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A ECONOMIA POLÍTICA DA AGRICULTURA. ÊNFASE PARA O AGRONEGÓCIO
João Mosca, Natacha Bruna e Uacitissa Mandamule
Maputo, 30 de Setembro de 2015
O trabalho A ECONOMIA POLÍTICA DA AGRICULTURA. ÊNFASE
PARA O AGRONEGÓCIO foi realizado pelo Observatório do Meio Rural
por solicitação da Fundação MASC no quadro do trabalho da Avaliação de
Política Económica que a Fundação está a realizar.
O trabalho baseou-se nas Guidelines for Sector-focused Political Economy
Analysis entregues pela Fundação MASC.
Maputo, 30 de Setembro de 2015.
1
A ECONOMIA POLÍTICA DA AGRICULTURA. ÊNFASE PARA O AGRONEGÓCIO João Mosca, Natacha Bruna e Uacitissa Mandamule1
1. INTRODUÇÃO
Tem havido interesse de investidores externos na agricultura em Moçambique. Esses
investimentos concentram-se para a produção, sobretudo de bens comercializáveis (de
exportação), para a satisfação da crescente procura de alguns países ou, num contexto mais global,
do mercado internacional, assim como correspondem a expectativas criadas por projecções que
indicam a subida dos preços agrícolas a longo prazo, Jorge (2012). O agronegócio surge através
de intenções e realizações de grandes investimentos, intensivos em capital e, em muitos casos,
com produções em regime de monocultura. Estes investimentos são implementados através de
médias e grandes empresas e/ou por meio da subcontratação, integrando pequenos produtores nas
cadeias de valor e/ou, ainda, pela promoção do que se designa por agricultores emergentes2.
Estas novas dinâmicas estão muitas vezes integradas em interesses de países e multinacionais em
outros sectores económicos, como por exemplo e principalmente, na extracção de recursos
naturais e na construção de infraestruturas. O programa ProSAVANA no Corredor de Nacala
(Mosca e Bruna, 2015), o que se projecta para os vales dos rios Lúrio e Limpopo, são exemplos
que confirmam o afirmado. As culturas sobre as quais há maior interesse são (por ordem
alfabética), o açúcar, algodão, banana, feijões e grãos, gergelim, soja e tabaco. Existem outros
investimentos no sector florestal, fruta (banana e citrinos), arroz, entre outras culturas.
Neste contexto, assiste-se ao aprofundamento da exclusão económica (e também política e social)
dos pequenos produtores e dos mais pobres. Ou, quando funcionalmente articulados, reproduz-se
a integração perversa do campesinato nos mercados, enquanto produtores de mercadorias, de
excedentes económicos por meio das transferências de valor e de trabalho. Estas transferências
realizam-se através de vários tipos de ligações com o agronegócio, como tecido económico, a
nível local, nacional e internacional (mercados e preços, função alocativa/redistributiva do
Estado, fiscalidade, subsídios directos e cruzados, sistema financeiro, etc.). Os residentes rurais
não são os principais aliados políticos do poder e são instrumentalizados durante as campanhas
eleitorais.
A penetração do capital no meio rural, sobretudo o agrário, mineiro e comercial, tem introduzido
dinâmicas económicas e sociais que importa analisar. Este texto possui um enfoque da economia
política, procurando analisar os interesses políticos e económicos em jogo, as suas alianças
concretizadas com medidas governativas (legislação, contratos, posicionamentos políticos, etc.)
e de política económica. Quais os novos, ou quais os ajustamentos com ou sem reforço dos
padrões dominantes de acumulação (realização, distribuição e retenção/captura). Quais os
interesses políticos e sociais, as alianças e os elementos de conflitualidade. Quais as instituições
(organizações) envolvidas e seus interesses e posicionamentos. Quais os discursos de sustentação
dos diferentes posicionamentos, muitas vezes contraditórios. E, finalmente, de que forma os
interesses, os padrões de acumulação e os grupos sociais influenciam as decisões políticas da
governação, sabendo-se ainda, das heterogeneidades dentro do sistema do poder.
1 João Mosca, Doutor em Economia Agrária e Sociologia Agrária. Director e investigador do OMR.
Professor Catedrático. Docente da Universidade Politécnica.
Natacha Bruna, Mestre em Economia. Assistente de investigação no OMR. Docente da Universidade
Politécnica.
Uacitissa Mandamule, Mestre em Ciências Políticas. Assistente de investigação no OMR. Docente da
Universidade Politécnica e do Instituto Superior de Administração Pública. 2 Veja em De Morais (2014) e Mosca e Bruna (2015).
2
Este trabalho, além da Introdução, possui mais quatro capítulos. No segundo capítulo faz-se uma
análise geral para o conjunto do sector agrário e do meio rural, referindo-se às questões colocadas
no parágrafo anterior. O terceiro capítulo refere o caso do Corredor de Nacala com enfoque para
o ProSAVANA. O capítulo 4 concentra-se na análise acerca da ocupação da terra em
consequência da procura de grandes áreas para a implementação desses investimentos. O capítulo
5 apresenta as possíveis funções da sociedade civil no âmbito do jogo das forças políticas e
económicas assim como das alianças sociais e de poder no processo de desenvolvimento rural e
agrário, tomando como caso o agronegócio e suas relações com o conjunto dos produtores e das
sociedade e comunidades locais. Finalmente faz-se um resumo.
Em cada capítulo apresenta-se uma breve descrição do “estado dos factos” e posteriormente
procura-se analisar as questões referidas no terceiro parágrafo desta introdução.
Para a elaboração do segundo e terceiro capítulos realizaram-se trabalhos de campo e recolha de
informação secundária, na e sobre a zona do Corredor de Nacala. O capítulo sobre as questões
relacionadas com a terra baseia-se nas mesmas fontes para além de outras zonas do país.
O texto foi elaborado por três autores. Não obstante a coordenação e discussões entre eles e os
esforços para que o texto apresente uma uniformidade redactorial, é possível identificar as
diferenças conforme as diferentes contribuições.
2. CONTEXTO
2.1 Contexto global
Segundo Mosca e Natacha (2015:4), “actualmente o agronegócio enquadra-se nas estratégias de
longo prazo na perspectiva da escassez de alimentos e commodities agrícolas e de aumento dos
respectivos preços a nível mundial. A emergência de grandes economias consumidoras (as
chamadas “economias baleia”, particularmente a China e a Índia) e as evoluções das economias
desenvolvidas estão a alterar a economia mundial, incluindo as funções e funcionalidades do meio
rural e do sector agrário. O crescimento da industrialização das cadeias alimentares em resposta
ao aumento da demanda de bens cada vez mais transformados, diferenciados, por efeito
simultâneo do incremento demográfico, da renda, da urbanização, e correspondentes mudanças
dos hábitos alimentares, tem feito crescer a necessidade de ampliar o volume de produção agrícola
em parte assente no alargamento da fronteira agrícola à escala mundial. África é o continente de
maior disponibilidade de terra e onde tem havido maior área adquirida por estrangeiros3
(fenómeno conhecido como “estrangeirização da terra4”).
3 “Dos cerca de 83,2 milhões de hectares de terras que foram objecto de transacções nos países em
desenvolvimento, entre 2004 e 2012, 56,2 milhões de hectares foram adquiridos em África, principal região
afectada, contra 17,7 milhões de hectares na Ásia e 7 milhões de hectares na América Latina. Em África,
Moçambique é o terceiro país (de um total de 11) mais afectado pelas aquisições, atrás apenas do Sudão e
da Etiópia, tendo já sido transferidos para investidores, nacionais e estrangeiros, cerca de 2,7 milhões de
terras aráveis, do total de 36 milhões disponíveis, e emitidos cerca de 46.000 títulos de DUAT”, Carrilho e
Mandamule (2015).
A designada disponibilidade de terras em África, geralmente, não corresponde à realidade. Os sistemas de
produção (rotação/pousio), as necessidades de áreas para pastagens, florestas para lenha e carvão e
construção de habitação, zonas de caça, reservas de terras para as futuras gerações, etc., indicam que a terra
não é abundante, considerando as tecnologias, os sistemas de produção e as economias familiares na maior
parte do meio rural africano. A disponibilização de terra implica profundas alterações nas economias,
modos de produção e lógicas reprodutivas económicas e sociais no meio rural. 4 Para o caso de Moçambique, veja Clements e Fernandes (2013).
3
Pode questionar-se acerca da hipótese de reservas de terra a longo prazo para efeitos de
colonizações económicas5 externas, com alianças internas, através da construção de grandes
infraestruturas e implantação de agricultores, nacionais e estrangeiros. Em alguns casos,
coexistem outras actividades no mesmo território, como a indústria extractiva, energia, indústria
de transformação e serviços ferro-portuários”.
Acerca dos múltiplos efeitos da globalização do agronegócio, Samir Amin (2003) afirma: “A
modernização sempre combinou dimensões construtivas, nomeadamente a acumulação de capital
e o aumento da produtividade, com aspectos destrutivos — reduzir o trabalho ao estado de uma
mercadoria vendida no mercado, muitas vezes destruindo a base ecológica natural para a
reprodução da vida e a produção, e polarizando a distribuição da riqueza a um nível global. A
modernização sempre integrou simultaneamente alguns, pois mercados em expansão criam
empregos, e excluiu outros, que não foram integrados na nova força de trabalho depois de terem
perdido as suas posições nos sistemas anteriores”, Amin (2003).
Existem sinais de mudanças significativas a nível global sobre a reconfiguração com
reestruturação dos sistemas agro-alimentares6, desde a fase de produção até ao consumo e
alterações das dietas alimentares.
O crescimento demográfico e a crescente urbanização demandarão mais bens alimentares, cada
vez mais industrializados e comercializados por canais dominados pelas grandes cadeias de
distribuição que impõem, conforme a procura, novos produtos, de melhor qualidade, bem
apresentados e com suportes sofisticados de marketing como componentes da capacidade
competitiva e concorrencial. A procura através do domínio de multinacionais determinam cada
vez mais o que, quanto, onde produzir e como (variedades e condicionantes de utilização de
químicos em defesa da saúde dos consumidores), com que qualidade e regularidade da oferta,
quais as características dietéticas, como embaladas, entre outros aspectos. Isto é, os produtores
cumprem contratos onde todas estas e outras características dos produtos estão definidas, com a
agravante das condições de pagamento serem, em muitos casos, com prazos que permitem, em
grande medida, as multinacionais operarem financiados pelos produtores.
As cadeias de distribuição, por sua vez, procuram satisfazer demandas sempre mais exigentes em
qualidade, facilidade de transportar, armazenar e consumir. Os ritmos das sociedades modernas,
a crescente alimentação fora de casa e as comidas rápidas (fast food), alteram as dietas alimentares
com consequências sobre a saúde das pessoas. Por outro lado, os organismos de saúde pública e
de nutrição tentam aumentar a legislação e a regulação para reduzir a má qualidades destes
alimentos, tanto na fase de produção como ao longo do sistema alimentar até ao consumo. As
classes médias aumentam, por outro lado, a procura de alimentos de melhor qualidade (baixos em
açúcar, proteínas animais e produzidos em sistemas de produção de agricultura biológica, também
designada de conservação ou ecológica).
A montante, as multinacionais de produtos químicos (fertilizantes e pesticidas) oferecem novos
produtos a preços cada vez mais baixos para facilitar a adopção de pacotes tecnológicos intensivos
em capital. Paralelamente aumenta a oferta de materiais vegetais e animais de elevado potencial
produtivo, que requerem insumos químicos, regadios, máquinas e técnicos qualificados. Neste
5 O conceito colonização económica não está necessariamente relacionado com o normalmente praticado
enquanto fenómeno político e de ocupação/dominação administrativa. O conceito de colonização
económica é aplicado, por exemplo, a programas de desenvolvimento de territórios com a construção de
infraestruturas e migrações dentro de um mesmo país ou com participação de estrangeiros. O colonato do
Limpopo é um exemplo em Moçambique. Em outros países existiram também colonizações económicas
internas, como por exemplo, na época de Francisco Franco em Espanha, no Sul de Espanha. No
Moçambique pós-independência, estava explicito que o envio para Niassa de pessoas no quadro da
Operação Produção, pretendia, também, povoar aquela província muito extensa, com grande potencial para
a agricultura e a de menor densidade populacional do país. 6 Sobre o conceito de sistema agroalimentar, veja por exemplo Malassis (2004) e Malassis e Padilla (1986).
4
contexto, e não necessariamente como uma forma de mais rapidamente reduzir a fome no mundo,
surgem os organismos geneticamente modificados7. Mitos governos, na expectativa de elevar
rapidamente a produção fomentam a utilização de químicos, como por exemplo de fertilizantes
através de subsídios.
Com multinacionais a montante e a jusante da produção primária, a agricultura modernizou-se,
no sentido da sua intensificação capitalista, integrou-se nos mercados globalizados e foi absorvida
pelo capital industrial, comercial e financeiro que requerem alta rentabilidade e competitividade
da produção. Esta rentabilidade estritamente económica impõe produções em larga escala,
intensivas em capital e, portanto, por um lado, consumidoras dos factores de produção
mencionados e, por outro, do lado da procura, de produtos com as características referidas.
Emerge assim a agricultura industrial que pouco possui de comum com a agricultura “tradicional”
mais adiante especificada.
Neste contexto, as economias desenvolvidas (sobretudo os países europeus, os Estados Unidos da
América e o Japão), especializam-se em actividades económicas de elevada rentabilidade e nas
chamadas novas economias (associadas, por exemplo, ao ambiente, tecnologias de informação e
comunicação, informática, investigação biotecnologias, genética, etc.). A agricultura não é tão
eficiente/competitiva comparativamente com outros sectores, o que implica que os mercados não
aloquem os recursos da economia ao sector agrário. A produção alimentar e de commodities é
deslocada para as economias menos desenvolvida8.
Surge assim o aprofundamento da divisão internacional do trabalho com o reforço da
especialização produtiva dos países pobres na produção primária, através de grandes
investimentos de empresas multinacionais suportadas e cobertas com acordos inter
governamentais e contratos com facilidades de acesso à terra, reformas legais, benefícios fiscais,
políticas de subsídios, facilidades operacionais, desarmamento alfandegário e prioridade para as
exportações, poder político aberto e “compreensivo” relativamente ao investimento estrangeiro,
entre outras.
Nesta especialização produtiva, os países ricos contribuem com capital, tecnologia, investigação
e conhecimento. Em alguns casos são agricultores dos países de origem do capital que se
deslocam para os países pobres reeditando fenómenos de colonização económica verificada tanto
nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Os países pobres oferecem terra barata
(ou a preço zero), mão-de-obra indiferenciada e barata, elementos centrais para a localização do
capital agrário internacional.
A figura abaixo procura sintetizar o anteriormente descrito.
7 É conhecido o debate internacional acerca destes produtos. Em Moçambique, na Estação Agrária de
Chókwé, iniciaram-se pesquisas para a introdução deste tipo de material. 8 É o caso do acordo de cooperação entre o Brasil e o Japão, no Programa PRODECER do cerrado brasileiro.
Para um resumo deste programa, veja Mosca e Natacha (2015), Fernandes (s/ data).
5
Figura 1
Capitalização da agricultura
Fonte: Elaboração dos autores.
A Figura 1 demonstra que o sector produtivo primário se transformou em consequência da
evolução das economias desenvolvidas, pressionado do lado da procura e da oferta pelas
mudanças globais das sociedades. O sistema agro-alimentar foi capitalizado com domínio
crescente das multinacionais que, igualmente, penetraram na produção primária como condição
para assegurar as demandas e, por outro, para garantir a eficiência estritamente económica e
financeira e a competitividade intersectorial e entre economias de todo o sistema localizado nas
economias desenvolvidas.
Assim aconteceu, por exemplo, na União Europeia (UE) que passou de um período de escassez
de alimentos no pós-2ª Grande Guerra, para, em cerca de 30 anos, se transformar na segunda
potencia agrícola mundial depois dos Estados Unidos. Este processo foi acompanhado de um
desenvolvimento desigual da UE com o aumento das desigualdades e longo prazo dos níveis de
rendimento e padrões de vida entre o Sul e o Centro/Norte da Europa e a uma transferência de
excedentes económicos (acumulação) do Sul.
Esta evolução teve fortes suportes públicos através de políticas de mercados e preços (quotas de
produção, preços de garantia, aquisição de excedentes de mercado pelos estados, ajuda alimentar
para os países pobres), co-financiamento para a modernização/capitalização das unidades
económicas rentáveis (“viáveis”) no quadro produtivista (equipamentos, infraestruturas,
reconversão de plantações, etc.) políticas proteccionistas, subsídios de sustentação dos
rendimentos das famílias dos agricultores, entre outras.
Os êxitos produtivistas da modernização da agricultura produziram efeitos sociais, ambientais e
de equilíbrio/coesão dos espaços, sobretudo entre o meio rural e as cidades e entre as zonas de
elevado potencial produtivo e as de montanha e as designadas de periféricas. A elevação da
produtividade9 por hectare e por cabeça fez reduzir drasticamente a superfície agrícola utilizada
9 Referindo-se em termos mundiais, Amin (2003) afirma: O rácio da produtividade entre o mais avançado
segmento capitalista da agricultura mundial e o mais pobre, que estava em torno de 10 para 1 antes de 1940,
está agora a aproximar-se dos 2000 para 1! … “Um sector, capaz de beneficiar da revolução verde, obteve
6
e o número de agentes económicos agrários. Os agricultores empobreceram em consequência do
aumento rápido da oferta e das menores oportunidades de negócios em outros sectores no meio
rural, da queda dos preços reais ao produtor e das menores acessibilidades (em quantidade e
qualidade) aos serviços públicos. Os territórios mais pobres provocaram o êxodo rural
provocando a desertificação humana, pobreza urbana e conflitualidades sociais. A desflorestação
e a aplicação massiva de produtos químicos degradaram os solos. Surgiram territórios e
populações excluídas da evolução desenvolvimentista.
A Política Agrícola Comum (PAC)10 produtivista excluiu populações e territórios. Por razões de
escala, conhecimento, maior articulação com os mercados e acesso aos serviços ao produtor, os
grandes agricultores foram, no meio rural, os principais beneficiários das transformações da
estrutura agrária e das reconfigurações das funções do meio rural no conjunto da economia. Foram
estes os que, com maior acesso ao capital, conseguiram ajustar-se à “Nova PAC”. Surgem ou
reforça-se o latifúndio agora capitalizado e modernizado, integrado nas cadeias de valor. Porém
foram principalmente os produtores os que, organizados em cooperativas de 2º e 3º grau
(transformação e comercialização respectivamente), conseguiram reter parte da acumulação.
Assiste-se, neste processo, ao retorno da população para as pequenas e médias cidades no meio
rural e ao surgimento do capitalismo agrário com empresários jovens e formados.
O modelo produtivista esgotou-se na Europa. Os excedentes de produção avolumaram-se sendo
a ajuda alimentar parte da estratégia agrária e os gastos públicos dedicados à agricultura chegaram
de representar, em meados dos anos oitenta do século XX, cerca de 60% do orçamento da União
Europeia. Os efeitos sociais e ambientais ganharam grande importância e as sociedades
reivindicaram novos equilíbrios sociais e espaciais. Em consequência, introduziram-se profundas
reformas à PAC para a promoção de novas actividades cujos produtos eram demandados pelas
classes médias e altas das cidades, passando o meio rural a desempenhar novas funções, com
novas funcionalidades na economia e na sociedade. Surgem actividades, de novo subsidiadas,
através de financiamentos comparticipados, investimentos no património cultural, na conservação
da natureza (parques e reservas naturais, reflorestamento, etc.), turismo cultural e de praia de
qualidade, gastronomia típica, bens regionais de qualidade, caça e pesca, desportos de montanha,
entre outras. O produtor agrícola transformou-se em um agente económico diversificado (sistemas
de produção de pluriactividade).
fertilizantes, pesticidas, sementes melhoradas e algum grau de mecanização. A produtividade destes
camponeses varia entre 10 mil e 50 mil quilogramas de cereais por ano. Contudo, estima-se que a
produtividade anual dos camponeses excluídos das novas tecnologias esteja em torno dos 1000 quilogramas
por agricultor”. 10 Sobre a PAC veja Arnalte (20112, 2005 e 2003) e Comissión Europea (2010 e 1991)
7
Figura 2
Transferência de recursos e acumulação num processo de transformação estrutural da
agricultura com base na capitalização da agricultura – União Europeia
Nota: ______ Fluxo de recursos públicos; ______ Fluxo da acumulação; _____ Efeitos negativos.
Fonte: Elaboração dos autores.
A Figura 2 revela os fluxos de recursos e a realização/distribuição da acumulação na União
Europeia. Pode verificar-se:
Que a modernização da agricultura e, posteriormente, as medidas de mitigação dos efeitos
negativos, sociais e ambientais, foram suportadas por transferências de recursos públicos
a partir das economias mais desenvolvidos da Europa, que, por sua vez, são suportados
pelos impostos dos cidadãos desses países.
Existem claros beneficiários dessas transferências: médios e grandes agricultores,
empresários rurais, classes médias e altas urbanas, elites locais e, em termos espaciais, as
regiões com maior potencial produtivo.
Contrariamente, os perdedores foram os pequenos agricultores, os trabalhadores rurais,
as classes de rendimento baixo e, em termos territoriais, as regiões desfavorecidas11.
A acumulação realiza-se no meio rural, beneficia os grupos sociais e as regiões/países
receptores das transferências públicas e os países mais desenvolvidos por via dos
empréstimos bancários, da dívida pública, dos alimentos e matérias-primas mais baratas,
e, sobretudo, como resultado da possibilidade de especialização produtiva acima referida.
Os perdedores são beneficiados a posteriori, através de transferências para a sustentação
do rendimento das famílias, de financiamentos para pequenos negócios (oferta turística,
gastronomia, desenvolvimento de produções locais de qualidade e com certificação de
origem, entre outras actividades no âmbito do conceito de pluriactividade.
Outros países, como, por exemplo, o Japão, são cronicamente deficitários em bens alimentares e
matérias-primas em consequência de condições naturais e de políticas de industrialização.
11 “A produção alimentar a uma escala global através de modernos agricultores competitivos baseados
sobretudo no norte e, no futuro, possivelmente também em alguns bolsões do sul, e a marginalização,
exclusão, e o avanço do empobrecimento da maioria dos três mil milhões de camponeses do actual terceiro
mundo e, finalmente, seu isolamento em alguma espécie de reservas. Combina, portanto, um discurso pro-
modernização e dominado pela eficiência com um conjunto de políticas ecológicas-culturais-de contenção
que permitam às vítimas sobreviverem num estado de empobrecimento material (incluindo o aspecto
ecológico). Estas duas componentes podem, portanto, complementar-se uma à outra, ao invés de entrarem
em conflito”, Amin (2003).
8
Consequentemente, requerem importações em grande volume de alimentos e de commodities para
o sector industrial (incluindo a pecuária intensiva). Nestes casos, assistiu-se à internacionalização
dos sistemas agro-alimentares. Capitais nacionais e internacionais investiram em países com terra
abundante, boas condições naturais de produção, governos receptivos ao investimento
estrangeiro, localizados em territórios competitivos e com condições para a implantação de
grandes projectos. Se possível, com sociedades civis todavia pouco formadas e informadas e,
portanto, com baixa capacidade de manifestação. Ou ainda, em países onde governam regimes
autoritários que reprimem violentamente resistências da sociedade e sobretudo das comunidades
directamente e negativamente afectados.
Isso aconteceu, por exemplo, no Brasil governado por oligarquias autoritárias e relacionadas com
o capital financeiro. O exemplo da relação Brasil - Japão no Cerrado é um dos exemplos mais
evidentes dessas alianças. Implantaram-se grandes explorações de culturas para exportação,
produzidas em monocultura, com capital intensivo e estruturaram-se cadeias de valor que aliavam
o capita nacional com o internacional dominado pelo capital financeiro e cobertos com acordos
intergovernamentais. Os pequenos produtores foram excluídos, transformados em operários
agrícolas com salários baixos ou tornaram-se camponeses sem-terra. Alguns, uma minoria,
através de processos de resistência e integração e muitas vezes com a autoexploração familiar,
mantêm as funções essenciais tanto produtivas como sociais e ambientais.
2.2 O modelo do agronegócio
A arquitectura do agronegócio é bem diferente da evolução da agricultura e do meio rural na
União Europeia. O modelo internacional do agronegócio envolve alianças entre governos,
instituições financeiras internacionais, entre o capital financeiro e agrário e multinacionais e o
capital nacional mesclado com os poderes políticos (ou vice-versa), assente em padrões de
acumulação extractivos, centrados no exterior e com benefícios locais (fiscais, terra barata,
excepcionalidades legais e operacionais, etc.). O modelo aplica-se e possui claras diferenças
quando analisadas as formas de actuação e os benefícios e efeitos, positivos e negativos, nos
países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A figura seguinte apresenta o “modelo” do
agronegócio. Depois da apresentação deste modelo, sublinham-se as diferenças principais entre
os dois casos.
Figura 3
Transferência de recursos e acumulação num processo de transformação estrutural da
agricultura com base na capitalização da agricultura – países menos desenvolvidos
ou em desenvolvimento
Nota: ______ Fluxo de capitais; ______ Fluxo da acumulação.
Fonte: Elaboração dos autores.
9
Comparando os gráficos 2 e 3, observam-se, de forma esquemática, as seguintes similitudes e
diferenças. Os quadros 1 e 2 procuram sintetiza-las:
Quadro 1
Diferenças entre o agronegócio nos países desenvolvidos e em desenvolvimento
Países desenvolvidos Países em desenvolvimento
1 Fluxos de capitais públicos entre
países/economias, no âmbito de uma
política regional (UE)
Fluxos de capitais privados – IDE (capital
financeiro e agrário)
2 Decisões supranacionais Acordos governamentais
3 Cobertura de uma política agrária comum
Ausência de políticas públicas ou a
“política de não ter política”
4 Políticas públicas com diferentes graus de
influência sobre os mercados Mercado liberalizado e não regulado
5 Implementado por agricultores locais
(médios e grandes e alguns de pequena
escala)
Implementado por multinacionais e
agricultores “emergentes”
6 Industrialização agroalimentar
Industrialização principalmente para
facilitar as exportações
6 Acumulação centrada nas economias
nacionais com transferência de
excedentes económicos para os países
mais ricos por meio de canais indirectos
Acumulação centrada no exterior com
beneficiários locais
7 Existência de políticas de mitigação de
efeitos sociais e ambientais (mesmo que
incompletas e a posteriori)
Fracas ou nenhumas medidas de mitigação
dos efeitos sociais e ambientais negativos
8 Mercado interno como destino principal
da produção
Exportação como destino principal da
produção
9 Transformação local Transformação externa
10 Procura diferenciada Procura indiferenciada (consumo de massa)
11 Tecnologias próprias Tecnologias importadas
12 Conhecimento interno Conhecimento importado
13 Gestão nacional Gestão externa/nacional
14 Mão-de-obra qualificada Mão-de-obra indiferenciada
15 Infraestruturas suficientes Debilidade das infraestruturas
Fonte: Elaboração dos autores.
Quadro 2
Similitudes entre o agronegócio nos países desenvolvidos e em desenvolvimento
Países desenvolvidos Países em desenvolvimento
1 Capital intensivo Capital intensivo e semi-intensivo
2 Regiões de elevado potencial Regiões de elevado potencial
3 Exclusão zonas desfavorecidas Exclusão zonas desfavorecidas
4 Efeitos negativos, sociais e ambientais Efeitos negativos, sociais e ambientais
5 Beneficio das elites empresariais locais
Beneficio das elites empresariais e políticas
locais
Fonte: Elaboração dos autores.
Através dos dois quadros acima, pode verificar-se que há mais diferenças que similitudes do
agronegócio quando ele se verifica nos países desenvolvidos ou em países menos desenvolvidos
ou em desenvolvimento. Podem-se agrupar, de forma agregada, as seguintes principais
diferenças: primeiro, a origem interna ou externa do capital e, de igual modo, a localização na
realização e distribuição da acumulação. O agronegócio ou a modernização da agricultura nos
10
países desenvolvidos depende de capitais oriundos dessas economias ou da comunidade
económica a que pertencem; nos outros países, depende essencialmente de capitais externos.
Segundo, no primeiro caso, a acumulação do agronegócio realiza-se e distribui-se nas respectivas
economias ou na comunidade económica; nos países em desenvolvimento, grande parte da
acumulação realiza-se e beneficia outras economias e não onde se produz e, em alguns casos,
onde a industrialização se localiza. Terceiro, nos países desenvolvidos existem políticas agrárias
estáveis e implementadas a longo prazo e uma forte intervenção do Estado, o que não acontece
nos países em desenvolvimento, excepto para a facilitação da implementação e do
desenvolvimento do negócio. Quarto, a produção nos países desenvolvidos foi e é destinada ao
mercado interno e à exportação ou utilizada no âmbito da ajuda alimentar; o agronegócio
localizado nos países em desenvolvimento destina-se sobretudo para a exportação. Finalmente,
quinto, a tecnologia e o conhecimento do agronegócio são produzidos e dominados pelos países
desenvolvidos, não se verificando o mesmo nas outras realidades.
As semelhanças principais relacionam-se com o modo e os efeitos sociais e ambientais resultantes
da implementação do agronegócio, na sua fase de produção primária e concentram-se em regiões
de elevado potencial, marginalizando outras.
As diferenças e semelhanças têm como pressuposto fundamental os níveis de desenvolvimento
das economias. A natureza subdesenvolvida influencia que o agronegócio não seja resultante de
um processo de desenvolvimento de longo prazo, mais endogeneizado, é dependente em termos
de capital, conhecimento, tecnologia e recursos humanos, são economias exportadoras de bens
primários com pouco valor acrescentado, os centros de decisão económica situam-se no exterior
e os padrões de acumulação localizam-se em grande medida no exterior. Os efeitos sociais e
ambientais são porventura mais fortes nas economias em desenvolvimento em consequência da
inexistência de políticas sociais e de mitigação das externalidades ambientais, ou, se existem, são
pouco potentes e efectivas.
Nas sociedades avançadas, a penetração do capital ou as reformas de políticas agrárias são
geralmente realizadas com intervenções e planeamento do Estado para o mercado, onde os
agentes económicos se ajustam conforme várias condicionantes relacionados entre si, como por
exemplo, a capacidade financeira e de crédito, formação, disponibilidade de tecnologias e
propensão à inovação, relações com os mercados, entre outros aspectos. As consequentes
transformações estruturais são de média e longa duração. Nos países em desenvolvimento, em
muitas circunstâncias, as mudanças são impostas de cima para baixo e por interesses externos (em
aliança com os internos), sem ou com auscultações e negociações deficientes com os agricultores
locais.
A ocupação da terra e os reassentamentos são os fenómenos de maior conflitualidade entre os
governos/multinacionais/investidores com as comunidades12. Regra geral, as comunidades não
dominam a legislação, não estão suficientemente organizadas e, portanto, a capacidade negocial
e reivindicativa é baixa. A transferência de tecnologias não adaptadas a cada realidade e
assumidas pelos produtores constitui outro elemento crítico, em consequência dos níveis de
dependência e perda de soberania nas decisões produtivas, principalmente dos pequenos
produtores.
Acontece, em muitos casos, a captura das elites locais pelo governo e multinacionais com o
objectivo de se estabelecerem alianças e redução do poder negocial e de reacção (manifestações,
greves, bloqueio de entrada nas minas, bloqueio de circulação de comboios e estradas, etc.).
Verificam-se aliciamentos de pessoas no seio das comunidades para a organização de defesa do
discurso governamental e das multinacionais. Isto é, geram-se pequenos beneficiários e criam-se
12 No caso de Moçambique dois casos ganharam maior mediatização. São os casos dos reassentamentos de
Tete devido à exploração mineira e de Palma em consequência da implementação dos investimentos de gás
natural. Veja Mosca e Seleman (2011 e 2013), Sekelani (2013) e Vieira Mário (s/data).
11
desigualdades e conflitos interpessoais. Nestas circunstâncias acontecem situações de confrontos
entre os manifestantes e as polícias nacionais. As contestações das populações e da sociedade
civil podem ser correspondidas com correcções superficiais (ou profundas) das más práticas
anteriores. As populações locais, nestas condições, são os mais desfavorecidos. Isto é, os governos
são aliados das multinacionais e investidores, muitas vezes contra as comunidades.
Acontecem também conflitos entre as comunidades residentes e as reassentadas, sobretudo quanto
à ocupação da terra e acesso aos recursos (água, florestas, caça, concorrência de pequenos
negócios, etc.). A migração forçada provoca uma nova redistribuição desses recursos naturais.
Os reassentamentos podem trazer migrações forçadas de curta distância, alterações rápidas de
sistemas de produção, redução do acesso aos mercados e serviços, perca de fontes de rendimento,
baixa de produção e mais pobreza.
Os discursos produtivistas ressaltam os aumentos de produção e da produtividade, importação e
transferência tecnológica, formação e qualificação de técnicos locais, e a possibilidade de criação
de clusters através das relações intersectoriais. O discurso político incide sobre a visibilidade do
país, a receptividade governamental em relação ao investimento estrangeiro, o bom ambiente de
negócios, os efeitos sobre a balança de pagamentos e as receitas fiscais, entre outros. Os discursos
críticos (sociedade civil e comunidades abrangidas) enfatizam a baixa transparência dos contratos
entre os governos e as multinacionais, os casos de pouca clareza entre os interesses públicos e
privados, os efeitos sociais dos reassentamentos, os conflitos de terra, as externalidades
ambientais negativas, as condições contratuais e o baixo volume de emprego, as
excepcionalidades legais e de operação das empresas, as consequências do surgimento de
desenvolvimento, a capacidade das instituições, entre outros aspectos.
Os discursos são em muitos casos de conflitualidade e eventuais encontros de auscultação são
poucas vezes eficazes, excepto se existirem capacidades simétricas de negociação, com ou sem
utilizações de métodos de força no quadro da lei.
2.3 Actores da agricultura e do agronegócio e alianças económicas
A figura abaixo procura sintetizar os actores envolvidos/com interesses no sector agrário e quais
as alianças e/ou relações de conflitualidade de interesses entre eles.
12
Figura 4
Relações entre os principais actores associados com a agricultura
Nota: relações de poder/interesses/conflitualidade
Fonte: Elaboração dos autores.
Da Figura 4 pode observar-se a convergência de interesses económicos e políticos entre os
governos (através da cooperação, crédito e diplomacia política e económica) que dão cobertura à
entrada do capital externo (multinacionais e outras) e facilitam a penetração do capital através,
por exemplo, de benefícios fiscais e reexportação de capitais, excepcionalidades legais e de
procedimentos administrativos, lobby político, entre outras formas de influência e rent seeking.
Em muitos casos, o capital externo alia-se a empresários e políticos nacionais como forma de
reforçar a aliança referida no parágrafo anterior. Estas alianças podem assumir várias formas,
como por exemplo, participação na estrutura societária, venda/utilização de licenciamento de
exploração de recursos (terra, minas, pescas, corte de madeira, caça, etc.) ou simplesmente por
lobby (“conhecimento local”).
A nível local, as relações horizontais estabelecem-se entre as autoridades municipais, líderes e
elites locais com os pequenos produtores, para a mobilização das famílias, estabelecimento dos
locais e organização das consultas/auscultações, negociação das condições de ocupação da terra
e de reassentamento, indemnizações, entre outros aspectos. Nestas circunstâncias, o poder
administrativo local transmite e alinha-se com as ”orientações superiores” da governação que, em
princípio, já estão acordadas entre os interesses governamentais e destes com as multinacionais e
o empresariado doméstico.
Através da quantidade de relações entre o capital e respectivas alianças (governos e empresariado
nacional/local) com os agricultores e a sociedade civil, pode depreender-se das assimetrias
negociais anteriormente referidas. Tem particular interesse a análise dos comportamentos e dos
posicionamentos da administração e dos líderes locais que são, por um lado, “orientados” e
pressionados pelas instâncias superiores do Estado e pelos investidores e, por outro, pelas
comunidades que resistem em defesa dos seus direitos. Os líderes locais sofrem do que se pode
designar por um efeito sandwich que os coloca “entre a espada e a parede”.
13
Os pequenos produtores, individualmente, pela sua escala, não são fonte de negócio, tanto para
os grupos económicos como para as empresas, excepto quando integrados no mercado e em
particular nas cadeias de valor. Neste caso, existe o que se designa por integração perversa dos
pequenos produtores. Perversa porque esta integração acontece principalmente no quadro do
padrão de acumulação dominante que extrai recursos (por exemplo pela tendência decrescente
dos preços reais ao produto) e mão-de-obra do sector familiar13. Não constituem aliados
económicos das multinacionais a montante da produção, isto é, do lado da demanda (sementes,
químicos e equipamentos) devido ao fraco poder aquisitivo e consequente baixo consumo destes
factores.
Os pequenos produtores, assim como o conjunto da agricultura, não são homogéneos. Há várias
agriculturas e vários tipos de pequenos produtores. A tipificação é geralmente definida por limites
através de variáveis estatísticas estáticas e discutíveis (tamanho da exploração, mão-de-obra
familiar e assalariamento, produção em regadio ou em sequeiro, posse de animais, etc.) e a sua
instrumentalização parece ter mais fins administrativos que analíticos. Não existe a análise das
dinâmicas sociais e económicas, das diferentes formas de integração/resistência em relação aos
mercados e às políticas públicas, das lógicas produtivas e reprodutivas da base económica e das
fontes de rendimento que influenciam as decisões produtivas e dos aspectos socioculturais que
contribuíram e contribuem para a estratificação e as mobilidades sociais na agricultura.
Surgiu recentemente a designação de “agricultor emergente” para representar o produtor familiar
com possibilidades de ganhar maior escala, integrar-se mais nos mercados (principalmente
aquisição de insumos e equipamentos, venda de excedentes e assalariamento), adoptar tecnologias
de maior produtividade física, poder possuir viabilidade económica e possuir condições de ser
“bancável” que significa, em resumo, possuir viabilidade financeira e ter bens que sirvam de
garantia.
Esta definição de agricultores emergentes surge, na prática, através da mobilidade induzida por
factores externos às dinâmicas endógenas dos produtores nas suas relações com os mercados e
nos contextos socioeconómicos em que vivem e desenvolvem as actividades (comunidades). É
induzida através do acesso ao crédito com base em critérios muitas vezes pouco transparentes
onde o caso dos vulgo 7 milhões é o mais significativo14, dos posicionamentos nas relações de
poder nas comunidades, na alocação de recursos públicos (orçamento como provocador de
desigualdades), em políticas discriminatórias (como por exemplo, os subsídios), entre outras. E,
por ser um processo induzido, torna-se, com grande probabilidade, num sector com agentes
económicos clientelares e dependentes dos mecanismos administrativos e de favores do poder.
Pode surgir, a nível local, a extensão da promiscuidade entre política e negócios, entre o público
e o privado, com consequências sobre a competitividade, eficiência e, finalmente, os
consumidores e a economia são prejudicados.
13 Para uma revisão teórica e análise do sector familiar com um enfoque da economia política, veja Mosca
(2012 e 2015). 14 “O programa dos “7 milhões” enquadra-se na descentralização administrativa e financeira do Estado, em
que se afectam recursos orçamentais ao nível distrital para financiamento de pequenas iniciativas de
negócio local. As principais críticas sobre a atribuição destes fundos são as seguintes: (1) inicialmente, não
existiram critérios precisos sobre a utilização do OIIL; (2) baixo reembolso dos créditos concedidos32; (3)
os recursos nem sempre são utilizados para os fins para que foram solicitados33; (4) a falta de transparência
na atribuição dos fundos foi objecto de muitas críticas em vários locais e momentos; (5) o Estado não deve
exercer funções comerciais próprias de instituições financeiras e para as quais não tem as necessárias
competências técnicas; (6) utilização dos fundos para a geração de relacionamentos de fidelização
partidária, caciquismos e instrumento de campanha eleitoralista e propaganda política”, Mosca (2015).
14
2.4 Alianças políticas à volta da agricultura
A figura 5 procura apresentar, de forma sintética, as relações das alianças e não-alianças do poder
com o meio rural e com a agricultura.
Figura 5
Alianças económicas do poder
Fonte: Elaboração dos autores.
A Figura 5 demonstra as alianças do poder nacional, a nível macro, com os governos e instituições
financeiras internacionais que se manifestam de diferentes formas, consoante os interesses
internacionais e dos governos em Moçambique. Estes interesses são multifacetados e
relacionados: económicos, políticos, militares e estratégicos. A intensidade destas
relações/influências dependem do grau de importância do país (recursos naturais, escala do
mercado, posição geográfica, regime político, entre outros).
Pode observar-se que as alianças económicas externas concretizam-se com o investimento directo
estrangeiro (multinacionais e outros) associado ao capital nacional (público e/ou privado). A
cooperação (recursos, donativos, assistência técnica, influência política, etc.), na maioria dos
casos, está articulada com os interesses económicos dos países de origem. As instituições
internacionais (neste caso refere-se especialmente às Instituições de Bretton Woods15 e bancos
regionais e comerciais) actuam através de empréstimos, compra da dívida pública e transmissão
de imagem do país visado e, sem ser menos importância, influência sobre a política económica e
as políticas públicas. Esta aliança económica é de grande importância mensurável pelo volume
do investimento externo (mais de 90% do total do investimento total na economia), pelo peso da
cooperação externa no suporte ao orçamento do Estado – indicador recursos externos (cooperação
e donativos) sobre total dos gastos público, que variou de cerca de 65% em 2011 para cerca de
35% em 2014 e uma média de 52% durante os anos de 2001 a 2010, Mosca, Abbas e Bruna (2013)
15 Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial.
15
e pelas intervenções directas em projectos fora do orçamento público. A cooperação diversa nos
seus posicionamentos está, na figura acima, incluída no círculo oval negro que representa as
alianças económicas, procurando, assim, referir que a cooperação possui acções fora do “sistema”
16, como, por exemplo, o apoio à sociedade civil que não se identifica como o designado “terceiro
sector”.
Internamente, as alianças sociais principais são com as burocracias (funcionários dos partido no
poder e da governação aos vários níveis incluindo as elites/lideres locais17), o empresariado
nacional maioritariamente políticos e com os citadinos. Pela forma induzida como surgem os
“agricultores emergentes”, estes podem ser incluídos como pertencentes à arquitectura de alianças
políticas e económicas do sistema do poder.
A aliança com os residentes nas cidades é de natureza funcional que pretende reduzir a pobreza
com eventuais riscos de conflitualidade social; para o efeito, uma das opções é os subsídios às
rendas familiares por via da prestação de serviços (tarifas da água, energia e transportes públicos
abaixo dos custos de produção e da alimentação de bens essenciais e de consumo dos grupos
sociais mais pobres, por exemplo, através da taxa de câmbio sobrevalorizada), considerando que,
em muitos casos, uma parte significativa destes bens são importados.
Do lado direito da figura, encontram-se os grupos sociais/organizações não aliadas, ou,
ocasionalmente aliadas do poder. Os pequenos produtores e as suas famílias (representados na
figura como camponeses), não são aliados políticos do sistema do poder, o que se constata pelos
níveis de representatividade nos centros e nos órgãos de decisão e execução política e governativa.
O sistema político, e particularmente os partidos políticos, somente encontra utilidade do voto
dos habitantes rurais durante as campanhas eleitorais. Num contexto de pobreza a “compra” do
voto é barata18. Os métodos de intimidação, pressão e controle político e social são realizados
pelos órgãos locais do poder. Vários estudos e pesquisas revelam que as políticas públicas, em
grande medida, secundarizam (não priorizam) ou mesmo penalizam o sector familiar e o meio
rural.
A sociedade civil (organizações e personalidades individuais), assim como os órgãos de
comunicação, podem constituir o principal aliado das comunidades e dos líderes locais na defesa
dos direitos das populações e pequenos produtores. As acções de formação, informação e de
advocacia constituem formas de intervenção que capacitam as comunidades para que, elas
próprias, possuam poder negocial, reivindicativo e, quando necessário, poder de mobilização para
o exercício de várias formas de manifestação e resistência no quadro da lei.
16 Terceiro sector, sendo o Estado e sector privado os primeiro e segundo respectivamente. Nesta
concepção, a sociedade civil surge como complementar dos outros dois para a realização/execução de
funções que não interessam a estes ou onde a sociedade civil se pode revelar mais eficaz e eficiente
(estruturas mais “leves” e “flexíveis” têm vocação para trabalhar no terreno e muitas delas possuem
naturezas filantrópicas, sem objectivo de lucro e, em alguns casos, os seus membros actuam com diferentes
graus de voluntariado, reduzindo os custos e as formas de intervenção). Nestas circunstâncias, estas
organizações da sociedade civil são alinhadas com o sistema político e económico, beneficiam de fundos
públicos e privados e coordenam ou realizam actividades no quadro das políticas e planos governamentais
e sectoriais. Porém, as organizações da sociedade civil possuem mandatos para a realização de estudos e
pesquisa, realizar advocacia a diferentes níveis possuindo independência em relação ao sistema do poder. 17 O Estado é o principal agente económico. Para além dos salários, existem, em cada nível, uma
multiplicidade de mordomias (“casas de Função”, aquisição de viaturas sem pagamento dos impostos
alfandegários, uso de viaturas de serviços, pensões de reforma de excepção, assistência médica e
medicamentosa, etc.). 18 O que, em termos económico, significa que o voto tem um custo de oportunidade baixo.
16
2.5 Resumo
Em resumo, a agricultura, pela sua importância enquanto produtora de alimentos e de matérias-
primas e considerando as perspectivas de longo prazo, justifica os novos e importantes fluxos de
capitais e formas de intervenção das multinacionais de vários sectores de actividade e do capital
financeiro. A implementação de grandes investimentos no meio rural implica reestruturações da
ocupação da terra, migrações forçadas, reformas legais e institucionais que exigem alianças entre
os governos e destes com o capital para a facilitação e rentabilização dos investimentos.
Os pequenos produtores são, em grande medida, excluídos ou perversamente integrados nos
padrões de acumulação e não são aliados funcionais nas relações de poder, nas articulações
(ligações) económicas e no sistema político.
Em muitos dos casos a implementação dos grandes investimentos é acompanhada de práticas
desajustadas nas relações com os pequenos produtores e as populações exigindo intervenções dos
estados nacionais, incluindo o uso da força para reprimir resistências das comunidades.
Em termos económicos, e em contextos de países de renda baixa/pobres, os investimentos
externos maximizam a exportação de recursos (incluindo com tecnologias e sistemas de
produção) mesmo que, para o efeito, seja necessário provocar efeitos sociais e ambientais
negativos e não compensados, e perdas de democracia, beneficiando de protecção dos poderes
públicos nacionais. Os resultados produtivistas e sobre algumas contas nacionais (sobretudo na
balança de pagamentos devido à entrada de capitais e às exportações e eventualmente sobre as
receitas púbicas dependendo dos regimes fiscais aplicados) não podem justificar os efeitos
negativos referidos e, também, a reprodução dos mecanismos de dependência externa e de
aprofundamento das características subdesenvolvidas das economias detentoras dos recursos e
receptoras o investimento.
Este é um dos exemplos em que se pode verificar o referido por Mahmood Mamdani (2012), que
argumenta que nem os poderes instituídos nem o capital (mercado) defendem os interesses dos
grupos sociais mais pobres (e, em muitos casos, o interesse nacional) e apenas a sociedade civil e
em particular os directamente afectados negativamente podem lutar pela defesa dos seus
interesses e direitos. Isto é, segundo Mandani, a sociedade é que deve regular o Estado e os
mercados. Porém, havendo essa consciência como uma realidade em construção, configura-se
uma arquitectura de alianças políticas e económicas de modo a reduzir a capacidade negocial das
comunidades e pequenos produtores, incluindo por métodos autoritários e de aliciamento ou
captura económica e de integração (emprego, benesses e mordomias) atribuídos a elementos da
população e das organizações da sociedade civil.
3. O CASO DO CORREDOR DE NACALA COM ENFOQUE NO PROSAVANA
3.1 Contextualização
Com a deslocação da produção alimentar e de commodities para as economias menos
desenvolvidas, verificam-se transformações nestas economias e em diferentes sectores da
economia, assim como a nível institucional. No caso específico do corredor de Nacala, tem-se
verificado a transformação dos sistemas de produção, nos sistemas de produção dos pequenos
agricultores devido à entrada e emergência de pequenas, médias e grandes empresas de
monoculturas (soja e banana) e grandes plantações (florestas). Este fenómeno está no início e
pode indiciar o que poderá acontecer com a implementação dos investimentos associados ao
ProSAVANA e a outros programas ao longo do corredor de Nacala.
Segundo Mosca e Bruna (2015) o agro-negócio internacional tem assumido novas dimensões nos
últimos anos manifestando-se através de procura de extensas áreas em todo o mundo para a
17
produção em grandes plantações de monoculturas, associada à crescente internacionalização do
capital agrário e financeiro em programas bi ou multilaterais.
Neste contexto e em Moçambique em particular, surge o exemplo do ProSAVANA, programa
com cobertura governamental19, como forma de dinamização do agro-negócio e do sector agrário
na região do corredor de Nacala. O ProSAVANA constitui um programa triangular de cooperação
entre os Governos de Moçambique, Japão e Brasil, representados por MASA, JICA e ABC,
respectivamente, e tem como objectivo o desenvolvimento agrícola da savana naquela zona do
país20.
O ProSAVANA apresenta os seguintes elementos estratégicos21:
Visão: Melhorar a vida dos habitantes do Corredor de Nacala, através do
desenvolvimento agrícola e regional, inclusivo e sustentável.
Missão: (1) Melhorar e modernizar a agricultura para aumentar a produtividade, a
produção, e diversificar a produção agrícola; e, (2) Gerar empregos através do
investimento agrícola e criação de uma cadeia de abastecimento.
Objectivo: Criar novos modelos de desenvolvimento agrícola, considerando-se aspectos
ambientais, socioeconómicos, e buscando um desenvolvimento agrícola/rural/regional
orientado para o mercado de forma competitiva.
De acordo com a nota conceitual de 2013, o ProSAVANA é composto por três projectos com o
objectivo de materializar a sua visão e missão:
Quadro 3
Projectos no âmbito do ProSAVANA Projecto Propósito
ProSAVANA-PI
Projecto de melhoria da capacidade de pesquisa e transferência de tecnologia
com vista ao desenvolvimento da agricultura no Corredor de Nacala em
Moçambique.
ProSAVANA-PEM
Projecto de criação de modelos de desenvolvimento agrícola comunitários
com melhoria do serviço de extensão agrária com vista ao desenvolvimento
da agricultura no Corredor de Nacala em Moçambique.
ProSAVANA-PD
Projecto de apoio ao plano director com vista ao desenvolvimento agrícola
no Corredor de Nacala em Moçambique, que tem como objectivo formular
o Plano Director do Desenvolvimento Agrícola no Corredor de Nacala. Este
último deve indicar medidas e actividades necessárias para melhorar e
modernizar a agricultura regional, gerando valor agregado e promovendo
diversas actividades económicas relevantes para a agricultura.
Fonte: ProSAVANA (2013).
Para responder às suas estratégias e objectivos, o Plano Director do programa ProSAVANA
define quatro pilares de desenvolvimento agrário: (1) produtividade agrária; (2) acesso ao
mercado; (3) recursos naturais; e, (4) instituições. Cada um dos pilares contém as respectivas
estratégias que, por sua vez, são constituídas por diferentes componentes22.
19 Alinhado ao Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Sector Agrário – 2011-2020 (PEDSA). 20 A Nota Conceitual sobre a elaboração do Plano Director do Desenvolvimento Agrícola no Corredor de
Nacala publicada pelo ProSAVANA em Setembro de 2013 é baseada na visão da equipa de estudo do
ProSAVANA-PD. 21 ProSAVANA (2013). 22 Para mais informação sobre as principais actividades dentro de cada componente, assim como seu período
de implementação e outros detalhes, consulte o Plano Director em MASA (2015).
18
3.2. Análise sectorial do corredor de Nacala (ProSAVANA)
Beneficiários
Constituem os principais beneficiários deste programa todas as categorias de produtores ao longo
dos 19 distritos do corredor de Nacala. De acordo com MASA (2015) a área de implementação
cobre um total de 107.002 km2. Em 2011, a população total foi estimada em 4,3 milhões de
habitantes, com uma densidade populacional de aproximadamente 40 habitantes/km2. Estes
produtores são classificados como se segue:
Quadro 4
Principais beneficiários do programa ProSAVANA
Produtor de pequena
escala
- área não irrigada: menos de 10 hectare
- área irrigada-pomar-cultivos-floricultura: inferior a 5ha
- menos de 10 cabeças de gado, 50 cabras, carneiros ou porcos
ou 2.000 aves
Produtor de média escala
Excede qualquer um dos critérios acima, mas enquadra-se nos
seguintes critérios:
- área não irrigada: menos de 50ha
- área irrigada-pomar-cultivos-floricultura: inferior a 10ha
- menos de 100 cabeças de gado, 100 cabras, carneiros ou porcos
ou 10.000 aves
Produtor de grande escala Excede qualquer um dos critérios acima
Fonte: MA (2010) em MASA (2015).
O Plano Director indica que os produtores de pequena escala são constituídos por três categorias:
(1) produtores vulneráveis com menos de 0.5 Ha de terra para cultivo e que realizam agricultura
de subsistência e têm dificuldades em obter alimentos para o consumo próprio; (2) produtores
típicos de pequena escala que são capazes de produzir alimentos para o consumo próprio; e, (3)
produtores emergentes que produzem culturas de rendimento em sua propriedade e praticam uma
produção de culturas diversificadas. Existe, de alguma forma, exclusão dos produtores mais
vulneráveis, visto que são referidos para as estratégias de desenvolvimento apenas os
considerados típicos de pequena escala, aumentando, consequentemente, o nível de desigualdade
económica no meio rural.
Percepções dos beneficiários
Os diferentes beneficiários (em particular os pequenos agricultores), representados pela União
Provincial de Camponeses em conjunto com a União Nacional de Camponeses, apresentam
reacções negativas a respeito da implementação deste programa através do movimento “Não ao
ProSAVANA”23. Estes alegam que a grande procura de terra e a falta de transparência, já
verificadas no âmbito deste programa e seus diferentes projectos, poderão representar grandes
ameaças aos pequenos produtores na medida em que estes tornam-se potenciais vítimas de
usurpação de terra e, eventualmente, poderá surgir uma nova classe social, os camponeses sem-
terra.
Pelas entrevistas realizadas a diferentes produtores envolvidos nos projectos-piloto do
ProSAVANA, nomeadamente membros do Fórum IAPACA, membros da Associação Namuali24,
23 Confirmado e enfatizado por membros da UPC (União Provincial de Camponeses) e da sua representação
distrital através de entrevistas realizadas no mês de Agosto do ano corrente. 24 O Fórum IAPACA, localizado no distrito de Malema, celebrou um contrato de financiamento com o
GAPI no âmbito do ProSAVANA com o valor de 250 mil meticais, com início a 24 de Fevereiro de 2014
a uma taxa de juro anual de 10%. A Associação Namuali esteve integrada no projecto PEM do programa
19
pessoas sujeitas a migrações forçadas, entre outros, demonstraram um sentimento de insegurança
e risco no que concerne aos possíveis e alguns já visíveis efeitos das actividades do ProSAVANA.
Segundo as entrevistas realizadas no campo, verificaram-se casos de aumento de pobreza ao nível
das comunidades locais que foram influenciadas, directa ou indirectamente, pelo ProSAVANA,
via financiamento de projectos no âmbito dos Quick Impact Projects25. Consequentemente, no
mesmo contexto, verificou-se um aumento do risco de insegurança alimentar para essas mesmas
comunidades devido à perda de terras para a prática da agricultura.
Stakeholders
As partes interessadas são constituídas por todas entidades relacionadas com a agricultura no
Corredor de Nacala. As principais são as seguintes:
Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar de Moçambique representado a nível
provincial pelas Direcções Provinciais da Agricultura (das três províncias abrangidas) e
a nível distrital pelos Serviços Distritais de Actividades Económicas.
Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA)
Agência Brasileira de Cooperação (ABC)
Instituto de Investigação Agrária de Moçambique
União Nacional de Camponeses e as suas devidas representações provinciais e distritais.
Organizações da sociedade civil moçambicanas assim como brasileiras e japonesas:
constituídas por organizações não-governamentais com objectivos de advocacia,
académicos e outros.
Instituições financeiras em parceria com o programa ou para o desenvolvimento agrário
na área de estudo.
Produtores de pequena, média e grande escala.
Outros.
Estrutura proprietária e financiamento
Na realização do trabalho de campo nos distritos que constituem o corredor de Nacala verificou-
se um grande número de investimentos de média e grande escala no sector agrícola, caracterizados
principalmente por capital externo com foco na produção de monoculturas de exportação ou de
abastecimento ao mercado interno. Por um lado, é notável a existência de uma tendência de
incremento da produção da soja como forma de abastecimento do mercado interno e, por outro
lado, constatam-se investimentos em plantações de grande escala para a exportação26.
Em relação ao ProSAVANA, o Plano Director expressa que este programa será executado pelo
Governo de Moçambique através do MASA (e suas representações locais) com apoios dos
governos do Brasil e do Japão. Prevê também a participação do sector empresarial (constituinte
do grupo de produtores de grande escala) e do sector familiar com menor foco nos produtores
considerados vulneráveis.
O financiamento à produção agrícola e às operações de agronegócio no corredor de Nacala, assim
como no âmbito das actividades do ProSAVANA, é cedido por um conjunto de instituições
financeiras, nomeadamente:
tendo que partilhar uma motobomba com uma Associação vizinha; porém, por motivos de falta de meio de
transporte da motobomba, esta não beneficiou da mesma. 25 Entrevistas realizadas com membros das respectivas comunidades no mês de Agosto e em trabalhos de
campo anteriores. 26 Por exemplo, o caso das grandes plantações de eucalipto da empresa Lurio Green Resources na província
de Nampula.
20
Quadro 5
Instituições financeiras para o desenvolvimento agrário no corredor de Nacala
Tipo Nome provedor do serviço Grupo Alvo Área de estudo Taxa de
juros E
squ
ema
Pú
bli
co
Fundo de Desenvolvimento
Distrital (FDD)
Pequenos e médios produtores
e outras actividades económicas rurais
Todo Moçambique 5 %/ano
Fundo de Desenvolvimento
Agrário (FDA)
Produtores de média e pequena
escala Todo Moçambique 10 %/ano
Fundo de Iniciativa de Desenvolvimento (FID)
Produtores de média escala, agronegócio e associações
Todos distritos na Área de Estudo
10 %/ano
Ban
cos
de
mic
rofi
nan
ciam
ento
Banco Oportunidade de
Moçambique, SA (BOM)
Produtores e grupo de
Produtores Nampula, Zambézia etc. 3 %/mês
Banco Pro Credit, SA* Negócio de média e pequena
escala e trabalhadores Nampula, Zambézia etc.
3 %/mês
(Individual)
Op
erad
ore
s d
e
Mic
rofi
nan
ça
(ON
G )
*
Associação Moçambicana para o
Desenvolvimento Rural (AMODER)*
Agronegócio, comércio e
negócio, outros serviços: empresas rurais
Nampula, Niassa, e
Zambézia
4 %/mês
(individual)
Kulima*
Agronegócio incluindo
produtores em particular as mulheres
Zambézia 3 %/mês
(individual)
OPHAVELA* População não tem acesso a
serviços bancários formais Nampula 10 %/mês
Fonte: MASA (2015).
Estas instituições são partes interessadas na implementação do ProSAVANA e dos investimentos
directa e indirectamente associados ao longo do Corredor de Nacala.
Legados históricos
De acordo com Mosca e Bruna (2015), o ProSAVANA foi inspirado no Programa de Cooperação
Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados (PRODECER), que teve como
lema Transformação de uma Terra Estéril em Celeiro do Mundo. Por sua vez, o ProSAVANA é
orientado pelas supostas semelhanças técnicas entre o cerrado brasileiro (latitude, clima, etc.), um
dos territórios emblemáticos do agronegócio (com cooperação e investimento japonês e outros
países), com o Corredor de Nacala no quadro da savana africana em espaço transnacional.
O programa PRODECER teve grandes percussões no Brasil, sendo que grande parte destas foi
considerada negativa para a população local, principalmente em relação aos conflitos e usurpação
de terra aos pequenos agricultores, efeitos ambientais, empobrecimento dos excluídos, entre
outros aspectos. Por este motivo, surgem, após a divulgação das primeiras notas conceituais do
ProSAVANA, grandes debates e críticas originários de diferentes quadrantes da sociedade civil
dos três países e divergências sobre as estratégias de implementação deste programa.
Após a reacção da sociedade civil, verificaram-se mudanças nos discursos elementos que
compõem o triângulo de cooperação e foram elaboradas respostas às inquietações das partes
interessadas. As diferenças entre as percepções, informações e discursos iniciais e o PD - Versão
Zero estão principalmente relacionadas com: (1) a priorização inicial do agronegócio com base
em capital e grandes empresas com uma maior importância do pequeno agricultor na versão do
PD-Versão Zero; e, (2) priorização das culturas de rendimento destinadas à exportação e destaque
também para algumas culturas alimentares na última versão apresentada.
Foram também abordadas questões relacionadas com os conflitos e usurpação de terras assim
como a transparência, planificação inclusiva e participativa.
As mudanças de discurso e do escrito nos documentos oficiais ainda não estão implementadas.
Mantém-se, na realidade, a filosofia inicial e as práticas verificadas até ao momento:
investimentos em médias e grandes explorações, dominância do capital estrangeiro,
21
monoculturas, prioridades das culturas de exportação, ocupação e conflito de terras, pouca
transparência e arrogância dos centros de poder.
Implicações, riscos e resultados
A implementação deste programa e dos seus respectivos projectos nos distritos que compõem o
corredor de Nacala terá, certamente, algumas implicações a serem monitoradas. Cada um dos
pilares do programa é constituído por um conjunto de componentes alinhados às estratégias
definidas no Plano Director.
A materialização dos objectivos deste programa depende principalmente do recurso terra, que
constitui o principal factor de produção e de rendimento da população abrangida. É neste contexto
onde se verifica a maior deficiência deste programa, na medida em que o seu Plano Director não
prevê processos de reassentamentos nem mecanismos pelos quais possam ser realizados de forma
justa e sustentável mantendo ou melhorando a vida das comunidades. Para esta importante
questão, apenas se prevê recorrer à Lei de Terras e seu Regulamento e às intervenções dos
governos locais que têm demonstrado ineficácia perante os casos de conflitos já verificados no
âmbito do ProSAVANA. Não apenas ineficácia, mas, sobretudo, o alinhamento dos centros de
poder a diferentes níveis (desde Maputo até aos distritos e comunidades) com os interesses dos
investidores e sem consideração pelas reclamações e defesa dos direitos dos cidadãos e das
comunidades. Como por exemplo o caso da área pertencente à Matharia Empreendimentos27, em
Ribaué, foi aparentemente considerada “abandonada”; nesse período de abandono, diferentes
comunidades prosseguiram a ocupação da terra. Estas comunidades fizeram desta área o seu
recurso de sustento, assim como a estabeleceram como espaço para suas actividades culturais e
religiosas por um período já superior a dez anos, período que a Lei dá por direito de ocupação
definitiva e por boa-fé. Encontram-se nesta área diferentes machambas, residências e cemitérios.
Para dar inicio às suas actividades alinhadas às estratégias do ProSAVANA, a Matharia
Empreendimentos não permitiu que algumas comunidades continuassem a desenvolver as suas
actividades e, consequentemente, utilizassem as áreas onde já se encontravam estabelecidas,
conforme referido no parágrafo anterior. Após a migração forçada, estas comunidades encontram-
se instaladas em áreas vizinhas e frustradas pela grande perda de recursos e pelo aumento da
pobreza e insegurança. É necessário realçar que o papel de monitoria e supervisão da aplicação
da legislação recai sobre o governo local, o qual permitiu que situações deste género se
observassem sem efectuar acções que as impedissem, isto é, fazer cumprir a lei ou promover a
negociação entre as partes. Este facto agudiza a percepção de insegurança no seio das
comunidades e dos produtores afectados porque são conhecidos inúmeros casos de
incumprimento da Lei de Terras na região do ProSAVANA e em todo o país, com conivência das
autoridades, e sem que haja, na maioria dos casos, por razões diversas, resolução dos conflitos ou
a colocação das ilegalidades nas instâncias judiciais.
Com o objectivo de diminuir o risco de conflitos e usurpação de terras seria necessária a criação
de mecanismos complementares ao quadro legal existentes, que garantissem a disseminação do
conhecimento da legislação, a resolução rápida dos conflitos e a monitoria da gestão de terras.
Tendo em conta a realidade dos projectos-piloto face à falta de segurança de posse de terra, seria
necessário incluir um plano de reassentamentos no caso destes se verificarem. Estes planos
deveriam incluir práticas de reassentamentos, condições de deslocação, apoios em defesa dos
direitos e garantias dos deslocados, indemnizações e compensações.
Apesar do Plano Director prever a melhoria da qualidade de vida dos produtores abrangidos pelo
Programa, surgem questões relacionadas com o destino destas comunidades (por exemplo, o caso
da comunidade desalojada no âmbito do financiamento de uma empresa apoiada pelo
ProSAVANA – Matharia Empreendimentos) e o método de resolução de conflitos relacionados
27 Reiniciou as suas actividades através de um financiamento do GAPI, no âmbito do ProSAVANA.
22
com a terra, que poderão, consequentemente, causar um aumento de iniquidade económica e
social.
No contexto de melhoria das condições de vida dos produtores, o Plano Director refere-se às
receitas fiscais obtidas através dos impostos gerados pelos investimentos agrícolas (sector
empresarial) como meio de beneficiar as comunidades. Daí, surge a questão de materialização
desta estratégia visto que o Orçamento Geral do Estado é planificado a nível central e não distrital.
Exemplos semelhantes, como o da alocação de 20% das receitas de licenças das florestas e da
fauna bravia, que não têm sido bem-sucedidos, tanto nas transferências como no que se refere à
sua utilização (embora existam bons exemplos no país)28.
Em contrapartida, a segunda missão do programa é a geração de emprego através dos diferentes
investimentos agrícolas esperados ao longo do corredor. No entanto, questiona-se a
sustentabilidade e rentabilidade que este emprego poderá oferecer (sazonalidade). Esta questão
surge na medida em que os camponeses substituirão a prática de agricultura de subsistência a
favor do emprego que será oferecido pelas empresas de média dimensão na agricultura e em outras
actividades. O Plano Director é omisso quanto à quantificação dos postos de trabalho a serem
criados.
Para além de não existirem estudos económicos e sociais que se refiram aos potenciais efeitos da
implantação de projectos agrícolas, minerais, de infraestruturas e outros na melhoria ou não da
qualidade de vida da população abrangida pelo programa para confirmar a sustentabilidade deste
programa e dos respectivos projectos, não foram referidos possíveis impactos ambientais. Sendo
o ProSAVANA um programa a ser implementado numa vasta área e que engloba áreas de
conservação e de florestas e com uma densidade populacional alta, com intensificação mecânica
e de utilização de químicos, o Plano Director deveria apresentar estudos acerca dos riscos
ambientais e sobre a saúde pública, assim como as formas de mitigação. Realça-se a clara
referência de que as novas áreas para a produção agrícola não implicarão desflorestação. Existe
também ausência de estudos antropológicos para considerar as relações socioculturais, nas formas
de entreajuda e estratégias de sobrevivência das comunidades e dos pequenos produtores, sendo
estes os principais afectados pelo ProSAVANA.
Ainda relacionado à questão da melhoria das condições de vida da população-alvo e inclusão dos
mesmos no desenvolvimento agrário da região, prevê-se a adopção da agricultura por contrato
(sistema de outgrower) pelos investimentos agrícolas esperados no corredor. Para responder aos
riscos envolvidos neste tipo de sistema, foi prevista, no pilar designado por “Acesso ao mercado”,
a criação de um quadro legal adequado para o esquema de produção sob contrato a ser formulado
pelo MASA, DPAs, CEPAGRI e SDAEs. Não estão previstos os contributos de actores como
representantes dos camponeses, organizações da sociedade civil, académicos e do sector privado.
Questiona-se se as deficiências e assimetrias resultantes das estruturas dos mercados e das
organizações dos diferentes tipos de produtores serão resolvidas ou arbitradas
administrativamente. Mais uma circunstância em que se coloca em causa a inclusão e a
participação de todos stakeholders deste sector.
É do conhecimento público que as auscultações públicas a nível distrital foram realizadas apenas
após a publicação do PD. Existe, portanto, a necessidade de garantir acesso às informações, seja
por parte das comunidades como de outros interessados (associações de produtores, OSCs,
académicos, privados, etc.), de forma aberta, rápida e actualizada. A lei de acesso à informação é
um instrumento legal que deveria ser utilizado pelas partes interessadas.
Este facto, em conjunto com outros registos de deficiências do sector público, põe em questão a
capacidade do Estado em regular, fiscalizar e monitorar a implementação do ProSAVANA,
28 Veja o trabalho de Serra et al (2014).
23
considerando a amplitude geográfica, social e financeira, o que requer um sector público eficiente,
eficaz e que esteja junto dos cidadãos e dos actores económicos e sociais.
Prevêem-se bastantes apoios e intervenções governamentais para a materialização das diferentes
estratégias do ProSAVANA: apoio no processo de extensão ao longo das três fases do programa,
desenvolvimento de infraestruturas a diferentes níveis, supervisão da agricultura por contrato, na
gestão da ocupação de terras, monitoria, entre outras. Considerando o cenário e as deficiências
existentes no sistema, as instituições públicas, privadas e da sociedade civil (mas particularmente
as primeiras), não têm demonstrado capacidade para a implementação eficaz destas funções. Se
assim for, é previsível a existência de obstáculos institucionais para o sucesso do programa.
Finalmente, o conjunto de actividades a serem desenvolvidas pelo ProSAVANA implicará uma
transformação estrutural económica no sector da agricultura no corredor de Nacala. O Plano
Director prevê, até 2030, a emergência de novos médios e grandes agricultores, intensificação do
capital e aumento de escala, integração nos mercados e em cadeias de valor, competitividade
económica, lucratividade e o aumento de renda dos beneficiários e não discute a possível exclusão
de uma parte (geralmente grande) de pequenos produtores e risco da mobilidade social
“induzida”. O peso da agricultura no PIB regional baixará, entre 2011 para 2035, de 42% para
24%, assumindo a indústria extractiva de 0,1% para 28%, sem que sejam apresentados
fundamentos para tão rápida mudança estrutural. Este programa de desenvolvimento agrário,
prevê, deste modo, uma dinamização do sector da indústria extractiva em maior escala
comparando com o sector agrário.
As transformações estruturais rápidas são, geralmente, acompanhadas de rupturas e
desarticulações institucionais, desequilíbrios intersectoriais e mobilidade social que provocam
crises económica e sociais de intensidade e duração variáveis. Proporcionalmente, não são
referenciadas políticas públicas macroeconómicas como, por exemplo, as fiscais e orçamentais,
de política monetária (taxa de câmbio e de juros e política creditícia), alfandegárias, de mercados
e preços, subsídios, investimento público, entre outras. Transformando-se assim, segundo Mosca
e Bruna (2015), num Plano Director demasiado “agrarista” na medida em que foca apenas no
sector agrário sem ter em conta as relações e interdependências macroeconómicas e regionais,
sabendo-se que, a incompatibilização das políticas agrárias e públicas pode produzir efeitos
inferiores aos objectivos pretendidos.
3.3. Economia política no corredor de Nacala (ProSAVANA)
Relações de poder, transparência, corrupção e rent-seeking
Os centros de decisão e influência do corredor de Nacala, e em particular do ProSAVANA,
concentram-se no governo central. Apesar do Plano Director prever inclusão e transparência no
processo de implementação deste programa, as entrevistas realizadas a alguns stakeholders
revelam que existe a percepção em alguns stakeholders da adopção de estratégias desajustadas a
nível local, exclusão das necessidades e particularidades da zona e marginalização da maioria dos
agentes económicos, beneficiários e perdedores. Ainda neste âmbito, os detentores do poder neste
sector/programa, não ou pouco consideraram as observações da sociedade civil em relação à
forma como se realizaram as auscultações públicas.
A falta de transparência e planificação inclusiva e participativa no processo de implementação
deste programa foi mais uma vez verificada nas auscultações que decorreram a nível dos distritos
(província de Niassa, Nampula e Zambézia) abrangidos pelo ProSAVANA de 20 a 29 de Abril
de 2015. As organizações da sociedade civil apontaram algumas deficiências no processo de
auscultação pública do ProSAVANA, sendo as mais importantes: (1) disponibilização da
documentação preparatória inapropriada e atrasada; (2) divulgação do programa de auscultação
pública inapropriada, incompleta e atrasada; (3) cumprimento do programa anunciado
24
insuficiente e desorganizado; (4) apresentações (e não auscultações) não-inclusivas e ineficazes;
e, (5) apresentações imprecisas, generalistas e superficiais.
O grande fluxo de investimento na área em análise é acompanhado por transformações e
configurações de interesses económicos da considerada classe dominante constituída por elites
políticas que detêm parcerias ou interesses económicos nos investimentos. A existência de altos
níveis de corrupção permitem, de acordo com entrevistas realizadas, que se façam alianças entre
membros de governos locais e/ou líderes comunitários em que se prioriza os interesses do sector
privado e se marginaliza as classes desfavorecidas no que concerne à aquisição, conflitos e
usurpação de terra.
Paralelamente a este fenómeno, surgem especulações à volta do “mercado de terra” e a corrida a
reservas de terra em áreas de grande potencial agrícola ou mineiro, como oportunidade de
responder o aumento de demanda e obtenção de rendas pela implementação de novos projectos
de investimento.
Em resumo, são evidentes relações de poder promíscuas a diferentes níveis, incluindo a nível
local, pouca transparência, métodos de decisão centralizados, implementação autoritária e
dúvidas acerca de situações de corrupção.
Alianças políticas e económicas
O ProSAVANA é uma manifestação de convergência de interesses económicos e políticos entre
os governos japonês, brasileiro e moçambicano, tendo como principal contribuição do governo
moçambicano o recurso terra. Esta parceira facilita a penetração de investimento externo de média
e grande escala no sector agrário (veja a figura 4 no capítulo I). Deste modo, nota-se o surgimento
de multinacionais assumindo ou não relação com o programa, que investem no cultivo de
monoculturas para exportação ou para o mercado interno, confirmado aquando da realização de
diversos trabalhos de campo no corredor de Nacala. O capital externo tende a estabelecer alianças
com elites políticas ou locais, a nível macro, beneficiando-se deste modo de um proteccionismo
político que comportam orientações de natureza top-down que em muitos casos marginalizam os
interesses dos restantes stakeholders, principalmente dos mais vulneráveis, a comunidade local.
Verificou-se e constatou-se no campo que, a nível micro, estas alianças podem ser verificadas
entre os governos locais e os líderes comunitários sobretudo aquando da ocupação de terras, como
ilustra a figura 5 no capítulo I. Os investimentos no corredor envolvem aquisição de terra em
grande escala e consequentemente verifica-se a migração forçada de comunidades de forma a dar
lugar a estes investimentos. Verificou-se na realização de trabalhos de campo que na sua maioria
estes investimentos não envolvem processos de reassentamentos e de indemnização/compensação
devidamente de monitorados e justos. Verificaram-se nos distritos de Malema, Ribaué, Monapo
e Guruè, situações de conflito de terra entre os investidores, na sua maioria de capital externo, e
comunidade local e nestes casos o governo local alinha-se aos objectivos do investidor perdendo
deste modo a sua imparcialidade nestes processos29.
Estes factos resultam de alianças entre os que detêm o poder localmente, seja apenas com o
governo local ou em alguns casos com os líderes comunitários. Por este motivo, estes desviam-
se das suas funções de moderação, monitoria e justiça, mas sim como agente de manutenção e
reprodução de poder para acumulação e reprodução de riqueza num compacto segmento da
população. Deste modo, surgem assimetrias em termos de poder negocial no âmbito dos
reassentamentos e compensações, que resultam posteriormente em comunidades reassentadas em
locais com menor qualidade de solo e detendo um nível inferior de qualidade de vida.
29 Informação obtida através de entrevistas realizadas a comunidades locais após a migração forçada com
ou sem indemnização nos distritos mencionados no mês de Agosto/Setembro de 2015.
25
A assimetria estende-se também em termos de obtenção de informação, conhecimento da
legislação, mercados e outros. Em resposta, verifica-se, no esquema (veja a figura 4 e 5) a entrada
da acção de organizações da sociedade civil, que se envolvem nestes processos como defensores
dos interesses da comunidade. São diversas as organizações que actuam como facilitadores de
obtenção de DUATs, sensibilização no seio das comunidades, advocacia, etc. No entanto, estas
organizações, assim como instituições académicas, podem tornar-se alvos de acções de
intimidação e perseguição no âmbito do aparelho repressivo do Estado.
4. GRANDES PROJECTOS DE INVESTIMENTOS E OCUPAÇÃO DA TERRA EM
MOÇAMBIQUE
No actual contexto de desenvolvimento de relações económicas entre os diferentes países do
mundo, a terra tem-se revelado um dos recursos que coloca em interacção diferentes grupos de
poder político, económico e social, nomeadamente os investidores e as elites urbanas, os
burocratas (diferentes níveis sectoriais e territoriais do Estado) e os chefes tradicionais (Gregorie,
1993), estes últimos exercendo uma influência significativa sobre o controle da terra, sobretudo
em contextos rurais (Bierschenk & Olivier de Sardan, 1998), onde estes são os legítimos
representantes das comunidades locais.
Considerada propriedade do Estado desde a independência nacional em 197530, a terra em
Moçambique não pode ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou
penhorada31. O Estado atribui às pessoas singulares e colectivas (nacionais e estrangeiras) bem
como às comunidades locais, um Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT), que pode
ser adquirido por ocupação segundo normas e práticas consuetudinárias, ocupação por boa-fé
depois de dez anos de usufruto da terra, ou por meio de uma autorização de um pedido formulado
ao Estado e autorizado pelos Serviços de Geografia e cadastro.
Os pedidos de uso e aproveitamento da terra de áreas cujo limite máximo é de 1.000 hectares são
autorizados pelos Governadores Provinciais que têm igualmente competência para dar parecer e
autorizar licenças especiais nas zonas de protecção parcial. Ao Ministro da Agricultura e Pescas
compete autorizar os pedidos de uso e aproveitamento da terra de áreas compreendidas entre 1000
e 10000 hectares. Por fim, o Conselho de Ministros pode autorizar pedidos de uso e
aproveitamento de terra de áreas que ultrapassem a competência do Ministro da Agricultura e
Pescas32, ou seja mais de 10000 hectares, devendo em qualquer uma das situações descritas
efectuar-se uma consulta comunitária junto às comunidades locais para confirmar a existência ou
não de ocupantes.
30 Constituição da República Popular de Moçambique (1975). 31 Artigo 109 da Constituição da República e Artigo 3 da Lei de Terra (19/97 de 19 de Outubro). 32 Importa considerar que com a formação do novo Governo do partido Frelimo saído vencedor nas eleições
de Outubro de 2015, a estrutura dos ministérios foi remodelada através do Decreto Presidencial nº 01/2015,
de 16 de Janeiro. Assim, o sector de Terras e Cartografia que pertencia ao Ministério da Agricultura passou
para o recém-criado Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural.
26
Fonte: Elaboração dos autores.
A figura acima testemunha a opinião defendida por Tunga-Bau (2012), segundo a qual a
apropriação da terra confere poder de controlo sobre as pessoas e outros recursos e legitima o
acesso dos actores políticos ao poder, qualquer que seja a natureza do poder em presença (poder
tradicional ou moderno). Para este autor, a terra permite ainda diferenciar os grandes chefes (no
caso vertente ministros, governadores, administradores e outros funcionários que ocupam cargos
directivos) dos pequenos chefes ou subchefes (funcionários públicos e outros técnicos, régulos,
secretários dos bairros e outras lideranças comunitárias).
Esta ideia é igualmente defendida por Mandamule (2015ª:11) para quem: “a ocupação de cargos
de liderança e chefia dentro do sistema de poder (a todos os níveis) confere aos actores implicados
nos arranjos ou negociações com novos ocupantes privilégios, prestígio e outros tipos de
benefícios (materiais e simbólicos), o que, por sua vez, permite-lhes legitimar o seu poder e
perpetuar a sua dominação. Quanto mais importante for o cargo que os indivíduos ocupam na
hierarquia de poder, maior será a sua influência nos processos de negociação e maior será a
tendência de exclusão de outros actores, inferiormente colocados na estrutura de poder, como, por
exemplo, os régulos ou outras autoridades tradicionais”.
As comunidades locais33 são um dos actores importantes no processo de gestão da terra. Estas
participam da gestão dos recursos naturais, na resolução de conflitos de terra e ainda do processo
de titulação do direito de uso e aproveitamento da terra, para efeitos de confirmação de que a área
não tem ocupantes, podendo fazê-lo através do Conselho local, Fórum local, Comités
comunitários e Fundos comunitários, instituições criadas no âmbito da aprovação da Lei dos
órgãos Locais do Estado (lei 8/2003 de 19 de Maio) e seu regulamento (15/2005 de 10 de Junho),
cujo objectivo é fortalecer a democracia participativa e incluir os diferentes actores a nível local
no processo de desenvolvimento do país e na busca de soluções para os seus próprios problemas.
As autoridades comunitárias (chefes tradicionais, secretários de bairro, régulos ou rainhas, etc.)
são reconhecidas como legítimas representantes das comunidades locais, e frequentemente são
33 A Lei de Terras (nº 19/97 de 1 de Outubro) definiu Comunidade Local como sendo o “agrupamento de
famílias e indivíduos, vivendo numa circunscrição territorial de nível de localidade ou inferior, que visa a
salvaguarda de interesses comuns através da protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam
cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural pastagens, fontes de água e áreas de
expansão” (pág.1).
27
pessoas próximas das estruturas de poder, detendo assim um maior estatuto social dentro da
comunidade. Devido às facilidades que os cargos de liderança lhes conferem, muitas vezes as
lideranças comunitárias arrogam-se o direito de efectuar acordos unilaterais com os novos
requerentes, sem consultar publicamente a comunidade que deveriam representar, isto em troca
de benefícios materiais, prestígio ou simplesmente para perpetuar a sua dominação sobre os
demais membros das comunidades. Estes processos de negociação são acompanhados por práticas
corruptas e clientelistas, culturalmente enraizadas e reproduzidas nos diferentes níveis da
estrutura do poder (do central ao local e vice-versa):
O que está a acontecer hoje em dia com o ProSAVANA e outros programas no
Corredor de Desenvolvimento de Nacala é que mesmo em algumas zonas já
delimitadas, quem quiser adquirir um espaço basta-lhe apenas falar com o líder
(local). Como o líder [local] recebe um “bolo”, ele é aliciado no sentido de
comunicar a sua comunidade que “aqui haverá emprego e muitos outros benefícios”
e (...) porque, de facto, mesmo aqui na cidade há pessoas que não têm sequer uma
pedra de carvão para pôr no fogo e fazer papinha de farinha que é vendida aos copos
no mercado para conseguir dar qualquer coisa para comer às crianças, as
comunidades facilmente se deixam enganar. (...) É preciso notar que isto [aquisição
de terras] está aliado à situação partidária no país. O partido no poder assume uma
função preponderante neste processo todo porque qualquer líder ou outro elemento
da comunidade que resista a esta situação de usurpação de terras, este individuo é
(considerado) da oposição, e, quando é assim, as coisas complicam-se34.
Em determinados casos, ainda que a área solicitada tenha ocupantes, estes são muitas vezes
excluídos dos processos de negociação, privados do seu direito natural de acesso à terra, afastados,
por vezes sem o seu consentimento, de parte ou totalidade das terras por eles ocupadas
costumeiramente e forçados a emigrarem para as grandes cidades ou para os distritos ou
comunidades vizinhas, que não oferecem as mesmas condições de habitação, produção e
produtividade e onde os hábitos, costumes e cultura da população migrante diferem dos da
população nativa, criando desta forma conflitualidades como testemunha um membro da Liga dos
Direitos Humanos em Nampula:
Há várias situações que tendem cada vez mais a degradar a situação social e
económica das comunidades locais quando as grandes empresas pretendem
implementar os seus negócios, quer seja no âmbito de projectos extractivos ou de
outra natureza, como o caso da implementação de projectos na área da agricultura.
Quero com isto dizer que em muitas ocasiões os Direitos Humanos dessas
comunidades não são acautelados, isto porque, como é bem sabido, para o
empresário o lucro está em primeiro lugar, está acima de todos os interesses e esta
situação de busca pelo lucro põe de lado determinadas situações que deviam antes
ser acauteladas. As populações são despejadas do seu espaço que é a sua riqueza
(...) das terras que de geração em geração pertencem às famílias, onde elas enterram
e veneram os seus antepassados e que, para elas, são regiões sagradas que não
podem ser mexidas no sentido de alguém entender vir ocupar sem mais nem menos35.
Na crescente corrida pela terra nos países em desenvolvimento, resultante das crises alimentar e
financeira de 2007/2008, do crescimento populacional, instabilidades políticas e descoberta de
recursos naturais, Moçambique é um dos destinos preferenciais e a terra um recurso apetecível
para quem pretende investir nas áreas de agro-negócio, mineração, florestas ou turismo. Tal
apetência veio complicar as já conflituosas relações entre o Estado e as comunidades e também
entre estes dois e os investidores privados, sobretudo porque mais de 2.7 milhões de hectares de
terras agrícolas já foram objecto de transacções entre investidores privados, na sua maioria, dos
34 Entrevista realizada em Julho de 2015 junto à um membro da Plataforma das Organizações da Sociedade
Civil de Nampula. 35 Entrevista realizada em Agosto de 2015.
28
países do Norte, e o governo de Moçambique. Grande parte das terras concedidas entra em
concorrência com as comunidades locais que, como referido anteriormente, muitas vezes são
forçadas a ceder as terras em nome de um desenvolvimento defendido pelos seus governos.
No seu relatório sobre o fenómeno de usurpação de terras em Moçambique, a UNAC (2011)
considera que este resulta de factores como as falhas nos processos de atribuição de DUATs, onde
os burocratas beneficiam os investidores em detrimento das comunidades rurais. Aliado a isto,
está o fraco conhecimento das comunidades locais sobre os seus direitos e sobre as leis, a fraqueza
institucional dos governos locais, a corrupção de autoridades e líderes comunitários e, sobretudo,
a situação de grande pobreza em que vivem as comunidades que leva a que estas aceitem as
promessas de melhoria de vida anunciadas pelos investidores, situação que é comum em muitos
dos países em desenvolvimento. Eis o depoimento de um dos nossos entrevistados:
O conceito de usurpação de terras refere-se a uma forma de adquirir terra para
guardar em ociosidade, isto é adquirir terra que não é tão necessária para o uso
imediato. É uma forma de fazer reserva que acontece de várias formas: uma que é
urbana, onde as pessoas vão comprando pedaços de terra, guardam e ao andar do
tempo eles vão vendendo essa mesma terra ou aplicam-na para outros fins, não, os
fins pelos quais eles requereram. Tem também a parte rural, que é a mais
preocupante, onde as pessoas com alguma visão sobre o valor da terra vão, compram
algumas extensões de terras mesmo que não seja legal, e depois avançam com o
processo de legalização. Estes negoceiam e pagam às famílias que lá estão, dizem
que querem fazer um investimento, pode ser [uma] machamba, pode ser um projecto
de criação de aves, pode ser outro projecto de criação de animais, mas, no fim, eles
só compram a terra para guardar. Estas aquisições são feitas por indivíduos
nacionais e estrangeiros mas os estrangeiros têm um papel muito perigoso, na minha
perspectiva, porque alguns deles que estão cá já têm algum conhecimento sobre o
valor da terra, por isso, eles avançam com os investimentos; podem não ser eles
directamente a mostrar a própria cara, podem usar algumas pessoas que vão fazer a
negociação mas, no final, a terra não pertence a essas pessoas e sim a terceiros.
Essas pessoas que servem de capa geralmente são pessoas que podem vir de um
espaço urbano para uma zona rural (...) mas também podem pertencer à
comunidade36.
A história mostra, porém, que as grandes concessões de terra em Moçambique não são um
fenómeno novo. Na verdade, o modelo económico (economia de mercado) introduzido após a
adesão de Moçambique às instituições de Bretton Woods (FMI e BM) e à Convenção de Lomé
III (Cahen, 1987) e a introdução de políticas de restruturação económica do país, levaram a que
se abrisse amplamente a porta aos investidores e, portanto, não se pudesse, literalmente, impedir
o acesso às terras e de possuir um título de propriedade como única prova legal de transferência
dos direitos de propriedade do Estado para qualquer cidadão nacional ou estrangeiro. Negrão
(1998) mostra que, para além dos planos de ajustamento estrutural que privilegiavam o
investimento privado, três outros factores conjunturais contribuíram para o aumento da procura
por terra em Moçambique: (1) o processo de negociação entre a Renamo e o governo da Frelimo
e a assinatura dos acordos de paz em 1992 que estimularam as intenções de investimento quer
pelos nacionais como pelos estrangeiros; (2) a queda do regime do Apartheid na África do Sul
(1991); (3) o agravamento das tensões entre o governo zimbabueano e os farmeiros brancos que
aumentaram o interesse pelas terras não só destes dois países, como também das de Moçambique.
McGregor (1997) mostra como, no período entre 1986 e 1998, vastas extensões de terra com
grande potencial agrícola foram atribuídas a investidores privados nos distritos de Matutuine e
Namaacha, na sua maioria associados ao Estado através de joint ventures. A título de exemplo,
apresenta o autor, a empresa Lomaco, uma joint venture entre a Lonhro (inglesa) e o Estado
36 Entrevista realizada em Nampula, em Agosto de 2015.
29
Moçambicano, que beneficiou de 22 000 hectares em Changalane (província de Maputo) e a
empresa Blanchard Mozambique, de origem americana, que recebeu, em 1996, cerca de 236 000
hectares no distrito de Matutuíne, uma concessão feita, afirma o autor, pelo governo da Frelimo
com o objectivo de impedir que Blanchard apoiasse a Renamo.
Actualmente, Zoomers (2013) defende que os governos dos países afectados pelos grandes
projectos de investimento criam incentivos fiscais e políticas para atrair esses mesmos
investimentos, oferecendo contratos de concessão de baixo custo por períodos entre 55 e 99 anos
e onde os custos pagos pela terra podem variar entre 1 a 5 USD. O seu interesse, defende a autora,
é obter divisas estrangeiras e auxiliar na construção de infra-estruturas, geração de emprego rural,
transferência de tecnologia, produção de culturas de exportação e melhoria da segurança
alimentar, anseios que muitas vezes não chegam a se realizar.
O primeiro grupo de investidores que procura investir em África e outros países em
desenvolvimento é constituído pelos governos dos Estados afectados pela crise alimentar de 2007-
2008 (Arábia Saudita, Índia, China, Coreia do Sul, Libéria e Japão), que procuram garantir a sua
segurança alimentar. O segundo grupo de actores identificado pelo Banco Mundial (2011) é
constituído por entidades financeiras que, no actual contexto de crise, procuram investir na terra,
na esperança de tirar grandes benefícios a longo prazo, aquando de uma futura apreciação da terra.
Por último, encontramos os agricultores, operadores agro-industriais ou comerciantes (Qatar,
Egipto, Líbia, África do Sul, etc.), com um interesse virado para o progresso técnico e agro-
alimentar que também investem em grandes explorações, (Mandamule, 2015ᵇ).
Países como os Estados Unidos da América, através de algumas empresas privadas, o Reino
Unido (4,3 e 3,8 milhões de hectares, respectivamente), a Suíça, a Holanda, a França e Alemanha,
e países emergentes como o Brasil e a África do Sul, também têm vindo a adquirir terras em
África, América Latina, Indonésia e nas Filipinas (Anseeuw et al., 2012).
Fonte: elaboração dos autores.
Em Moçambique, os 2,7 milhões de terras (do total de 36 milhões disponíveis) já
transferidos para as mãos dos investidores privados (Deininger et al, 2010), correspondem a
405 grandes projectos (mineração, agricultura e produção de biocombustíveis) com um tamanho
médio de 2.226 hectares, dos quais 53% provêm de investidores nacionais (Mosca & Selemane,
2011).
Entre 1990 e 2005, a maioria do investimento directo estrangeiro foi dirigido para o sector
industrial (1,7 milhões de dólares), seguido pelo sector dos recursos minerais e energia com 639
30
milhões de dólares, hotelaria e turismo com 345 milhões e os sectores da agricultura e agro-
indústria (Matos, 2008 cf. UNAC e JA, 2011). Como se pode ver, apesar de constituir a base do
desenvolvimento do país, os sectores da indústria e da agro-indústria são os que apresentam menor
participação no total do investimento aprovado para os respectivos sectores (Abbas, 2013).
Hanlon (2002) mostra que, para além destes investidores estrangeiros com forte capital
económico, existe também uma nova elite urbana de investidores nacionais compostos por
funcionários superiores do governo e das forças armadas com boas conexões políticas,
governadores e administradores distritais que adquirem grandes extensões de terra para si e suas
famílias para a criação de gado ou simplesmente para reserva. Os “agricultores comerciais” são
outra categoria de stakeholders que no actual contexto procuram adquirir terra em Moçambique.
Estes são investidores estrangeiros da África do Sul e do Zimbabwe e alguns portugueses que
após a independência permaneceram no país. Muitos destes, refere Hanlon (2002:4), pertencem
a famílias da elite urbana e são importantes na produção e comercialização de algodão37.
Tem igualmente havido interesses na privatização da terra e uma certa pressão para a expansão
do já existente mercado de terras por parte dessas elites e outras agências internacionais de
desenvolvimento. De facto, partes consideráveis das elites que integram os sistemas de poder em
Moçambique são detentoras de grandes concessões de terras e têm interesse em que se privatize
a terra e, portanto, se transforme esta em um objecto passível de mudar de mãos seguindo as
lógicas do mercado.
Para o Banco Mundial, por exemplo, a posse individualizada da terra permitiria maiores
investimentos, a hipoteca da terra seria um meio para que os agricultores pudessem aceder aos
créditos e o mercado de terras é necessário para transferir a terra dos utilizadores menos
produtivos para outros muito mais produtivos (Deininger & BinsWanger, 1999).
O Estado e as organizações camponesas como a União Nacional dos Camponeses (UNAC),
embora divergentes em determinados aspectos, são contrários ao posicionamento do Banco
Mundial. Estes consideram que a privatização da terra conduziria à concentração de terras nas
mãos das elites, levaria à especulação e resultaria na existência de pessoas sem-terra no país:
Ter terra é também ter dinheiro agora. As pessoas ocupam de mais, porque percebem
que alguém há-de vir comprar essa terra. Por outro lado, há pessoas que estão a
lutar para que se privatize a terra para depois venderem (...) Eu vi uma vez um mapa,
quem me mostrou foi um consultor, um mapa confidencial que mostra como está
distribuída a terra no norte, toda ela está em quadradinho e tem donos, eu vi. Aquele
mapa para mim é um desastre, mostra que você está num sitio que não é teu, por isso
os casos de conflitos de terra. Eles adquirem terra e não utilizam, de quê estão a
espera? O que pretendem afinal fazer nesta área? Tantos mil hectares para quê? É
para nos usurpar terras e tirar o pão das pessoas, onde elas trabalham porque aqui
em Moçambique, apesar de a agricultura não estar a trazer o tal desejado
desenvolvimento para o Governo, nós sabemos que é a partir dela que milhares de
pessoas sobrevivem (...)38.
No seu “Discursos sobre o regime da propriedade da terra em Moçambique” Mandamule
(2015ª:17) mostra ainda outro tipo de posicionamento/interesses no que concerne a privatização
da terra e aos mercados de terra. Um dos posicionamentos vem de académicos com uma visão
evolucionista para quem a privatização da terra seria efectivamente um meio capaz de promover
a flexibilização dos investimentos e facilitar o acesso crédito, para além de permitir maior
segurança de posse pois os títulos de propriedade seriam mais valorizados:
37 Vide as figuras 4 e 5 da primeira parte. 38 Representante da União Provincial de Camponeses (Nampula), entrevista realizada em Julho de 2015.
31
Já há espaço para o privado, mas (...) há uma diabolização da privatização. Não me
parece que seja possível estruturar uma economia de mercado harmonizada como
acontece num país mais desenvolvido, se nós não definirmos os direitos de forma
clara. A privatização obrigaria o Estado a desenvolver instituições vocacionadas para
estruturar e gerir os direitos de apropriação, não mais como proprietário, mas, sim,
como regulador.
Um outro posicionamento trazido por Mandamule (2015: 17) é defendido por alguns consultores
no sector agrário e membros de algumas associações económicas que consideram a possibilidade
de semi-privatização da terra em Moçambique, identificando para tal espaços específicos
passíveis de serem concessionadas para fins de investimento agrícola ou industrial, onde o
arrendamento seria uma forma de garantir que os grupos socialmente desfavorecidos não percam
suas terras:
Não iria por uma privatização geral e absoluta da terra pois os fundamentos que
ditaram o princípio da não-privatização prevalecem. Talvez haja espaço para que
algumas categorias de terras possam ser transferidas para o domínio da propriedade
privada, excepto áreas de conservação, reservas de terras de domínio público, ou de
outro tipo de domínio público (...) Há espaço para considerarmos um regime de
propriedade de terra que nos permita categorizar diferentes situações e (...) assegurar
que os mais pobres e vulneráveis não percam as suas terras aliciados por somas de
dinheiro e que não tenhamos pessoas sem-terra.
Como se pode ver, os interesses à volta da terra são vários e reflectem, a cada momento histórico
e em cada contexto, a estrutura do poder e as ideologias e interesses defendidos pelas elites que
integram os sistemas do poder. Os processos de acesso à terra por vezes são excludentes,
sobretudo nos casos em que estão em jogo grandes projectos de investimento. As lógicas
clientelistas e neopatrimoniais que acompanham os processos de atribuição de DUATs a novos
ocupantes, frequentemente não consideram os interesses dos membros inferiormente colocados
na estrutura organizacional das comunidades onde serão implantados estes grandes projectos e
não tem em conta os valores, cultura, história e ligação que as pessoas criam com a própria terra,
como refere um membro da UNAC em Nampula:
Muitos dizem “vamos lá atribuir DUATs” essas coisas todas, mas para mim até nem
é problema dos DUATs; pelo contrário, hoje em dia as pessoas perdem a terra
mesmo tendo DUAT; nós até temos casos que queremos levar ao tribunal, se
conseguirmos encontrar advogados. Para mim, o camponês estaria mais seguro se
efectivamente se considerasse a ocupação por pelo menos 10 anos, mas não; é
preciso muita ginástica para se ter segurança na terra, sem contar que o DUAT
também é caro e muitos camponeses não conseguem legalizar suas terras (...). Até
agora a lei de terra que, para mim, é o instrumento que deveria garantir que a posse
da terra fosse segura, está a ser 100% violada e quem viola são eles mesmos
[Estado]. Então, nós, da UNAC, estamos a discutir o que fazer, sobretudo com essas
tendências que existem de querer privatizar a terra39.
Olhando para a figura 5 apresentada na primeira tarde deste documento, e considerando as
evidências das observações e da pesquisa de campo realizada, verifica-se que as grandes
ocupações de terra enquadram-se num contexto político, económico e social maior, onde as
empresas com forte poder em capital fixo (nacionais e multinacionais), os governos e instituições
internacionais fazem alianças com o poder dos governos nacionais para adquirirem grandes
extensões de terra para responder às suas necessidades em termos de segurança alimentar, para a
produção de biocombustíveis ou simplesmente para a especulação, impedindo desta forma os
camponeses de utilizarem essas terras e alargarem as suas áreas de cultivo e colocando em risco
a segurança e soberania alimentares dos povos visados pela corrida pela terra.
39 Entrevista realizada em Julho de 2015.
32
É possível ainda notar que devido à exclusão social que acompanha os processos de atribuição de
DUAT e posterior ocupação da terra, a ocorrência de conflitos de terra é frequente e, nestas
situações, o poder aos diferentes níveis (Burocracia, Empresariado local, elites urbanas e rurais)
alia-se aos governos e instituições internacionais, ao capital interno e externo e às empresas
multinacionais, em detrimento da população local e dos camponeses. Muitas vezes considera-se
que as OSCs ao invés de informar, desinformam as comunidades e por isso as suas acções de
advocacia e mobilização junto àquelas são inviabilizadas porque, em parte, há interesse em que
as populações rurais continuem desconhecendo os seus direitos, para que se possa continuar com
os arranjos feitos por algumas lideranças, que se beneficiam a si próprios e desconsideram os
interesses daqueles que representam.
5. PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL
5.1 Realidades actuais e sociedade civil
Este trabalho revela elementos fudamentais do desenvolvimento rural e agrário. A penetração do
capital intensivo nos sectores de minas, agronegócio, indústria, infraestruturas e turismo, tem
introduzido mudanças significativas nas dinâmicas económicas e sociais no meio rural, nos
sistemas de produção e nos modos de vida da população e dos produtores, principalmente dos
camponeses. Estas mudanças possuem alguns elementos que requerem atenção das instituições
públicas, privadas e da sociedade civil. Destacam-se as seguintes:
Novos usos e ocupações de terra com conflitos associados, sem respeito pela legislação
e com fraca interevenção fiscalizadora e arbitral das instituições públicas competentes.
Reassentamentos com migrações forçadas de curta/média distância, para condições
precárias e muitas vezes piores às pré-existentes aos reassentamentos (habitação, serviços
básicos, acesso aos mercados, condições de produção e qualidade dos solos, acesso à
água, entre outras), sem ou com limitados e não regulamentados valores de
indemenização dos bens patrimoniais e de valores não tangíveis.
Menores possibilidades de desenvolver actividades de diversificação e aumento de renda
das famílias, em consequência das novas distâncias dos mercados.
Altererações dos sistemas de produção com redução de algumas produções alimentares,
agravando-se a insegurança alimentar e de uso da terra.
Em muitas circunstâncias, não respeito pela legislação no que se refere aos processos de
decisão/auscultação sobre as mudanças de ocupação da terra, negociação sobre os
reassntamentos, entrada de capital e modos de intervenção das empresas e suas relações
com as comunidades, o que implica exclusão das populações, défices democráticos e falta
de transparência praticados em primeiro lugar pelas instituições públicas e pelos
investidores.
Relações muitas vezes pouco cordiais entre as instituições públicas, privadas e da
sociedade civil.
Ao longo do texto foram evidenciados os principais elementos que revelam potenciais
conflitualiddes de interesses económico e sociais no desenvolvimento rural e agrário, em contexto
de penetração de capital. Esta secção pretende seriar esses elementos e quais as funções das
organizações da sociedade civil, categorizando-as como: (1) medidas que visam aumentar a
produção, produtividade, o emprego, o rendimento das famílias e a introdução de novas técnicas
produtivas e suas relações com os sistemas de produção pre-existentes, segundo a perspectiva da
função de terceiro sector da sociedade civil; (2) acções que têm como objectivo a protecção dos
direitos das comunidades; (3) iniciativas reivindicativas em condições de conflitualidades não
resolvidas pela via negocial e por boas práticas dos actores intervenientes nos processos.
As organizações a sociedade civil possuem naturezas diferenciadas, segundo as respectivas
visões/missões/objectivos (mandatos). Segundo o que se pretende neste texto, as OSCs podem
classificar-se, quanto ao seu objecto “puro” (core business) do seguinte modo: (1) de pesquisa;
33
(2) de advocacia; e, (3) de movimentos sociais. Naturalmente que esta divisão rígida de funções
não corresponde, na maioria dos casos, à realidade. Uma OSC pode, e eventalmente deve,
(conforme se pode depreender do escrito mais adiante) assumir mais que uma dessas funções. Isto
é, uma instituição de pesquisa pode fazer advocacia a diferentes níveis; uma OSC de advocacia
pode realizar pesquisa e desenvolver acções reivindicativas (protestos, manifestações, greves,
etc.); uma organização de movimentos sociais pode e deve realizar, antes das acções
reivindicativas, acções de advocacia e negociação para a resolução dos aspectos em conflito.
A figura a seguir procura apresentar de forma esquemática e, portanto, sintética e incompleta, as
relações principais das acções da OSCs segundo as suas vocações programáticas (pesquisa,
advocacia e movimentos sociais).
Figura 8
Sistema de organização e funções das OSCs
Fonte: Elaboração dos autores.
A figura acima especializa as funções de pesquisa e a sua acção incide sobretudo em três eixos:
(1) realizar pesquisas para, junto dos centros de poder/decisão, influenciar as políticas, estratégias
e decisões do poder; (2) assegurar a democraticidade e transparência dos processos e alertar para
as dificuldades e efeitos negativos, sociais e ambientais, resultantes da implantação do modelo de
desenvolvimento e das práticas dos agentes económicas e das instituições; (3) debater e divulgar
os resultados das pesquisas; (4) colaborar na definição de prioridades das intervenções de
advocacia e, quando necessário, dos movimentos sociais; e, (5) coordenar com as OSCs de
advocacia e de movimentos sociais com os seguintes propósitos: conhecer as realidades e
estabelecer linhas de pesquisa em função das questões principais do desenvolvimento e das
práticas dos agentes económicos no terreno; realizar pesquisa em coordenação com as OSCs de
advocacia e de movimentos sociais, sobretudo na fase de trabalho de campo;
As OSCs de advocacia têm como funções principais as seguintes: (1) conhecer, acompanhar e
apoiar a implementação das decisões governativas e das práticas dos actores económicos e das
34
instituições públicas; (2) divulgar a legislação aplicável a cada caso; (3) apoiar a organização das
comunidades para a realização de boas práticas; (4) fazer advocacia junto das instituições públicas
e privadas para a boa implementação das opções de políticas e das correspondentes medidas; (5)
assegurar que as instituições apliquem as decisões com envolvimento das comunidades e
democraticidade; (6) apoiar e reforçar, através de formação, informação e debate a capacidade
organizativa e reivindicativa das comunidades; e, (7) quando esgotados os meios e canais de
advocacia e negociação, mobilizar as comunidades para a defesa dos seus direitos e interesses.
As organizações de movimentos sociais têm como funções: (1) conhecer os principais efeitos,
positivos e negativos, da implementação de programas e projectos de investimentos e de
desenvolvimento; (2) alertar as instituições correspondentes para os efeitos negativos dos
investimentos e de medidas governativas; (3) apoiar a implementação de programas
governamentais (por exemplo, de vacinação, nutrição, educação, saúde, etc.); (4) divulgar a
legislação aplicável a cada caso; (5) organizar as comunidades e a sociedade em geral para a
defesa dos interesses gerais e particulares da sociedade (assuntos transversais, como a paz, os
direitos humanos, a democracia, as liberdades individuais, etc.) e de comunidades específicas.
Pode observar-se que existem funções semelhantes/idênticas nas OSCS de natureza diferente,
competindo, em caso de sobreposição na mesma realidade, a coordenação e decisão sobre a
divisão de tarefas entre as instituições envolvidas/presentes.
5.2 Prioridades da sociedade civil na actualidade
Conforme o presente texto pode sugerir-se como principais funções das organizações da
sociedade civil, as seguintes:
Influenciar as políticas públicas para que persista um modelo de desenvolvimento
inclusivo assente na criação de riqueza numa base social ampliada, social e
ecologicamente sustentável, que assegure a melhoria das condições de trabalho e de vida
(aumento e diversificação das fontes de rendimento familiar) sobretudo dos grupos
sociais mais desfavorecidos e que reduza a pobreza e as desigualdades sociais.
Exigir boas práticas na implementação dos investimentos e respeito pelos direitos dos
cidadãos e das comunidades
Assegurar processos democráticos de participação das comunidades e da sociedade civil
com mecanismos de monitorização e de controlo democrático e popular, assim como
transparência dos procedimentos, decisões e contratos.
Apoiar as comunidades para o empoderamento dos novos sistemas de produção, das
mudanças nos modos de vida, melhorando a organização das comunidades e dos
produtores, com formação e informação.
Apoiar a defesa dos direitos dos cidadãos e das comunidades desenvolvendo acções de
advocacia, diálogo e, em casos extremos, tomar iniciativas reivindicativas com
mobilização social.
Realizar estudos que revelem com evidências, políticas públicas (des)ajustadas, os efeitos
positivos e negativos do modelo de desenvolvimento em implementação, as formas e
modos de implementação das políticas e dos programas e projectos, e o funcionamento
das instituições.
Resumindo a realidade conhecida e reflectida neste trabalho, destacam-se os seguintes domínios
mais importantes das actuais dinâmicas no meio rural: (1) penetração do capital (minas, florestas,
turismo e infraestruturas) e suas relações com os sistemas locais; (2) mudanças de usos e ocupação
da terra e situações de conflitualidade; (3) reassentamentos e suas implicações; (4) em muitos
casos, práticas erradas de implementação dos investimentos, actuações desajustadas do poder e
não respeito pela legislação e pelos procedimentos administrativos; e, (5) défices democráticos e
de transparência.
35
O quadro seguinte apresenta de forma sintética as zonas e principais actividades de intervenção
do capital e da governação.
Quadro 6
Zonas e principais actividades Zona Actividades principais actuais Actividades futuras
Corredor de
Nacala
Agricultura, infraestruturas e minas Indústria e energia
Corredor da Beira Agricultura e indústria alimentar Agricultura e indústria alimentar
Alta Zambézia Agricultura Agricultura
Moatize Minas e infraestruturas Indústria e energia
Fonte: Elaboração dos autores.
Estas actividades têm provocado diferentes efeitos que se sintetizam no quadro seguinte:
Quadro 7
Principais efeitos nas principais zonas de penetração do capital no meio rural Zona Principais actividades e efeitos da penetração do capital
Corredor de
Nacala
Conflito de terras; reassentamentos; novas actividades económicas em capital
intensivo; mudanças de sistemas de produção locais; criação de emprego; défice
democrático.
Corredor da Beira Exploração não sustentada de recursos (florestas, fauna e minas); novas
actividades económicas em capital intensivo; mudanças de sistemas de produção
locais; criação de emprego; tráfegos de madeira, marfim e ouro; défice
democrático.
Alta Zambézia Exploração não sustentada de recursos (florestas e minas); novas actividades
económicas em capital intensivo; mudanças de sistemas de produção locais;
criação de emprego; tráfegos de madeira, marfim e ouro; défice democrático.
Moatize Conflito de terras; reassentamentos; novas actividades económicas em capital
intensivo; mudanças de sistemas de produção locais; criação de emprego; défice
democrático.
Fonte: Autores.
Face aos efeitos apresentados na tabela acima e às funções das organizações da sociedade civil,
é possível sugerir algumas prioridades de actuação das OSCs.
36
Quadro 8
Principais funções das OSCs Zona Principais actividades
OSCs de pesquisa
Realização de estudos sobre:
As formas de intervenção dos investimentos e efeitos sobre: (1) mudanças nos
sistemas de produção locais; (2) produção e segurança alimentar; (3) ligações
intersectoriais dos investimentos; (4) sustentabilidade da exploração dos recursos
(terra, florestas, minas, água e ar); (5) criação de emprego e geração de rendimento;
(6) uso, ocupação de terras e conflitos; (7) reassentamentos e implicações;
mudanças climáticas.
Os efeitos dos investimentos no conjunto da economia: crescimento económico;
balança de pagamentos; orçamento do Estado; poupança e investimento nacional;
desenvolvimento do tecido económico doméstico; ambiente de negócios e
competitividade da economia e dos respectivos sectores.
O funcionamento, reformas institucionais, governação, democracia e
transparência.
Estudos de natureza sociológica antes e depois da implementação dos
investimentos.
Realização de acções de advocacia através de: (1) debates/seminários e
conferências, publicações, pareceres sobre projectos e programas junto dos órgãos
centrais, OSCs centrais e locais, multinacionais e relações informais a diversos
níveis; (2) realização de trabalhos de campo em parcerias com OSCs locais e
devolutivas como método de pesquisa.
OSCs de
advocacia
Apoiar e recomendar boas práticas na implementação dos investimentos e outras
medidas de políticas públicas.
Desenvolver acções de advocacia junto dos órgãos estatais a diferentes níveis e
investidores acerca dos principais efeitos negativos.
Alertar as instituições competentes, públicas e privadas acerca de más práticas em
execução.
Realizar estudos sobre as práticas na implementação dos investimentos e de outras
medidas de políticas públicas.
Assessorar e apoiar as comunidades acerca dos possíveis efeitos da implementação
dos investimentos e de políticas públicas.
Realizar cursos e disseminar o quadro legal correspondente aos assuntos da
advocacia em curso.
Mobilizar as comunidades para, sob diversas formas, reivindicar os seus direitos.
OSCs de
movimentos
sociais
Assessorar e apoiar as comunidades acerca dos possíveis efeitos da implementação
dos investimentos e de políticas públicas.
Disseminar o quadro legal correspondente aos assuntos da advocacia em curso.
Mobilizar as comunidades para, sob diversas formas, reivindicar os seus direitos.
Apoiar as comunidades para a organização com vista aumentar a capacidade
negocial.
Realizar iniciativas de sensibilização para assuntos transversais à sociedade, assim
como específicos de cada comunidade.
Fonte: Elaboração dos autores.
Verifica-se no quadro acima, que existem funções sobrepostas que são realizáveis por OSCs de
diferentes naturezas quanto às suas funções. Nestas circunstâncias convém não haver duplicações
ou, existindo, são necessárias que as acções sejam a coordenação e bem delimitadas.
A figura abaixo procura ilustrar as funcionalidades das funções dos três tipos de OSCs.
37
Figura 9
Funcionalidades entre as OSCs
Fonte: Elaboração dos autores.
A figura acima revela como as funções das OSCs se relacionam e se reforçam mutuamente. Este
facto aumenta a importância das organizações da sociedade civil estarem coordenadas, ou por
meio de plataformas ou de programação conjunto de actividades afins.
É natural que existam diferenças de várias naturezas entre as OSCs. Porém, podem existir
plataformas de denominadores comuns que facilitem acções programáticas conjuntas, como por
exemplo, quando se trata de defesa dos interesses das comunidades suportados na legislação,
contra práticas que violam direitos fundamentais dos cidadãos, acções em defesa da democracia
e da participação e transparência das decisões e dos processos, a defesa do património natural,
entre outras. Estes são assuntos transversais que não têm porque implicar posicionamentos
políticos, ideológicos ou de metodologias e formas de intervenção que eventualmente criem
pontos de vista diferenciados entre as OSCs.
As diferenças podem reduzir-se caso as OSCs assumam os princípios caracterizadores das
organizações da sociedade civil, como seja a independência dos poderes e das forças políticas e
económicas, a legalidade, a democraticidade interna, a defesa da democracia e dos grupos sociais
mais vulneráveis e a gestão transparente e profissional.
As OSCs podem, ou não, em circunstâncias diferentes, actuarem como terceiro sector
(complemento às actividades funções do Estado e do sector privado, actuando em áreas que não
interessam à iniciativa empresarial e para as quais o Estado não possui vocação e geralmente é
ineficiente na sua realização), surgindo, nestas circunstâncias, como aliadas do sistema de poder
sem que, assumam posições contrárias aos interesses dos cidadãos e das comunidades. Em outras
circunstâncias, as OSCs podem actuar de forma crítica em relação à governação, por exemplo, no
debate sobre políticas públicas, quando existem ineficiências das burocracias, na fiscalização e
actuação perante casos de ilegalidade. Podem ainda ser não aliadas (ou opostas) ao poder e aos
interesses económicos quando existam agressões ao ambiente, não respeito pelos direitos
humanos e das comunidades, contra práticas de má governação, falta de transparência e
corrupção, entre outros aspectos.
Estudos e evidências
Advocacia
Debates
Feed back dos estudos
Trabalho de campo
Estudos, debates e
advocacia
Feed back dos estudos
Trabalho de campo
Advocacia
Debates
Formação e informação
Organização
38
6. RESUMO
A implementação de modelos e estratégias de desenvolvimento rural e agrário implica a
configuração e ajustamento permanente das articulações de interesses políticos e económicos,
bem como um sistema de alianças sociais. Estas realidades acontecem, de forma articulada, a
nível internacional, nacional e nas comunidades, envolvendo instituições públicas (governos),
organizações internacionais e agências de cooperação, empresas de diferentes escalas
(multinacionais e tecido empresariado local), comunidades e organizações da sociedade civil.
Os casos estudados do Corredor de Nacala com ênfase para o ProSAVANA (agronegócio) e as
questões sobre o uso e aproveitamento da terra assim com a aplicação da respectiva Lei e
Regulamento, demonstram claramente a configuração desses interesses e a articulação de alianças
referidas nas secções do contexto e das alianças entre os actores do agronegócio e nas suas
relações com as comunidades, particularmente no que se refere à ocupação a terra.
Este estudo revela que: (1) o agronegócio internacional actua com cobertura de acordos, de
relações diplomáticas entre dois ou mais governos; (2) o governo moçambicano facilita e apoia,
de diversas formas, a implementação no terreno de investimentos estrangeiros e nacionais; (3) em
situações de conflito, como nos casos de ocupação da terra, a governação, aos diferentes níveis,
assume a sua aliança principal com os investidores, supondo, muitas vezes, o não respeito pelos
direitos dos cidadãos e das comunidades protegidos pelo quadro legal existente; (4) as
comunidades possuem baixa capacidade organizativa e reivindicativa; (5) as relações entre a
governação e as organizações da sociedade civil são, regra geral, pouco cordiais.
A implementação de grandes investimentos carece de mecanismos de diálogo e de resolução de
conflitos. Consequentemente, as situações de conflito são muitas vezes tratadas com autoritarismo
e falta de transparência.
Nestes contextos, as comunidades e a sociedade civil são as instituições que podem defender os
interesses. Para o efeito é necessário aprofundar as formas de organização dos pequenos
produtores, dos camponeses e das comunidades com formação, informação e organização para a
reivindicação, de diferentes formas, dos seus direitos. Igualmente, em contexto de diálogo e
transparência, para facilitar a implementação dos programas de investimento e de
desenvolvimento rural. Nestes casos, assegurados os direitos e liberdades dos cidadãos, pode-se
discutir os modelos de desenvolvimento económico e, no caso em apreço, os modelos e estratégias
de desenvolvimento rural e agrário de forma a assegurar processos produtivos, de acumulação e
distribuição tão equitativos quanto possível com a criação de riqueza numa base social ampla, que
sejam processos socialmente inclusivos e respeitadores do ambiente e da exploração sustentada
dos recursos.
Para sustentar a organização e as intervenções da sociedade civil que têm como forma principal
de intervenção a advocacia a diferentes níveis e os movimentos sociais, são necessários estudos
com diferentes enfoques de forma a dar credibilidade e capacidade de diálogo e debate com os
restantes actores envolvidos na implementação de programas e projectos de desenvolvimento.
39
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