais adversáriosque aliados; o tríplice slogan daRevolução Francesa — liberdade,igualdade e fraternidade — expressavamelhor uma contradição do que umacombinação" 16.Lá, uma política utilitária amarrou-seestruturalmente à espoliação semnome do novo proletariado. Aqui, onosso ideário constitucional se nutriudo suor e do sangue cativo. Cá e lá ospoderes cunharam a moeda fácil donome liberal.De qualquer modo, a especificidadereponta: o sistema de plantagemretardou ou fez involuir ideais ousurtos de caráter progressista. Nocomeço do Segundo Reinado, ageração constitucional, abrigada àsombra do café valparaibano, resistiuao governo inglês em tudo o quedissesse respeito ao tráfico.Conhece-se a posição drástica deVasconcelos que não mudou até à suamorte em 1850. Em 1843, o lobby dosescravistas espalhados pelas váriasprovíncias brasileiras parecia a LordBrougham tão eficiente quanto cínico:"Em primeiro lugar, temos adeclaração expressa de um homem debem do Senado do Brasil, de que a leique aboliu o tráfico de escravos énotoriamente letra morta, tendo caído

em desuso. Em segundo lugar, temosuma petição ou memorial daAssembléia Provincial da Bahia aoSenado urgindo pela revogação da lei;não que ela os incomode muito, masporque a cláusula de que 'os escravosimportados depois de 1831 são livres'embaraça a transação da venda e tornainconveniente possuir negros hápouco introduzidos no país. Euencontro outra Assembléia Provincial,a de Minas Gerais, pedindo a mesmacoisa com iguais fundamentos. Depoisde insistir nos perigos para o país dafalta de negros, o memorialacrescenta: — Acima de tudo, o piorde todos esses males é a imoralidadeque resulta de habituarem-se osnossos cidadãos a violar as leisdebaixo das vistas das própriasautoridades ' Eu realmente acreditoque a história toda da desfaçatezhumana não apresenta uma passagemque possa rivalizar com essa —nenhum outro exemplo de ousadiaigual. Temos neste caso umaLegislatura Provincial, que seapresenta por parte dos piratas e dosseus cúmplices, os agricultores, queaproveitam com a pirataria,

comprando-lhes os frutos, e em nomedesses grandes criminosos insta pelarevogação da lei que o povo confessaestar violando todos os dias, e da qualeles declaram que não hão de fazercaso enquanto continuar sem serrevogada; pedindo a revogação dessalei com o fundamento de que,enquanto ela existir, resolvidos comoestão a violá-la, eles se vêem na duranecessidade de cometer essaimoralidade adicional debaixo dasvistas dos juizes que prestaram ojuramento de executar as leis" 17 .

O trabalho escravo era um fatorestrutural da economia brasileira,tanto que o seu controle interno sefazia cada vez mais rígido. Em 1835,ainda antes de os regressistaschegarem ao poder, o parlamentoliberal-moderado votou uma lei quepunia de morte qualquer ato de

15 NABUCO, J. Um Estadista ... op. cit ., p. 77.16 HOBSBAWM, E. A era das revoluções. Europa. 1780-1848. 5ª ed. Rio, Paz e Terra,

1986. p. 262.17 NABUCO, J. O Abolicionismo. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 1977. p. 117-8.

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Celso Furtado viu comperspicácia que os

nossos economistasliberais, a partir do

visconde de Cairu, semostraram mais fiéis aAdam Smith do que os

próprios ingleses eyankees...

rebeldia ou de ofensa aos senhorespraticado por escravos.Esse, o quadro nacional. Mereceriaum estudo comparativo a resistência àabolição nas colônias da Inglaterra, daFrança e da Holanda, países onde opensamento liberal burguês já tomara

a dianteira internacional. O governobritânico só promoveu a alforria geralnos seus domínios em 1833, comindenização plena aos proprietários, oque implicava reconhecimento aosdireitos destes. O parlamentoholandês decretou a abolição emSuriname a partir de lº de julho de1863, pagando aos fazendeiros e"ficando os libertos sob proteçãoespecial do Estado" 18.Quanto aosescravos da Guiana e das AntilhasFrancesas, tiveram de esperar pelodecreto do Conselho Provisório de 27de abril de 1848 para receberem alibertação coletiva que tambémimportou em ressarcimento aossenhores. De pouco valera o belogesto dos Convencionais que tinhamaplaudido de pé a abolição nomemorável Dezesseis do Pluvioso doAno n da Revolução, 4 de fevereirode 1794. Em 1802 Napoleão legalizade novo a instituição que aindaagüentaria meio século. Cá e lá...

Laissez-faire e EscravidãoHá uma dinâmica interna no velholiberalismo econômico que, levandoàs últimas conseqüências a vontade deautonomia do cidadão-proprietário, seinsurge contra qualquer tipo derestrição jurídica à sua esfera deiniciativa.A doutrina do laissez-faire data dasegunda metade do século XVIII, como advento da hegemonia burguesa,que assestou um golpe de morte nascorporações de ofícios e nosprivilégios estamentais. Mas hátambém um uso colonial-escravistados princípios ortodoxos; uso que, emretrospectiva, nos pode parecer

abusivo ou cínico, mas que serviucabalmente à lógica dos traficantes edos senhores rurais.Um mercador da costa atlântica daÁfrica citava, em favor de seusdireitos de livre cidadão britânico(free-born), a Magna Carta, a qual lhe

conferia o poder inalienável decomerciar o que bem entendesse,dispondo com igual franquia de todasas suas propriedades móveis,semoventes e imóveis 19. Esse direito,alegado por um negreiro em 1772,seria ainda a base de sustentaçãojurídica dos parlamentares que, noBrasil de 1884, obstaram aos trâmitesda proposta do conselheiro Dantasque visava a alforriar os escravosmaiores de 60 anos sem indenizaçãoaos senhores. O ministério caiu; e oSaraiva, que o sucedeu, teve quemanter o princípio do pagamentoobrigatório. Direito individual àpropriedade de homens: válido em1772, válido em 1884.

Celso Furtado viu com perspicáciaque os nossos economistas liberais, apartir do visconde de Cairu, semostraram mais fiéis a Adam Smith doque os próprios ingleses e yankees; osúltimos souberam, sob a influência deHamilton, dosar livre-comércio eprotecionismo industrial sempre quelhes conveio. Comparando as idéiasde Alexander Hamilton com as deCairu, diz Furtado: "Ambos sãodiscípulos de Adam Smith, cujasidéias absorveram diretamente e namesma época na Inglaterra. Semembargo, enquanto Hamilton se

transforma em paladino daindustrialização (...) Cairu crêsupersticiosamente na mão invisível erepete: deixai fazer, deixai passar.deixai vender" 20.

A observação é válida sobretudo parao período em que a hegemoniaregressista casou laissez-faire etrabalho escravo. Vasconcelos, que já

18 MALHEIRO, P. A escravidão no Brasil 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1976. v. II, p. 301.19 A Treatise upon trade from Great-Britain to Africa; humbly recommended to the

attention of Government by an African Merchant. London, printed for R. Baldwin,n. 47, Pater-Noster Row, 1772.

20 FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. Rio, Fundo de Cultura, 1959. p. 123.

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vimos defender abertamente o tráfico(a ponto de propor a suspensão dosefeitos manumissores da lei de 1831 ),era acérrimo inimigo de qualquermedida oficial que amparasse aincipiente manufatura brasileira emprejuízo da importação de produtoseuropeus. Porta-voz da mentalidadeagrária, vitoriosa nas eleições de1836, Vasconcelos recusava a própriaidéia da presença estatal na economia,valendo-se para tanto dos argumentosclássicos:"A nossa utilidade não está emproduzir os gêneros e mercadorias, emque os estrangeiros se nos avantajam;pelo contrário devemos aplicar-nos àsproduções em que eles nos sãoinferiores. Nem é preciso que a leiindique a produção mais lucrativa:nada de direção do governo. Ointeresse particular é muito ativo einteligente; ele dirige os capitais paraos empregos mais lucrativos: asuposição contrária assenta numa falsaopinião, de que só o governo entendebem o que é útil ao cidadão e aoEstado. O governo é sempre maisignorante que a massa geral da nação,e nunca se ingeriu na direção daindústria que não a aniquilasse, oupelo menos a acabrunhasse. (...) Favore opressão significam o mesmo emmatéria de indústria, o que éindispensável é guardar-se o maisreligioso respeito à propriedade eliberdade do cidadão brasileiro. Asartes, o comércio e a agricultura nãopedem ao governo se não o queDiógenes pediu a Alexandre -retira-te do meu sol — eles dizem em

voz alta — não temos necessidade defavor: o de que precisamos é liberdadee segurança" 21. Adam Smith e Saynão teriam sido mais enfáticos.Mutatis mutandis (ma non troppo),foi a linguagem da UDN e é alinguagem da UPR.Mas qual era, a partir do tratado de1826, o principal óbice à prática desseliberalismo ortodoxo tão cioso dos

seus direitos? Era, precisamente, ocontrole do governo inglês exercidosobre o mercado negreirointernacional. Vasconcelosindignava-se com a pregação dosphilanthropists, em plena atividade, ese desabafava nestas palavrasrecolhidas por Walsh: "Eles protestamcontra a injustiça desse comércio,dando como exemplo a imoralidade dealgumas nações que o aceitam; nãoficou, porém, demonstrado que aescravidão chegue a desmoralizar a talponto qualquer nação. Umacomparação entre o Brasil e os paísesque não têm escravos irá tirarqualquer dúvida a esse respeito".Acrescenta o reverendo, chocado:"Em seguida sugeriu que o governobrasileiro deveria entrar em acordocom a Inglaterra sobre a prorrogaçãoda lei" 22 . O argumento deVasconcelos escorava-se no confrontoentre as condições de trabalho noBrasil e na Europa, e voltaria cominsistência nos discursosliberal-regressistas, sendo retomadopor José de Alencar nas tumultuosassessões que precederam à votação daLei do Ventre Livre.

Esboça-se aqui a síndrome doliberalismo oligárquico brasileiro (e,no limite, neocolonial): entrosamentodo País em uma rígida divisãointernacional de produção; defesa damonocultura; recusa de todainterferência estatal que não se achevoltada para assegurar os lucros daclasse exportadora. É claro que aproibição do comércio negreiro porparte do Estado (no caso, premido

pela Inglaterra) restringiria a livreiniciativa do vendedor e do compradorda força de trabalho. O mesmopensamento fez escola entre osescravistas do Old South dos quaissaiu uma plêiade de economistasortodoxos:Thomas Cooper, autor de um manualsmithiano bastante divulgado até osmeados do século XIX (Lectures on

21 Citado, elogiosamente, por Sílvio Romero, na História da Literatura Brasileira. 5ª ed.Rio, J. Olympio, 1953. v. V, p. 1727-29. A referência ao pedido que Diógenes fez aAlexandre ("Retira-te do meu sol ") já estava nos escritos de Bentham contra oprotecionismo à indústria nacional...

22 WALSH, R. Notícias do Brasil. São Paulo, Itatiaia - EDUSP, 1985. p. 109.

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O desrespeito à leiantitráfico foi, nosEstados Unidos dosanos 50, tão frontal

quanto o do Brasil nosanos 40. Cá e lá, a

liberdade, semmediações, do Capitalexigia a total sujeição

do trabalho.

the Elements of Political Economy,1826); George Tucker, primeiro titularde Economia da Universidade deVirgínia; e, sobretudo, Jacob NewtonCardozo, um dos redatores influentesda Southern Review, todoscontestavam a idéia de que o braçocativo fosse unprofitable. Para ossulistas, aqueles que teimavam emjulgar a escravidão pouco rentável decerto atinham-se a uma concepçãounilateral e abstrata da nova ciência, aqual crescia tão lentamente porque"os economistas europeus, aotentarem construir sistemas deaplicação geral para todos os países,continuam, no fundo, a supor que assuas circunstâncias são naturais euniversais. Nós sabemos que asriquezas das nações crescem a partirde fontes largamente diferentes. Porexemplo, a experiência revela que aescravidão no Sul tem produzido nãosó um alto grau de riqueza, comotambém uma partilha maior defelicidade para o escravo do queocorre em muitos lugares onde arelação entre o empregador e oempregado é baseada em salários" .A mensagem política que aflora no

texto é simples: deixai as coisas comoestão, deixai-nos plantar nossoalgodão, alargar nossas fronteiras,comprar escravos do Norte, ganhardinheiro com o tráfico etc.Se o nosso regime escravocrata deviaenfrentar a Inglaterra, o laissez-fairealgodoeiro do Sul desafiava a União,de onde partiam as leis restritivas:"Por volta de 1854", diz John HopeFranklin no seu admirável From

Slavery to Freedom, "os que setinham engajado no comércio africanode escravos tornaram-se tão isolentesque advogavam abertamente areabertura oficial de sua atividade".Entre 1854 e 1860 hão houveconvenção comercial sulista que nãoconsiderasse a proposta de reabrir o

tráfico. Na convenção do Montgomeryde 1858 desencadeou-se um debatefurioso sobre o problema. William L.Yancey, o comedor-de-fogo deAlabama, argumentava, com certalógica, que "se é um direito comprarescravos na Virgínia e levá-los aNova Orleans, por que não é direitocomprá-los em Cuba, no Brasil, ou naÁfrica, e levá-los para lá?". NovaOrleans era, em 1858, o grandemercado negreiro americano.Continua Franklin: "No ano seguinte,em Vicksburg, a convenção votoufavoravelmente uma resoluçãorecomendando que "todas as leis,estaduais ou federais, que proíbem ocomércio africano de escravos,deveriam ser revogadas'. Só osestados do Sul superior ("upperSouth"), que desfrutavam dos lucrosobtidos pelo tráfico doméstico deescravos, se opuseram à reabertura dotráfico africano" 24. O desrespeito àlei antitráfico foi, nos Estados Unidosdos anos 50, tão frontal quanto o doBrasil nos anos 40. Cá e lá, aliberdade, sem mediações, do Capitalexigia a total sujeição do trabalho.

It was freedom to destroy freedom:dialética do liberalismo no seumomento de expansão a qualquercusto.

Um erudito historiador baianoescreveu, em 1844, um libelo contra a"deslealdade" da Inglaterra que,afetando ser amiga da nova naçãobrasileira, agia em nosso desfavorimpedindo que a lavoura recebesse apreciosa mão-de-obra africana.

Trata-se do dr. A.J. Mello Moraes edo seu opúsculo: A Inglaterra e seostractados. Memória, na qualpreviamente se demonstra que aInglaterra não tem sido leal até opresente no cumprimento dos seustractados. Aos srs. deputados geraesda futura sessão legislativa de 1845.

23 DORFMAN, J. The economic mind in american civilization. New York, Augustes M.

Kelley Publishers, 1966. Ver especialmente o capítulo "The Southern Tradition oflaissez-faire". A involução do liberalismo do Sul para uma ideologia escravista totalchamou a atenção de um ensaísta contemporâneo, lido por Marx e Engels, JohnCairnes, que escreveu The Slave Power, em 1863.

24 FRANKLIN, J.H. From slavery to freedom. 5ª ed. New York, Alfredo Knopf, 1980.p. 81.

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Descontadas certasdiferenças culturais,

salta à vista dohistoriador a formação

de uma ideologialiberal-escravista

comum às três áreasem que a atividadeagroexportadora se

fez m ais intensa apartir dos anos de

1830: o Brasil cafeeiro,o Sul algodoeiro e as

Antilhas canavieiras,especialmente Cuba.

ser reacionário em política, mas"anárquico" em economia: abaixo ainterferência do Estado, tudo para ainiciativa privadaNo Brasil, por míngua de densidadecultural, a apologia do tráfico e docativeiro não chegou a assumir formas

tão elaboradas como no Velho Sulamericano, onde a escravidão foichamada, um sem número de vezes,"pedra angular (corner-stone) dasliberdades civis".

Sigo a leitura convincente de GunnarMyrdal em An American Dilemma:"Politicamente os brancos eram todosiguais enquanto cidadãos livres. Livrecompetição e liberdade pessoal lhes

estavam asseguradas. Os estadistas doSul e os seus escritores martelaramnessa tese, de que a escravidão, e só aescravidão, produzia a mais perfeitaigualdade e a mais substancialliberdade para os cidadãos livres nasociedade" 28.A presença ubíqua dos negrosnivelava, sob um certo aspecto, todosos brancos, pois os chamava para umespaço comum, que os opunha, em

bloco, à raça subordinada. O trabalhoescravo se constituía em condiçãoprimeira para a existência social dobranco livre e proprietário. É oraciocínio de um escravista muitopopular no período pré-bélico,Jefferson Davis. Do ponto de vista dalógica da dominação, um raciocínioperfeito.A combinação de laissez-faire,soberbo individualismo dos senhores,

patriarcalismo grávido de arbítrio efavor, antiprotecionismo no que toca àindústria e elogio da vida rural foi-seconstruindo solidamente a partir dosanos de 1830, "sob a dupla influênciada crescente lucratividade daescravidão na economia de plantation

e das arremetidas do movimentoabolicionista do Norte" 29.Uma linguagem ao mesmo tempoliberal e escravista se tornouhistoricamente possível; ao mesmotempo, refluía para as sombras doesquecimento a coerência

radical-ilustrada da inteligência queamadurecera no último quartel doséculo XVIII.Em Cuba, outra área típica delatifúndio exportador, a prosperidadeda economia canavieira, a partirdesses mesmos anos 30, resfriou osideais libertários e enrijeceu opensamento oligárquico:"O corpo universal das idéias foiremodelado e adaptado para descreverou explicar a condição domésticacubana. A elite exibiu umcosmopolitismo e um refinamentoinsólitos para o seu tempo elugar—tanto mais surpreendente na suasituação colonial. Forçada a defendera escravidão, essa elite postulou osdireitos de propriedade e a segurançada civilização — eufemismos aceitoscomo argumentos raciais eeconômicos. Os escravos africanos

eram bens. A abolição ameaçava ser aruína e chegava-se até a arrazoar deum modo contorcido que o cativeiroera um meio de civilizar os africanos.O raciocínio e os argumentos nãoeram novos nem originalmentecubanos" 30 .Descontadas certas diferençasculturais, salta à vista do historiador aformação de uma ideologialiberal-escravista comum às três áreas

em que a atividade agroexportadora sefez mais intensa a partir dos anos de1830: o Brasil cafeeiro, o Sulalgodoeiro e as Antilhas canavieiras,especialmente Cuba. Em todas, obraço escravo deu suporte ao regressooligárquico. Essa nova decolagem da

28 MYRDAL, G. An american dilemma: the negro problem in a modern democracy.New York, Harper & Brothers, 1944. p. 442.

29

Ibid., p. 441.30 KNIGHT, F.W. Slavery, race and social structure in Cuba during the 19 th. Century.In: TOPLIN, R.B., org. Slavery and race relations in Latin America. Connecticut,Greenwood Press, 1970. p. 221. A fusão de liberalismo, nativismo antiespanhol edefesa da escravidão em Cuba foi também observada por Eugênio D. Genovese em OMundo dos Senhores de Escravos. Rio, Paz e Terra, 1979. p. 75-80.

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economia escravista não escapou aoolho agudo de Tavares Bastos, quetudo via e tudo criticava postado noseu observatório americanófílo 31.Quanto às formações sociais andinas eplatinas, onde a presença do africanotinha sido modesta ou nenhuma,

construía-se, naquela altura e com asmesmas pedras de uma ideologiaexcludente, o que o estudiosoguatemalteco Severo Martínez Peláezchamou com precisão "la patria delcriollo" 32 .A leitura que Franklin Knight fez doliberalismo cubano vale-se deconceitos como remodelagem eadaptação para qualificar osprocessos mediante os quais uma

ideologia de origem européia penetrounas mentes e nos corações doproprietário americano. Filtrou-setão-somente o que convinha àspráticas da dominação local.Cabe uma dúvida: teria o primeiroliberalismo ortodoxo brechas quepermitissem algum tipo decontemplação com o trabalho escravonas colônias?Evidentemente, a resposta cabe aosperitos em análise dos textos deSmith, Say e Bentham. Contento-meem levantar uma ponta do véu.Adam Smith escreveu A Riqueza dasNações nos anos 70 do século XVIII.A sua luta antimercantilista é bemconhecida. Monopólios, corporações,privilégios, entraves legais ouconsuetudinarios: eis os seus alvosmaiores. Na época, o tráfico eraintenso e explorado principalmentepela marinha comercial inglesa. Ocativeiro mantinha-se como regra nosEstados Unidos e em todas as colôniasbritânicas, holandesas, francesas,espanholas e portuguesas. Smithpronuncia-se pela superioridade dotrabalho assalariado que lhe parecemais lucrativo além de ético. Este, oprincípio geral. Ao tratar, porém, das

colônias, a sua abordagem assume umtom neutro e utilitário. Não se lê, aí,uma crítica explícita da escravidão doponto de vista econômico. Há apenaso registro de que "a boaadministração" (good management)do escravo é sempre mais rendosa doque os maus tratos:"Mas, tal como o lucro e êxito docultivo executado pelo gado dependemuito da boa administração dessemesmo gado, também o lucro e êxitoda cultura executada pelos escravosdependerá igualmente de uma boaadministração desses escravos; e,nesse aspecto, os plantadoresfranceses, como penso ser doconsenso geral, são superiores aosingleses" 33 . Um pouco adiante,repisa: "Esta superioridade tem-setraduzido especialmente na boaadministração dos seus escravos" 34.Enfim: "Este tratamento não só tornao escravo mais fiel como ainda o tornamais inteligente e, portanto, maisútil" 35 . Os nossos prudentesecônomos jesuítas, Antonil e Benci,não tinham recomendado coisa muitodiferente aos senhores de engenhonordestinos no romper dosSetecentos...Uma hipótese provável é que, no seufazer-se, entre empírico e ideal, anova ciência das riquezas ainda nãodesenvolvera uma formulação cabale unívoca que desse conta também doproblema da rentabilidade do escravonas colônias. O valor atribuído aotrabalho livre, cerne da EconomiaPolítica, não suprimia, de todo, o veioutilitarista e a capacidade de relataridoneamente o que estavaacontecendo, de fato, nas grandesfazendas do Novo Mundo.

Curiosa, nessa ordem de idéias, é aforma pela qual o maior divulgador deAdam Smith, Jean-Baptiste Say,enfrenta a questão crucial do cotejodo trabalho cativo com o assalariado.

31

BASTOS, T. Cartas do Solitário. 4- ed. São Paulo, Cia. Ed.-Nacional, 1945. Carta XI.32 MARTÍNEZ PELÁEZ, S. La patria del criollo. Costa Rica, Editorial UniversitáriaCentroamericana, 1973.

33 SMITH, A. A riqueza das nações. Lisboa, Calonste Gulbenkian, 1983. v. II, p. 137.34 Ibid., p. 139.35 Id. ibid., p. 138.

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Say, cujos textos foram canônicos noBrasil e nos Estados Unidos durante oséculo XIX, acusa a degradação a quedescem senhores e escravos, e advogaa industrialização e o trabalho livre.Ao falar, porém, das colônias,procura relativizar o seu mestre Smithe os predecessores Steuart e Turgot noque toca ao custo do regimeescravista; para tanto, expõe, lado alado, as posições conflitantes:"Autores filantropos acreditaram queo melhor meio de afastar os homensdessa prática odiosa estava emdemonstrar que ela é contrária a seuspróprios interesses. Steuart, Turgot eSmith concordam na crença de que otrabalho do escravo custa mais caro eproduz menos do que o do homemlivre. Seus argumentos se reduzem aoseguinte: um homem que não trabalhae não consome por conta própriatrabalha o mínimo e consome omáximo que pode; não tem nenhuminteresse em dedicar a seus trabalhos ainteligência e o cuidado capazes deassegurar seu sucesso; o trabalhoexcessivo com que é sobrecarregadodiminui sua vida, obrigando seusenhor a onerosas substituições. Porúltimo, é o servidor livre queadministra a sua própria manutenção,

ao passo que cabe ao senhor aadministração da manutenção de seuescravo; ora, visto ser impossível queo senhor administre com tantaeconomia quanto o servidor livre, oserviço do escravo deverá custar-lhemais caro.

Os que pensam que o trabalho doescravo é menos dispendioso do que odo servidor livre fazem um cálculosemelhante ao seguinte: a manutençãoatual de um negro das Antilhas, nashabitações em que são mantidos commais humanidade, não custa mais de300 francos. Acrescentamos a isso ojuro de seu preço de compra eestimemo-lo em 10%, pois se trata deum juro perpétuo. O preço de umnegro comum, sendo de 2 mil francos,mais ou menos, o juro será de 200francos, calculados por cima. Assim,pode-se estimar que cada negro custa,por ano, 500 francos a seu senhor.Ora, num mesmo país o trabalho deum homem livre custa mais do queisso. Pode cobrar por sua jornada detrabalho uma base de 5, 6 ou 7francos e às vezes até mais. Tomemos6 francos como média e só contemostrezentos dias de trabalho por ano.Isso dá, como soma de seus salários •

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anuais, 1800 em vez de 500francos 36

Nos parágrafos seguintes Sayreproduz, sem contestá-la, aargumentação dos escravistas aolembrar a exigüidade real doconsumo, própria do cativo ("sua

alimentação se reduz à mandioca, àqual, na casa de senhores bondosos,se acrescenta de tempos em temposum pouco de bacalhau seco"); aindigência de sua veste ("uma calça eum colete compõem todo oguarda-roupa de um negro"); amiséria de sua habitação ("seualojamento é uma cabana sem nenhummóvel"); enfim, a carência desoladoraa que se reduz a sua vida pessoal: "adoce atração que une os sexos estásubmetida aos cálculos de umsenhor".A somatória desses vários fatoresresultará, objetivamente, na altarentabilidade das plantações coloniais:"Foi provavelmente por isso que oslucros de um engenho de açúcar erama tal ponto exagerados que seafirmava, em São Domingos, que umaplantação, em seis anos, devia

reembolsar ao proprietário o preço decompra, e que os colonos das ilhasinglesas, segundo o próprio Smith,concordavam que o rum e o melaçobastavam para cobrir os custos doengenho, todo o açúcar sendo purolucro" 37 .

Chegado a este ponto, em que a teseescravista já foi apresentada comoválida ou, ao menos, exeqüível, Sayopera um corte brusco: "Seja como

for, tudo mudou". A situação dasAntilhas já é outra. Ele escreve em1802, quando se dá uma queda nocomércio colonial em virtude daconcorrência do açúcar de beterrabaeuropeu. O trabalho livre parece-lhealcançar a merecida primazia, o que éum trunfo para a nova ortodoxiaburguesa. Embora o seu pragmatismovisceral ainda observe que, nosengenhos de Cuba e de Jamaica, otrabalho do negro parece ser, de fato,

o mais apropriado (o europeu aí nãoresiste, o escravo tem menos ambiçãoe menos necessidade, o sol lá éardente e o cultivo da cana, penoso), alinha de pensamento se volta para asteses ilustradas que, desde o últimoquartel do século XVIII, vinhamcondenando os exclusivos coloniais eo tráfico negreiro como barreiraserguidas contra o progresso e acivilização."A escravidão não pode sobrevivermuito tempo na proximidade denações negras libertas ou mesmo decidadãos negros, como existem nosEstados Unidos. Essa instituiçãocontrasta com todas as outras eterminará por desaparecergradualmente. Nas colônias européias,ela só pode durar com o amparo dasforças da metrópole, e essa,tornando-se esclarecida, terminará porretirar-lhe o apoio" 38 . A profecia deSay tardou a cumprir-se, não só emrelação às colônias (Cuba, Antilhas,Guiana), quanto em relação aosEstados Unidos, já independentes, eao Brasil. E em parte nenhuma oregime de cativeiro foi extinto semcontrastes, por obra espontânea dossenhores: as fugas e rebeliões dosnegros, a luta de grupos abolicionistase a ação final do Estado foram, emtodos os casos, determinantes. Asoligarquias resistiram enquantopuderam.

O Traité saiu em 1803. Em 1807 aInglaterra proíbe o tráfico. Noentanto, a escravidão é restabelecidapor Bonaparte depois da sangrenta

revolta do Haiti. E o algodão noVelho Sul, o açúcar em Cuba e o caféno Brasil fariam recrudescer a práticado trabalho escravo e estimular otráfico com uma intensidade nuncavista. A primeira metade do séculoXIX foi um período febril doescravismo; e é à luz desse contextoafro-americano da economia deplantagem que se pode entender aideologia regressista dos liberaisbrasileiros, e não só brasileiros.

36 SAY, Jean-Baptiste. Tratado de economia política. São Paulo, Nova Cultural, 1986.Livro I, cap. 19.

37 Ibid.38 Id lac. cit.

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Oligarquia e NeutralizaçãoIdeológica

Os interesses dos senhores ruraiscontavam com uma Carta que tambémservira de escudo aos moderados apósa Abdicação. Antigos pais da pátria,como Evaristo e Bernardo de

Vasconcelos, acabaram encalhando noareai de um sistema parlamentar debaixíssimo grau de representação:

"Nada de excessos, a linha estátraçada, é a da Constituição. Tornarprática a Constituição que existe nopapel deve ser o esforço dos liberais" são palavras de um lutadorhistórico, Evaristo da Veiga, na suaAurora Fluminense de 9 de setembrode 1829 39 . "Queremos a Constituição— não a Revolução". O mesmohomem, que a historiografia daRegência costuma opor aoregressismo, traçava com meridianaclareza a linha de separação entre oseu próprio liberalismo, que defendia,e a "democracia", que rejeitava:

O princípio da soberania popular era,no seu juízo, "contrário: (lº) ao fatoda desigualdade, estabelecida pela

natureza entre as capacidades e aspotências individuais; (2º) ao fato dadesigualdade de capacidadesprovocada pela diferença de posições;(3º) à experiência do mundo que viusempre os tímidos seguirem aosbravos, os menos hábeis obedeceremaos mais hábeis, as inferioridadesnaturais reconhecerem assuperioridades naturais e lhesobedecerem. O princípio da soberaniado povo, isto é, o direito igual dosindivíduos à soberania, e o direito detodos os indivíduos de concorrer àsoberania é radicalmente falso porque,sob pretexto de manter a igualdadelegítima, ele introduz violentamente aigualdade onde não existe e viola adesigualdade legítima" 40 .

E qual seria o locus partidário dessesliberais que, exatamente comopensava Evaristo, tinham por legítimaa desigualdade?

A resposta deve buscar-se na mutantebiografia política dos moderados de31, dos regressistas de 36, dosconservadores dos anos 40, dosconciliadores e ligueiros dos anos 50.

Nabuco de Araújo foi primeiroconservador, depois conciliador eligueiro, enfim neoliberal. Paraná,Torres Homem e Rio Branco foramprimeiro liberais, depoisconservadores de centro. Zacarias,Saraiva, Paranaguá e Sinimbu,primeiro conservadores, depoisliberais. Vasconcelos, Paulino deSousa e Rodrigues Torres, primeiromoderados, depois cardeais deconservadorismo. Para todos, e poucoimporta aqui o nome do grupo, a

própria noção de liberdade fora umaherança transmitida pela geração queos precedera entre 1808 e 1831.Assentados nessa plataforma,convinha-lhes a facção eleitoral que,em cada conjuntura, melhor osresguardasse. É o acerto da frasesardônica: "Nada mais parecido comum saquarema do que um luzia nopoder".Até meados do século, o discurso, ou

o silêncio, de todos foi cúmplice dotráfico e da escravidão. O seuliberalismo, parcial e seletivo, não eraincongruente: operava a filtragem dossignificados compatíveis com aliberdade intra-oligárquica edescartava as conotações importunas,isto é, as exigências abstratas doliberalismo europeu que não secoadunassem com as particularidadesda nova nação.

Um testemunho abalizado do quechamo de filtragem ideológica é o deEusébio de Queirós, cujo nome estáassociado à lei que proibiu finalmenteo tráfico em 1850, depois de tantosenfrentamentos com o governobritânico. Falando do aspecto moraldo comércio negreiro, Eusébio,ministro da Justiça e ex-chefe dePolícia do Rio de Janeiro, procede auma descriminalização dessaatividade:

Até meados do século,o discurso, ou o

silêncio, de todos foicúmplice d o tráfico e

da escravidão.

39 TARQÜÍNIO de SOUSA. Evaristo da Veiga, op. cit., p. 61.40 Em O Independente, 14 de março de 1832, apud Augustin Wernet, Sociedades

políticas (1831-32). São Paulo, Cultrix, 1978. p. 67.

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"Sejamos francos: o tráfico, no Brasil,prendia-se a interesses, ou paramelhor dizer, a presumidos interessesdos nossos agricultores; e num paísem que a agricultura tem tamanhaforça, era natural que a opiniãopública se manifestasse em favor do

tráfico; a opinião pública que tamanhainfluência tem, não só nos governosrepresentativos, como até nas própriasmonarquias absolutas. O que há poispara admirar em que os nossoshomens políticos se curvassem a essalei da necessidade? O que há paraadmirar em que nós todos, amigos ouinimigos do tráfico, nos curvássemosa essa necessidade?

Senhores, se isso fosse crime, seriacrime geral no Brasil; mas eu sustentoque, quando em uma nação todos ospartidos políticos ocupam o poder,quando todos os seus homenspolíticos têm sido chamados aexercê-lo, e todos eles são concordesem uma conduta, é preciso que essaconduta seja apoiada em razões muitofortes; impossível que ela seja umcrime e haveria temeridade emchamá-la um erro" 41 .

O tráfico fora suspenso, mas a suaapologia ainda se fazia presente naboca daqueles mesmos que tinhamsido obrigados a proibi-lo de vez.Uma posição mais crua se dá ao olhardo historiador quando este se volta dodiscurso oficial para um depoimentosem rebuços, feito pelo dono de umavelha casa comercial do Rio,amargamente ressentido com asemissões bancárias que jorraramdepois da extinção do tráfico (estariaele envolvido no mercado negreiro?):"Antes bons negros da costa daÁfrica para felicidade sua e nossa, adespeito de toda a mórbida filantropiabritânica, que esquecida da suaprópria casa deixa morrer de fome opobre irmão branco, escravo semsenhor que dele se compadeça, ehipócrita ou estólida chora, exposta aoridículo da verdadeira filantropia, ofardo do nosso escravo feliz. Antes

bons negros da costa da África paracultivar os nossos campos férteis doque todas as tetéias da rua doOuvidor, do que vestidos de um contoe quinhentos mil réis para as nossasmulheres; (...) do que, finalmente,empresas mal avisadas muito além das

legítimas forças do país, as quais,perturbando as relações da sociedade,produzindo uma deslocação detrabalho, têm promovido mais quetudo a escassez e alto preço dosvíveres" 42 .

José de Alencar, um dos campeões dostatus quo nos debates de 1871,lamentaria, em estilo menos brutal, osmales da especulação financeira, dojogo bolsista e do luxo corruptor queo papel-moeda fácil trazia aoscostumes da Corte. E identificaria oritmo lento e pesado da velhaeconomia (leia-se: o pleno domínio dotráfico) com os seus próprios valoresde honra e austeridade. É a suma dapeça O Crédito, levada à cena em1857, e que pode ser interpretadacomo a metáfora do nosso capitalismoacanhado. Retomando a questão emuma das suas Canas a Erasmo,

dirigida ao mentor financeiro doImpério, o visconde de Itaboraí,Alencar ressaltaria a conveniência deaplicar-se o novo crédito bancário àprodução agrícola, ou seja, anecessidade de se estreitarem osvínculos entre o poder monetário doEstado e a economia do latifúndio. Oescritor alegava, em favor do seuprojeto, a razão de ser o Brasil "umpaís novo, onde se pode dizer que a

grande propriedade ainda está emgestação"... A inflação, que, para aortodoxia de Itaboraí, era um mal,subiria ao nível de mal necessáriodesde que beneficiasse o senhor deterras. Reprodução e autodefesa como suporte dos cofres públicos: limitesdo que se poderia chamar a ideologiadominante pós-colonial. Nessaconcepção, o pecado da livre-emissãosó era julgado mortal quandocometido fora do legítimo consórciocom o interesse da "grande

41 Apud NABUCO, J. O Abolicionismo, op. cit.42 Apud NABUCO, J. Um Estadista ... op. cit., p. 217-18.

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propriedade". Alencar, nas mesmasCanas, ainda verbera os impostos e a"empregocracia", e condena, nosmesmos termos de Cairu eVasconcelos, a proteção a "fábricas emanufaturas não existentes nemsonhadas no país". Um liberalismo

pré-industrial coerente ajustava-se àsnossas rotinas oligárquicas.Liberalismo ou conservadorismo? Aneutralização é vivida e formulada aolongo dos anos 50. Já não há lugarpara profissões de féideológico-partidárias, tal é a unidadede valores subjacente aos interessesde facção. O senador Nabuco deAraújo, em pleno trânsito daConciliação para a Liga, busca

entender as causas desseindiferentismo doutrinário pelo qual onome "liberal" traduzia um conteúdoconformista; e as identifica naquiloque lhe parece ser a homogeneidadedo corpo social brasileiro:"Eu concedo que em uma sociedade,onde há classes privilegiadas, ondeexistem interesses distintos eheterogêneos, onde ainda domina oprincípio do feudalismo, aí haja, como

na Inglaterra, partidos que sobrevivemaos séculos; mas onde os elementossão homogêneos, como em nossasociedade, na qual não há privilégios,na qual os partidos representamsomente princípios de atualidade quetodos os dias variam e se modificam,aí os partidos são precários" 43 .O discurso, proferido em 13 de junhode 1857, deixa de nos parecerescandaloso, se entendermos pela

expressão nossa sociedade, não opovo brasileiro em geral, mas apenasaquele círculo de homens elegíveiseconomicamente qualificados e,portanto, aptos para a ação políticanos termos da Carta de 1824. Dentrodesse espaço fechado era, de fato,pertinente indagar: para que partidosideológicos conflitantes, se tudo sereduzia a um loteamento de cargos,influências e honrarias?

O marquês do Paraná, chefe dogabinete conciliador a que Nabucoservia, pensava da mesma maneiraquando reconhecia no "estado em quese achava a sociedade" o móvel dafusão dos antigos liberais com osconservadores de sempre.

É também verdade que esseliberalismo corporativo assumia àsvezes um tom exaltado quando algumaconjuntura o encostasse à margem dopoder. Aparecia então a retóricademocrática feita de puroressentimento pessoal ou grupal, queengana, mas por breve tempo. Umexemplo forte se tem no Libelo doPovo, de Timandro, pseudônimo deSales Torres Homem, diatribe contra o

poder pessoal do Imperador. Opanfleto foi considerado, em 1849,radical, mas o seu alvo não era aefetiva opressão política do regime:investia apenas contra a Casa deBragança, descompunha a famíliareinante e, por tabela, a tiraniaportuguesa. O autor passou-se maistarde para as fileiras palacianas e foiagraciado com o título de visconde deInhomirim. Desses liberais dirá umfilho de mulher africana nas TrovasBurlescas:"Se ardente campeão da liberdadeApregoa dos povos a igualdade,Libelos escrevendo formidáveis,Com frase de peçonha impenetráveis:Já do céu perscrutando alta eminência.

Abandona os troféus da inteligência,Ao som d'argém (argent?) se curva,qual vilão,O nome vende, a glória, a posição:É que o sábio, no Brasil, só querlambançaQue possa empantufar a largapança " 44 .Na Província, truncado a ferro e fogoo ciclo das revoltas, o quadropartidário também estagnou em umadesismo larvar, sintoma da suadependência para com os ditames daCorte. Assim ironiza as facções de sua

43 NABUCO, J. Um Estadista ... op. cit., p. 319.44 GAMA, L. (Getulino). Primeiras trovas burlescas. 3- ed. São Paulo, Tip. Bentley

Júnior & Comp, 1904.

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terra maranhense um jornalista depulso, João Francisco Lisboa:"Em geral... têm sido favoráveis aogoverno central, e só lhe declaramguerra, quando de todo perderam aesperança de obter o seu apoio contraos partidos adversos que mais hábeis

ou mais felizes souberam acareá-lopara si. Quando o Exmo. Sr. BernardoBonifácio, importunado das recíprocasrecriminações e dos indefectíveisprotestos de adesão e apoio destesilustres chefes, os interrogava ousondava apenas, respondiam eles,cada um por seu turno: — A divisa dosCangambás é Imperador, Constituiçãoe Ordem. Os Mossorocas só querem aConstituição com o Imperador, únicasgarantias que temos de paz eestabilidade. Os Jaburus sãoconhecidos pela sua longa einabalável fidelidade aos princípios deordem e monarquia; o Brasil não podemedrar senão à sombra protetora doTrono. Vêm os Bacuraus porderradeiro e dizem: Nós professamosem teoria os princípios populares; massomos assaz ilustrados paraconhecermos que o estado do Brasilnão comporta ainda o ensaio de certasinstituições. Aceitamos pois semescrúpulos a atual ordem de cousas,

como fato consumado, uma vez quenos garanta o gozo de todas asregalias dos cidadãos. Estamos atédispostos a prestar-lhe a mais franca eleal cooperação" (Jornal de Timon:"Partidos e Eleições no Maranhão").O teor informativo do texto nos dá a

imagem nítida da situação no interiorsob o domínio do interesseoligárquico que vários clãspartilhavam. Mas a perspectiva já écrítica e, no seu movimento, dialética,pois aponta para um liberalismosuperior que, naquela altura, mal sevislumbrava, mas que pulsava e, cedoou tarde, irromperia.

A Formação do Novo Liberalismo

"O lavrador brasileiro devereconhecer que chegou já, porimposição do destino, ao regime dotrabalho assalariado."Quintino Bocayuva, A Crise da Lavoura, 1868.

"As instituições existem, mas por epara 30% dos cidadãos. Proponhouma reforma no estilo político. Não sedeve dizer: 'consultar a nação,representantes da nação, os poderesda nação'; mas 'consultar os 30%,representantes dos 30%, poderes dos30%'. A opinião pública é uma

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metáfora sem base; há só a opiniãodos 30%."Machado de Assis, História d e Quinze Dias,crônica, 15 de agosto d e 1876.

"Ou o campo ou as cidades; ou aescravidão ou a civilização; ou osClubes da Lavoura ou a imprensa, os

centros intelectuais, a mentalidade e aa moralidade esclarecida do país."Joaquim Nabuco, O terreno d a luta", Jornal doComércio, 19 de julh o de 1884.

Se o caráter principal doacontecimento é poder situar-se comprecisão nas coordenadas do espaço edo tempo, o mesmo não se dá com oprocesso ideológico. Este não surgede improviso ou por acaso, de um diapara o outro. Sua matéria-prima sãoidéias afetadas de valores, e idéias evalores se formam lentamente, comidas e vindas, no curso da história, nacabeça e no coração dos homens. Noentanto, como a ponta do iceberg éclaro indício da existência de massassubmersas cuja profundidade não sepode calcular a olho nu, tambémcertas situações, rigorosamentedatadas, ao se armarem, servem depista ao leitor de ideologias paradetectar correntes que vêm de longe.A data exerce, então, o papel de signoostensivo de uma viragem.A historiografia é unânime emassinalar o ano de 1868 como ogrande divisor de águas entre a fasemais estável do Segundo Império e asua longa crise que culminaria, 20anos mais tarde, com a Abolição e aRepública.A data de 1868 aqui importa porquenela se ouve um toque de reunião (oestilo hugoano do tempo inspirariaimagens de "clarinada" e "clangor detrompas") dos liberais, entãorevoltados com o gesto abrupto dePedro II que acabara de demitir ogabinete de Zacarias de Góis,majoritário no Parlamento.A decisão, embora traumática, nãoferia a lei maior, figurando entre asatribuições do Poder Moderador. Mas

o seu efeito foi o de um catalisador dede forças dispersas. E são asressonâncias do ato que compõem anova situação e valem como aquelaponta do iceberg. A reação dospolíticos, da imprensa, dosintelectuais, dos centros acadêmicosem todo o País, aparece como umacadeia de elos significativos e remetepergunta pelos valores em causa. Queliberalismo é esse que sai a campo embusca de um programa de reformasamplas, e já não se sente um meroventríloquo das dissidênciasoligárquicas?A crise de 68 é o momento agudo deum processo que, de 65 a 71, levou àLei do Ventre Livre. Analisada poresse ângulo, é uma crise de passagemdo Regresso agromercantil, emperradoe escravista, para um reformismoarejado e confiante no valor dotrabalho livre. Essa leitura dos fatostem a sua verdade, mas é preciso quese distinga com clareza a vertenteliberal-radical (expressão queaparece, pela primeira vez, em 1866,na folha A Opinião Liberal), doconjunto bastante híbrido que foi oPartido Liberal até a aboliçãocompleta em 1888.Nos últimos decênios do Império astendências progressistas circulam peloPartido Liberal e pelo Republicano,mas não coincidem perfeitamente nemcom um nem com o outro. E haveráresistências conservadoras, e atéescravistas, em ambos os grêmios 45 .A história do novo liberalismo, paracontinuar usando a expressão de

Joaquim Nabuco, pode ser apreendidatanto no ritmo da longa duraçãoquanto no das conjunturas.Pelo primeiro, que contempla o níveldos sistemas, a relação se faz entre anova corrente ideológica, visíveldesde os anos 60, e o dinamismoeconômico e social que a extinção dotráfico instaurou no País já a partir de1850. Os capitais, que montavam emcerca de 16 mil contos, liberados paraafluir ao comércio, à manufatura, à

45 SANTOS, J.M. A política geral do Brasil. São Paulo, J. Magalhães, 1930. p. 133-54.(esp. cap. VIII, "A Abolição").

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rede de transportes ou ao puro jogo daBolsa, na verdade aceleraram oprocesso de urbanização e o empregodo trabalho assalariado. A situação foialimentada, estruturalmente, pelacontínua expansão agroexportadoraque a demanda internacional sustentouaté o fim do século: a existência deum mercado interno e de um pólourbano em desenvolvimento na regiãoSudeste foi a condição necessária paraa emergência de valores liberais maisamplos do que os professados pelodiscurso intra-oligárquico. "Ou ocampo ou as cidades; ou a escravidãoou a civilização" 46 .Ainda em termos de infra-estrutura: naregião nordestina, esvaziadarapidamente pelo tráfico interno, quevendia o braço negro aos fazendeirosdo Sul, o trabalho sob contrato já setornara fato consumado entre os anos60 e 70. Notava, então, o primeiroideólogo de nossa modernizaçãocapitalista, Tavares Bastos:

"Apontarei o fato de já estarem emPernambuco, no Rio Grande do Nortee na Paraíba, os homens livres,admitidos por salário ao trabalho dospróprios engenhos e plantações deaçúcar. Digo o mesmo do Cearáquanto à nascente lavoura de café.Não obstante a cólera e a exportaçãode escravos para o Sul, a produçãodaquelas províncias não temdiminuído; a do Ceará tem aumentadomuito. A sua agricultura vai-semelhorando, introduzindo o arado eaplicando os motores a vapor. Osenhor de engenho, nalgumas

localidades, quase que se vai tornandomero fabricante de açúcar, sendoplantada por vizinhos, ou lavradoresagregados, grande parte da canamoída no engenho, o que é umadivisão econômica do trabalho" 47 .Uma das tônicas das Cartas doSolitário, escritas a partir de 1861para o Correio Mercantil, era a

necessidade e a superioridade dotrabalho livre.Um pensamento liberal moderno, emtudo oposto ao pesado escravismo dosanos 40, pôde formular-se tanto entrepolíticos e intelectuais das cidadesmais importantes, quanto junto a

bacharéis egressos das famíliasnordestinas que pouco ou nadapodiam esperar do cativeiro emdeclínio.O novo liberalismo será urbano, emgeral; e será nordestino, em part icul

Quanto às tendências ideológicas dosfazendeiros de café tidos por maismodernos (principalmente os do NovoOeste paulista), seriam, na verdade,muito peculiares. Neles, o que parece,à primeira vista, antiescravismo, é, arigor, imigrantismo. O fato de teremsubido ao poder com a proclamaçãoda República deu-lhes uma posiçãohegemônica que lhes permitiriaresolver a questão do trabalho ruralem termos próprios, estreitos epragmáticos. Os seus planostangenciaram, mas não seconfundiram com as idéias reformistas

que vão de Tavares Bastos aRebouças, de Quintino Bocayuva aJoaquim Nabuco.Distinguir entre correntes de opiniãoe grupos partidários se faz umanecessidade aguda quando se passa deuma perspectiva de longa duração — aque corre entre os anos 60 e o fim doImpério — para a análise miúda dasações e reações gremiais. Nos vaivénsda petite histoire, que o leitor dos

Anais do Parlamento poderáacompanhar, não é raro ver membrosdo Partido Conservador, aliciadospela Coroa, defender a libertação dosnascituros de mulher escrava (como opropuseram os gabinetes do marquêsde São Vicente e do visconde de RioBranco), ou surpreender atitudesretrógradas entre os filiados ao

Quanto às tendênciasideológicas dosfazendeiros de cafétidos por maismodernos principalmente os doNovo Oeste paulista),seriam, na verdade,muito peculiares.Neles, o que parece, àprimeira vista,antiescravismo, é, arigor, imigrantismo.

46 NABUCO, J. O terreno da luta. Jornal do Comércio, 19 jul., 1884.

47 BASTOS, T. Cartas do Solitário, op. cit., p. 268.48 "Na região nordestina de Pernambuco, por exemplo, onde o trabalho escravopredominara nas fazendas na época da Independência, já na década de 1870 o trabalholivre tornara-se mais importante" (EISENBERG, Peter L., A abolição da escravatura:o processo nas fazendas de açúcar em Pernambuco, in Estudos Econômicos, São Paulo,2(6): 181, dez. 1972.)

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Partido Liberal, como as do mineiroMartinho Campos, que mais de umavez se declarou "escravocrata dagema".Assim se deu também na questão daeleição direta, reforma grata aosradicais de 60: as opiniões se foram

repartindo conforme os interessesregionais e clânicos e sem levar emconta a cor partidária. Os velhosliberais moderados, que afinal aempreenderam, como Sinimbu eSaraiva, apoucaram-na a tal pontoque, mantido o censo pecuniário eliterário, reduziam o eleitorado a 1/20da população; o que provocou reaçõesindignadas em Silveira Martins,Saldanha Marinho e José Bonifácio, omoço, este último mestre de doisestreantes no Parlamento, Rui Barbosae Joaquim Nabuco. A intervenção doAndrada na sessão de 28 de abril de1879 virou matéria de antologiademocrática:"Neste país, a pirâmide do poderassenta sobre o vértice em vez deassentar sobre a base".Ou então, fazendo sátira à cláusulaoficial que proibia o voto ao

analfabeto:"Esta soberania de gramáticos é umerro de sintaxe política (apoiados erisos). Quem é o sujeito da oração?(Hilaridade prolongada). Não é opovo? Quem é o paciente? Ahdescobriram uma nova regra: é nãoempregar o sujeito (hilaridade) 49 .Mas qual o corte que separou, nofundo, os dois liberalismos? Se o temada eleição direta foi o mais vistoso, omodo de tratar a questão servil terácavado um divisor de águas maislargo: este é o olhar retrospectivo deJoaquim Nabuco, que teoriza ahistória do Império à luz da suaprática abolicionista. A memória dolutador traz ao primeiro plano da criseinstitucional de 1868 as inquietudes

sociais do pai, o Senador: "Eutraduzia documentos do Anti-SlaveryReporter para meu pai que, de 1868 a1871, foi quem mais influiu para fazeramadurecer a idéia daemancipação" 50.A clivagem é fundamental, e assim se

mantém até a hora em que a campanhase faria irreversível e o abolicionismotomaria o vulto de um verdadeiropartido dentro dos demais:"Em 1884 deu-se a conversão dopartido liberal e em 1888 a do partidoconservador" 51.Joaquim Nabuco tem plenaconsciência do contraste do novopensamento com o velho discursoregressista ou conciliador. São doisblocos históricos que incluem toda asociedade civil e se manifestam sob aforma difusa da opinião pública."A opinião, em 1845, julgava legítimae honesta a compra de africanostransportados traiçoeiramente daÁfrica, e introduzidos porcontrabando no Brasil" 52.No artigo "A reorganização doPartido Liberal", volta a ser incisivo

ao expor a dialética do liberalismo emface da escravidão:

"Aí está uma profunda divergênciaentre o novo liberalismo e o antigo, oqual ainda existe, em toda a sua força,mas felizmente tendo atingido ao seulimite de crescimento, e devendoportanto declinar e não maisexpandir-se. A primeira grandedivergência foi essa do abolicionismo,que opôs ao antigo espírito político dopartido o espírito verdadeiramentepopular, e substituiu a luta das tesesconstitucionais sem alcance e semhorizonte pela luta contra ospoderosos privilégios de classe,contrários ao desenvolvimento danação. Pela primeira vez então oPartido Liberal saiu do terreno das

49 Apud HOLANDA, S.B. Do Império à República. 4ª ed. São Paulo, Difel, 1985.p. 204.

50 NABUCO, J. Minha formação. Rio, José Olympic, 1957. p. 34.51 Ibid., p. 201.52 Id ibid., p. 59.

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discussões escolásticas, que sóinteressavam à classe governante, paraentrar no terreno das reformas sociais,que afetam as massas inconscientes dopovo" 53 .

Não se tratava, pois, de um simples"renascimento liberal", mas de umaideologia de oposição que metia a suacunha dentro do próprio partido. Umaforma conscientemente moderna depensar os problemas do trabalho e dacidadania. Se ao observador daHistória Ocidental essa apologia doassalariado poderá parecer um tantoretardatária, é porque o nossocapitalismo também era, na palavra deum seu intérprete feliz, um"capitalismo tardio" 54 . O autor da

expressão, o economista João ManuelCardoso de Melo, estudando oslimites internos à expansão do antigoregime, concluiu que "os últimos anosda década de Sessenta marcam a criseda economia mercantil-escravistacafeeira. E, como veremos, omomento decisivo da crise daeconomia colonial" 55.

A resposta à crise veio tanto dosmovimentos abolicionistas urbanos (enordestinos) quanto, logo depois, dapolítica imigrantista dos fazendeirosde São Paulo: as motivações sociais emorais eram diferentes entre si, mas,por sendas opostas, concorreram parao fim do cativeiro.

De qualquer modo, a ruptura doequilíbrio político em 1868 nãopoderia ter levado a medidas radicaispelo simples fato de o projeto

imigrantista não estar, àquela altura,amadurecido, mas apenas idealizadopor alguns homens públicos maissensíveis à escassez, real ou potencial,da mão-de-obra. As medidas práticasviriam 2 ou 3 lustros mais tarde.

Os textos polêmicos que exprimem oinconformismo liberal de 1868-69ainda não trazem como punctumdolens único a questão do trabalho;

esta aparece como item de umprograma no qual a ênfase é dada àreforma eleitoral. O novo liberalismo,de extração urbana, quer dar voz evoto aos seus virtuais eleitores:"Atualmente a aspiração mais ardentede todos os brasileiros esclarecidos,

como tem sido de todos os partidos deoposição, é liberdade ampla deeleição; pronunciamento franco daopinião do país nos comícioseleitorais" diz em carta pública JoséAntônio Saraiva ao conselheiroNabuco de Araújo que lhe pedira sua"opinião acerca das reformas quedevem figurar no programa liberal" 56 .

A conjuntura excitava o debatepreferencial sobre o tema da

representação. A derrubada doministério Zacarias e a nomeação deum gabinete confiado ao ultravisconde de Itaboraí tinham posto anu a força real do Poder Moderador ea impotência dos deputados; em suma,a precariedade de todo o sistemapartidário."Que o Sr. D. Pedro II tem de fato umpoder igual ao de Napoleão III, éoutra verdade de que eu estou

profundamente convencido. Aconstituição francesa, porém, é a basedo poder daquele monarca, ao passoque o falseamento do voto é a origemdo excessivo poder do Imperador doBrasil", acusava Saraiva.Mas convém atentar para um sintomade nova mentalidade. O protesto dosliberais não se esgotou no clamor poreleições diretas e livres de tropeliasprovocadas pelos coronéis. Nas ondas

dessa "maré democrática" também seimpõe e se move a idéia do trabalhoassalariado como projeto a médioprazo. Não é ainda a reivindicaçãoprimeira. Falta-lhe concreçãotemática; falta a resposta à grandepergunta: como substituir, aqui eagora, o braço negro, sustentoexclusivo do café? A liberdade dosnascituros mediante indenização éainda a proposta-limite. Mas, de

53 Em O País, 9 de dezembro de 1886; transcrito por Paula Beiguelman, JoaquimNabuco. Política. São Paulo, Ática, p. 136-7.

54 CARDOSO de MELO, J.M. O Capitalismo tardio. São Paulo, Brasiliense, 1982.55 Ibid., p. 72.56 O Centro Liberal. Ed, Senado Federal, Brasília, 1979. p. 44.

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qualquer modo, o princípio docontrato livre reponta e seráincontornável em mais de umcontexto.Na carta de Saraiva: "Do falseamentodas eleições derivam todas as nossasdificuldades, bem como do trabalho

escravo todos os nossos atrasosindustriais. São estes, pois, em meuhumilde conceito, os dois pontoscardeais para que devem convergircompletamente a atenção e o esforçodo Partido Liberal.Com a eleição livre, com adesaparição do elemento servil, e coma liberdade de imprensa que jápossuímos, o Brasil caminhará seguropara seus grandes e gloriosos

destinos, e em um futuro não muitoremoto colocar-se-á entre as naçõesmais adiantadas.Com a escravidão, porém, do homeme do voto, não obstante a liberdade denossa imprensa, continuaremos a ser,como somos hoje, menosprezadospelo mundo civilizado, que não podecompreender se progrida tão poucocom uma natureza tão rica".A polaridade semântica é esta: nossosatrasos vs. nações mais adiantadas.A consciência aguda do atraso seforma de Tavares Bastos a Nabuco, deRebouças a Rui Barbosa, em funçãodo contraste entre cativeiro e trabalholivre. Com os olhos postos naInglaterra e nos Estados Unidos osnossos políticos progressistasexercerão uma crítica cerrada aoregime.No Manifesto do Centro Liberal,lançado em março de 1869, além daradiografia dos abusos que seseguiram à subida dos conservadores,avulta a exigência de reformas jáentão vistas como o necessário meiotermo entre o regresso e a revolução:"Ou a reforma.Ou a revolução.A reforma para conjurar a revolução.A revolução, como conseqüêncianecessária da natureza das coisas, daausência do sistema representativo, do

exclusivismo e oligarquia de um sópartido.Não há que hesitar na escolha:A reformaE o País será salvo".Assinavam: José Thomaz Nabuco de

Araújo, Bernardo de Souza Franco,Zacarias de Góis e Vasconcellos,Antônio Pinto Chichorro da Gama,Francisco José Furtado, José PedroDias de Carvalho, João Lustosa daCunha Paranaguá, Teófilo BenedictoBenedicto Ottoni e FranciscoOctaviano de Almeida Rosa 57.Qual o conteúdo dessa reformasalvadora? O programa se formulouem outro texto, subscrito pelosmesmos nomes e publicadoinicialmente pelo Diário da Bahia em16 de maio de 1869. Compõe-se decinco pontos, dos quais o último é,literalmente,Emancipação dos escravos,seguido por este comentário restritivo:"consistindo na liberdade de todos osfilhos de escravos que nascerem desdea data da lei, e na alforria gradual dosescravos existentes, pelo modo que

será oportunamente declarado".Pode-se dizer que até a deflagração dacampanha abolicionista na Câmara ena imprensa, entre 1879 e 1880, asbandeiras liberais serão precisamenteestas: a liberdade dos nasciturosmediante ressarcimento e emancipaçãogradual dos escravos restantes.

Mais adiante, o Manifesto lança umparágrafo tático que denuncia o receiode dividir o novo partido em alasdivergentes, o que tornaria difícil aação do Centro Liberal em uma horaem que a unidade anticonservadora seimpunha:"A emancipação dos escravos não temíntima relação com o objeto principaldo programa, limitado a uma certaordem de abusos; é porém uma grandequestão da atualidade, uma exigênciaimperiosa e urgente da civilizaçãodesde que todos os Estados aboliram aescravidão, e o Brasil é o único país

A polaridadesemântica é esta:nossos atrasos vs .

nações mais adiantadas.A consciência aguda

do atraso se forma deTavares Bastos a

Nabuco, de R ebouças aRui Barbosa, e m

função do contrasteentre cativeiro etrabalho livre.

57 Ibid., p. 1000.

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cristão que a mantém, sendo que naEspanha esta questão é uma questãode dias.Certo, é um dever inerente à missãodo Partido Liberal, e uma grandeglória para ele a reivindicação daliberdade de tantos milhares de

homens que vivem na opressão e nahumilhação" 58.As tintas renovadoras do programaterão sido obra da ala móvel dopartido. Refletem o pensamento deTeófilo Ottoni, que dirigira umaexperiência de migração alemã noVale do Mucuri, de FranciscoOctaviano, de Tavares Bastos, deNabuco de Araújo. A evoluçãoideológica do último, que o filho

acompanhou passo a passo em UmEstadista do Império, faz supor quealguma coisa de mais profundoacontecera desde o seu cautocompromisso com a política senhorialaté a busca de uma alternativamoderna. A nova posição, de que foiparadigma o "discurso de sorites"proferido em 17 de julho de 1868,abriu, conforme o juízo enaltecedor deJoaquim Nabuco, "a fase final doImpério" 59.A oração assesta um golpe de mestreno estreito formalismo jurídico dosistema, precisamente no trecho emque distingue entre legalidade elegitimidade das instituições. Oassunto da polêmica era, como sesabe, a recente nomeação por Pedro IIde um gabinete conservador semrespaldo na Câmara: ato legal, poiscabia à Coroa escolher e demitir

ministérios; mas ato ilegítimo, porqueâ maioria absoluta do Parlamento eraliberal.Feita com clareza a distinção, emnome da consciência e da justiça,Nabuco de Araújo também a aplica àinstituição do cativeiro:"A escravidão, verbi gratia, entre nósé um fato autorizado pela lei, é um

fato legal, mas ninguém dirá que é umfato legítimo, porque é um fatocondenado pela lei divina, é um fatocondenado pela civilização, é um fatocondenado pelo mundo inteiro" 60 .

O que mudara, substancialmente?O novo liberalismo já tem plenascondições mentais para dizer que aescravidão, ainda que formalmentelegal, é ilegítima. O mesmo Nabuco,quatorze anos antes desse discurso,pensara e agira diversamente. Em1854, quando ministro da Justiça dogabinete conciliador de Paraná, eletinha pactuado com uma infamedecisão oficial que prescrevera, istoé, cancelara os efeitos da lei de 7 denovembro de 1831, pela qual aRegência conviera em declarar livresos africanos aqui desembarcadosdepois dessa data. O ministro Nabuconão só aceitara aquela aberta violaçãoda lei de 1831 como a defendera emtermos de razão de Estado,aconselhando o presidente daprovíncia de São Paulo a lançar mãodela no caso particular de umafricano, de nome Bento, trazidoclandestinamente ao Brasil após a

cessação legal do tráfico. O escravotinha fugido e, ao ser apreendido pelapolícia, foi liberado pelo juiz dedireito que conseguira apurar a datada sua entrada. Nabuco de Araújo,porém, justifica os "direitos dosenhor" que o reclamava, alegando "obem dos interesses coletivos dasociedade, cuja defesa incumbe aogoverno", e remata: "Não convémque se profira um julgamento contra a

lei, mas convém evitar um julgamentoem prejuízo desses interesses, umjulgamento que causaria alarma eexasperação aos proprietários" 61 .

Em 1854, legítimo era, para o ministroNabuco, o interesse dos fazendeiros; elegal, mas infringível, a lei queprotegia a liberdade do africano. Em1868, ao contrário, legítima passa a

58 Id ibid., p. 102.59 Um Estadista ... op. cit., p. 662.

60 Id ibid.61 Trata-se de uma carta confidencial do ministro Nabuco a Saraiva quando este presidia

à província de São Paulo. A data é 22 de setembro de 1854 (Um Estadista ... op. cit.,p. 207).

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ser, no seu discurso, a liberdade dosfilhos de mulher escrava, e apenaslegal, logo passível de reforma, odireito do senhor à propriedade donascituro.

A inversão do critério tem um sentidoforte: o liberalismo de 68 já não é oliberalismo de 54. O conteúdoconcreto da legitimidade, que é ocoração dos valores de uma ideologiapolítica, tinha mudado. E o motordessa transformação fora o idealcivilizado do trabalho livre; não aindaa sua necessidade absoluta e imediata,mas o seu valor. Nesse mesmoano-chave de 1868 publicavaQuintino Bocayuva (liberalpró-republicano) um folheto sobre acrise da lavoura, em que advogavauma política de emigração chinesa acurto prazo, subsidiada pelo Estado 62 .

Daí à batalha parlamentar de 1871 foium passo que os novos liberais deramcom êxito e sem vínculo obrigado coma sua cor partidária. Entre os 61votantes a favor da Lei do VentreLivre, bem como entre os 35 que lheforam contrários, figuravam membros

de ambos os partidos políticos doImpério. O café paulista votou contra.A mentalidade empresarial dosfazendeiros do Oeste, já em plenaexpansão, não era, porém, tãomoderna, lúcida e progressista como asupôs a historiografia paulista doséculo XX. Era ainda escravista.

Reforma e Abolição

No contexto maior do novoliberalismo, que dará o tom ideológicoao fim do Império, não é exato falarapenas de um abolicionismo. O pluralé mais consentâneo com a variedadede pontos de vista e de interessesespecíficos que, afinal, concorrerampara a Lei Áurea na forma pela qualse promulgou, e sem a indenização tãoreclamada ainda nos anos 80.

Joaquim Nabuco distinguiu, emMinha Formação, cinco forças entreos agentes daquele desfecho:

1) os abolicionistas que fizeram acampanha no Parlamento, naimprensa e nos meios acadêmicos;

2) os militantes da causa,abertamente empenhados emajudar as fugas em massa e instruiros processos de alforria;

3) os proprietários de escravos,sobretudo nordestinos e gaúchos,que se puseram a libertá-los emgrande número nos últimos anosdo movimento;

4) os homens públicos (Nabuco oschama generosamente"estadistas") mais ligados aogoverno, que, a partir da Fala doTrono de 1867, mostrou suaintenção de resolver gradualmentea "questão servil";

5) a ação pessoal do Imperador e daPrincesa Regente.

Quanto às duas primeiras categorias,"formavam círculos concêntricos,compostos como eram em grandeparte dos mesmos elementos. É a elasque pertence o grosso do partidoabolicionista, os líderes domovimento" 63 .

O depoimento é o que se podeconsiderar de idôneo em matéria decampanha abolicionista. Nabuco seinclui no primeiro grupo, enquantodeputado do Partido Liberal, defensorde medidas jurídicas, fundador dojornal O Abolicionista (1881) e autorde uma obra de combate densa e bela,O Abolicionismo (1883). O seutestemunho merece algumas reflexõesque incidam na caracterização

ideológica dos abolicionismos.Pode-se começar pela sugestão deNabuco formando uma categoriaampla que abrace os gruposconcêntricos dos reformistas e dosmilitantes. E fazer outro tanto com osdemais. Deixando para o lugaroportuno o destaque das diferençasinternas, teríamos dois perfis deantiescravistas:

Para os primeiros, o desafio social eético que a sociedade brasileira teria

62 BOCAYUVA, Q. A crise da lavoura. Rio, Tip. Perseverança, 1868.63 NABUCO, J. Minha formação, op. cit., p. 196.

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de enfrentar era o de redimir umpassado de abjeção, fazer justiça aosnegros,dar-lhes liberdade a curtoprazo e integrá-los em umademocracia moderna.No horizonte, viam um regimeescorado na indústria, no trabalho

assalariado, na pequena e médiapropriedade, no ensino primáriogratuito, no sufrágio universal.Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Josédo Patrocínio, André Rebouças, LuísGama, Antônio Bento e seusseguidores concebiam a aboliçãocomo a medida mais urgente de umprograma que se cumpriria com areforma agrária, a democracia rural (aexpressão é de Rebouças) e a entradados trabalhadores em um sistema deconcorrência e oportunidade.As raízes culturais dessa perspectivamergulham fundo no discurso dosfilantropos europeus da primeirametade do século XIX, lidos e citadosentre nós desde os anos 50, e, maisdiretamente, nos modelos econômicosingleses e norte-americanos queconstituíam o ideal do novoliberalismo 64 .

As razões de teor progressista já sevinham articulando com nitidez nodiscurso que se formou depois dasupressão do tráfico. Os marcos maisostensivos são as obras de doispontas-de-lança de nossa crítica socialem um sentido já francamenteliberal-capitalista: Tavares Bastos ePerdigão Malheiro.

Ambos começam a escrever na década

de 60. As Cartas do Solitário saem em1863. A primeira parte de AEscravidão no Brasil, em 1866. E sequiséssemos remontar um pouco mais,até os anos 50, o nome expressivoseria o do pioneiro dos nossosempresários anglofilos, IrineuEvangelista de Sousa.

Tavares Bastos e Perdigão Malheiro,membros ativos do Instituto dosAdvogados, forjaram as razõesjurídicas de um discurso que rompiaos laços com o conformismoagroescravista. Os seus argumentoscontra o latifúndio e em prol dotrabalho livre irão colorir-se dematizes radicais e humanitários nacampanha abolicionista dos anos 80,mas a antinomia fundamental já foraexposta em seus ensaios: ouprogresso, ou escravidão.É compreensível que haja atuado umadiferença de ritmo social entre as duasgerações. Quando Rebouças, Nabucoe Patrocínio desfecharam a campanhapela abolição incondicional, ocativeiro se achava com os diascontados, e alguns políticos maissolertes do Oeste paulista já tinhamdesencadeado o processo da imigraçãoeuropéia. Mas o contexto em que seinseriam Tavares e Perdigão aindadependia quase inteiramente do braçonegro. Comparem-se as estimativas:1.715 mil escravos em 1864 contraapenas 723.419 em 1887.Em 1864, o liberalismo moderno,reformista, era um valor ideológicoem busca de uma armadura lógica,mas não ainda um grito de alarme porum problema que exigisse soluçãoimediata; explica-se o gradualismo dealgumas propostas daqueles doispioneiros. A partir de 1880, aurgência saltava aos olhos da maioria:a campanha queria construir o dia deamanhã.É importante ressaltar que não só dehomens políticos se fez a militância.Um movimento intelectual forte, queretoma cientificamente os ideais dasLuzes, estava em curso ao longodesses anos. Sílvio Romero resumiu-ocom a expressão "um bando de idéiasnovas", fixando também em 1868 oseu ponto de partida 65. Positivismo e

64 GRAHAM, Richard. A Grã-Bretanha e o início da Modernização no Brasil. SãoPaulo, Brasiliense, 1973. Para os detalhes dos projetos de reforma agrária, a leituramais enriquecedora é a dos artigos de André Rebouças, escritos a partir de 1874 para

o Jornal do Comércio, e depois reunidos nesta obra capital do novo liberalismo, AAgricultura Nacional Estudos econômicos. Propaganda abolicionista e democrática,Rio, Lamoureux, 1883.

65 ROMERO, Sílvio. "Explicações indispensáveis. (Prefácio) In: BARRETO, T. Váriasescritos. Ed. do Estado de Sergipe, 1926. p. XXIII-XXIV. Euclides da Cunha fala emEra Nova para caracterizar o período pós-68 (À Margem da História).

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evolucionismo, Comte e Spencer,formam o eixo principal de referência.O trabalho livre e um regime políticomais representativo eram as metas aser atingidas.Os positivistas religiosos abraçaramlogo as propostas mais radicais. Em

1884, Miguel Lemos abre o livro OPositivismo e a Escravidão Modernacom uma dedicatória ao herói negroda rebelião de São Domingos:"À Santa Memória/ do/ Primeiro dosPretos/ Toussaint Louverture/(1746-1803),/ Ditador do Haiti.Promotor e Mártir/ da liberdade/ desua raça".A obra é uma coleção de textosantiescravistas de Augusto Comte.Traz em apêndice os "Apontamentospara a solução do problema servil noBrasil", escrito datado de 22 deShakespeare de 92 (30 de setembro de1880) e assinado por Teixeira Mendese outros ortodoxos. Nele já se repudiaa imoralidade da criminosa herançacolonial, acusa-se o delito nacionalque foi a Guerra do Paraguai, argúi-sede ilegítimo o instituto da propriedadeescrava; enfim, propõe-se que,

libertado, o escravo se transforme emoperário com número de horasprevisto em lei, folga semanal esalário razoável. Teríamos aqui, emembrião, as medidas sociaispreconizadas pelos jacobinos e, maistarde, pelos tenentes discípulos docomteano Benjamin Constant?Em manifesto de 21 de Dante de 95 (5de agosto de 83), Miguel Lemos pregaa abolição imediata, sem indenização

aos senhores, e o aproveitamento doslibertos como assalariados. Bomortodoxo, pede ao Imperador que ajacomo ditador, sem consultar oParlamento, "que só serve paragarantir a liberdade das mediocridadesintrigantes", conforme já advertira oaugusto mestre.

Há uma estreita faixa de intersecçãoideológica que aproxima os novosliberais e alguns líderes repúblicosradicais como Silva Jardim, LuísGama e Raul Pompéia. Para todos odivórcio das águas era a questão dotrabalho livre. Guardavam, por isso,distância do núcleo paulista

manobrado por fazendeiros aindabastante conservadores na década de70 e princípios da seguinte. "Osvossos barretes frígios são coadoresde café" — frase de Pompéia lançadaem rosto aos membros do Clube daLavoura de Campinas diz bem deum dissídio que se transformara emaberta oposição.Ainda não foi explorado em toda asua potencialidade o veio reformistasocial do positivismo entre nós. Elefluirá, entre os oficiais jovens doExército, dos jacobinos aos tenentes,em sua áspera luta antioligárquica deque a Coluna Prestes e a Revoluçãode 30 serão os momentos maiscomplexos. Em outra vertente, osesquemas políticos comteanosemprestariam moldes organizatórios ainquietudes sociais modernas queviriam a codificar-se no trabalhismogaúcho de um Lindolfo Collor, aquem o positivista Getúlio Vargasnomeou primeiro Ministro doTrabalho em 1931, e de quem recebeuquase toda a nova legislação social.Legislação que, descontados osincisos corporativos, em boa horacancelados pela última Constituinte,vem resistindo há rnais de meio séculoe ainda hoje serve de espinha dorsalaos direitos trabalhistas brasileiros.

Cabe registrar uma diferença demodos de pensar a relação entresociedade civil e Estado. Opositivismo ortodoxo (Miguel Lemos,Teixeira Mendes e, menosenfaticamente, Benjamin Constant)sustentava o projeto de um Estado

centralizante, racionalizador e, nolimite, tutelar. O evolucionismo detipo spenceriano (de um SílvioRomero, por exemplo) pendia para oliberalismo clássico e acreditava nasabedoria da seleção natural que,mediante processos de concorrência,premiaria os mais capazes.Coerentemente: os positivistasortodoxos queriam um presidenteforte, um cérebro ativo na chefia doEstado; os evolucionistas, aocontrário, farão o elogio doparlamentarismo burguês com suasreformas espontâneas, lentas egraduais. Uns e outros, porém (e esteé um signo da sua modernidade),

Ainda não foiexplorado em toda asua potencialidade o

veio reformista socialdo positivismo entre

nós.

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propunham um modelo político quesubstituísse o do velho Impériooligárquico e escravista.Assim, voltando o nosso olhar para osanos cruciais de 1860-70,surpreenderemos um tom geral deinconformismo, uma ânsia de

renovação, cujo alvo era desemperraro regime monárquico: foi nesse climaque o novo liberalismo se gestou; efoi esse descontentamento quepermitiu a filtragem ideológicadiversificada das doutrinas européias.A Guerra da Secessão americanadividiu, também entre nós, os doiscampos: ao passo que um Varnhagen,padroeiro da historiografia tradicional,mostrava simpatia pelos fazendeiros

do Sul, Tavares Bastos e PerdigãoMalheiro viam a luta do Norte e nafigura de Lincoln exemplos de umanova mentalidade que devia serimitada. Neste, como em outrosmomentos de nossa história de idéias,as relações entre os centros de poder eas suas periferias merecem receber umtratamento que não as reduza àsafirmações de tudo ou nada. Glosandouma hipótese de John Dewey sobre aformação da consciência pessoal, épossível dizer que os grupos culturaise políticos das nações dependentesnão apenas "sofrem" como também"escolhem" e trabalham as influênciasdos pólos dominantes do sistema.O reformismo liberal, que vai emcrescendo de 1868 em diante, resultade um embate interno cujas variáveiseconômicas e sociais já foraminventariadas (extinção do tráfico,problemas de escassez da força detrabalho, aumento do mercado,urbanização, migração...). Ao mesmotempo, cada um desses aspectos dosistema traz em si uma faceinternacional.O confronto de nossasparticularidades com o movimento daHistória mundial, nessa fase deascenso do imperialismo, ora apontapara variantes de um grande esquemade integração pós-colonial (a queesteve sujeita a América Latinainteira); ora dá relevo a certosaspectos diferenciados, raciais eculturais, que são tomados comopróprios da nova formação nacional.

Este nacional, assim posto emevidência, pode ser abstraído — epotenciado — tanto pelosconservadores, que o adotam comobandeira tradicionalista (a patria delcriollo), quanto, em registro oposto,pelos reformistas, que nele advertemum pólo catalisador dos gruposdescontentes: foi o nacionalismoradical dos jacobinos do fim doséculo; foi o nacionalismo crítico dostenentes de 1922-30.

O nacionalismo conservadorexprimiu-se de modo orgânico nosanos de apogeu do Império escravista:está nas páginas eruditas da Revistado Instituto Histórico e Geográfico;permeia a rica messe documental daHistória Geral do Brasil do viscondede Porto Seguro; e é o cimento míticodo romance indianista e colonial deJosé de Alencar.

No outro extremo, o nacionalismoreformista ou radical quer o progressoem termos de elevação do Brasil aoplano da civilização ocidental.Tavares Bastos prega uma políticaracional de migração, defende aabertura do Amazonas à cabotageminternacional, o que de fato ocorre em1866, ano em que também se instala oprimeiro cabo transatlântico entre aEuropa e o Brasil. Perdigão Malheiro,que milita com Tavares Bastos noInstituto dos Advogados, fazminucioso levantamento das leisantiescravistas decretadas nos EstadosUnidos, na Europa e nas colôniasinglesas, francesas e holandesas das

índias ocidentais. O Brasil se tornariauma grande nação quando se erguesseao nível dos padrões internacionais. Aretórica de José Bonifácio, o moço, ede Castro Alves e Rui Barbosa, seusdiscípulos, irá na mesma direção, quejá inclui lamentos e protestos contra acumplicidade dos brasileiros nomassacre dos negros. É o espírito deVozes d'África e de O NavioNegreiro. Algumas atitudes políticasde D. Pedro II parecem indicar que,embora hesitantemente, ele passou dopólo nacional-conservador para o pólonacional-reformista, guiado peloreligioso respeito que lhe inspiravamas culturas inglesa e francesa.

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Quels que soient les vices del'organisation actuelle du travail enFrance, l'ouvrier est libre, sous uncertain pount de vue, plus libre queles salariés défenseurs de la propriétépensante.

L'ouvrier s'appartient; nul n'a le droitde le fouetter, de le vendré, de leséparer violemment de sa femme, deses enfants, de ses amis. Quand bienmême les esclaves seraient nourris ethabillés leurs possesseurs, on nepourrait encore les estimer heureux,car comne l'a si bien résumé M. ledue de Broglie, il faudrait autant direque la condition de la bête estpréférable à celle de l'homme, et quemieux vaut être une brute qu'unecréature raisonnable. Fiers de la sainteet généreuse initiative que nousprenons, nous sommes sûrs que notrepétition aura de l'echo dans noblepatrie, et nous avons confiance dansla justice des députés de France.

Paris, le 22 Janvier 1844. Signé:Julien GALLÉ et 1505 signatures" 66 .

Comenta Aimé Césaire: "Nesse dia de

22 de janeiro de 1844 é selada aaliança de dois proletariados: oproletariado operário da Europa, oproletariado servil das colônias".Perdigão Malheiro, em A Escravidãono Brasil, revela-se altamenteinformado dessa recente campanhaabolicionista francesa, mencionandonumerosas vezes os trabalhos deVictor Schoelcher (em especial aHistoire de l'esclavage pendant les

deux dernières années, 1847), de A.Cochin (De l'abolition de l'esclavage,1861), de Wallon (Histoire del'esclavage dans l'antiquité et dansles colonies, 1847), além de relatórios

oficiais editados pelas comissõesparlamentares nos anos queprecederam a abolição total nascolônias. A obra de Perdigão será, porseu turno, referência obrigatória paraos argumentos abolicionistas deJoaquim Nabuco entre 70 e 80. Há,portanto, uma coerência interna noprojeto reformista brasileiro, quesoube incorporar, na sua justa medida,informações vindas de movimentosfranceses e ingleses que de pouco oprecederam. Essa ligação estreita coma Europa liberal não altera (antes,reforça) a solidez doutrinária da novaideologia que se exprime noParlamento e na imprensa.Do outro lado, a reação do velhomarquês de Olinda à questãoformulada em abril de 67 pelo chefede gabinete, Zacarias de Góis("Convém abolir diretamente aescravidão?"), define o ethosagromercantil que ainda não morrera.Respondeu Araújo Lima:

"Os publicistas e homens de Estadoda Europa não concebem a situaçãodos países que têm escravidão. Paracá não servem suas idéias" 67 .

Para o ultraconservador Marquês aidéia da abolição gradual ainda soava,em 1867 (e apesar do apoio que lhedavam Pedro n e o presidente doConselho), um eco de ideologiasexóticas. No entanto, o processo já sefazia irreversível, "uma questão deoportunidade e de forma", como ogoverno respondera à comissão deintelectuais franceses que lhe pedira a

extinção do trabalho servil. Osdebates parlamentares em 1871revelariam que o novo liberalismo nãoavançaria sem dobrar tenazesresistências. 68

66 SCHOELCHER, V. Esclavage et colonisation. Prefácio de Aimé Césaire. Paris,Presses Universitaires de France, 1948. p. 11.

67 NABUCO, J. Um Estadista ... op. cit. t p. 613.68 O tipo de mentalidade que Machado de Assis ironiza — e auto-ironiza enquanto

narrador — é o de parte da classe dominante que, ainda nos últimos anos do regime

imperial, sustentou in abstracto a norma liberal moderna, ao mesmo tempo queracionaliza o uso do trabalho escravo, seu maior suporte econômico e político. Nessecontexto, o liberalismo clássico alardeado é, visto de fora, um despropósito, mas nempor isso deixa de ter conseqüências para o cotidiano da burguesia nacional. Esta é, emsíntese; a hipótese que Roberto Schwarz propôs e testou com felicidade em seu estadosobre Machado de Assis, Ao vencedor as batatas (S. Paulo, Duas Cidades, 1977).

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Convém agora voltar os olhos para aparticipação tardia, mas eficaz, dosque detinham os cordéis mais fortesda economia nacional: os fazendeirosdo Centro-Sul.À diferença das posições de TavaresBastos, Nabuco, Rebouças, RuiBarbosa, Luís Gama, Patrocínio eAntônio Bento, a consciência socialdos cafeicultores e de seusporta-vozes no Parlamento seconstituiu lentamente e sempre coladaa seus planos econômicos de curto oumédio prazo. Se o objetivo dosprimeiros era emancipar o escravo oquanto antes, a meta dos últimos era,e foi coerentemente, passar do

trabalho escravo para o livre emtempo hábil e sem maiores prejuízos.Se, a uma certa altura (1886-88), osesforços de todos se cruzaram,provocando a Lei Áurea, o sentidoimanente das ações dos primeirosnunca se identificou com o das açõesdos segundos.Os abolicionistas queriam libertar onegro; os cafeicultores precisavamsubstituir o negro. Daí, a diferença de

ritmo e de acento. Os abolicionistasaceleravam o processo, porquepensavam em aliviar o sofrimento doescravo; os fazendeiros retardaramquanto puderam a ação do Estado,pois só cuidavam do quantum demão-de-obra que ainda lhes seria dadoarrancar aos derradeiros cativos antesde despachá-los para o vasto mundoda pura subsistência ou do lumpen.As cautelas do Partido RepublicanoPaulista, que tanto indignaram LuísGama, e a sua adesão de última horasó se compreendem à luz do contextopragmático de onde saíram. Hoje,calados os louvores sem medida comque se exaltou a lucidez ou o espíritomoderno dos fazendeiros do OesteNovo, pode-se reconstituir comisenção os passos deveras prudentesdados pelos homens do café, desde asua aberta recusa à Lei do Ventre

Livre (os votos de Rodrigo Silva eAntônio Prado em 1871), até o seuingresso no movimento já triunfante

em 1887; então, o problema da forçade trabalho já fora equacionado emtermos de imigração européia maciçasubvencionada pelos governosimperial e provincial.Os estudos de Conrad e Gorender,que ratificam, por sua vez, pontos de

vista de Joaquim Nabuco e José Mariados Santos, põem a nu a relutânciados republicanos paulistas, muitosensível nos anos 70, no que tocasse amedidas drásticas.Em oposição aos liberais pós-68,como André Rebouças, quepropunham o regime da pequenapropriedade, a extinção imediata dotrabalho compulsório e amodernização via indústria, os

republicanos da grande lavouracentraram baterias no seu projeto dedescentralização oligárquica. Cadaprovíncia, de acordo com o espírito doManifesto de 1873, deveria resolver, aseu modo e no tempo favorável, oproblema da substituição do braçoescravo. Nessa altura, o tráficointerprovincial ainda trazia levasconsideráveis de negros do Nordestepara São Paulo, Rio e Minas Gerais.

"Em 1870, dizia-se na AssembléiaLegislativa de São Paulo, que esta eraa Província que menos deveria receara diminuição de braços, pois aíestavam se concentrando todos osescravos do Norte do Império. Nessaocasião, Paulo Egydio defendia alegitimidade do comércio de escravos,considerando-o 'urna indústria muitolegítima e consagrada entre nós'.Manifestava-se contra a restrição

dessa liberdade pela sobrecarga deimpostos: meia sisa, impostosimperiais e municipais, gravando asvendas" 69 .A abolição que, para as províncias doNorte e Nordeste e para osprofissionais urbanos, poderia vir semmaiores traumas, não interessavaainda aos fazendeiros de São Pauloque apenas esboçavam os seusprojetos de migração. Um dado defato: até 1880 o governo provincial deSão Paulo nada gastou com a vinda debraços europeus. Para os bandeirantes

69 Atas da Assembléia Legislativa de São Paulo de 1870 apud COSTA, Emilia Viotti. DaSenzala à Colônia. São Paulo, Difel, 1966. p. 132.

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do café a ideologia convenienteparecia ainda ser a "beatitudephysiocratica" que já irritava osprimeiros defensores sistemáticos daindústria nacional. Estes, citandoexemplos franceses e yankees,lutavam por uma política protecionistaque escorasse a nascente indústria.Mas em vão. O café mantinha aprimazia absoluta. A AssociaçãoIndustrial clamava pela "proteçãoregeneradora das Leis do Estado, sema qual elas irremediavelmentetombarão no abismo em que já tem-seafundado muitas das suas irmãs .Ao constituir-se, o PartidoRepublicano Paulista receavaconfundir as suas águas com a marémontante do novo liberalismo do qual,porém, recebera alguns apoiossignificativos, rescaldos da crisepolítica de 1868. Mas para pôr ascoisas no seu devido lugar, advertia aComissão do Partido aos 18 de janeirode 1872:"Aproveitando-me da oportunidade,pedimos a vossa atenção e esforço nointuito de neutralizar os meios comque insidiosamente procura oobscurantismo, consorciado com a máfé, desconceituar os sectários dademocracia, apresentando-os comopropugnadores de doutrinas fatais(sic) ao país. Entre as armas de que setêm servido há uma que, manejadacom hábil pertinácia, pode chegar aseu alvo. Referimo-nos ao boato,adrede espalhado, de que o partidorepublicano proclama e intenta pôr emprática medidas violentas para arealização da sua política e para aabolição da escravidão (...) Cumprenão esquecer que, se a democraciabrasileira consubstanciasse em suasreformas práticas semelhantespensamentos, alienaria de si a maiorparte das adesões que tem, e assimpatias que espera atrair. Sendocerto que o partido republicano não

pode ser indiferente a uma questãoaltamente social, cuja solução afetatodos os interesses, é mister entretantoponderar que ele não tem e nem terá aresponsabilidade de tal solução, poisque antes de ser governo, estará eladefinida por um dos partidosmonárquicos" 71 .A partir desse momento separavam-seem São Paulo a propagandarepublicana e a campanhaabolicionista. No CongressoRepublicano de 73 as posições seaclaram e precisam:"Se o negócio for entregue a nossadeliberação", — diz o manifesto de 18de abril "nós chegaremos a ele doseguinte modo:

1º) Em respeito aos princípios daunião federativa cada provínciarealizará a reforma de acordocom seus interessesparticulares, mais ou menoslentamente, conforme a maiorou menor facilidade nasubstituição do trabalhoescravo pelo trabalho livre;

2º) Em respeito aos direitosadquiridos e para conciliar apropriedade de fato com oprincípio da liberdade, areforma se fará tendo por basea indenização ou resgate" 72 .

Luís Gama protestou com veemência,mas sua voz perdeu-se abafada por umsilêncio constrangido. Essa seria alinha de neutralidade dos republicanosagrários, definida principalmente porMoraes Barros, Campos Salles,Francisco Glycerio, João Tibiriçá ePrudente de Moraes. O pragmatismodeste formulou-se de modo tático emsua intervenção parlamentar quandose discutia o Projeto Saraiva (em maiode 85), que resultou na Lei dosSexagenários:

70

Em Biblioteca da Associação Industrial, "O Trabalho nacional e seus adversários",Rio, 1881, p. 13, apud CARONE, Edgard. O Pensamento industrial no Brasil(1880-1945). São Paulo, Difel, 1977. p. 151.

71 SANTOS, J.M. Os Republicanos paulistas e a abolição. São Paulo, Martins, 1942.p. 118-19.

72 Ibid., p. 150.

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"Posso dizer, e creio que não sereicontestado pelos representantes daminha província; na província de SãoPaulo, especialmente no Oeste que é asua parte mais rica e próspera, aquestão principal não é a da liberdadedo escravo. Os paulistas não fazemresistência, não fazem questão disto,do que eles fazem questão séria, ecom toda razão, é da substituição epermanência do trabalho (apoiados deAntônio Prado, Rodrigo Silva eMartim Francisco), e desde que ogoverno cure seriamente de empregaros meios que facilitem a substituiçãodo trabalho escravo, desde que facilitea aquisição de braços livres quegarantam a permanência do trabalho, aconservação e desenvolvimento da sualavoura, os paulistas estarãosatisfeitos e não farão questão de abrirmão dos seus escravos, mesmo semindenização, porque para eles amelhor, a verdadeira indenização estána facilidade de obter trabalhadoreslivres, está na substituição dotrabalho" 73.

O texto, em sua pesada redundância,fala por si. A adesão franca à

campanha abolicionista da parte dospaulistas do Oeste estava, pois,

condicionada a um subsídio oficialque fosse bastante copioso para aobtenção dos braços livres. O subsídioveio em abundância: entre 87 e 88chegariam aos nossos portos quase150 mil imigrantes. Proclamada aRepública, sob o domínio do café,põe-se em marcha a grandeimigração.

Resolvera-se o problema do trabalhoassalariado. Mas não a questão doex-escravo, a questão do negro. Paraeste, o liberalismo republicano nadatinha a oferecer. Foi o que logoperceberam os militantes do "novoliberalismo" que ainda se mantiveramfiéis à monarquia, Nabuco eRebouças, cuja correspondência trazcontínuas acusações ao novo regime,"plutocrático" 74 .

Era também o pensamento de ummulato humilhado e ofendido pelaRepública do Kaphet, Lima Barreto.Mas aqui já entramos em uma outrahistória: a história do negro e domestiço depois da abolição. Quem aestudar deverá desfazer outro nó: nãoo que atou liberalismo e escravidão,

mas o que ata liberalismo epreconceito.

73 Id. ibid., p. 225.74 Nabuco a Rebouças, que se auto-exilara para a África no dia mesmo da proclamação

da República: "Com que gente andamos metidos Hoje estou convencido de que nãohavia uma parcela de amor do escravo, de desinteresse e de abnegação em três quartaspartes dos que se diziam abolicionistas. Foi uma especulação mais A prova é quefizeram esta República e depois dela só advogam a causa dos bolsistas, dos ladrões dafinança, piorando infinitamente a condição dos pobres. É certo que os negros estãomorrendo e pelo alcoolismo se degradando ainda mais do que quando escravos, porquesão hoje livres, isto é, responsáveis, e antes eram puras máquinas, cuja sorte Deus tinhaposto em outras mãos (se Deus consentiu na escravidão); mas onde estariam ospropagandistas da nova cruzada? Desta vez nenhum seria sequer acreditado. (...)Estávamos metidos com financeiros, e não com puritanos, com fâmulos de banqueirosfalidos, mercenários de agiotas etc.; tínhamos de tudo, menos sinceridade e amor pelooprimido. A transformação do abolicionismo em republicanismo bolsista é tãovergonhosa pelo menos como a do escravagismo" (Carta a Rebouças, Rio, lº dejaneiro de 1893, transcrita em Joaquim Nabuco, Cartas a Amigos. São Paulo, Ipê, vol.I, p. 219). Mas já em 1884 Nabuco percebia a oposição entre o reformismo agrário dosnovos liberais e a política do latifúndio: "Estamos no reinado do café, e é o café que

maiores embaraços levanta ao resgate dos escravos" (Jornal do Comércio, 11/9/84).

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