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A era da grande muralha

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A era da grande muralha

TENDÊNCIAS

o sentimento de retomada reacende mais uma vez o orgulho danação americana. Não é por menos. Após ser atropelado pelo vigor

da economia japonesa, o Ocidente reage com reestruturações e sus-pira aliviado ao retomar antigos padrões de competitividade. Mas,

assim como na vida humana, o destino das nações é mais surpreen-dente do que se pensa. E se existe um colosso por nascer na Ásia,que realmente irá mudar o poder geopolítico mundial, este é um ou-

tro país: a China.

Durante uma década e meia, oOcidente viu o Japão como a

principal fonte de competição asiática enão mediu esforços para melhorar aprodutividade e estabelecer novos pa-dróes de administração e negócios. Nomomento em que os Estados Unidos,após oito anos de ausência, volta à su-premacia do ranking econômico se-gundo o Relatório do Banco Mundial,uma nova potência desponta na Ásia: aChina.

A China hoje representa o que os Es-tados Unidos e a Alemanha represen-taram para o mundo, e principalmentepara a Europa, na virada do século XIX,no âmbito de crescimento econômico emilitar - um país onde as contas sãofeitas em bilhóes e os padrões de cres-cimento se situam nacasa dos dois dí-gitos. A despreocupação com que osoutros países a vêem em relação àcompetitividade - a idéia de uma na-ção fraca e desaparelhada - é um jul-gamento no mínimo superficial e mera-mente baseado nos acontecimentosdos últimos anos.

trá a China realmente mudar opoder geopolítico mundial?

A inserção da China na engrenagemeconômica mundial não é tão simplesquanto possa parecer. Seus impactosexcedem raciocínios simplistas dos ho-mens de negócios. Os britânicos, hácem anos, já mostravam que estavam

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errados ao calcularem o quanto au-mentariam sua capacidade de produ-ção têxtil se cada chinês aumentasseem uma polegada a manga de sua ca-misa. Hoje, os chineses têm mangasde camisas maiores, porém suas pró-prias tecelagens suprem a demandainterna e, de quebra, ameaçam a in-dústria ocidental de tecidos.

Existem sinais de que a tripolaridadeeconômica EUA, Japão e ComunidadeEuropéia direciona-se para inclusão deum quarto alicerce: a Grande China(República Popular, Hong Kong eTaiwan). Na revista Foreign Affairs denovembro/dezembro 1993, NicholasD. Kristof afirma que "se as previsõesse cumprirem, a Grande China nãoserá apenas um outro pólo econômi-

co; será o maior de todos. JJ

A análise do padrão de crescimen-to chinês e do perfil de atuação des-te país não pode prescindir de doisfatores. O primeiro, refere-se ao ceti-cismo e ao desdém com o qual o ci-dadão chinês - cuja renda per capi-ta dificilmente ultrapassará US$ 500na virada do século - vê esta expec-tativa de crescimento. Para uma po-pulação que crescerá de 1 bilhãopara 1,2 bilhão de habitantes no ano2000, aumentos de renda podem serconsiderados uma utopia. O segundofator é a liderança marcante de DengXiaoping, diretamente relacionada aoboom econômico desencadeado em1978, que vem gerando um cresci-mento médio de 9% ao ano.

Novembro/Dezembro de 1994

o dilema das armas

Enquanto potências bélicas comoEUA, Rússia e Inglaterra têm procura-do diminuir seus orçamentos militares,a China tem se mostrado avessa aessa tendência. De acordo com a revis-ta Jane's, o orçamento chinês cresceu,entre 1988 e 1993, quase 95%, ou seja,algo em torno de US$ 7,5 bilhões. Emnível internacional, estima-se que es-ses números sejam bem maiores.Jonh M. Olin, diretor de Estudos Estra-tégicos da Harvard University, em seuartigo Choque das civilizações?, afirmaque o desenvolvimento militar da Chinae suas reivindicações de soberania so-bre o Mar do Sul estão provocandouma corrida armamentista unilateral noLeste Asiático.

Concentrada em manter relações pa-cíficas com seus vizinhos, a China nãopretende mais ser vista como uma po-tência intermediária na região e, paraisto, tem tratado de se posicionar emrelação a suas fronteiras. Segundo a re-vista The Economist, o resto do mundosó terá com o que se preocupar daqui a10 ou 15 anos. quando a economia civilalcançar ímpeto suficiente para realizarmais rapidamente as reformas militares.No entanto, espera-se para o próximoséculo uma guerra que envolva o Mardo Sul da China, que os chineses con-sideram seu, com países que reivindi-cam sua posse, como Vietnã, Malásia,Bruneri, Taiwan e Filipinas.

Impactos ambientais

E quem vai pagar a conta do cresci-mento chinês? Em estudos e reporta-gens sobre a China, fala-se muito pou-co sobre os custos ambientais de umdesenvolvimento econômico tão acele-rado.

A maior fonte de energia utilizada nopaís advém do carvão doce, inimigonúmero 1 dos ambientalistas devido àschuvas ácidas que provoca. Embora se

Suplemento da RAE

saiba que regiões da Sibéria e da Co-réia tenham suas florestas atingidaspor estas chuvas oriundas da China, émuito difícil estabelecer sua real mag-nitude. Estima-se, contudo, que em umintervalo de 10 a 15 anos, a China seráo principal causador de chuvas ácidas.

Quanto a problemas com o efeitoestufa, estima-se que, se a Chinamantiver os atuais níveis de cresci-mento, em 30 anos superará os EUAem emissão de dióxidos de carbono.Segundo Nicholas D. Kristof, a Chi-na é o terceiro emissor mun-dial de gases associados aoefeito estufa, mas nãoestá entre os cinqüentaprimeiros colocados emtermos de emissão percapita. Embora o cida-dão norte-americanoproduza nove vezesmais gases associa-dos ao efeito estufado que o cidadãochinês, em termostotais, o volume daChina é altíssimo,devido ao seu ta-manho populacio-nal. "Funcionáriosdo governo chinêsdeixam claro quenão vão sacrificaro crescimentoeconômico pelobem do meio am-biente - nem oseu, nem o dosoutros".

Retrato deum cresci-mento

o crescimentochinês é singularse comparadocom o de outrospaíses e é impor-

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tante notar quais são os principais as-pectos do seu boom econômico e al-guns dos seus dilemas.

Na China, o setor agrícola é, aomesmo tempo, fator gerador de força ede fraqueza econômica. Alimentar umbilhão de chineses em uma área culti-vável menor do que a dos EUA, impli-ca aumentar significamente a produti-vidade. No entanto, num país em que70% da população está diretamente en-volvida na cultura do arroz, qualquer ten-

tativa de ganho de

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TENDÊNCIAS

produtividade, via mecanização, gerariagrandes danos sociais.

Três problemas podem ser ressalta-dos quanto à indústria chinesa. O pri-meiro, é o baixo poder aquisitivo da popu-lação, que tem prejudicado muito a ex-tensão dos avanços econômicos. O se-gundo é o déficit da balança comercialcausado pela importação de produtosmanufaturados. E o terceiro é o conflitoideológico, ainda pouco conhecido, pro-veniente da abertura recente da China,país comunista.

Dificilmente a China será uma outraAlemanha ou um outro Japão, em ní-vel de comércio exterior. Seu merca-do interno e proporções continentais(com incrível potencial, desde quehaja uma política adequada de renda)e a existência de grande quantidadede matérias-primas evitarão sua de-pendência com o comércio exterior.

Outro ponto a ser ressaltado é que opaís se nega a depender de uma úni-ca fonte no que se refere a aspectosde fornecimento, sejam eles de capi-tal, manufaturas ou tecnologia. Suapolítica de inserção no GATT atende ainteresses relativos a empréstimos emercados através de órgãos interna-cionais, em vez de países ou bancosprivados.

Há ainda o avanço das empresasocidentais na região. A KFC, KentuckyFried Chicken da Pespi Co., por exem-plo, está obtendo licença para operarrestaurantes próprios em Tianjln, umadas maiores cidades chinesas. A em-presa hoje tem 27 restaurantes da redeespalhados pela China e fatura US$ 25milhões. A General Electric - DivisãoMotores a Jato - objetiva abrir centrosde serviços em 17 cidades chinesas. ACoca-Cola informou que construirá umafábrica engarrafadora na cidade deKunming, na província de Yunnan; hoje,ela já possui seis fábricas no país e aVolkswagen pretende ampliar sua capa-cidade de montagem.

A China é também conhecida comoo paraíso das piratas. Qualquer que

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seja a marca desejada - Reebock,Nike, Microsoft, Colgate, Palmolive,Kellog's, dentre outras - haverá sem-pre a versão similar chinesa. Os pre-juízos para as empresas americanassão estimados em US$ 800 milhões. AChina tem mantido esforços para de-finir uma legislação que resolva essesconflitos, estabelecendo leis severascontra falsificadores e tribunais espe-ciais para causas que envolvam pro-priedade intelectual. Ainda assim,essa situação dificilmente será resol-vida no curto prazo.

A considerável importância da Chinanos cálculos de Washington e Moscoue outras capitais importantes pode seratribuída à maneira arguta e até mes-mo atrevida com que tem usado seusrecursos políticos, econômicos e milita-res, a despeito de ser descrita comoum Estado ameaçado e perseguido.Seu estilo de relacionamento, inde-terminado e imprevisível, compreende

Luis Tadeu Arraes Lopes é ex-a/uno de graduação, Mestre eDoutorando na EAESP/FGV.

desde a confrontação e o conflito arma-do até um alinhamento informal ou umaindiferença que se aproxima do desli-gamento, combinada com uma retóricaestridente e irada. Tal estratégia, aomesmo tempo em que gera riscos po-líticos e militares substanciais, tambémempresta considerável credibilidade àposição da China como grande potên-cia em ascensão.

Por tudo isto, a China assumiu umaposição internacional singular, tantocomo participante de conflitos políticose militares importantes do pós-guerra,quanto como um Estado que resiste auma fácil catequização política ou ide-ológica. Na verdade, num certo senti-do, a China deve ser vista como umacandidata à grande potência por simesma - não como uma imitação ouemulição da União Soviética ou dos Es-tados Unidos, mas como um reflexo dapolítica singular de Pequim na políticaglobal. •

Paulo Ricardo Torres é ex-a/unode graduação e Mestre pelaEAESP/FGV.

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