a escola como categoria na pesquisa em educação licínio c lima

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Um objecto de estudo polifacetado A escola revela-se um objecto de estudo complexo e polifacetado, cons- truído sob variadas influências teóri- cas e tradições disciplinares. Referên- cia discursiva dotada de grande cen- tralidade na pesquisa educacional, evidenciando mesmo uma certa he- gemonia face ao estudo de outros fe- nómenos educativos não escolares e não formais, a que nos referimos exac- tamente quando mobilizamos a cate- goria “escola” nos nossos trabalhos? Quais os seus distintos estatutos em termos de análise? Resumo: Neste artigo o autor reflete sobre os vários sentidos da escola, destacando a sua relevância para o processo de institucionalização e generalização da “forma escolar moderna”, típica da modernidade organizada e do projeto político de controle estatal sobre a produção de educação escolar em grande escala. Palavras-chave: concepções de escola, modernidade, gestão escolar. Abstract: In this article the author reflects on the various meanings of the school, pointing out its relevance for the process of institutionalization and generalization of the “modern school format”, typical of organized modernity and the political project of state control over the production of school education on a large scale. Keywords: conceptions of school, modernity, school administration. A “escola” como categoria na pesquisa em educação “School” as a research topic in education Licínio C. Lima [email protected] Educação Unisinos 12(2):82-88, maio/agosto 2008 © 2008 by Unisinos O presente texto procura abordar essa questão, ainda que em termos preliminares, referenciando alguns conceitos e representações académi- cas de escola, chamando a atenção para as suas diferenças em termos de significado, mas sobretudo em termos de focalização disciplinar e de abordagem teórica, certamente com implicações de ordem epistemológi- ca e metodológica. No final, proce- de-se a uma breve reflexão, mais cen- trada sobre a escola como organiza- ção formal e como acção organizada, destacando a sua relevância no que concerne à compreensão do proces- so de institucionalização e generali- zação da “forma escolar moderna”, típica da modernidade organizada e do projecto político de controlo es- tatal sobre a produção de educação escolar em grande escala, sob uma agenda específica de formalização e racionalização. É interessante observar que a es- cola, numa boa parte dos trabalhos académicos, surge como uma cate- goria omnipresente e de tipo aparen- temente universal, de todos conhe- cida, como se tratasse de uma reali- dade objectiva para a qual bastasse remeter o leitor para que a comunica- ção entre autor e leitor se desse, sem dificuldades de maior. Presume-se,

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Sociologia, escola, Portugal.

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  • Um objecto de estudopolifacetado

    A escola revela-se um objecto deestudo complexo e polifacetado, cons-trudo sob variadas influncias teri-cas e tradies disciplinares. Refern-cia discursiva dotada de grande cen-tralidade na pesquisa educacional,evidenciando mesmo uma certa he-gemonia face ao estudo de outros fe-nmenos educativos no escolares eno formais, a que nos referimos exac-tamente quando mobilizamos a cate-goria escola nos nossos trabalhos?Quais os seus distintos estatutos emtermos de anlise?

    Resumo: Neste artigo o autor reflete sobre os vrios sentidos da escola, destacando a suarelevncia para o processo de institucionalizao e generalizao da forma escolar moderna,tpica da modernidade organizada e do projeto poltico de controle estatal sobre a produode educao escolar em grande escala.

    Palavras-chave: concepes de escola, modernidade, gesto escolar.

    Abstract: In this article the author reflects on the various meanings of the school, pointingout its relevance for the process of institutionalization and generalization of the modernschool format, typical of organized modernity and the political project of state control overthe production of school education on a large scale.

    Keywords: conceptions of school, modernity, school administration.

    A escola como categoria napesquisa em educao

    School as a research topic in education

    Licnio C. [email protected]

    Educao Unisinos12(2):82-88, maio/agosto 2008 2008 by Unisinos

    O presente texto procura abordaressa questo, ainda que em termospreliminares, referenciando algunsconceitos e representaes acadmi-cas de escola, chamando a atenopara as suas diferenas em termosde significado, mas sobretudo emtermos de focalizao disciplinar e deabordagem terica, certamente comimplicaes de ordem epistemolgi-ca e metodolgica. No final, proce-de-se a uma breve reflexo, mais cen-trada sobre a escola como organiza-o formal e como aco organizada,destacando a sua relevncia no queconcerne compreenso do proces-so de institucionalizao e generali-

    zao da forma escolar moderna,tpica da modernidade organizadae do projecto poltico de controlo es-tatal sobre a produo de educaoescolar em grande escala, sob umaagenda especfica de formalizao eracionalizao.

    interessante observar que a es-cola, numa boa parte dos trabalhosacadmicos, surge como uma cate-goria omnipresente e de tipo aparen-temente universal, de todos conhe-cida, como se tratasse de uma reali-dade objectiva para a qual bastasseremeter o leitor para que a comunica-o entre autor e leitor se desse, semdificuldades de maior. Presume-se,

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    concretas, empiricamente referenci-veis. Seja porque a escala de obser-vao transcende a escola e a invisi-biliza enquanto unidade de anlise,seja porque tal escala de observao,pelo contrrio, se fixa em unidadesou subunidades de anlise de tipomicro, podendo promover a diluiodo objecto escola em mltiplos frag-mentos significativos, embora maisdificilmente reconstituveis em termosunitrios ou integrados e mais rara-mente reconduzveis a uma represen-tao holstica da realidade social.

    Se, por exemplo, o nosso olhar re-cai especificamente sobre os fenme-nos de interaco na sala de aula,sobre a planificao e execuo docurrculo, sobre as prticas de avali-ao pedaggica, ou ainda sobre osmtodos didcticos na aula de ingls,a categoria escola incontornvel,embora possa apresentar estatutosecundrio em termos da matria aser elucidada teoricamente e, sobre-tudo, a ser caracterizada do ponto devista emprico. Trata-se, frequente-mente, de uma categoria implcita, su-bentendida, por vezes de uma espciede subtexto, podendo a este propsitofalar-se de uma escola lato sensu, ge-nrica, abstracta e relativamente indi-ferenciada. O foco da anlise tende acoincidir com abordagens de tipo mi-cro, com indivduos, grupos e subgru-pos, e suas respectivas dinmicas eprocessos de interaco, atribuindo porisso menor centralidade e ateno sdimenses de tipo estrutural, organi-zacional ou poltico, de escala supe-rior e de alcance mais vasto.

    Se a pesquisa se centra em abor-dagens de anlise de tipo macro,como, por exemplo, os estudos que,em geral, so realizados sobre a redeescolar ou o sistema escolar munici-pal, ou estadual, ou ainda sobre osprocessos de organizao e adminis-trao do sistema educativo, ou so-bre a produo de polticas educaci-onais de mbito nacional, mais plau-svel que a escala analtica e de ob-

    servao tenda igualmente a afastar-se de concepes de escola de tipostricto sensu, contribuindo agorapara representaes mais genricase panormicas sobre as escolas. Taisolhares, por motivos distintos daque-les que referimos anteriormente a pro-psito das abordagens micro, podemcontribuir para retirar centralidade escola enquanto objecto de estudopassvel de uma abordagem analticade tipo meso, isto , intermediria en-tre a abordagem de estudo de focali-zao global e a abordagem de estudode focalizao mais restrita e em tornode unidades de anlise mais circuns-critas e de escala mais reduzida.

    Ainda que exista uma tenso en-tre abordagens analticas de feioglobal, ou de largo alcance, e pers-pectivas de anlise mais circunscri-tas e insulares, centradas no estudoda pequena dimenso e na compre-enso de processos especficos deinteraco, localizados e, frequente-mente, no generalizveis em termosestatsticos, contudo possvel es-tabelecer pontes entre ambas, aindaque, no limite, sejam geralmente con-sideradas inconciliveis.

    Em primeiro lugar porque, em ter-mos epistemolgicos, no legtimoassociar imediatamente a grande es-cala, bem como a maior amplitude dasanlises, a perspectivas nomotticas, descrio estatstica, ao modelo deinvestigao centrado em variveise na busca da generalizao estats-tica. A anlise das polticas educaci-onais de mbito nacional ou interna-cional, ou da macro-estrutura do sis-tema escolar federal, estadual oumunicipal, por exemplo, podem serrealizadas a partir de perspectivasideogrficas, da investigao quali-tativa e, mesmo, atravs de estudosde caso, em geral mais associveisao conceito de generalizao natu-ralstica (ver, entre outros, Ludke eAndr, 1986; Bodgan e Biklen, 1994;Stake, 2007). Tambm a anlise docu-mental e de contedo, bem como a

    em muitos casos, que todos sabemdaquilo que se est a falar quando seescreve e se l sobre a escola em tex-tos de pesquisa. No somos todos,afinal, pesquisadores em educao,para alm de longamente escolariza-dos e, por essas razes, conhecedo-res profundos da escola? No limite,um conhecimento to ntimo podechegar a revelar-se contrrio curio-sidade epistemolgica de quem in-vestiga e sua necessria distnciacrtica, contribuindo para um certograu de naturalizao do objecto deestudo que, pelo contrrio, se encon-tra em processo de construo pelopesquisador. Com efeito, a escola no simplesmente um dado dado, umarealidade emprica de primeira ordemque seja passvel de captao ime-diata, sem a mediao de teorias econceitos, implcitos ou explcitos.Todavia, a categoria escola (realida-de de segunda ordem) tende a surgirem muita literatura educacional como estatuto de categoria implcita, re-metendo para uma concepo gen-rica e necessariamente vaga ou, even-tualmente, para uma espcie de tra-os universais que, uma vez reconhe-cidos, dispensariam maiores esforosde conceptualizao e especificao.Em tais casos, no se encontrando acategoria escola minimamente expli-citada em termos tericos e concep-tuais, s possvel deduzi-la por in-terpretao do contexto de anlise,do enfoque disciplinar, da focaliza-o terica adoptada por quem pes-quisou e escreveu o texto. Trata-sej de um exerccio hermenutico, pro-curando, a posteriori, as concepese os significados que, implicitamen-te, foram atribudos categoria esco-la, sem no entanto a definir ou a pro-blematizar, isto , sem lhe prestarateno digna de nota.

    Isto tende mais facilmente a ocor-rer, embora no exclusivamente, porreferncia a certos objectos de estu-do que, em geral, no coincidem coma anlise de organizaes escolares

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    entrevista, so recursos bastante uti-lizados naquele tipo de estudos. Poroutro lado, a pesquisa de uma orga-nizao de grande dimenso e ampli-tude de aco como, por exemplo, oMEC, pode ser levada a cabo a partirde abordagens de tipo micro-analti-co, incidindo sobre a aco de certosactores individuais, sobre a sua inte-raco com outros actores individu-ais ou colectivos, sobre o poder exer-cido por certos grupos ou subgru-pos, sobre a produo de micro-pol-ticas. Ao contrrio, das interacesentre um ministro da educao e umlder sindical, por exemplo em con-texto de negociao laboral, podemresultar macro-decises, interpret-veis pelo seu carcter estruturante,pelo impacto das suas consequnci-as, pela amplitude do universo afec-tado, etc. Em qualquer dos casos, osfenmenos estudados em nvel ma-cro no so meros agregados de in-teraces em nvel micro, nem estasse definem apenas como dimenseselementares, ou unidades bsicas,constitutivas do nvel macro.

    Em segundo lugar, o estabeleci-mento de articulaes entre distintasescalas de observao e diferentesestratgias de abordagem analticapode ser facilitado pela ruptura comantinomias clssicas, por exemplo dotipo macro/micro, designadamentepela introduo de perspectivas deanlise intermedirias ou mediadoras.Trata-se de uma espcie de meio-campo, a partir do qual possvelreconstruir a totalidade do social, in-tegrando as perspectivas relevantes,e no entanto parcelares, das visesmacro e micro (Lima, 1996, p. 30-32).Estaremos perante o ensaio de umameso-abordagem que, de acordo comNvoa (1992, p.15), nos permitir es-capar ao vaivm tradicional entre umapercepo micro e um olhar macro,privilegiando um nvel meso de com-preenso. No caso do estudo daescola, esta passa a ser assumidacomo uma espcie de entre dois

    onde se exprime o debate educativoe se realiza a aco pedaggica (N-voa, 1992, p. 20). No se trata, parans, apenas da procura de um lugarde encontro e de sntese que passa aser possvel a partir das contribui-es oriundas das abordagens ma-croscpicas e microscpicas das re-alidades educacionais. Mais do queisso, valoriza-se um terreno especfi-co que, uma vez devidamente articu-lado com os outros dois, que, embo-ra em graus variados de presena eintensidade, no pode ignorar nemdispensar, possibilitar uma forma detriangulao de perspectivas e a su-perao de algumas das limitaesmais tpicas de qualquer uma delas,quando insularmente considerada(Lima, 1996, p. 30).

    Por todas as razes expostas, en-tende-se que um objecto de estudocomplexo e polifacetado, como ocaso da escola, exige, congruente-mente, uma abordagem terica de tipoplural e multifocalizado, seja em ter-mos de abordagem analtica e de es-cala de observao, seja ainda emtermos de interpretao teoricamen-te sustentada. Neste sentido, duasobservaes so ainda necessrias.

    A primeira para precisar que o apeloterminolgico s categorias macro/meso/micro, a que de resto se pode-riam acrescentar outras (mega, porexemplo), no deve ser aqui entendi-do como uma remisso directa parasectores ou subsectores da realida-de social, dessa forma empiricamen-te dividida ou fragmentada. No arealidade social a ser estudada, nemos objectos empricos a serem anali-sados e interpretados, que se confi-guram intrinsecamente, ou se apre-sentam de forma imanente, com qual-quer um dos estatutos mencionados(macro, meso, etc.). Como a este pro-psito recorda Nicos Mouzelis (1991,p. 80-94), o que confere a um dadofenmeno o carcter macro no apenas a dimenso ou o nmero deindivduos envolvidos numa interac-

    o social. tambm a maior capaci-dade, o poder e outros recursos en-volvidos, isto , as relaes hierr-quicas e de poder entre eles, bemcomo as diferenas de escala e decomplexidade das suas transaces,o alcance das suas macro-decises.No , portanto, o objecto de estudoque, imediatamente, pelos seus atri-butos eventualmente objectivos, sedefine, ou pode naturalmente serdefinido, por referncia a uma daque-las categorias. ao autor da pesqui-sa, ao sujeito cognoscente, que cabea construo terica e metodolgicado seu objecto de estudo, desde logoo tipo de abordagem em termos deanlise e de escala de observao einterpretao dos fenmenos. A ques-to fica, portanto, mais dependentedas opes tericas e dos modelosde anlise seleccionados por quempesquisa, tal como das suas opesontolgicas, epistemolgicas e me-todolgicas (por exemplo, de raiz po-sitivista ou de raiz construtivista), doque simplesmente, ou imediatamen-te, dos atributos objectivos da reali-dade a ser estudada.

    A segunda observao refere-seao protagonismo que, em todo o pro-cesso de investigao, desempe-nhado por aquilo que temos vindo adesignar por modelos organizacio-nais analticos ou interpretativos,isto , pelos corpos tericos e con-ceptuais, abordagens, ou lentes, quenos permitem realizar leituras e en-saios interpretativos das realidadesorganizacionais escolares (Lima,2003, p. 98). Tais modelos de anlise,de resto, ao encontrarem-se profun-damente conectados com as teoriassociolgicas e com os paradigmassociolgicos de anlise organizacio-nal (ver, entre outros, Burrell e Mor-gan, 1979 e Morgan, 1986), no dei-xam de influenciar decisivamente asformas como concebemos a organi-zao-escola, bem como os concei-tos e os nveis de anlise que mobili-zamos para o seu estudo.

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    Algumas variaes sobrea categoria escola

    Sem quaisquer pretenses deexaustividade de enumerao, soseguidamente apresentados algunsexemplos, contrastantes, da diversi-dade de representaes acadmicase de concepes em torno da escolacomo categoria, presentes em traba-lhos acadmicos. Tomando emboracomo referncia um vasto corpus detrabalhos de pesquisa, o exerccioapresentado orientado mais segun-do uma lgica de construo de ti-pos-ideais, de inspirao weberiana,relativamente estilizados e de nature-za algo indirecta face aos textos, doque numa lgica de confirmao oudemonstrao emprica. Embora seadmita que o aperfeioamento do pre-sente exerccio possa vir a tornar pos-svel o trabalho de levantamento, deconfirmao/infirmao emprica, dealargamento ou reviso das variaespropostas, trata-se, neste momento,de inventariar provisoriamente algunselementos teoricamente tpicos decertas abstraces tericas (Parkin,2000, p. 11-20).

    A escola como categoriajurdico-formal

    Trata-se de uma das mais tradici-onais categorias de escola, comumem abordagens de tipo jurdico, nosestudos sobre legislao escolar enos estudos clssicos sobre admi-nistrao educacional em vrios pa-ses. O direito administrativo surge,geralmente, como a fonte legitimado-ra desta categoria, baseada nas ci-ncias jurdicas. Este enfoque jur-dico (Sander, 1995, p. 7-11) res-ponsvel por vises de tipo legalis-ta e positivista, deduzindo da letrada lei as caractersticas de cada es-cola concreta, raramente estudadasdo ponto de vista emprico, seja nassuas semelhanas jurdico-formais(em especial em regimes centraliza-

    dos), seja, especialmente, nas suasespecificidades e diferenas, social-mente construdas ao longo do tem-po. Por estas razes, a escola jurdi-co-formal singular, perfeitamentedefinida dentro dos limites da lei,geral e abstracta, indiferente s dife-renas dos contextos, dos actores edas suas dinmicas de interaco.Tende a ignorar que, no momento dasua concretizao emprica, extrava-sando j as fronteiras dos textos le-gais, o seu carcter geral e singular confrontado com a pluralidade deescolas concretas, em aco concre-ta. A Escola toda, jurdica e racional-mente estabelecida a priori face ssuas materializaes, porm distin-ta de todas as escolas. Desde logoporque se trata da escola que deveser, segundo o legislador, servidapela fora das injunes e da impo-sio jurdico-normativa, geralmen-te levada a cabo por aparelhos espe-cializados de administrao escolar,situados a distintos nveis hierrqui-cos e em diferentes lugares do pon-to de vista territorial. a Escola (commaiscula) inscrita na legislao es-colar, nos estatutos e regulamentosoficiais, nos normativos produzidospelas administraes, nos organigra-mas perfeitamente e metodicamentedesenhados, mas no, certamente,cada escola que e que est sendoem cada contexto e a cada momentoconcreto, habitada por actores soci-ais e pelas suas respectivas aces.

    A escola como reflexo

    Sobredeterminada por instnciassituadas a uma escala superior, sejado ponto de vista legislativo ou exe-cutivo, seja do ponto de vista da ac-o poltica e administrativa levada acabo por agncias ministeriais, esta-duais, municipais ou outras, at mes-mo de mbito escolar, a escola re-presentada como um locus de repro-duo, mais ou menos perfeita e maisou menos integral, das referidas es-

    truturas, orientaes e regras. Aindaque algumas diferenas e diversida-des possam ser admitidas de escolapara escola, entende-se que, no es-sencial, as escolas apresentam maisregularidades polticas, estruturais emorfolgicas do que diferenas, cons-tituindo-se como reflexos das referi-das sobredeterminaes. Os actoresescolares, em consequncia, surgemcomo amplamente subjugados pelasestruturas, com reduzida capacidadede interveno autnoma e de mu-dana social. Deste modo, cada esco-la concreta, para alm de tender a serrepresentada como um todo homo-gneo, integrado e coerente, surgeainda aos olhos do pesquisador numasituao de forte articulao, ou co-nexo, relativamente s orientaes enormas superiormente produzidas, namaioria dos casos por instncias su-praorganizacionais, isto , situadasacima e fora das fronteiras escolaresinstitucionalmente reconhecidas ou,quando no seu interior, em qualquercaso fora do controlo e da aco damaioria dos actores escolares subor-dinados. As escolas-reflexo, em dife-rentes graus, resultam de abordagenstericas de feio estruturalista, for-malista e racional-burocrtica, conce-dendo pouca importncia ao estudoda aco e dos actores. Os reflexos eas aces em conformidade, ou o pre-domnio do normativismo por partedos actores, so considerados nor-mais e expectveis. So, de resto, sis-tematicamente procurados em termosde anlise, uma das razes por quetendem a ser confirmados, ignorandosinais contraditrios, marcas de des-conexo relativa entre estruturas eaces e entre orientaes polticas eprticas, fenmenos de infidelidadenormativa (Lima, 2003), interesses eprticas divergentes, conflitos, etc.

    A escola como invlucro

    Cada escola um contexto espe-cfico de aco, certamente marcado

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    por dimenses polticas, jurdicas,formais e estruturais de diverso tipo,mas tambm pelas capacidades deagenciamento e interveno dos ac-tores individuais e colectivos. Umaforma de escapar s sobredetermina-es jurdico-formais e s aborda-gens de tipo reflexo, anteriormentereferidas, exactamente atravs daconsiderao das particularidades eda concretude inerentes a cada con-texto escolar. Porm, s aparentemen-te a presente categoria consegue re-aliz-lo, uma vez que, mais do quedefinir em profundidade um contex-to, procurando a sua compreenso einterpretao aprofundadas e den-sas, limita-se descrio genrica esuperficial das suas caractersticasmais imediatamente evidentes. Tra-ta-se, em muitos casos, de cumpriruma rotina pouco expressiva, espe-cialmente quando a matria substan-tiva da pesquisa incide sobre ques-tes de ordem pedaggica, sobrecomportamentos e interaces entreactores educativos, sobre assuntosdidcticos ou sobre mtodos de en-sino-aprendizagem, entre outros. Ocontexto escolar surge, ento, esbo-ado a traos largos e imprecisos,instrumental face centralidade doproblema a pesquisar, raramente sechegando a perceber as vantagensde tal exerccio e, muito menos, asrelaes que seria possvel estabe-lecer entre o contexto organizacio-nal escolar e os fenmenos em ob-servao. como se em vez de umaverdadeira contextualizao, exigin-do estudo especfico e elaboraoprpria por parte de quem pesquisa,em vez de mera reproduo de fac-tos e dados genricos, indiferentess especificidades e aos requisitosdaquele estudo em concreto, se op-tasse por uma viso muito simplifi-cada da realidade, indiferente com-preenso das relaes mais comple-xas, entre as quais as relaes depoder, que ocorrem dentro e fora daorganizao escolar, apenas desta-

    cando alguns elementos superficiaisque envolvem os aspectos centraisda pesquisa. Em tais casos, da apre-sentao de um envoltrio, de umaespcie de membrana que cobririao nosso objecto de estudo, ou deum simples invlucro, que se trata,mas no de um ensaio de contextua-lizao que leve minimamente a srioo estudo e a interpretao da escolaenquanto contexto complexo.

    A escola como coleco

    A escola, enquanto categoria, as-sume aqui um estatuto resultante deum processo de mera adio, ousoma, de certos atributos. Aparente-mente, o problema no reside na au-sncia de uma perspectiva holsticasobre a escola, mas antes no proces-so utilizado para a produo de talperspectiva. Porm, a escola nuncachega a ser abordada na sua totali-dade e complexidade, mas antes cin-dida e fragmentada em mltiplos olha-res cirrgicos, de tipo micro-analti-co, incidindo sobre objectos de es-tudo insulares e atomizados, relati-vamente independentes e desligadosuns dos outros. O individualismometodolgico revela-se, portanto,capaz de subordinar a perspectivaholstica, tal como o protagonismoatribudo micro-abordagem inibe asabordagens analticas de tipo macroe meso. Em sentido semelhante, ope-ra-se um grande desequilbrio entreos termos da tenso estrutura/aco,a favor de uma concepo volunta-rista, e por vezes demirgica, do ac-tor social, representado com capaci-dades ilimitadas de autonomia. Ten-de-se, por isso, generalizao deocorrncias especficas, de atributospessoais ou, at, de traos de perso-nalidade, ou ainda de elementos re-sultantes de ensaios de tentativa-erro ou de experimentao social eeducativa. Contudo, a escola no uma mera coleco de indivduos ede grupos, de departamentos ou uni-

    dades organizacionais, de objectivose estratgias, de meios e de fins, dealunos e professores. No , portan-to, uma mera soma das partes que aconstituem, mas transcende o resul-tado do processo de adio dos seusconstituintes. No , finalmente, umconglomerado de classes ou salasde aula, ou simplesmente um agre-gado de relaes entre professorese alunos, de interaces verbais eno verbais, de textos produzidos, dedecises tomadas embora tambmseja tudo isso, mas no apenas isso.

    A escola como mediao

    A escola no se apresenta comoapenas um locus de reproduo po-ltica e normativa, nem, muito menos,como um reflexo ou cpia fiel dasestruturas sociais que a constrangeme definem. Constituindo uma organi-zao formal, dotada de objectivos,recursos, estruturas, tecnologias,etc., necessariamente habitada poractores sociais concretos que soresponsveis pela aco organizaci-onal, ou seja, por uma acepo deorganizao no s como unidadesocial, mas tambm como actividadede organizar e de agir a organiza-o em aco , no apenas um nome(organizao) mas tambm um ver-bo (organizar). Como categoria demediao, a escola intervm na rela-o entre meios e fins, que afinal atarefa substantiva da administraoescolar (Paro, 2007, p. 27-32), reve-lando-se amide um locus de produ-o de orientaes e de regras, se-guramente condicionadas, mas nodeterminadas. A prpria relao en-tre as estruturas organizacionais eadministrativas, a organizao peda-ggica, as estruturas e os processosdidcticos, revela uma funo essen-cial de mediao na organizao es-colar, qualquer que seja a concep-o de articulao e coordenao detais elementos. Outra modalidade demediao a que releva dos encon-

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    A escola como categoria na pesquisa em educao

    tros e desencontros entre as polti-cas educacionais nacionais, regio-nais ou locais e as polticas organi-zacionais, seja de mbito geral, sejaj no interior de departamentos, gru-pos e subgrupos, formais ou infor-mais. Isto significa que o estudo daorganizao escolar em aco de-manda tambm uma capacidade demediao analtica, permitindo esta-belecer articulaes, mesmo que d-beis, entre olhares distintamente an-corados do ponto de vista da escalade observao, bem como da maiorou menor amplitude das interacessociais, dos fenmenos de poder, etc.Este tipo de mediao meso-analti-ca que permite o trnsito terico ea interseco entre focalizaes ma-cro e micro das realidades escola-res. Neste sentido, a mediao, a cor-respondente coordenao e coope-rao mnimas exigidas, remetem ne-cessariamente para o conceito deorganizao e de aco organizada.

    O estudo da escola comoorganizao em aco

    A escola resulta de um longo pro-cesso histrico de construo e insti-tucionalizao, incluindo as especifi-cidades e as diferenas que evidenciade pas para pas e de cultura para cul-tura. A existncia de muitos elementoscomuns s escolas actuais resulta, emnosso entender, de um processo deformalizao e de racionalizao, tpi-co da modernidade organizada, cen-trado em variados elementos, taiscomo: a produo de educao esco-lar e de ensino em larga escala, o ensi-no em classe, a especializao e frag-mentao do currculo, a especializa-o acadmica e profissional dos pro-fessores, o controlo do tempo e doespao escolares, a introduo de hie-rarquias de tipo organizacional e deactividades de suporte administrativotendo em vista a consecuo de umdeterminado projecto de educao. Nocaso paradigmtico da escola pblica,

    esse projecto corresponde a uma pol-tica estatal que, entre outros objecti-vos, pretende assegurar o controlo le-gtimo do estado sobre as escolas e aeducao escolar, isto , perpetuar umaforma de dominao de tipo racional-legal. Emergiu, por isso, um tipo novode organizao formal, uma forma es-colar moderna que, semelhana daorganizao industrial, se revelar in-dispensvel perpetuao de um po-der, bem como transmisso eficientee em larga escala, adoptando diversoselementos de extraco racionalista,produtivista e industrial. Uma organi-zao metdica quanto ao tempo e aosprocessos pedaggicos, de raiz meca-nicista, surge j no projecto de ensinartudo a todos e em todos os lugares,proposto no sculo XVII por Com-nio, na sua Didctica Magna. es-cola ir o pai da Administrao Cien-tfica, Taylor, buscar o elemento legi-timador da tarefa, do mtodo e da or-dem para o justificar na organizaoindustrial e na diviso tcnica do tra-balho.

    Ignorar, portanto, que a categoriaescola, seja qual for o contexto cien-tfico da sua utilizao ou convoca-o, remete tambm, e necessaria-mente, para uma organizao moder-na, formal e complexa, acarreta sem-pre consequncias para a pesquisa.No se trata de fazer a apologia dosestudos organizacionais em torno daescola, ou, menos ainda, de defen-der uma espcie de sobredetermina-o organizacional que, no limite,impediria qualquer estudo sobre aeducao escolar e o processo deensino-aprendizagem que no con-ferisse suficiente ateno aos dadosda pesquisa organizacional. Mas tra-ta-se de ponderar os sentidos diver-sos, e frequentemente antagnicos,que atribumos categoria escolanos nossos trabalhos de pesquisa,tantas vezes sem sequer reflectirmosminimamente sobre o assunto.

    Porm, mais do que o estudo dasestruturas e dos actores escolares, o

    estudo da aco em contexto escolar,seja qual for o seu domnio de inter-veno e os sujeitos envolvidos nainteraco social, remete, mediata ouimediatamente, para a consideraoda escola como organizao em ac-o. Por esta via, terica e metodol-gica, possvel atender, ainda quecom distintos graus de detalhe, s in-terseces entre os comportamentose interaces de tipo micro-social, composio social e s relaes depoder em contexto organizacional e,ainda, a elementos de mudana ma-cro-social (Albrow, 1997, p. 138-140).

    Enquanto esfera prpria de medi-ao entre o contexto social maisamplo (a economia e a sociedade, porexemplo, tal como as polticas pbli-cas e as estratgias educacionais) eas interaces de pequena escala queocorrem quotidianamente em espa-os intersticiais (dos rgos de ges-to das escolas sala de aula e srelaes pedaggicas entre profes-sores e alunos), sobressai a escolacomo organizao especializada e,necessariamente, como aco orga-nizada, isto , sobressai a organiza-o escolar em aco. A, o pesqui-sador confronta-se com uma miradede alternativas, de paradigmas deanlise sociolgica das organizaeseducativas, com modelos tericos,com imagens ou metforas organiza-cionais de vocao compreensiva einterpretativa (Lima, 2006). Em talquadro de referncia, emergem no-vas categorias e concepes de es-cola, mas, nesse caso, j de naturezaexplcita e intencional, teoricamenteelaboradas e discutidas, mais resul-tantes de opes bem informadas ejustificadas por parte de quem ela-bora a pesquisa, constri a proble-mtica e o modelo de anlise, do quede concepes implcitas ou de efei-tos no desejados. As concepesde escola como burocracia racio-nal, como cultura, como arenapoltica, como sistema social,como anarquia organizada, ou

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    Educao Unisinos

    Licnio C. Lima

    como sistema debilmente articula-do, entre muitas outras, revelam-sealternativas a exigir estudo e opojustificada.

    O estudante das organizaeseducativas, ao menos numa perspec-tiva sociolgica, dificilmente poderdispensar-se de conhecer e de deba-ter tais categorias de anlise. Quan-to aos outros, se certamente no lhes exigvel grau semelhante de espe-cializao, pelo menos desejvelque reflictam criticamente sobre oscontornos tericos e sobre as impli-caes que para as suas pesquisastero as suas opes, implcitas ouexplcitas, em torno da categoria es-cola, afinal algo que tende a reve-lar-se tanto mais complexo quanto,aparentemente, de todos conhecidoe sem mistrio.

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    Submetido em: 14/07/2008

    Aceito em: 23/07/2008

    Licnio C. LimaUniversidade do MinhoInstituto de Educao e PsicologiaCampus de Gualtar4710-356, Braga, Portugal

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