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1 A ENFERMARIA MILITAR DE JAGUARÃO: CONHECENDO SUA HISTÓRIA. Alexandre dos Santos Villas Bôas Historiador Universidade Federal do Pampa, Mestrando Patrimônio Cultural UFSM [email protected] O presente trabalho é parte integrante do projeto de pesquisa denominado A Enfermaria Militar de Jaguarão – Relato Histórico, desenvolvido na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) que tem como objetivos evocar a história da Enfermaria Militar de Jaguarão, local que abrigará o Centro de Interpretação do Pampa. Pretende catalogar fontes primárias e bibliografia, além de relatos orais, obtidos junto aos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão, Prefeitura Municipal, Câmara de Vereadores, Guarnição do Exército de Jaguarão e pessoas da comunidade. Serão priorizados aspectos relativos aos usos do prédio, desde sua construção no final do século XIX até a fase de ruínas, numa visão macro de sua historicidade, organizando ás informações em ordem cronológica. Também será organizado um índice de referências sobre o assunto para auxiliar futuras pesquisas, constituindo um acervo básico para consulta, assim como digitalização de fotos existentes sobre o prédio e exposição através de banners. Palavras-chave: história, memória, saúde. INTRODUÇÃO A Enfermaria Militar de Jaguarão é um prédio em estilo neoclássico localizado no Cerro da Pólvora, na cidade de Jaguarão (RS), construído entre 1880 e 1883, com a finalidade de atender os militares do exército da região da campanha e que atualmente servirá de base para a implantação do Centro de Interpretação do Pampa 1 (CIP), complexo cultural que contará com museu, anfiteatro e auditório subterrâneo, além de prédio de apoio para desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa extensão. A história desse prédio está ligada ao efetivo militar presente na cidade de Jaguarão desde seu princípio como acampamento militar no ano de 1802 2 , fruto do projeto lusitano de 1 A Universidade Federal do Pampa será a mantenedora deste Centro, responsável pela organização e con- servação, apresentando aos visitantes a história do pampa, desde a formação geológica, aos primeiros habi- tantes deste espaço geográfico, a chegada dos colonizadores, seus hábitos culturais, chegando ao amálgama que é hoje a chamada cultura dos pampas (nota do autor). 2 “Sabemos”, através de inequívocos documentos, que a Guarda do Cerrito, origem primeira da cidade de

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A ENFERMARIA MILITAR DE JAGUARÃO: CONHECENDO SUA HISTÓRIA.

Alexandre dos Santos Villas Bôas

Historiador Universidade Federal do Pampa, Mestrando Patrimônio Cultural UFSM

[email protected]

O presente trabalho é parte integrante do projeto de pesquisa denominado A Enfermaria Militar de Jaguarão – Relato Histórico, desenvolvido na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) que tem como objetivos evocar a história da Enfermaria Militar de Jaguarão, local que abrigará o Centro de Interpretação do Pampa. Pretende catalogar fontes primárias e bibliografia, além de relatos orais, obtidos junto aos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão, Prefeitura Municipal, Câmara de Vereadores, Guarnição do Exército de Jaguarão e pessoas da comunidade. Serão priorizados aspectos relativos aos usos do prédio, desde sua construção no final do século XIX até a fase de ruínas, numa visão macro de sua historicidade, organizando ás informações em ordem cronológica. Também será organizado um índice de referências sobre o assunto para auxiliar futuras pesquisas, constituindo um acervo básico para consulta, assim como digitalização de fotos existentes sobre o prédio e exposição através de banners.

Palavras-chave: história, memória, saúde.

INTRODUÇÃO

A Enfermaria Militar de Jaguarão é um prédio em estilo neoclássico localizado no Cerro da Pólvora, na cidade de Jaguarão (RS), construído entre 1880 e 1883, com a finalidade de atender os militares do exército da região da campanha e que atualmente servirá de base para a implantação do Centro de Interpretação do Pampa1 (CIP), complexo cultural que contará com museu, anfiteatro e auditório subterrâneo, além de prédio de apoio para desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa extensão.

A história desse prédio está ligada ao efetivo militar presente na cidade de Jaguarão desde seu princípio como acampamento militar no ano de 18022, fruto do projeto lusitano de

1 A Universidade Federal do Pampa será a mantenedora deste Centro, responsável pela organização e con-servação, apresentando aos visitantes a história do pampa, desde a formação geológica, aos primeiros habi-tantes deste espaço geográfico, a chegada dos colonizadores, seus hábitos culturais, chegando ao amálgama que é hoje a chamada cultura dos pampas (nota do autor). 2 “Sabemos”, através de inequívocos documentos, que a Guarda do Cerrito, origem primeira da cidade de

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ocupação da fronteira oeste da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul com fortificações militares.

Estes núcleos surgiram, em sua maioria, junto a fortificações que “começam a elevar-se cada poucos quilômetros” construídas por militares pertencentes aos dois impérios. Jaguarão é um exemplo de cidade que surge a partir de uma instalação militar, uma “Guarda de Fronteira”. No início do século 19 são definidos os limites dos territórios de cada uma das nações ibéricas, e o município de Jaguarão tem definida sua localização como linha de fronteira, como limite do território português ao sul do continente americano (MARTINS, 2000).

A presença militar na cidade de Jaguarão propiciou a criação de um núcleo urbano, inicialmente voltado ao abastecimento da guarnição e aos poucos estabelecendo um comércio com o outro lado da fronteira3, onde também se formou um núcleo populacional com características semelhantes. Embora os militares de ambos os lados se mantivessem em prontidão constante, prevaleceu à relação de troca comercial e cultural entre os vizinhos que foi tomando importância com a expansão da produção das charqueadas de ambos os países.

Ponto de passagem de exércitos em trânsito, foco de incipientes charqueadas, entreposto comercial à beira da fronteira móvel de duas nações em gestação, a Guarda do Cerrito não poderia ter sido uma idílica aldeia camponesa, obediente ao sino da igreja e aos sermões do vigário. Era certamente um lugar de vida aventurosa, sujeita não somente aos respingos das refregas guerreiras, como ao impacto das ambições desatadas entre toda a espécie de pioneiros que se instalavam junto à fronteira (FRANCO, 2001, p. 39).

As charqueadas atingiram seu apogeu no final do século XIX e início do XX, sendo a cidade de Jaguarão fornecedora de gado para essa indústria, ocasionando o rápido enriquecimento de uma elite latifundiária que concentrou em suas mãos o poder econômico e político. Figuras importantes dessa elite como Bento Gonçalves, fixaram raízes na cidade e seus descendentes utilizaram deste prestígio para constituir “famílias” que ocuparam postos de mando na cidade e também no estado do Rio Grande do Sul.

Como parte do efetivo militar do Império brasileiro era integrada pela Guarda Nacional e seus oficiais eram oriundos da elite latifundiária, a cidade de Jaguarão teve essa característica de laços estreitos entre militares e civis. Logo a demanda por construções que suprissem as necessidades do exército exigiram o surgimento de instalações como quartel e hospital e a elite da cidade incentivou a aplicação de recursos financeiros em Jaguarão, foi estabelecida pelo Coronel Manoel Marques de Souza entre 4 e 10 de fevereiro de 1802, com a força aproximada de 260 homens que acabavam de participar da expedição contra Cerro Largo. (Franco, 2001: 33.)3 Desde muito cedo, as comunidades dos dois lados da linha divisória tenderam a prática de uma economia solidária e complementar, que as barreiras fiscais jamais conseguiram disciplinar. O famigerado contraban-do, hostilizado pelos governos (nem sempre com muita sinceridade e coerência) e combatido pelas praças comerciais que ele prejudicava, sobreviveu a todas as perseguições (Ibidem, 2001, p. 18).

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construções grandiosas que acompanhassem os casarões que serviam de morada dessa mesma elite.

Não há dúvida que a presença de elevado número de oficiais e praças sempre concorreu para o incrementar da movimentação cultural da região. No momento em que a cidade alcança um momento de desenvolvimento, estas questões culturais vão se expressar em outras atividades, caso da construção civil, que acompanhará a fase áurea de crescimento ocorrida nos três últimos decênios do século XIX e nos primeiros anos do século seguinte (MARTINS, 2001, p. 213).

Nesse contexto, o erguimento de um hospital militar que atendesse aos militares de Jaguarão como também da região da campanha foi concebido para ser referência arquitetônica e símbolo de opulência e demonstração de subjugação da natureza pelo progresso técnico e econômico. O local escolhido atendia essa finalidade e também a de afastar os doentes do contato com o núcleo urbano, sendo o denominado Cerro da Pólvora ideal, pois era um dos pontos mais altos da cidade. O nome do local remete a finalidades bélicas, que teria sentido, pois algumas fontes4 citam a construção de um forte por ordem do Duque de Caxias, quando era o presidente da província do Rio Grande do Sul , embora não foram encontrados vestígios materiais por escavações arqueológicas efetuadas quando da execução do projeto do Centro de Interpretação do Pampa.

O projeto5 da enfermaria militar, como ficou conhecida sua nomenclatura, contemplava farmácia, salas de internação de oficiais e praças, sala de operações (nome que consta na planta original), cozinha, salas de atendimento médico e local para uma guarda de serviço. Posteriormente, em 1915, foram acrescentados anexos de uma capela e de um necrotério, mantendo esta configuração durante seu funcionamento, sem grandes alterações. O prédio foi construído ao redor de um pátio interno, com amplas janelas e porão alto, uma sólida construção de alvenaria conjugada com pedras oriundas de uma pedreira próxima. Seu imponente estilo neoclássico contrastava com o vazio ao redor e permitia uma observação da cidade e do rio Jaguarão que delimita a fronteira com o Uruguai, o que ficou presente no imaginário da população.

Outros espaços urbanos também tiveram sua identificação com as atividades militares, sendo muito expressivo, tanto por sua localização, como por sua escala e requinte construtivo, é o edifício conhecido como “Enfermaria Militar”. Este edifício está localizado no alto do “Serro da Pólvora” (o próprio nome já indica a ligação com as coisas militares), um dos pontos mais alto do entorno urbano de Jaguarão, ocupando uma posição geográfico política destacada na paisagem local (MARTINS, 2011, p. 209).

4 As fontes foram pesquisadas pela estagiária de história do IPHAN Márcia Pereira das Neves, sob a orien-tação da historiadora Beatriz Muniz Freire no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul no ano de 2009 (nota do autor).5 O prédio da Enfermaria Militar teve sua construção iniciada em 1880 e finalizada em 1883, sendo a cons-trução dirigida pelo Capitão Carlos Soares, por ordem do Ministro da Guerra, Visconde de Pelotas (nota do autor).

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O funcionamento da enfermaria militar de Jaguarão ocorreu até o final da década de sessenta, quando houve a transferência do 13º Regimento de Cavalaria em 1970, ocasionando a desativação da função hospitalar. Alguns depoimentos orais relatam que teria funcionado no prédio uma escola primária e outros dão conta de que até mesmo serviria de prisão política, principalmente após o golpe civil-militar de 1964.

Fotografia 1 – Enfermaria Militar em funcionamento. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão.

Após esse período de funcionamento como escola e prisão política houve o abandono do prédio pelo exército e suas instalações foram depredadas pela população de forma que em pouco tempo o imponente prédio se transformou em ruínas. Não está claro o porquê dessa depredação e nem sua motivação, mas o fato é que todo o seu mobiliário e peças como janelas, portas, pisos, forro e telhado foram retirados e não houve resistência por parte das autoridades locais.

Durante a década de setenta, o abandono foi tal que houve até uma tentativa de venda do prédio por parte do governo federal, que acabou frustrada por não haver interessados. O espaço então começou a ser utilizado de diversas formas, pela comunidade do entorno como local de lazer, pelos eventuais turistas que passavam pela cidade e ficavam intrigados com aquelas ruínas na parte mais alta da cidade e também pelos marginalizados da sociedade, que começaram a efetuar desenhos e inscrições em suas paredes.

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Fotografia 2 - Ruínas da enfermaria militar em 2011. Foto: Helyna Dewes.

DISCUSSÃO

No início dos anos oitenta, a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) através do curso de Arquitetura e Urbanismo desenvolveu na cidade de Jaguarão um projeto denominado de Jaguar, que tinha o objetivo de mapear os prédios de estilo eclético e realizar um plano de salvaguarda desse patrimônio material. As ruínas da enfermaria militar entraram nesse levantamento de forma destacada, como ícone desse ambicioso projeto de conscientização da comunidade acerca da importância da preservação e uso desses prédios como fomentador da cultura e mesmo do incremento da economia através do turismo.

Na década de 1980 começaram estudos realizados através da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas, que culminaram mais tarde no Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão – PRIJ (Oliveira, 2005). O PRIJ teve relação com o Projeto Jaguar de identificação do patrimônio da cidade de Jaguarão, e outras inciativas da comunidade entre as quais se destacam as vigílias realizadas no local e shows artísticos realizados no local que chamaram a atenção para a importância do bem cultural para a comunidade (RIBEIRO; MELO. 2011, p. 3).

Foi realizado o mapeamento de cerca de oitocentos imóveis, com planilhas que identificavam suas características arquitetônicas e um histórico de cada edificação, privilegiando o conjunto urbano de característica eclética que foi preservado pelos moradores. Junto a esse levantamento foram organizadas ações com o poder público e a comunidade para a conscientização da importância desse conjunto para o desenvolvimento da cultura e construção da memória através do patrimônio material.

A enfermaria militar, nesse contexto, pela sua importância simbólica foi alvo de ações de maior visibilidade, onde os integrantes do projeto Jaguar chamaram a comunidade para participar de vigílias, encenações teatrais e shows de rock, inclusive com a presença da então iniciante banda Engenheiros do Hawaii. O objetivo era chamar a atenção da

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comunidade e envolver a mesma para que houvesse uma pressão nos políticos locais para que através de legislação protegessem o patrimônio material da cidade de Jaguarão.

A prefeitura municipal de Jaguarão criou o parque municipal que abrangia as ruínas e adjacências, permitindo a preservação do entorno e tentando dotar uma destinação de uso pela população, através da lei 1.712 de 24 de junho de 1988. Esse parque continha alguns brinquedos feitos de madeira, bancos e um busto de um ex-prefeito da cidade, mas não houve a apropriação da comunidade do local e o mesmo foi abandonado e depredado.

O tombamento na esfera estadual ocorrido em 1990 possibilitou um reconhecimento estatal da importância daquele patrimônio cultural, mas por falta de recursos financeiros não foi possível à recuperação do prédio, sendo depredado até o ano de 2011, quando do tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e início das obras do Centro de Interpretação do Pampa. O grande desafio agora será o de coadunar a revitalização do patrimônio cultural com a apropriação pela comunidade do novo uso do local e manter preservada a memória6 anterior.

Patrimônio sempre teve a ver com identidade, com valores não materiais, simbólicos, e com a memória dos indivíduos e dos grupos. Sem memória não há pessoa, não há projecto, não há sentido de comunidade - só máquinas delirantes e egoístas, monstros em que tememos transformar-nos (JORGE, 2007, p.20).

A inserção de um complexo que vise à difusão cultural dentro de uma comunidade deve antes conhecer as manifestações que emanam no seu interior, respeitando as caracterizações populares e integrando os saberes formais da academia com a cultura popular. A simples sobreposição de valores tem o perigo de descaracterização dos objetivos de um aparelho cultural e mesmo da gradativa alienação dos moradores locais com a instalação de estruturas que não permitam um reconhecimento de sua identidade. As comunidades de cidades do interior tem uma relação estreita entre seus membros através de um modo de ser peculiar e que permite uma aproximação e identificação mais coesa do que nas grandes cidades, marcadas por uma difusão muito maior da diversidade cultural.

Patrimônio é uma herança, sim, mas é sobretudo um projecto. E esse projecto pode ser predominantemente considerado como algo de elitista – quase um lugar de culto moderno para uma minoria “esclarecida” – ou como um elemento de fruição comunitário, que é necessariamente plural e pode ser sentido e vivido de formas muito diversas por pessoas diferentes (IBIDEM, 2007, p. 126).

No caso específico em questão, se torna mais problemática porque a construção se dará 6 A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um con-junto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (Le Goff, Campinas, 2008, p.419).

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sobre as ruínas de um monumento7 marcante para a cidade de Jaguarão e rica de significados transmitida de geração em geração, portanto necessita que seja contemplada em destaque dentro do Centro de Interpretação do Pampa. Além disso, por ser um museu, nada mais justo que a história do prédio que o abrigará seja exposta e relatada, e também estimulada para que novas pesquisas sejam feitas e continuem perpetuando o conhecimento sobre a enfermaria militar. Em nossa visão, ficaria extremamente incoerente a construção de um museu em cima de ruínas que não teria contemplada sua história, sobre a estrutura que o precedeu e que foi motivo de variadas lendas do imaginário popular.

Nesse ponto, cabe analisar o projeto de revitalização da enfermaria militar. Esse projeto foi fruto de uma articulação da prefeitura de Jaguarão, com base no estudo realizado pelo projeto Jaguar na década de oitenta, o qual resultou no Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão8. Em 2007 foi instituída a lei municipal 4.682 que criou a Lei de Preservação do Patrimônio Histórico Arquitetônico e Turístico de Jaguarão (PPHAT), parte integrante do plano diretor participativo de Jaguarão (PDPJ) 9.

Essas ações levaram ao conhecimento pelo IPHAN da determinação da comunidade de Jaguarão em preservar seu patrimônio cultural, especificamente a enfermaria militar, ao qual despertou o interesse do escritório Brasil Arquitetura, que foi contratado para a idealização de um projeto que viesse a dar um novo uso ao local. Em 2009 o projeto foi finalizado pelo arquiteto Marcelo Ferraz e apresentado a comunidade. Como a prefeitura não teria recursos para desenvolver a proposta, a Universidade Federal do Pampa se tornou a responsável pela gestão e captação de recursos para o empreendimento.

O partido arquitetônico do projeto parte da valorização da antiguidade das ruínas e da cultura local, elegendo o pampa como temática principal. Esse tema propicia um alcance maior e ligação com o conjunto da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, abrindo possibilidades de variação em sua configuração espacial.

O tema central do Centro de Interpretação do Pampa é a singularidade da paisagem física e humana do que se chama Pampa, no quadro da experiência brasileira; Museu Vivo no qual os visitantes poderão vivenciar a especificidade e a riqueza da natureza, da cultura e da história irrepetível da região (BRASIL ARQUITETURA, 2009).

Assim, a antiga enfermaria militar, local de tanta carga simbólica, de diversos usos ao longo do tempo, reabrirá suas portas para a comunidade com novo significado, de valorização da cultura do pampa, de amplo espectro e nuances. Terá a comunidade de Jaguarão um

7 O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado a memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos (Jorge, Lisboa, p.526).8 O detalhamento do programa encontra-se disponível no livro Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão, de autoria de Ana Lúcia Costa de Oliveira e Maurício Borges Seibt, publicado pela editora da UFPEL em 2005 (nota do autor).9 Informações retiradas do banner apresentado no I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, no ano de 2009, de autoria de Alan Dutra de Melo, Maria de Fátima Bento Ribeiro e Andréa Gama Lima( nota do autor).

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complexo cultural, com equipamentos como auditório e anfiteatro, salas de exposições, de pesquisa e educação patrimonial, em uma região carente de tais recursos.

O Museu tem uma lógica de complementaridade e aprofundamento das experiências. Além disso, todo um projeto propriamente didático deverá ser desenvolvido, de maneira articulada aos conceitos, conteúdos e espaços das exposições, dirigido à formação de professores e ao trabalho com escolas da rede pública e privada (BRASIL ARQUITETURA, 2009).

A memória da enfermaria militar com suas diversas funções será contemplada dentro do projeto, com a instalação de um memorial dedicado mostrar a história e relatos orais disponibilizados para a comunidade e aos visitantes.

Continuando seu percurso, o visitante fará uma imersão na história do prédio da Antiga Enfermaria, sede do Museu. Na sala escura, com as janelas vedadas, os visitantes poderão sentar-se num banco diante de uma tela para ver e ouvir cidadãos de Jaguarão contarem histórias e ‘causos’ da cidade e da região, de preferência referentes à Enfermaria (BRASIL ARQUITETURA, 2009).

As articulações entre o projeto do CIP com as ruas e prédios existentes em seus arredores tem um impacto ambiental diminuído em razão de o terreno estar localizado em uma região praticamente rural, com poucas moradias. O entorno do projeto tem precárias condições de infraestrutura, não contando com ruas asfaltadas, sistema de esgoto e pluvial, tendo a prefeitura local projetos de urbanização que viria a contemplar o acesso ao Centro de Interpretação do Pampa.

O projeto do Centro de Interpretação do Pampa tem a pretensão de ser um vetor de desenvolvimento da economia local através do turismo e fomentador da cultura, com atividades de inclusão da sociedade em seu espaço físico. A sua contribuição para a arquitetura em geral é a expressão da tradição modernista em seus princípios básicos: funcionalidade e apuro tecnológico. A integração da comunidade e dos visitantes a funcionalidade do prédio é um dos pilares do projeto e nesse sentido poderá servir de paradigma em uma região pobre de estruturas públicas com proposta semelhante.

O grande desafio será a concretização de todos esses elementos em um complexo que necessariamente terá de renovar-se constantemente em seus usos e interatividade com o público, e servirá também de educador do olhar, de alargamento do horizonte de uma população periférica aos grandes centros privilegiados em construções aprimoradas estética e tecnologicamente. A adaptação do projeto às condições geográficas do local será o fator do sucesso da empreitada, por conta da colocação de materiais em contato com um clima adverso e inóspito, ainda de pouca articulação com o entorno da construção.

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Figura 3 - Projeto proposto. Fonte: Brasil Arquitetura, 2009.

O projeto tem o mérito de vislumbrar algo tecnicamente arrojado em uma região inóspita, de valorizar a cultura local e ter como proposta a inclusão da sociedade nos usos do complexo, e servindo de estimulador para a economia. O aproveitamento do terreno e do prédio em ruínas confere uma organicidade conjunta entre as diversas partes constitutivas da proposta, o que por si só destacaria a importância teórica e técnica dentro da arquitetura brasileira.

Uma possível abordagem a ser explorada poderá ser da educação patrimonial para que a comunidade se aproprie da ideia do projeto e quando do funcionamento do complexo possa estar engajada no fortalecimento das ações do Centro de Interpretação. Ainda uma análise mais aprofundada da exposição museográfica de sua dinamicidade em relação ao conteúdo e de que forma se produzirão novas temáticas de exposição e principalmente a obsolescência do aparato tecnológico inerente ao mundo pós-moderno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos chegar a algumas considerações finais no presente artigo, que irão apontar para o encaminhamento da pesquisa e desenvolvimento do trabalho.

A história do patrimônio cultural denominado de enfermaria militar, tombado pelo IPHAN e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual (IPHAE), abarca mais do que considerar os usos da edificação pela comunidade, perfaz a reconstrução da memória das pessoas que lá estiveram e mais do que isso, atinge a própria memória da comunidade da cidade de Jaguarão, já que como organização médica hospitalar, cuidou de várias gerações de pessoas.

A cidade de Jaguarão, localizada na região de fronteira com o Uruguai, na chamada região de campanha do estado do Rio Grande do Sul, teve como característica primeira à atuação de militares na constituição de uma série de fortificações que tinham o objetivo de demarcar o território colonial português. Desde cedo, então, o núcleo urbano que foi se constituindo teve um viés militar forte, que acabou moldando a configuração cultural e econômica, por vezes de forma violenta e concentradora do poder nas mãos de poucos

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indivíduos, que passavam esse poder aos seus descendentes.

Com o desenvolvimento econômico advindo das charqueadas, a cidade de Jaguarão tomou destaque com a acumulação de capital que foi aplicado em construções de casas, os chamados casarões, que no final do século XIX e início do XX, modelaram o traçado urbano da parte central da cidade. Esses casarões de estilo eclético buscavam seguir o que acontecia na Europa em termos de arquitetura e mesmo dentro do Brasil, especialmente na capital Rio de Janeiro.

A grande concentração de militares na fronteira oeste e na cidade demandava uma série de construções que visavam atender este objetivo, inclusive com a construção de fortes, como teria sido o chamado forte do Cerro da Pólvora, que sob a ordem do Duque de Caxias, então presidente da província, fora mandado erguer naquela localidade. Mas somente no final do século XIX uma estrutura de grandes proporções foi projetada e construída, um hospital militar, conhecido como enfermaria militar de Jaguarão.

O prédio foi concluído em 1883, com a finalidade de atender os militares da cidade e da região da campanha, e contava com diversos setores como farmácia, sala de operações, sala de atendimento médico, cozinha, refeitório, enfermaria para soldados, capela, necrotério e instalações de cunho burocrático e de segurança. Sua técnica construtiva foi dotada dos avanços científicos na área sanitária da época, como a ampla ventilação das dependências, iluminação farta e distanciamento do centro urbano. Na fachada estavam presentes elementos do estilo neoclássico adaptado ao material e peculiaridades da região que contrastava com os arredores do prédio, praticamente deserto.

Por estar localizado na parte mais alta da cidade, se tornou um ícone da comunidade e alvo de histórias e lendas que ao longo do tempo foi se acentuando, principalmente quando do abandono e depredação do prédio que ficou em estado de ruínas. A própria característica de organização hospitalar levou a comunidade a ter uma relação afetiva com a instituição, por ser um dos primeiros prédios públicos de grandes proporções a atender a população e também do medo que a doença causa no ser humano.

Por décadas funcionou com a sua finalidade inicial, atendendo aos militares e a comunidade, sendo local de formação e execução de atividades médicas e militares, contribuindo para a salubridade da cidade de Jaguarão e região. Também serviu de demonstração do “poder” civilizatório em face de uma região hostil ao homem e alinhamento ao pensamento dominante da sociedade de outrora. Marcou indelevelmente a história da cidade e constituiu parte da memória construída pela população, tornando-se símbolo de identificação dos citadinos.

A partir da década de oitenta do século XX, foram realizadas diversas ações visando à valorização das ruínas da enfermaria militar como patrimônio cultural. O projeto denominado de Jaguar foi realizado por professores e alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, com o objetivo inicial de catalogar os prédios de cunho histórico de estilo eclético do centro histórico e ampliou-se para a educação patrimonial da comunidade e poder público.

O ápice dessas ações foi o tombamento da enfermaria militar como patrimônio histórico e artístico do estado do Rio Grande do Sul em 1990. Esse ato permitiu um novo olhar sobre

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o prédio em ruínas, mas devido à falta de recursos para a revitalização foi novamente abandonado, até que em 2009 houve a implantação do projeto do Centro de Interpretação do Pampa, complexo cultural que terá como às ruínas da enfermaria militar.

O projeto foi concebido pela Prefeitura Municipal de Jaguarão e após cedido a gestão para a Universidade Federal do Pampa, que alocou recursos para a contratação do arquiteto Marcelo Ferraz, autor do projeto arquitetônico e do conteúdo da exposição do museu. Esse projeto procurou respeitar a cultura local e mesclar às ruínas a construção nova, destacando a última de forma que fique bem visível a intervenção moderna do prédio antigo. A proposta é de inserção da comunidade dentro das atividades do complexo, através do ensino, da pesquisa e extensão, um diálogo permanente e necessário para a vida ao lugar e dinamicidade.

O presente artigo apresentou alguns resultados da pesquisa histórica realizada até o momento, principalmente no que tange ao período delimitado desde sua fundação até a fase de ruínas, havendo um interregno entre o abandono do prédio e sua depredação, em que não há documentação a respeito, somente relatos orais. Ainda há escassez de documentação primária sobre o uso como hospital, documentação militar que demandará um processo de localização da mesma, já que houve uma série de mudanças no comando da enfermaria. Essa localização da documentação será de importância fundamental para um estudo de como eram ás técnicas médicas empreendidas na época, em uma cidade de fronteira e longe dos grandes centros, e como atuava no tratamento de doenças.

Ainda na questão atual, da implantação do Centro de Interpretação do Pampa, será a pesquisa direcionada para a preservação da memória local e também para apropriação do novo espaço pela comunidade, subsidiando com conteúdo o memorial que terá lugar no museu do Centro. O apontamento de fontes e bibliografia sobre a enfermaria propiciará novas pesquisas e constituirá um fundo documental a ser consultado pela comunidade. O grande desafio é permitir a construção de um conhecimento com diversos olhares sobre um patrimônio cultural, tendo como base a presente pesquisa, concomitante com a construção sobre as ruínas do Centro de interpretação do Pampa e seu novo uso, sem perder a forma como foi utilizado em épocas anteriores, principalmente como estrutura hospitalar.

REFERÊNCIAS

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JORGE, Vitor Oliveira. Arqueologia, Patrimônio e Cultura. Lisboa: Instituto Piaget, 2007.

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