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41 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 41-60, jun. 2006 Pierre Bourdieu & Abdelmalek Sayad A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL 1 A política francesa de “reassentamento” dos camponeses argelinos, planejada para minar o apoio popular à guerra de libertação nacional (1954-1962), levou ao deslocamento de um quarto da população nativa da Argélia em 1960. Disciplinando o espaço e reorganizando rigidamente a vida dos fellahin, os militares franceses esperavam domesticar um povo, mas isso apenas completou o que a primeira política colonial e a generalização das trocas monetárias já começara: a “descamponeização” de comunidades agrárias despo- jadas dos meios sociais e culturais para dar sentido ao seu presente e para controlar o seu futuro. Assim, a guerra cumpriu a intenção latente da política colonial, que é desintegrar a ordem social local com o objetivo de subordiná-la, seja sob a bandeira da segregação, seja sob a bandeira da assimilação. Mas a dominação imperial também produz um novo tipo de sujeito que contém em si as contradições nascidas do choque de civilizações: os padrões de comportamento e de ethos econômico importados pela colonização coexistem dentro do camponês argelino expulso de sua terra com aqueles que foram herdados da tradição ancestral, originando condutas, expectativas e aspirações antinômicas. Esta dupla dimensão da realidade, objetiva e subjetiva, ameaçava minar os esforços para socializar a agricultura depois da independência, enquanto que a lógica da descolonização induzia a pequena-burguesia letrada dos burocratas a negar magicamente as contradições da realidade como fantasmas vergonhosos de um passado colonial morto. PALAVRAS-CHAVE: colonialismo, guerra, campesinato, desenraizamento, imperialismo francês, cultura cabila, Argélia. I. INTRODUÇÃO De todas as transformações que a sociedade rural argelina sofreu entre 1955 e 1962, aquelas que foram provocadas pelos reassentamentos 2 de populações são, sem dúvida, as mais profundas e as que tiveram maiores conseqüências a longo prazo. Numa primeira fase, os deslocamentos es- tavam ligados à criação de “zonas proibidas”. De 1954 a 1957 muitos camponeses foram pura e simplesmente expulsos das suas aldeias; é sobre- tudo a partir de 1957 que, em certas regiões, como por exemplo no Norte Constantino, a política de reassentamento assume uma forma sistemática e metódica. De acordo com uma diretriz oficial, o principal objetivo das zonas proibidas era o de Recebido em 25 de outubro de 2005 Aprovado em 19 de novembro de 2005 Deus deu ao corvo, que naquele tempo era branco, dois sacos: um cheio de ouro, o outro cheio de piolhos. O corvo deu o saco cheio de piolhos aos argelinos e o saco cheio de ouro aos franceses. Foi desde então que ele ficou preto. Tradição oral recolhida em Arba. 1 O presente texto é uma tradução de Colonial rule and cultural sabir publicado na revista Ethnography, v. 5, n. 4, Dec. 2004, p. 445-486, com a gentil permissão de Jérôme Bourdieu e da revista Études rurales. Essa versão baseia-se no ensaio Paysans déracinés, bouleversements et changements culturels en Algérie, Études rurales, v. 12, n. 1, janvier-mars 1964, p. 59-94. Traduzido, a partir das versões francesa e inglesa, por Helena de Freitas Madureira Pinto, José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira. Adap- tação da grafia para o português falado no Brasil: Fábia Berlatto e Bruna Gisi. Revisão técnica da tradução: Adriano Codato e José Szwako. A versão brasileira deste e dos outros artigos difere bastante da versão portuguesa. 2 Literalmente, regrupements, ou “reagrupamentos”. Pre- ferimos a expressão “reassentamentos”, de uso mais cor- rente no Brasil (nota da revisão técnica).

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Page 1: A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL - scielo.br · PALAVRAS-CHAVE: colonialismo, guerra, campesinato, desenraizamento, imperialismo francês, cultura cabila, Argélia. I. INTRODUÇÃO

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 41-60 JUN. 2006

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 41-60, jun. 2006

Pierre Bourdieu & Abdelmalek Sayad

A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL1

A política francesa de “reassentamento” dos camponeses argelinos, planejada para minar o apoio popularà guerra de libertação nacional (1954-1962), levou ao deslocamento de um quarto da população nativa daArgélia em 1960. Disciplinando o espaço e reorganizando rigidamente a vida dos fellahin, os militaresfranceses esperavam domesticar um povo, mas isso apenas completou o que a primeira política colonial e ageneralização das trocas monetárias já começara: a “descamponeização” de comunidades agrárias despo-jadas dos meios sociais e culturais para dar sentido ao seu presente e para controlar o seu futuro. Assim, aguerra cumpriu a intenção latente da política colonial, que é desintegrar a ordem social local com oobjetivo de subordiná-la, seja sob a bandeira da segregação, seja sob a bandeira da assimilação. Mas adominação imperial também produz um novo tipo de sujeito que contém em si as contradições nascidas dochoque de civilizações: os padrões de comportamento e de ethos econômico importados pela colonizaçãocoexistem dentro do camponês argelino expulso de sua terra com aqueles que foram herdados da tradiçãoancestral, originando condutas, expectativas e aspirações antinômicas. Esta dupla dimensão da realidade,objetiva e subjetiva, ameaçava minar os esforços para socializar a agricultura depois da independência,enquanto que a lógica da descolonização induzia a pequena-burguesia letrada dos burocratas a negarmagicamente as contradições da realidade como fantasmas vergonhosos de um passado colonial morto.

PALAVRAS-CHAVE: colonialismo, guerra, campesinato, desenraizamento, imperialismo francês, culturacabila, Argélia.

I. INTRODUÇÃO

De todas as transformações que a sociedaderural argelina sofreu entre 1955 e 1962, aquelas

que foram provocadas pelos reassentamentos2 depopulações são, sem dúvida, as mais profundas eas que tiveram maiores conseqüências a longoprazo. Numa primeira fase, os deslocamentos es-tavam ligados à criação de “zonas proibidas”. De1954 a 1957 muitos camponeses foram pura esimplesmente expulsos das suas aldeias; é sobre-tudo a partir de 1957 que, em certas regiões, comopor exemplo no Norte Constantino, a política dereassentamento assume uma forma sistemática emetódica. De acordo com uma diretriz oficial, oprincipal objetivo das zonas proibidas era o de

Recebido em 25 de outubro de 2005Aprovado em 19 de novembro de 2005

Deus deu ao corvo, que naquele tempo era branco, dois sacos: umcheio de ouro, o outro cheio de piolhos.O corvo deu o saco cheio de piolhos aos argelinos e o saco cheio deouro aos franceses.Foi desde então que ele ficou preto.

Tradição oral recolhida em Arba.

1 O presente texto é uma tradução de Colonial rule andcultural sabir publicado na revista Ethnography, v. 5, n. 4,Dec. 2004, p. 445-486, com a gentil permissão de JérômeBourdieu e da revista Études rurales. Essa versão baseia-seno ensaio Paysans déracinés, bouleversements etchangements culturels en Algérie, Études rurales, v. 12, n.1, janvier-mars 1964, p. 59-94. Traduzido, a partir dasversões francesa e inglesa, por Helena de Freitas MadureiraPinto, José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira. Adap-tação da grafia para o português falado no Brasil: FábiaBerlatto e Bruna Gisi. Revisão técnica da tradução: AdrianoCodato e José Szwako. A versão brasileira deste e dosoutros artigos difere bastante da versão portuguesa.

2 Literalmente, regrupements, ou “reagrupamentos”. Pre-ferimos a expressão “reassentamentos”, de uso mais cor-rente no Brasil (nota da revisão técnica).

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“esvaziar uma região não controlada e afastar apopulação da influência rebelde”. O reassentamentoem massa das populações em centros situadospróximos de instalações militares tinha como ob-jetivo permitir ao Exército um controle direto so-bre elas, de maneira a impedir que transmitisseminformações, fornecessem orientações, mantimen-tos ou alojamento aos soldados do Exército deLibertação Nacional3(ALN); era também uma for-ma de facilitar a repressão, ao autorizar que fos-sem considerados “rebeldes” todos aqueles quepermanecessem nas zonas proibidas. Na quasetotalidade dos casos, a exclusão foi feita à força.No início, o Exército parece ter aplicado sistema-ticamente, pelo menos na região de Collo, umatática de terra arrasada: incêndio das florestas,destruição de reservas e de gado – todos os meiosforam utilizados para obrigar os camponeses aabandonar sua terra e suas casas:

Claro que teríamos levado muito tempo para demoliras mechtas [povoados]4 “proibidas” do setor, mas otrabalho acabou por ser muito bem realizado numa áreade quatro ou cinco quilômetros quadrados. Primeiro,os homens subiam nos telhados e atiravam as telhas nochão, enquanto outros quebravam moringas, jarros etelhas ainda intactas [...]. No fim do dia, esta técnica,um pouco lenta, já tinha sido aperfeiçoada: grandesquantidades de madeira e gravetos eram amontoadosdentro das casas e queimados; em geral, sua estruturanão agüentava e os telhados caíam na hora; aquilo quesobrava era destruído a marretadas (TALBO-BERNIGAUD, 1960, p. 719).

Apesar de tudo, a população ofereceu enormeresistência5.

Muitos [...] devem ter preferido o risco de uma morteviolenta ao apinhamento, à sujeição, à morte lenta doscasebres, das tendas e das favelas do reassentamento[...]. As mulheres capturadas pelo conjunto de autori-dades da área, conjunto pelo qual a maioria das mechtasfoi destruída, eram conduzidas quatro ou cinco vezesaté os reassentamentos, mas sempre retomavam o ca-minho para o seu douar (TALBOT-BERNIGAUD,1960, p. 711).

Nesta primeira fase, o Exército, inspirado pormotivações puramente estratégicas, parecia nãoter outro objetivo a não ser esvaziar as zonas difí-ceis de controlar, sem se preocupar muito com apopulação evacuada, sem assumir o objetivo ex-plícito de organizar sua realocação e, deste modo,toda a sua existência. Os camponeses arrancadosdas suas residências habituais foram reunidoscomo um rebanho em grandes centros, cuja loca-lização tinha sido escolhida por razões exclusiva-mente militares. É bem conhecida a pobreza ma-terial e moral vivida pelos habitantes dereassentamentos tão primitivos como os deTamalous, Oum-Toub ou Bessombourg, na regiãode Collo6. Nada menos organizado e metódico doque estas ações. Seria vã tentativa encontrar algu-ma ordem neste turbilhão de reassentamentos anár-quicos criados pelas ações repressivas7.

3 O ALN (Armée de Libération Nationale) era o braçoarmado da FLN (Frente de Libertação Nacional da Argé-lia), fundada no Cairo, em outubro de 1954, na véspera dolançamento de uma insurreição nacional (nota deEthnography).4 Uma observação sobre a tradução e a transliteração dealguns vocábulos: as palavras estreitamente associadas como Norte da África, i. e., nomes geográficos e étnicos, e, ondenão resulta confusão, termos tais como douar que entra-ram na língua francesa, foram mantidos na sua forma fran-cesa, visto que esta é a mais corrente e a mais padronizada(nestes casos, o som sh é pronunciado ch, w ou u para ouetc.). Termos completamente estrangeiros, por outro lado,são adaptados aos padrões da transliteração inglesa (i. e.,shtara em vez de chtara para a forma local de schatâra)(nota da trad. portuguesa).5 De acordo com um documento oficial sobre a região deCollo, datado de novembro de 1959, “8% da populaçãopermaneceu no local, não obstante a proibição [...]. Uma

fração dos habitantes foi reagrupada em Kanoua, emBessombourg, em Ain-Kechera, em Boudoukha, em Oum-Toub e em Tamalous. Mais tarde, foram registradosreassentamentos em Boudoukha, Kanoua e sobretudo emTamalous pelas douars [divisões administrativas rurais]de Taabna, Aïn Tabia e Demnia. Em 1959, 29 675 pessoas,29% da população total, foram reassentadas. Praticamenteos HLL [“hors-la-loi”, fora da lei] exercem um controlecompleto nas zonas interditas, onde as tropas não vão anão ser esporadicamente desde 1958 por falta de efetivos.A população cultiva pomares e pequenas áreas, sobretudono Oued Zhour; quando a tropa se aproxima, as zribat[zriba (pl. zribat) significa ‘clã’ no maciço de Collo] fogeme escondem-se no deserto”.6 Vários artigos e sobretudo o relatório de MonsenhorRhodain (Témoignage et Documents, nº 12, maio 1959)descreveram a situação dos reassentados durante os anosde 1958 e 1959 como próxima da dos campos de concen-tração. Referências dos principais artigos que, nesta época,revelaram o problema dos reassentamentos à opinião pú-blica francesa podem ser vistas em VIDAL-NAQUET,1961, p. 204-234.7 Assim, o relatório do gabinete de desenvolvimento ruralda prefeitura de Orléans-ville, publicado em 1961, indicaque 185 000 “reassentados” do departamento [no original:département], ou seja, 60% do total, deveriam voltar a suascasas, tão baixo é o nível de vida e as condições sanitárias.

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Os “reassentados” eram completamente su-bordinados às Seções AdministrativasEspecializadas (SAS8 ). O Exército, sob a pres-são provocada por uma situação que ele própriohavia criado, tinha agora que se preocupar emefetivamente tomar conta de pessoas que, atéaquela altura, apenas tinha pretendido neutralizare controlar. Começou-se a partir daí a “liberação”e o “desagrupamento” da população. Só mais tar-de, tem-se a impressão, é que o reassentamentodeixa de ser a conseqüência pura e simples daevacuação, para passar a ser o objeto direto daspreocupações e mesmo, gradualmente, o centrode uma política sistemática. Apesar da proibição –decretada no início de 1959 – de deslocar popula-ções sem permissão das autoridades civis, osreassentamentos multiplicaram-se: em 1960, onúmero de argelinos reassentados chegava aos 2157 000, um quarto da população total. Se, alémdos reassentamentos, levarmos em conta o êxodopara as cidades, o número de pessoas que se en-contravam fora das suas zonas residenciais habi-tuais em 1960 pode ser estimado no mínimo em 3milhões, ou seja, metade da população rural. Estatransferência da população [argelina] está entreas mais brutais a que a história já assistiu.

II. OS REASSENTAMENTOS DAS POPULA-ÇÕES E A LÓGICA DO COLONIALISMO

O essencial é, sem dúvida, agrupar este povo,que está em todo o lado e em lado nenhum. Oessencial é pô-lo ao nosso alcance. Quando oconseguirmos, então seremos capazes de fa-zer muitas coisas que nos são, hoje, impossí-veis e que talvez nos permitam apoderarmo-nos do seu espírito depois de nos termos apo-derado do seu corpo.Capitão Charles Richard, Étude surl’insurrection du Dahra (1845-1846).

Eu sou da Lorraine, gosto de linhas retas. Aspessoas aqui se dão mal com a linha reta.Tenente de Kerkera, 1960.

De todas as medidas econômicas e sociais le-vadas a cabo no quadro da “pacificação”, oreassentamento das populações rurais é, sem dú-vida, o que melhor se inscreve no prolongamentodas grandes leis fundiárias do século XIX, espe-cificamente o Cantonnement (1856-1857), osenatus consultum de 1863 e a Lei Warnier de1873. O que de fato impressiona é que, emboraseparados por um século de intervalo, frente asituações idênticas, os funcionários encarregadosda aplicação do senatus consultum e os funcioná-rios responsáveis pelos reassentamentos recorrema medidas semelhantes.

Quer se confessasse cinicamente como “má-quina de guerra”9 capaz de “desorganizar a tribo”,vista como o principal obstáculo à “pacificação”,quer seguisse uma ideologia assimilacionista cujospropósitos eram mais generosos, a política agrá-ria que tendia a transformar a propriedade comumem mercadoria contribuiu decisivamente para de-sintegrar as unidades sociais tradicionais, ao des-truir um equilíbrio econômico em que a proprie-dade tribal ou clânica constituía a principal prote-ção. Ao mesmo tempo, facilitou a concentraçãodas melhores terras nas mãos dos colonos euro-peus através do artifício de concessões e vendasindiscriminadas. As grandes leis fundiárias tinhamcomo função manifesta estabelecer condições fa-voráveis ao desenvolvimento de uma economiamoderna, fundada na empresa privada e na pro-priedade individual, sendo a incorporação jurídicaa pré-condição indispensável da transformação daeconomia. Mas a função latente dessa política eraoutra. Num primeiro nível, tratava-se de favore-cer a usurpação dos argelinos ao proporcionar aoscolonos meios de apropriação aparentemente le-gais, ou seja, instaurando um sistema jurídico quepressupunha uma atitude econômica e, mais pre-cisamente, uma atitude em relação ao tempo com-pletamente estranhas ao espírito da sociedade cam-ponesa. Num segundo nível, a desagregação dasunidades tradicionais (a tribo, por exemplo), quetinham sido a alma da resistência contra a coloni-zação, deveria naturalmente derivar da destruição8 As Sections Administratives Specialisées (SAS) [Seções

Administrativas Especializadas] eram unidades do Exérci-to preparadas para implementar uma “política de integração”da população argelina nativa. Foram criadas em 1955 emresposta à insurreição pela independência do país. Abran-giam o território argelino ocupando-se de assuntos civis(assistência econômica, social e de saúde) articulados comtarefas militares de informação, manutenção da ordem (oque exigia a proibição reuniões públicas) e minucioso con-trole da população. Sobre este assunto, ver MATHIAS(1998) (nota de Ethnography).

9 Em 1863 o Capitão Vaissière escrevia: “O senatusconsultum de 1863 é na verdade a máquina de guerra maiseficaz que se poderia imaginar contra o estado social dosnativos e o instrumento mais poderoso e mais prolífico quepoderia ser posto à disposição dos nossos colonos”(VAISSIÈRE, 1863, p. 90).

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das bases econômicas da sua própria integração;e esta era, precisamente, a situação em 1875, quemarcou o fim das grandes insurreições tribais10.

III. CAMPONESES SEM TERRA

Sob a influência conjugada de diversos fato-res, a saber, e para citar apenas os mais importan-tes, a usurpação da terra, a pressão demográficae a passagem da economia de troca para uma eco-nomia de mercado, o campesinato argelino en-contrava-se de fato em meio a um processo ca-tastrófico. O recenseamento agrícola de 1950-1951 mostra que as 438 483 propriedades emposse dos argelinos, ou seja 69% do total, eraminferiores a 10 hectares e cobriam uma área totalde 1 378 464 hectares, ou seja 18,8% do total,com uma superfície média de 3,1 hectares (emcontrapartida, em 1940, esse número era de 4,7hectares), um valor muito inferior ao mínimo in-dispensável para a subsistência de uma famíliacamponesa. O número de proprietários de menosde 10 hectares de terra cresceu para cerca de 50000 entre 1940 e 1950, ou 12%, enquanto a áreadas propriedades diminuiu 471 000 hectares. Mas,mais profunda foi a transformação sofrida pelaestrutura da sociedade rural nos últimos trintaanos11: entre 1930 e 1954 o número de proprietá-rios de terras diminuiu 20%, enquanto o númerode trabalhadores agrícolas, permanentes ou tem-porários, subiu 29%.

A usurpação da terra e a proletarização tam-bém provocaram o abandono de muitas tradiçõesagrárias. É por isso que, por exemplo, a escassezde terras e a pressão demográfica, que impunha oaumento da produção a qualquer custo, levarammuitos fellah’in a desistirem do antigo sistemabienal de rotação: nos anos de 1950-1951, o pousiorepresentava apenas 62,7% da quantidade de ter-

ra semeada. Como prova de que o que se passavaera uma inovação forçada e não uma mudança deatitude econômica, a rotação bienal é mais respei-tada à medida que as propriedades aumentam. Omesmo se passa em relação à extensão dos cam-pos semeados em detrimento da criação de gado,que é determinada pela busca de um máximo desegurança. “Muitos fatores influenciam o cultivodas terras”, escreve o administrador do distritomisto de Chellala:

“as chuvas irregulares, as geadas da primavera, a natu-reza rochosa dos terrenos. É duro constatar que a cadaano que passa a agricultura ganha importantes áreasque são destinadas à criação de gado, embora esta últi-ma seja mais lucrativa. O cultivo de cereais não com-pensa. Apesar das despesas serem poucas, mal permi-te ao fellah arrecadar a parte de trigo e cevada paraconsumo próprio. Isso o mantém num estado hipnóti-co do qual se deve afastá-lo” (SLNA, 1950, p. 32).

Entre os fellah’in que abandonaram o ano dopousio, assim como entre aqueles que lavram asterras de pastagem, é a mesma relação fascinadade medo que inspira comportamentos impacien-tes e tensos. É certo que o cultivo dos cereais nãocompensa, mas tudo se resume a produzir paravender no mercado? O que se quer é ter, pelopreço mais baixo, no menor prazo de tempo, osuficiente para alimentar sua família. É portantosem hesitar que se sacrifica o futuro [futur] daprodução, incerto e incontrolável, ao advir[avenir] do consumo, iminente e urgente(BOURDIEU, 1963).

Se nenhum melhoramento veio compensar oempobrecimento do solo causado por uma cultu-ra mais intensiva e se a pressão da necessidadeforçou o cultivo de terras medíocres, é fácil per-ceber porque os rendimentos continuam muitobaixos – 4,65 quintais12 por hectare em 1955. Ocultivo da terra anteriormente dedicada ao pousioe às florestas acelerou ainda mais a erosão: entre1940 e 1954, a área cultivada pelos argelinos di-minuiu 321 000 hectares sem que a propriedadeeuropéia crescesse do mesmo modo; dada a fomede terra dos fellah’in, a possibilidade destas áreasvoltarem ao pousio é muito baixa. Assim, pode-mos considerar que elas foram destruídas pelaerosão que lhes roubou dezenas de milhares de

10 Um dos promotores do senatus consultum, A. de Broglie(1860), declarou que esta medida tinha um duplo objetivo:em primeiro lugar, “provocar uma liqüidação geral da ter-ra”, com uma parte dela permanecendo nas mãos dos seusantigos proprietários, já não como herança coletiva da tri-bo, mas como “propriedade pessoal, definida e divisa”,sendo a outra parte destinada a “atrair e receber a emigra-ção européia”; em segundo lugar, “desorganizar a tribo”,“obstáculo principal” à “pacificação”. Poder-se-iam multi-plicar os exemplos de declarações no mesmo estilo. V.LACHERAF, 1960, p. 749-756.11 Bourdieu refere-se aqui ao intervalo entre 1930 e 1960(nota da revisão técnica).

12 Um quintal equivale a quatro arrobas (nota da revisãotécnica).

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hectares a cada ano13.

Que os pequenos proprietários cultivem suaterra sem intervalos, quase até que ela se esgote;que a cevada e o trigo de grão duro, indispensá-veis à fabricação de cuscuz e da galette, ocupem87% da terra cultivada pelos pequenos agriculto-res; que a maior parte dos fellah’in se ocupe docultivo de cereais; que a parte deixada às pasta-gens, bastante insignificante nas propriedadesmuito pequenas, aumente à medida que vai au-mentando a área total da propriedade: tudo issoprova que a atividade agrícola não tem e não po-deria ter outro objetivo que satisfazer necessida-des imediatas, não devendo a intensificação daexploração do solo ser atribuída a uma preocupa-ção com o aumento da produtividade, mas à pres-são da necessidade. Mais ainda, se o cultivo doscereais e a criação de gado se mantêm associadosseja qual for o tamanho da propriedade – com osdonos de áreas superiores a 100 hectares culti-vando cereais em rotação bienal e criando gadoem regime extensivo –, se a policultura é domi-nante apenas nas propriedades com menos de umhectare, se o cultivo por conta própria diminuiparalelamente à dimensão da terra e se a agricul-tura argelina, que possui uma área três vezes su-perior à européia, emprega muito menos assalari-ados, sejam eles fixos (2,4 vezes menos) ou tem-porários (1,2 vezes menos) e recorre aoKhamessate (tipo de associação característica doespírito e da economia pré-capitalistas)14, issoacontece porque a atividade econômica permane-ce orientada para a subsistência mais do que paraa produtividade, com as inovações sendo muitasvezes não mais do que transgressões na tradição,impostas pela miséria. Com mais incertezas doque nunca em relação ao futuro, o fellah assumeatitudes cada vez mais inspiradas pela busca damaior segurança possível; quanto mais o presentelhe foge, mais o fellah se agarra a ele, sacrifican-do todas as atividades que tenham implicações alongo prazo em troca da satisfação direta das suasnecessidades imediatas. Para os mais pobres, a

providencial previdência, que a tradição exigia,acabou. Uma vez rompidos os equilíbrios tradici-onais, se vê desaparecer, juntamente com o míni-mo de garantias que o tornava possível, o esforçopara se proteger do futuro. Sabendo que, inde-pendentemente do que faça, não será capazde superar esse estado de coisas, o fellah resig-na-se a viver um dia de cada vez recorrendo aempréstimos, juntando ao dinheiro que ganha nasua terra o extra recebido por alguns dias de tra-balho nas terras dos colonos. Esta improvidênciaforçada é a expressão de uma total falta de confi-ança no amanhã, que condena o fellah à capitula-ção fatalista.

IV. O TRADICIONALISMO DO DESESPERO

Este tradicionalismo patológico opõe-se aobom senso da antiga sociedade rural que, por meiostradicionais, assegurava o máximo deprevisibilidade dentro dos limites traçados pelaprecariedade dos meios de produção e da incerte-za das condições naturais. Além disso, ele estáquase sempre associado, especialmente nas regi-ões profundamente colonizadas, ao conhecimen-to e reconhecimento da superioridade dos méto-dos agrícolas racionais postos em prática peloscolonos. Se os fellah’in continuam a usar o ara-do de tração manual sabendo qual é a eficiênciado arado de tração animal e do trator, se produ-zem para consumo familiar em vez de produzi-rem para o mercado, se investem o mínimo pos-sível, se contentam-se com produtos medíocres,se não usam fertilizantes e não mudam, em ne-nhum aspecto, os seus modos de cultivo, já não ofazem sempre em nome do velho tradicionalismoque a pobreza muitas vezes já solapou. Se recu-sam melhoramentos a longo prazo, tais como arecuperação dos solos, já não é por não saberemcomo sacrificar um amanhã [avenir] tangível aum futuro [futur] imaginário; é, acima de tudo,porque não têm os meios para esperá-lo. Emborareconheçam voluntariamente, num nível abstratoe ideal, a maior eficácia das técnicas empregadaspelos colonos e a rentabilidade superior das cultu-ras de mercado, eles são forçados a manter com-portamentos tradicionais porque esse tipo de ex-ploração agrícola exige, como eles bem sabem,grandes meios técnicos e financeiros, porque nãoestão suficientemente seguros da sua própria sub-sistência para depois buscar o lucro, porque pro-duzir para o mercado é uma aposta arriscada en-quanto as necessidades do grupo não estiveremtotalmente satisfeitas. “Os colonos”, diz um fellah’

13 Encontraremos um quadro sucinto das transformaçõesda economia rural entre 1939 e 1954 em NOUSCHI (1962,cap. V), assim como uma análise esclarecedora do recense-amento da agricultura de 1950-1951 em ISNARD, 1960.14 “São 64% das propriedades com pelo menos 100 hecta-res e 62,8% da sua superfície que, mal ou bem, estão sob okhamessat” (ISNARD, 1960, p. 58). O khamès é um meeiroque recebe um quinto.

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da região de Carnot, “podem produzir para o mer-cado porque têm assegurado o seu próprio con-sumo. Podem dedicar-se ao supérfluo porque têmo essencial ou porque têm a certeza que ele nãovai lhes faltar”. Assim, no lugar de umtradicionalismo tradicional adequado a uma soci-edade fortemente integrada e baseada numa eco-nomia relativamente equilibrada, surge umtradicionalismo do desespero, inseparável de umaeconomia de sobrevivência e de uma sociedadedesintegrada e apropriada por subproletários pre-sos a um passado que sabem estar morto e enter-rado.

Sem outra esperança que não seja colher osuficiente para sobreviver, os mais miseráveisenfrentam a escolha entre esse fatalismo dos de-sesperados (que nada tem a ver com o Islã) e amigração forçada para a cidade ou para França.Em vez de ser o resultado de uma decisão livre,baseada verdadeiramente na vontade de levar umavida urbana, este exílio imposto não é senão, mui-tas vezes, o final inelutável de uma série de renún-cias e derrotas: uma má colheita e tem que se ven-der o burro ou o gado; pede-se emprestado a ta-xas exorbitantes para equilibrar o orçamento oucomprar sementes; e, por fim, tendo esgotadotodos os recursos, não se parte – se foge15. Ouentão, cansado de tanto penar numa vida tão po-bre, parte-se sem destino, deixando a terra a umkhammès16. Em todos esses casos, a ida para acidade é uma espécie de fuga para frente determi-nada pela miséria. Os mais ricos, aqueles que têmalguma poupança, esperam poder se instalar comocomerciantes nas pequenas cidades vizinhas queestão acostumados a freqüentar por causa dosmercados. Juntamente com o artesanato tradicio-nal, o comércio é, de fato, o único tipo de ativida-de adequado a proprietários de terra preocupadosem não decair [socialmente], especialmente quan-do permanecem na região em que são conhecidospor todos:

“O que fazer na cidade?”, diz um antigo fellah’, donode mais de 20 hectares, que se refugiou em Carnot: “Nacidade, encontram serviço facilmente, como ‘lavrado-res’ ou como serventes, aqueles que já trabalharam nodouar. Eu não posso ir trabalhar nas fazendas […] Aúnica atividade que me resta é o comércio, mas é preci-so ter recursos”.

Por sua vez, os pequenos proprietários expro-priados, os antigos khammes ou os trabalhadoresagrícolas, despreparados para a vida urbana e quenão têm as atitudes ou as aptidões necessárias parase adaptarem a ela, só podem esperar tornarem-se diarista, vendedor ambulante ou um desempre-gado que espera o “paraíso”: um emprego fixo17.

A guerra, e particularmente os reassenta-mentos, não só aceleraram a pauperização dasmassas rurais; os não-assalariados, os proprietá-rios, os khammès, os meeiros, que eram cerca de560 000 em 1954, passaram a apenas 373 000 em1960, uma diminuição de 33%. Ao mesmo tem-po, o número de assalariados, trabalhadores per-manentes e temporários, caiu para 421 000, umabaixa de 28%18. Sem dúvida, parte dessa diferen-ça deve-se ao fato de muitos dos que chamavama si próprios agricultores ou trabalhadores agrí-colas, em 1954, declararem-se desempregados em1960, fosse por terem perdido parcial ou total-mente seu trabalho ou por terem adotado uma novaatitude em relação à sua atividade. Mas, além dis-so, ao completarem a destruição de um equilíbrioeconômico precário, ao quebrarem os ritmos tem-porais e espaciais que formavam a estrutura detoda a existência social, ao pulverizarem as unida-des sociais tradicionais, os reassentamentos ace-leraram o êxodo em direção às cidades de indiví-duos que não têm nada a perder. Entre 1954 e1960, a população total das cidades e das vilasaumentou 67% na zona de Argel, 63% na regiãode Constantine e 48% na região de Oran, sendo otamanho deste aumento resultado da existência decidades tradicionalmente dotadas de um grande

15 Bourdieu e Sayad usam uma palavra (déguerpit) que ésimultaneamente uma expressão coloquial para “fugir, pôr-se a andar” e um velho termo legal que significa “abandonara propriedade e a posse (de uma parcela de terra) com vistaa evitar o cumprimento de obrigações” (nota deEthnography).16 O recenseamento agrícola de 1950 mostra que muitaspequenas propriedades pertencem a proprietários que nãoexploram a terra, confiando-a a khammeses.

17 Este ponto é aprofundado em BOURDIEU, 1962; 1973e em BOURDIEU et al., 1963, p. 303-310 (nota deEthnography).18 Cf. BOURDIEU, 1963, 1ª parte, p. 83. Se verá que osreassentamentos também aceleraram a formação no mundorural de uma classe abastada, constituída por camponesesque puderam explorar as terras abandonadas pelos outrosporque tinham conservado os meios de produção (gado),por comerciantes e também por funcionários ou emprega-dos nomeados pelo Exército. Algumas famílias dos locaisestudados acumulavam esses três tipos de vantagens.

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poder de atração, como Argel e, sobretudo, daextensão do reassentamento na região considera-da.

Desse modo, a “descamponeização”(“dépaysannisation”), proporcionada peloreassentamento, foi duplicada pela urbanizaçãoque, mesmo temporária, só pôde causar transfor-mações irreversíveis na atitude econômica, aomesmo tempo em que acelerava o contágio dasnecessidades: “Tenho muitas necessidades novas”,diz um refugiado de Carnot, “é preciso viver comose costuma viver na cidade”. Os camponeses re-cém-instalados são profundamente conscientesdeste aumento das privações. Como disse um an-tigo fellah reassentado em Tlemcen:

“Um fellah que vem instalar-se na cidade habitua-se aobanho mouro, a cozinhar com gás butano. É impossívelpara ele regressar ao seu douar, onde para cozinhar temque ir procurar lenha e água a dois quilômetros de dis-tância, e para tomar um banho tem que ir ao canal[wadi]. Eu nasci e vivi na pobreza e sou capaz de viversempre assim. Mas a nova geração, a geração “atômi-ca”19 já não consegue viver dessa forma. Por exemplo,este aqui (apontando para uma criança de 14 anos) senão tiver a sua costeleta e o seu queijo na hora darefeição, haverá confusão”.

Desde a independência tem-se assistido ao efei-to do contágio das necessidades que tem sido cau-sado pela urbanização temporária: rádio, gás butanoe refrigerador movido a gás multiplicaram-se nasvilas mais remotas (por exemplo, em Aghbala naPequena Kabylia e em Aïn-Aghbel na Kabylia doCollo).

O contato com a sociedade urbana desenvol-veu a consciência das disparidades (sempre cres-centes) que separam o nível de vida das cidades edas regiões rurais assoladas pela subnutrição, po-bres em recursos de saúde e em escolas. Todosos camponeses que passaram um tempo na cida-de puderam viver concretamente o que as estatís-ticas estabelecem objetivamente, ou seja: que ascidades – especialmente as maiores – oferecemmaiores oportunidades de trabalho assalariado, istoé, um trabalho de verdade, ao contrário da agri-cultura que não proporcionando (ou proporcio-nando muito poucos) rendimentos monetáriosaparece como mera ocupação; que as cidades pro-

porcionam salários maiores e mais regulares (es-pecialmente as grandes, onde as empresas mo-dernas estão concentradas); e que, finalmente,permitem uma vida mais confortável, sendo oconsumo urbano muito superior ao consumo ru-ral (por exemplo, 96,45 francos mensais per capitapara os comerciantes de municípios urbanos –ainda que estes estejam mais próximos dos cam-poneses –, contra os 65,97 francos para comer-ciantes das áreas rurais) (DARBEL, 1960). Dessemodo, seja de forma indireta, acelerando o êxodorural e favorecendo a difusão dos modelos urba-nos, seja de forma direta, retirando os campone-ses das suas condições familiares de existência eprovocando uma ruptura decisiva com as rotinastradicionais, os reassentamentos aceleraram a“descamponeização” já em curso.

V. DESPREZO E EQUÍVOCOS

A guerra e a repressão vieram terminar o que apolítica colonial e a generalização das trocas mo-netárias tinham começado. As regiões mais sig-nificativamente afetadas por essas ações foramaquelas que tinham sido relativamente poupadasaté ali, por terem permanecido a salvo da coloni-zação. De fato, foi nas regiões montanhosas queas pequenas comunidades rurais, fechadas sobresi próprias numa obstinada fidelidade às suas tra-dições, conseguiram assegurar os traços essenci-ais de uma cultura de que não se pode mais falar anão ser no passado. Foi assim nos Maciços deKabylia, nas Montanhas Aurès, nas MontanhasNemencha, nas Montanhas Bibane, nas Monta-nhas Hodna, no Tell Atlas acima de Mitidja Plain,nas Montanhas Titteri e no Maciço Ouarsenis, ondea cultura tradicional conseguiu manter-se relati-vamente inalterada, apesar das desapropriaçõesque se seguiram às insurreições, apesar da cria-ção de novas unidades administrativas e muitasoutras medidas, apesar, enfim, das transforma-ções impostas pelo simples contágio cultural20.Em 1960, as zonas das montanhas onde o Exérci-to de Libertação Nacional tinha se estabelecidocom maior rapidez e mais força, assim como aszonas fronteiriças, tinham sido quase totalmentedespovoadas; seus habitantes tinham sido

19 Referência à explosão bem sucedida da primeira bombaatômica francesa em fevereiro de 1960, no campo militar deReggane no deserto do Saara argelino (nota de Ethnography).

20 Por exemplo, 48 quilômetros a oeste de Orléansville,nas montanhas que dominam o vale do Chélif, zona degrande colonização, a tribo dos Ouled-Ziad perpetuou, gra-ças ao isolamento que o relevo lhe assegurava, todos ostraços de uma sociedade tradicional fortemente integrada.

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reassentados nas planícies ou tinham ido para acidade.

Tudo se passa como se esta guerra tivessefornecido a ocasião para concretizar até o fim aintenção latente da política colonial, intenção pro-fundamente contraditória: desintegrar ou integrar,desintegrar para integrar ou integrar para desinte-grar, eis os pólos opostos entre os quais a políticacolonial sempre oscilou, sem que a escolha fossefeita claramente e sistematicamente aplicada, detal forma que intenções contraditórias pudessemanimar diferentes responsáveis num mesmo mo-mento ou o mesmo responsável em diferentesmomentos. A vontade de destruir as estruturas dasociedade argelina podia mesmo inspirar-se emideologias opostas: uma, dominada pela conside-ração exclusiva do interesse do colonizador e porquestões de estratégia, tática ou proselitismo, ex-primiu-se muitas vezes com cinismo; outra,assimilacionista ou integracionista, que só na apa-rência era mais generosa.

Para certos funcionários, movidos por umapreocupação dominante, a saber, “subjugar aspopulações”, o papel do Exército é definido pelo“tríptico: proteger, empenhar, controlar”. Comoescreve Alain Jacob:

Agora, proteger é acima de tudo reassentar. Em cadareassentamento, uma “célula militar”, sob o comandode um soldado que deve controlar grupos de trinta acinqüenta pessoas, dá proteção, faz o recenseamentodos habitantes, cadastra-os e conduz freqüentes inter-rogatórios. O alistamento depende da “organização”da população, o que pressupõe dispor de funcionáriostreinados em centros especiais […]. Enfim, só um con-trole total e permanente permite que estes métodosdêem frutos (1961, p. 33-34).

Certos “teóricos” da ação psicológica foramainda mais longe, vendo na desorganização siste-mática e forçada a forma de acabar com as resis-tências.

A esta ideologia dominada por consideraçõesde ordem estratégica e tática opõe-se a ideologiahumanitária do imaginário oficial, encarnada nomilitar graduado das SAS, simultaneamente mes-tre-de-obras, professor, prefeito e, algumas ve-zes, médico; ao instalar, em aldeias providas deequipamentos comunitários e situadas perto degrandes eixos/centros de comunicação, popula-ções que até então viviam em habitações disper-sas ou em regiões remotas e que, portanto, eramuito difícil e dispendioso cuidar, escolarizar e

administrar, a intenção era desencadear uma “evo-lução acelerada”. Em suma, originariamente con-siderados como uma forma de “reagrupar” e “con-trolar” as populações, colocando-as próximas deum posto militar, os reassentamentos começaramgradualmente a ser considerados por alguns comoum “fator de emancipação”, sendo a confusãoentre os dois fins justificada e encorajada pelaconvicção de que, para quebrar as resistênciasdesta sociedade, não havia melhor técnica do quedestruir suas estruturas21. Na verdade, qualquerque fosse a intenção dos indivíduos, a ação “hu-manitária” permanecia objetivamente como umaarma de guerra, orientada para o controle das po-pulações.

Não foi por acaso que o colonialismo encon-trou o seu último refúgio ideológico no discursointegracionista: com efeito, o conservadorismosegregacionista e o assimilacionismo só na apa-rência se opõem. Num dos casos, invocam-se asdiferenças de fato, de forma a negar a identidadede direito e, no outro, negam-se as diferenças defato em nome da identidade de direito. Ou entãose atribui dignidade humana, mas só ao Francêsvirtual; ou trata-se de recusá-la, invocando a ori-ginalidade da civilização magrebina – mas origina-lidade inteiramente negativa, definida por aquiloque falta.

Prisioneiros dos interesses da colonização oudaquilo que Ruth BENEDICT (1934) chama “aimponente universalidade da civilização ocidental”,políticos e funcionários (burocratas ou militares)não conseguem conceber generosidade maior doque garantir aos argelinos o direito de serem oque devem ser; ser o que, à imagem do europeu,os conduz a negar o que de fato são, na sua origi-nalidade de homens particulares, participantes de

21 Num memorando do General Crépin, com data de 7 deabril de 1960, lê-se: “Assim, as preocupações militaresconjugam-se com considerações de ordem política e huma-nitária para instituir reassentamentos viáveis” (apudJACOB, 1961, p. 35). A confusão de objetivos contraditó-rios era favorecida pela situação como um todo: a políticade reassentamento assumia-se como uma tarefa positiva, aum tempo “humanitária” e eficaz, por oposição à açãofrustrante da pacificação; e permitia justificar uma visãomaniqueísta da guerra revolucionária, face à ação bem-in-tencionada do Exército respondendo às “destruições” dos“rebeldes”. Isso permitia que muitos sentissem que havianessas ações uma conciliação entre moral e política.

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uma cultura singular. Pode-se, então, em nomedas mesmas racionalizações, deixá-los como são,abandoná-los para subordiná-los, ou conceder-lhes a dignidade de existirem, na condição de dei-xarem de ser o que são.

Raiz comum do assimilacionismo e docolonialismo, a recusa (consciente ou inconsci-ente) de reconhecer a Argélia como cultura origi-nal e como nação serviu sempre de base a umapolítica de intervencionismo indiscriminada e in-conseqüente, ignorante da sua força e da sua fra-queza, capaz de destruir a ordem pré-colonial, semconseguir substituí-la por uma ordem melhor. Estapolítica que, associando cinismo e inconsciência,determinou a ruína da economia rural e o colapsoda sociedade tradicional encontra seu coroamentonos reassentamentos.

Embora a iniciativa mais ampla tenha sido dei-xada, na maior parte dos casos, às autoridadessubalternas, os reassentamentos são todos pare-cidos no essencial, porque nasceram menos daobediência a uma doutrina explícita ou implícitado que da aplicação de modelos inconscientes –aqueles que, um século antes, dominaram a fun-dação de aldeias coloniais. A Argélia foi o terrenoexperimental no qual o espírito militar, como numteste projetivo, assentou suas estruturas.Freqüentemente dotados de uma autoridade ab-soluta, os quadros do Exército decidiam tudo: alocalização da aldeia, o seu traçado, a largura dasruas, a disposição do interior das casas. Ignoran-do ou querendo ignorar as normas e modelos tra-dicionais, pouco preocupados em consultar a po-pulação que, caso desejasse participar, teria essedesejo tacitamente recusado, impuseram a suaordem, sem se aperceberem, muitas vezes, do mal-estar e da desordem que suas iniciativas suscita-vam.

À maneira do colonizador romano, os oficiaisencarregados de organizarem os novos assenta-mentos começavam por disciplinar o espaço comose, através dele, pudessem disciplinar as pessoas.Tudo era padronizado e alinhado: construídas deacordo com normas impostas em locais impos-tos, as casas eram dispostas, em linha reta, aolongo de ruas largas que desenhavam o traçadode um castrum romano ou de uma vila colonial.No centro, a praça com as três característicasdas pequenas cidades francesas: a escola, a câ-mara municipal, o monumento aos mortos. Epode-se pensar que, se não fosse a falta de tempo

e de meios, os oficiais das SAS, apaixonados pelageometria, teriam também submetido a zona ruralà centuriação.

Graças à ignorância deliberada ou inconscien-te das realidades sociais, as autoridades locaisfreqüentemente impunham aos “reassentados”uma ordem absolutamente estranha, uma ordempara a qual não foram feitos e que não fora feitapara eles. Encorajados pelo sentimento de realiza-rem um grande desígnio, ou seja, “fazer as mas-sas evoluírem”, excitados pela paixão de ordenare criar, por vezes empenhando todo o seu entusi-asmo e todos os recursos nessas ações, os altosfuncionários aplicavam ipsis literis esquemas in-conscientes de organização que poderiam perten-cer à essência de qualquer empreendimento dedominação sistemática e total. Tudo se passavacomo se o colonizador adotasse, instintivamente,a lei antropológica que diz que a reorganização dohabitat, uma projeção simbólica das estruturas maisfundamentais da cultura, conduz a uma transfor-mação generalizada do sistema cultural. Lévi-Strauss notou que os missionários viam na trans-formação imposta do habitat dos Bororo o meiomais seguro para obter sua conversão (LEVI-STRAUSS, 1955, p. 229; v. também BASTIDE,1960, p. 114-115). A reorganização do espaço ha-bitado é então encarada inconscientemente comouma maneira definitiva de fazer tábua rasa do pas-sado, impondo uma forma de existência nova, aomesmo tempo em que imprime no solo a marcada posse22. Se a política dos reassentamentos ob-teve entre os militares uma adesão tão ampla e tãoentusiástica, é porque realizou um sonho tão anti-go quanto a colonização, isto é, o de “modificar”– como o general Bugeaud disse há um séculoatrás – ou “reestruturar” – como os coronéis dis-seram nos anos 1950 – uma sociedade inteira.Mostefa Lacheraf cita o capitão Richard que, em

22 Era essa a intenção quase explícita da centuriação roma-na, “um verdadeiro sistema de coordenadas traçadas noespaço”: “Pelo menos no início da colonização, Roma feztábua rasa do passado, impondo uma nova estrutura àsáreas conquistadas. Fosse por indiferença ou desprezo,ignorava-se a organização administrativa pré-existente edefinia direitos de domínio claros, delimitando sua con-quista: a posse é como que gravada no solo. De acordo como eterno princípio político de ‘dividir para reinar’, vê-se acenturiação isolar as zonas de resistência, isto é, os maci-ços cujas encostas vai dominando” (CHEVALIER, 1961,p. 76).

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1845, preconizava o reassentamento massivo daspopulações argelinas:

A primeira coisa a fazer para retirar o controle dosagitadores é reunir os membros dispersos do povo,organizando todas as tribos subjugadas por nós emzemalas23 […]. Os vários douares seriam separadosuns dos outros por uma cerca de jujubeiras selvagensou uma cerca de quaisquer outros arbustos. Por fim, azemala inteira seria cercada por um largo fosso cheiode cactos24.

Os elementos invariáveis e recorrentes da po-lítica colonial não têm nada de surpreendentes: umasituação que tem permanecido idêntica e que lan-ça mão dos mesmos métodos há um século, ape-sar de algumas diferenças superficiais. A políticade reassentamentos, uma resposta patológica àcrise mortal do sistema colonial, fez explodir, àluz do dia, a intenção patológica que habitava osistema colonial.

VI. O SABIR CULTURAL

Para aqueles que, querendo diferenciar-se,adotavam de forma ostentatória certos hábitosocidentais, os mais velhos, enquanto guardiões datradição, reservavam esta tirada: “Ele quer andarcom os passos da perdiz, [mas] esqueceu-se dospassos da galinha”. Hoje em dia, é todo um povoque, incerto sobre como prosseguir, tropeça ehesita. A lógica mesma da situação colonial pro-duziu um novo tipo de homens e mulheres, quepodem ser definidos negativamente, pelo que nãosão mais e pelo que ainda não são, camponeses“descamponeisados” [paysans dépaysannés], se-res auto-destrutivos que trazem consigo todas ascontradições.

A ruptura com a condição camponesa e a trai-ção do espírito camponês são o apogeu de umprocesso essencialmente negativo que leva aoabandono da terra e à fuga para a cidade, ou àpermanência resignada numa condição desvalo-rizada e desvalorizante, mais do que à invenção deum novo tipo de relação com a terra e com o tra-balho da terra. Os camponeses “camponeisados”[paysans empaysannés] desapareceram para sem-pre, mas os agricultores modernos são ainda pou-cos e raros. Em cada aldeia ainda restam alguns

camponeses “genuínos” [“naïfs”] que perpetuamteimosamente uma forma de vida obsoleta, e al-guns agricultores capazes de gerir suas proprie-dades segundo as regras da racionalidade econô-mica. No entanto, a oposição entre o camponêstradicional e o camponês moderno não tem senãoum valor heurístico e apenas define os pólos ex-tremos de um continuum de condutas e atitudesseparadas por uma infinidade de diferençasinfinitesimais.

VII. A COEXISTÊNCIA DOS CONTRÁRIOS

Esse problema não é um desafio à análise ci-entífica? Não estaremos condenados a simples-mente justapor descrições tão contraditórias quan-to o objeto descrito? É, de fato, tentador (e mui-tos fizeram apenas isso) selecionar, com base eminteresses e valores tácitos ou explícitos, um ououtro aspecto oposto de uma realidade contradi-tória para concluir ou que o camponês argelinoesteja irrevogavelmente condenado ao arcaísmo,ou que ele possa vir a ser o suporte de expectati-vas e ideais revolucionários. Numa propriedadeagrícola em regime de autogestão, os esforços paraaumentar a produtividade são comprometidos pe-las velhas tradições de solidariedade. Elas levamos trabalhadores a trazerem para perto de si osparentes desocupados, o que aumenta enorme-mente a desproporção entre a produção e a mão-de-obra empregada25. Numa outra, a tentação égrande entre os camponeses recém-instalados,

23 Zemala em árabe padrão significa “camaradagem”,“companheirismo” (nota de Ethnography).24 Charles Richard, Etude sur l’inserruction du Dahra(1845-1846), apud LACHERAF, 1960, p. 780-781.

25 Numerosos exemplos análogos de transferência de pa-drões de comportamentos tradicionalistas para a lógica mo-derna já podiam ser observados nas SCAPCOs [SéctionsCoopératives Agricoles du Plan de Constantine] e nas fa-zendas da CAPER [acrônimo para Caisse pour l’Acessionà la Propriété et à la Exploitation Rurale, Fundo para oacesso à propriedade e à exploração rural]. Por exemplo,um “regroupé” (um camponês reassentado) originário deAïn-Sultan, sem dúvida demasiado idoso para se tornar umcooperado, julgava-se autorizado a proclamar-se fellah’ ocu-pado “em tempo integral”, porque, apesar dos regulamen-tos da CAPER impedirem a utilização de mão-de-obra forada própria família, ele ajudou o seu irmão mais novo aexplorar a pequena propriedade que adquiriu por intermé-dio do Fundo. A solidariedade familiar, os hábitos da pro-priedade comum (momentaneamente abolida pelas circuns-tâncias que determinaram a dispersão da família, mas quenunca foi expressamente abandonada pelos próprios ir-mãos) sobrepuseram-se quer às interdições draconianas(como as de abandonar o reassentamento), quer às medidasaparentemente inspiradas pelo cálculo e pela racionalidadeeconômica (exploração exclusivamente familiar dos lotes

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para resolver a contradição da mesma maneira queos trabalhadores agrícolas permanentes das pro-priedades coloniais, ou seja, subtraindo à explora-ção racional uns pedaços de terra que serviriamde suporte a ilhas de tradicionalismo e que fariamcoincidir a exploração e a posse jurídica. Mas osmesmos trabalhadores podem também, em nomeda lógica oposta, protestar contra a equalizaçãode salários que abole toda a correspondência en-tre a qualidade e a quantidade do trabalho presta-do e o produto desse trabalho; em alguns casos,podem mesmo agir de acordo com a lógica estritado cálculo racional e reduzir o seu esforço pro-porcionalmente à redução da renda26. É claro que,mais do que qualquer outra, essa realidademultifacetada arma suas ciladas às mentes apres-sadas ou preconceituosas.

Em todos os domínios da existência, em to-dos os níveis da experiência encontram-se asmesmas contradições sucessivas ou simultâneas,as mesmas ambigüidades. Os padrões de com-portamento e o ethos econômico importados pelacolonização coexistem, em cada sujeito, commodelos e ethos herdados da tradição ancestral.Daqui decorre que comportamentos, atitudes ouopiniões aparecem como fragmentos de uma lin-guagem desconhecida, incompreensível tantoàquele que não conhece a linguagem cultural datradição, quanto àquele que se refere unicamenteà linguagem cultural da colonização. Às vezes, sãoas palavras da linguagem tradicional que são com-binadas segundo a sintaxe moderna; outras ve-zes, o oposto, e por vezes é a própria sintaxe que

aparece como o produto de uma combinação.

Um exemplo: a sociedade tradicional via o tra-balho como uma função social, um dever, obriga-tório para qualquer homem preocupado com suahonra, perante si próprio e perante o grupo, e istoindependentemente de qualquer consideração re-lativa ao lucro ou à renda. Segundo a economiacapitalista, o trabalho tem a função primária deproporcionar um rendimento monetário e obede-ce, portanto, à lógica da produtividade e da renta-bilidade. Entre os subproletários das cidades e entreos camponeses proletarizados do interior, a ativi-dade se torna uma mera forma de manter-se “ocu-pado”, um meio de fazer alguma coisa ao invés decoisa nenhuma, para ganhar muito pouco ou nada:ela não pode, portanto, ser completamente inter-pretada quer sob a lógica do interesse e do lucro,quer sob a lógica da honra. Tal como as formasambíguas da Gestalttheorie, pode ser alvo de duasleituras muito diferentes, dependendo do quadrode referência usado para interpretá-la27. Mas aambigüidade não está na apreensão do objeto; elareside no próprio objeto: a exemplo do que ocorrecom o subproletário, quando o camponês ocupa-do de forma indigna vive, pensa ou julga sua pró-pria condição, ele constantemente toma por refe-rência duas lógicas diferentes e mesmo opostas.Daqui decorre que cada uma das descrições uni-laterais da realidade é suficiente para dar conta detoda a realidade, exceto para o que constitui a suaessência, ou seja, a contradição. Assim, para cap-tar adequadamente uma realidade objetivamentecontraditória, é necessário recorrer, simultanea-mente, a duas grades de leitura contraditórias: afidelidade a uma realidade contraditória impede quese escolha entre os aspectos contraditórios queencobrem o real.

Os trabalhadores agrícolas que viviam direta-mente nas propriedades dos colonos encontravamnessa duplicidade um modo de escapar à contra-dição que inelutavelmente decorria da sua partici-pação em dois universos estranhos. Os mesmosque, tal como os tratoristas, os podadores das vi-nhas ou os jardineiros, trabalhavam nas terras docolono usando os métodos de trabalho mais raci-onalizados e com as técnicas mais modernas,revertiam às práticas agrárias mais tradicionais para

da CAPER). É também por referência à lógica da sociedadetradicional que se pode compreender a atitude dos “agri-cultores do domínio de Saint-Yves que aceitaram a fixaçãode duas famílias na mesma unidade de cultivo”, e não, comotende a pensar o relator da Comissão de Renovação Rural,pelo entusiasmo que suscita a reforma realizada pela CAPER(cf. JORF, 1961, p. 234). [Essas duas formas cooperativasde uso da terra patrocinadas pelo Estado estão mais bemexplicadas na referência 30. Nota de Ethnography].26 Seria fácil multiplicar exemplos semelhantes: nos moi-nhos Amirouch d’Elharrach, depois de um mau começo, ocomitê de gestão é apoiado por um conselho de técnicosque se esforça para consertar a situação; o livro de pedidosé preenchido para o ano todo e há capital de giro no mon-tante de um milhão de francos. Sabendo disso, os trabalha-dores ameaçaram interromper seu trabalho e exigir que sedivida o montante, dizendo que “regressariam ao trabalhoquando precisassem de dinheiro”.

27 Para os detalhes destas análises, ver BOURDIEU et al.,1963, IIª parte, cap. 1.

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cultivar os pedaços de terra que o colono lhes cedianos confins da sua propriedade: a aragem da terraera feita com uma junta de bois formada,freqüentemente, com recurso ao contrato tradici-onal de sociedade (charka); muitas tarefas uniamtodo o grupo segundo as regras costumeiras daajuda mútua (twiza) e a maior parte das obriga-ções ocupava a totalidade da mão-de-obra famili-ar, mulheres e crianças incluídos. Os produtos dalavoura, destinados ao consumo familiar, consis-tiam quase exclusivamente em cereais, cultivadossem esterco ou fertilizante. As colheitas eram tãofracas como as das terras montanhosas, ou seja,400 ou 500 quilos por hectare28. Enfim, ninguémpensava em incluir em sua atividade como fellahas preocupações do trabalhador agrícola e, porexemplo, inquietar-se sobre a relação entre a quan-tidade e a qualidade do esforço empregado e oproduto do trabalho. Não era diferente com aque-les que, tendo permanecido fellah’in, eram con-tratados periodicamente nas propriedades coloni-ais. Este dualismo se expressava em todos os do-mínios da existência, quer se tratasse da vida reli-giosa, das atividades de lazer ou das trocas matri-moniais: uma ilha de tradicionalismo patológico –quer dizer, excessivo e descontextualizado – via-se transportado para o coração da agricultura ca-pitalista, altamente mecanizada e racionalizada29.

O dualismo assumia formas ainda mais sutisentre os concessionários da CAPER ou entre os

membros das SCAPCOs30. Instalados em terrasférteis, dotados dos meios mais modernos de cul-tivo, eles eram induzidos pelo contexto geral aadotar os objetivos últimos nela inscritos e a bus-car, por exemplo, rentabilidade e produtividade.Mas isto não era suficiente para fazê-los renunci-ar completamente aos fins e valores tradicionais.Demasiado inseguros de si próprios e da sua situ-ação para escolher, eles agiam como se quises-sem acumular as vantagens dos dois sistemas, demodo que podiam se vistos perseguindo fins tradi-cionais com meios modernos ou, inversamente,perseguindo fins modernos com meios tradicio-nais; ou, mais paradoxalmente ainda, perseguindofins mutuamente incompatíveis porque tributári-os de duas lógicas opostas. Se o camponêsdescamponeisado não pode viver sua condiçãosenão em contradição, isso ocorre porque ele pre-tendia ter o conjunto de seguranças materiais emorais que a sociedade tradicional (voltada para asatisfação das necessidades imediatas ao menorcusto e ao menor risco) lhe assegurava à custa darenúncia da busca do lucro máximo e, ao mesmotempo, as vantagens que na economia modernasó se adquire à custa de investimentos altos e muitofreqüentemente arriscados.

Compreende-se que o camponês argelino en-contre nesta dupla referência razões para seu des-gosto que, embora incompatíveis, se reforçam ese reiteram mutuamente. Compreende-se tambémque ele se obstine desesperadamente em fazer aescolha impossível de não escolher entre as duaslógicas: por exemplo, entre os membros dasSCAPCOs, os antigos camponeses gostariam deutilizar os meios que estão geralmente a serviçoda produção para o mercado (tratores, fertilizan-tes etc.) para produzir os bens destinados ao seuconsumo, como trigo e cevada, por exemplo;outros aspiram utilizar meios modernos para cul-tivar os seus pequenos e pobres pedaços de terrasegundo a lógica tradicional, quer dizer, ignoran-

28 Condutas aparentemente idênticas, como a ajuda mútuae a cooperação, a estocagem e a poupança, a previdência ea previsão estão separadas por um abismo e pertencem adois sistemas totalmente diferentes entre si. VerBOURDIEU, 1963.29 Através desse dualismo, os trabalhadores conseguiamevitar (de maneira quase mágica) o dilaceramento a que teriaconduzido o esforço para unificar uma experiência contra-ditória e dupla. O empregador dos colonos, por sua vez,evidentemente retirava daí vantagens: enquanto permane-cesse uma “reserva” cultural, esta reserva de mão-de-obranão colocaria os problemas que uma população de traba-lhadores, encorajada por um espírito revolucionário, poria.Além disso, o empregador podia usar os “benefícios emespécie” que concedia aos seus empregados como pretextopara pagar salários muito baixos (cerca de 30% abaixo dosalário mínimo argelino) e para ignorar as limitações dajornada de trabalho. Enfim, esses pedaços de terra forneci-am um excelente meio para explorar os trabalhadores, querprendendo-os graças à aparência de generosidade, quermantendo-os pela ameaça de privá-los de uma terra quelhes permitia ter a ilusão de serem ainda camponeses inde-pendentes.

30 A Caisse pour l’Accession à la Propriété et à laExploitation Rurale (CAPER) foi criada por um decretodas autoridades francesas de 26 de março de 1955. Desde1958 seu principal objetivo era financiar a reforma agráriaprevista pelo Plano Constantine “para a modernização eintegração da Argélia”, incluindo a compra, melhoria, divi-são e alocação de 250 000 hectares de terra para 15 000fellah’in. As Séctions Coopératives Agricoles du Plan deConstantine (SCAPCOs) eram cooperativas agrícolas cria-das pelo Plano Constantine [nota de Ethnography].

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do qualquer consideração de rentabilidade e deprodutividade. Em geral, os antigos camponesesdesejam preservar os prazeres da vida na farqa(festas, relações sociais etc.) que evocam comnostalgia, beneficiando-se ao mesmo tempo dasvantagens fornecidas pelo rigor racionalizado dalógica capitalista. E as inconsistências são talvezo que lhes permite suportar (senão ultrapassar) acontradição de que são produto. Pode o campo-nês descamponeisado de fato se perpetuar enquan-to tal a não ser na e por meio da contradição? “Seo camponês calculasse”, diz um provérbio cabila,“ele não semearia”. Aquele que, tendo feito a con-ta, continua a plantar, comete um disparate, en-quanto que os seus ancestrais, que semeavam semcontar, escapavam pura e simplesmente das in-fluências da lógica econômica. Mais ainda, se elese esforçasse por modernizar as técnicas empre-gadas e por racionalizar os modos de produção,não faria mais do que duplicar o absurdo funda-mental da sua situação, já que é o próprio fato decontinuar a cultivar uma terra pouco rentável quequebra a lógica da economia racional31. O cam-ponês “camponeisado” estava adaptado a uma ter-ra da qual esperava, como uma graça, somente osmeios para viver ou para sobreviver; o camponêsdescamponeisado, ao contrário, está condenadoà contradição, já que persegue o impossível e que,sabendo disso, não tem outra escolha a não ser aperpetuação dissimulada e fictícia das rotinas tra-dicionais ou então a inovação que aumenta (semultrapassar) a contradição que o espírito calculis-ta faz surgir32.

É isto que os economistas esquecem quandodenunciam a falta de racionalidade econômica pra-ticada pelos camponeses, e não somente na Argé-

lia. Não será nestes simples lapsos em relação àlógica econômica que os camponeses tambémextraem o incentivo para prosseguir adiante, pormenos rentável que seja sua atividade? É, porexemplo, o mesmo ponto de honra que proíbe oabandono da propriedade ancestral e que leva acondutas baseadas no prestígio capazes de arruiná-la, crescendo, por vezes, a tentação para a osten-tação à medida que a crise da agricultura se agra-va.

O camponês descamponeisado não pode res-suscitar a agricultura tradicional; ele só pode,mentindo para si próprio, perpetuar a sua aparên-cia. E isso é tão verdadeiro para os camponesesde Aghbala ou de Djemaâ-Saharidj, como para oscooperados da CAPER ou das SCACPOs, ou paraos trabalhadores das propriedade tocadas em re-gime de auto-gestão. Sem dúvida, porque perma-necem mais próximos do camponês tradicionaldo que do agricultor racional, uns e outros ten-dem a regressar à condição camponesa ou às suasaparências, mais do que a reinventar o novo siste-ma de modelos exigido pela adaptação a uma agri-cultura moderna. E os camponeses das regiõespoupadas ao choque direto da colonização nãopodem continuar ignorarando o caráter ilusórioda cultura dos solos leves das terras altas; nãopodem, além disso, continuar a cultivar os solosmais pesados com os meios tradicionais apropri-ados a uma buqâa (pequena parcela) ou a umah’riq (campo)33. A contradição está na própriasituação, quer porque a terra não pode produzir osuficiente para justificar o uso de técnicas racio-nais, quer porque não se dispõe dos meios de tirarda terra aquilo que ela poderia produzir.

Mas, mais profundamente, a contradição estános próprios camponeses. Se o camponês argeli-no não consegue escolher entre os dois sistemas,e se quer manter ao mesmo tempo as vantagensde um e de outro, é porque não pode apreendê-losenquanto tais: ele tem do sistema econômico mo-derno, sempre percebido a partir do exterior nassuas manifestações mais exteriores, uma visãonecessariamente mutilada, de modo que dele só

31 Se, entre os agricultores da CAPER de Aïn-Sultan e deLavarande e da SCPACO do Marabout-Blanc, os antigosfellah’in estão menos descontentes do que os antigos tra-balhadores desses mesmos domínios, é porque os primei-ros podem encontrar no crescimento relativo dos seus ren-dimentos uma compensação para o abandono das rotinastranqüilizadoras, enquanto que os segundos perderam asegurança que o salário regular e a perpetuação do modo devida tradicional lhes dava, sem para tanto terem consegui-do os meios para realizar por conta própria a moderniza-ção e a racionalização completa da agricultura que conheci-am.32 Interrogado sobre a utilização de adubo, um fellah’ deMatmata respondeu, com um sorriso meio irônico, meioresignado: “Com um arado, usar fertilizante ? É ser muitofresco!”

33 Nos termos empregados pela física de solo, os solossão compostos, principalmente, pelas partículas de areia(fração mais leve), silte (fração intermediária) e argila (fra-ção mais pesada). Logo, “solo leve” é o solo com maior teorde areia (solo de praia ou de deserto) e “solo pesado” é osolo com maior teor de argila (nota da revisão técnica).

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pode captar pedaços descontextualizados (cf.BOURDIEU et al., 1963, p. 370-371); do sistematradicional, não lhe restam senão fragmentosesparsos e, mais do que um espírito vivo, resis-tências e temores. Em suma, por incapacidade emfalar bem as duas línguas culturais de modo amantê-las claramente separadas, está condenadoàs interferências e às contradições que são res-ponsáveis pelo sabir cultural.

VIII. O PREGO DE DJEHA34

O sistema de contradições necessárias que ofellah argelino traz consigo não aparece de formatão manifesta senão quando desaparecem as con-dições da sua constituição. Enquanto o sistemacolonial se perpetuava, o camponêsdescamponeisado estava condenado a não esco-lher entre as duas lógicas porque não podiaapreendê-las enquanto tais, e porque, se o fizes-se, não teria os meios de levar a escolha pela raci-onalização até suas últimas consequências. O es-forço para dominar o futuro só pode ser efetiva-mente empreendido quando são efetivamente da-das as condições indispensáveis para que seja as-segurado um mínimo de chances de sucesso.Quando não é assim, não resta outra atitude pos-sível que não seja o tradicionalismo forçado, es-sencialmente diferente do tradicionalismo tradici-onal, porque implica a consciência da possibilida-de de agir de outra maneira e a impossibilidade derealizar essa possibilidade.

Com a abolição do sistema colonial, as causasobjetivas das contradições da conduta desapare-ceram, ao menos em parte, visto que os campo-neses retomaram a posse da maior parte das ter-ras detidas pelos colonos, sem que com isso de-saparecessem todas as contradições. As incoerên-cias que marcavam tanto as condutas como asaspirações dos camponeses da CAPER ou dasSCAPCOs remetiam abertamente (talvez de ma-neira demasiadamente ostensiva) para a contradi-ção contida nessas instituições, negações fictíciasdo sistema colonial que elas serviam e que as tor-navam possíveis. Assim, o observador e os pró-prios camponeses poderiam esperar de forma sen-sata que as condutas patológicas desaparecessemcom a causa patogênica. Se as contradições que

ameaçavam os esforços de socialização da agri-cultura eram desconcertantes, isso ocorria por-que o contexto histórico mais amplo favorecia(mesmo junto aos principais decisores da políticaargelina) a esperança ilusória de que, por uma es-pécie de mutação súbita, a mudança decisiva dascondições de existência (e, mais precisamente, nocaso da agricultura, dos modos e relações de pro-dução) desencadearia automaticamente uma trans-formação decisiva das condutas e das ideologiasque elas favoreciam35. A sedução desta represen-tação ingênua da realidade social e da lógica dasua transformação se exerce com uma força par-ticular sobre uma sociedade que, realizando a suadescolonização ao fim de uma guerra de liberta-ção longa e terrível, procura marcar, por todos osmeios, mesmo mágicos, uma ruptura decisiva comum passado vencido e renegado, e, mais precisa-mente, sobre uma pequena-burguesia intelectual,detentora da maior parte dos postos de autorida-de, que, freqüentemente, não tem dos campone-ses mais do que uma imagem despojada daquiloque faz a sua essência histórica.

O sistema colonial sobrevive à medida que ascontradições que deixa para trás não são efetiva-mente ultrapassadas, o que supõe que elas devamser apreendidas e enfrentadas enquanto tais. Ora,a lógica da descolonização (negação que trans-porta consigo a marca daquilo que nega) leva apequena-burguesia de burocratas a negar magi-camente, como fantasmas envergonhados docolonialismo defunto, as contradições do real, maisdo que a esforçar-se para ultrapassá-las graças auma ação orientada por um conhecimento apro-priado do real. Mas a imagem idealista e idealizadado camponês não pode resistir muito tempo aoprincípio de realidade, e a crença na espontanei-dade revolucionária das massas rurais arrisca-sea ceder lugar a uma concepção mais pessimista,mas não mais realista. Não se vê então opor-se ao“socialismo libertário” (a expressão é de GUÉRIN,1963) das comunidades autogeridas, ameçadopelas tensões entre as exigências populares e asintervenções burocráticas, um socialismo autori-

34 Ao vender uma casa, Djeha (uma figura lendária) pediuque lhe deixassem, na casa, um prego. Pendurando umacarcaça, todo dia, neste prego, ele logo conseguiu se livrardos compradores.

35 Um dos mais altos responsáveis pela política econômi-ca na Argélia, a quem nós assinalávamos, em março de1963, a utilidade que tinham, para os organizadores doscomitês de gestão, as lições fornecidas pelo estudo dasexperiências de cooperação agrícola (CAPER e SCAPCOs)realizadas no tempo da colonização, rejeitou com indigna-ção esta comparação.

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tário apoiado pelo Exército?

Em todos os casos, substitui-se o camponêsconcreto por uma abstração. Na verdade, a sele-ção arbitrária de aspectos que só existem comoelementos de uma realidade contraditória supõeque se dissocie o camponês das condições de exis-tência que fizeram dele o que ele é: é preciso igno-rar tudo sobre a condição dos trabalhadores agrí-colas e dos camponeses descamponeisados – per-seguidos pela incerteza sobre o amanhã, impedi-dos de encontrar num mundo que os esmaga umcomeço para a realização das suas esperanças, enão tendo outra liberdade que não seja a de expri-mir a sua revolta pela trapaça e pela astúcia quoti-dianas que corrói pouco a pouco o sentimento dedignidade36 – para atribuir qualquer crédito às pro-fecias escatológicas que vêem no campesinato dospaíses colonizados a única classe verdadeiramen-te revolucionária37.

Ou então se deveria supor, através de uma novaabstração, que os efeitos da exploração econômi-ca e da privação cultural desapareceriam ao mes-mo tempo que a sua causa? De fato, sabemos queos diferentes níveis da realidade social não setransformam necessariamente no mesmo ritmo eque as maneiras de agir e de pensar podem sobre-viver a uma mudança das condições de existên-cia. O camponês pode ser libertado do colono semser libertado das contradições que a colonizaçãoincutiu nele.

IX. DUAS ABSTRAÇÕES CONTRADITÓRIAS

A colonização tirou do camponês argelino maisdo que a terra; despojou-o de um bem que não lhe

pode ser magicamente restituído ou atribuído eque ele deve não somente refazer, mas fazer: suacultura. Tendo retomado a posse de uma terra que,uma vez transformada profundamente, apresen-ta-se a ele como um sistema de exigências objeti-vas, o fellah encontra-se diante da tarefa de criaro sistema de modelos de comportamento e depensamento que lhe permitam adaptar-se à novasituação. Enquanto não tiver recuperado a possede si próprio através da elaboração de uma cultu-ra nova e coerente, o camponês argelino poderápisar a terra do colono, cultivá-la ou recolher seusfrutos, sem tomar verdadeiramente posse dela.Assim como aquelas famílias que, tendo passadorapidamente da favela [bidonville] para um apar-tamento dotado dos confortos modernos, não che-gam a tomar posse do espaço a eles atribuído efavelizam o local porque não podem modernizarseu modo de vida, pois não dispõem dos recursosnecessários e não são capazes de adotar o siste-ma de condutas e atitudes que a habitação moder-na exige38, os camponeses descamponeizadoscorrem o risco de tornar a sistemas de adaptaçãomais rudimentares, mas mais seguros, seja pelareintrodução de técnicas e costumes agrários maistradicionais, seja porque tendem a comportar-secomo simples operários que não esperam do seutrabalho mais do que um salário.

Os partidários do socialismo autoritário e osdefendores do socialismo libertário podem encon-trar numa dupla realidade os argumentos favorá-veis à representação abstrata, porque parcial, quefazem do real. Os campeões da “democracia apartir das bases” (segundo a expressão oficial)podem invocar, corretamente, a aspiração doscamponeses de tomar posse das terras do colonoe a geri-las como proprietários. Mas a própria or-ganização dos comitês de gestão (instituídos pelonascente Estado argelino) não vai contra essa ex-pectativa? Com efeito, os camponeses vêem commuita impaciência as ingerências múltiplas efreqüentemente desajeitadas dos inumeráveis tu-tores que os rodeiam com uma solicitude incô-moda – prefeituras e sub-prefeituras, organiza-ções locais do partido, a UGTA (União Geral dosTrabalhadores Argelinos), “diretores” ou “admi-nistradores”, o SAP39 etc. Em muitos casos, a

36 Assim, são freqüentemente relatadas, com um espantoescandalizado ou entristecido, as falcatruas ou as fraudes aque cometem os membros dos comitês de gestão (por exem-plo, as vendas clandestinas de frutas ou de legumes). Nãoencontrassem estas condutas justificação ou desculpa notipo de organização que se impôs aos camponeses e nanatureza da relação que eles mantêm com a SAP (SociétéAlgérienne de Prévoyance) ou com o diretor, permaneceri-am perfeitamente compreensíveis. Não é verdade que osistema colonial inculca nos trabalhadores maisdesfavorecidos o sentimento de que todos os meios sãolegítimos, a começar pelo subterfúgio e pela esperteza, asarmas dos desarmados, para roubar um momento de des-canso ao trabalho duro ou para tentar ganhar algum dinhei-ro com o mínimo de esforço?37 As análises teóricas em que se baseia esta crítica foramplenamente desenvolvidas em BOURDIEU, 1963, especi-almente p. 307-312 e p. 350-360.

38 Esse ponto é desenvolvido em BOURDIEU, 1977,cap. 1 (nota de Ethnography).39 Aos olhos do camponês, a Société Algérienne de

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relação com o burocrata instituído pela autorida-de central, percebido como um “estrangeiro”, umhomem da cidade ou um intruso, é, para os anti-gos trabalhadores agrários, a ocasião para atuali-zar a relação que mantinham com o colono ou,melhor, com os engenheiros agrônomos daCAPER ou das SCAPCOs.

É que, aos olhos do camponês, a posse daterra permanece abstrata e fictícia se não se con-cretiza como “domínio da terra”, quer dizer, comoliberdade para organizar soberanamente todos osmomentos da atividade agrícola, da produção àcomercialização40. As limitações de poder e as in-terferências alteram o sentimento de posse e olevam, incerto da sua relação com a terra que cul-tiva, a comportar-se como no passado, como umsimples assalariado; ou então, mesmo se todas asgarantias lhe são dadas, ele tem a sensação de es-tar sendo roubado, menos nos seus rendimentose lucros e mais nos seus direitos de proprietá-rio41. Em suma, o socialismo libertário arrisca-sea atingir fins opostos àqueles que persegue expli-citamente e a restituir os camponeses à condiçãode trabalhadores tão pouco empenhados quantopossível em um trabalho cuja organização aban-donam a outros e de que apenas esperam um sa-lário regular.

Prévoyance encarna o passado colonial: entre outras coi-sas, uma política de crédito rural mal adaptada tinha feitocom que ela aparecesse freqüentemente como uma reencar-nação da usura tradicional. Estava portanto predisposta adesempenhar o papel de bode expiatório. Sua função atualnão pode senão reforçar essa imagem: encarregada de arma-zenar as colheitas, de vendê-las, de repartir os lucros, deorganizar o uso dos equipamentos agrícolas e dos créditos,ela usurpa constantemente aquilo que os camponeses con-sideram ser suas prerrogativas.40 Se a comercialização dos produtos suscita tantas resis-tências, é talvez porque sua venda no mercado é um dosdireitos mais exclusivos do “dono da terra”, geralmente omais velho. É também porque ela é objeto de atitudes con-traditórias, o camponês hesitando entre a nostalgia da pro-dução para o consumo familiar e a busca do lucro; e, tam-bém, é claro, porque esta operação facilmente propicia pre-textos para toda sorte de desconfiança.41 Entre os camponeses da CAPER, a questão era semprea mesma: “Quem é o dono desta terra?” Os constrangimen-tos que pesavam sobre eles, quer se tratasse da escolha dasculturas, das formas de cultivo ou da comercialização dosprodutos, apareciam-lhes como uma negação incontestáveldas declarações segundo as quais eram eles os “proprietá-rios da terra”.

A decisão que padroniza os salários em 7 fran-cos ao dia, quaisquer que sejam a quantidade e aqualidade do trabalho prestado, só pode agir namesma direção. De fato, os camponeses são sufi-cientemente versados na prática do cálculo eco-nômico para medir espontaneamente a quantida-de do trabalho fornecido (segundo a sua qualida-de) em relação à remuneração recebida: sabe-seque em muitos lugares os operários, outrora pa-gos por tarefa, reduziram a sua produção propor-cionalmente à redução do seu salário; sabe-se tam-bém que o nivelamento dos salários, apesar dasdiferenças de qualificação, suscita resistências. Eserá suficiente apresentar o salário diário comoum adiantamento do lucro para que os membrosdo comitê de gestão se interessem pelo projetocoletivo? Com efeito, é pedir ao camponês queadote em relação à atividade agrícola uma atitudeque lhe é também tão pouco familiar quanto pos-sível; o seu ceticismo, longe de exprimir somentesua desconfiança diante do Estado, encarnado pelodiretor, é constitutivo da sua atitude em relação aofuturo. Mais ainda, como se pode exigir dele, semuma longa educação prévia, que compreenda emanipule noções tão complexas e tão profunda-mente estranhas à sua tradição cultural como asde cooperação e de lucro coletivo42, que saibadistinguir entre custos operacionais, investimen-tos na agricultura coletiva e os investimentos deinteresse comum, ou mesmo, mais simplesmen-te, entre a renda obtida pela venda das colheitas eo lucro líquido?

42 No vale de Soummami, uma cooperativa substituiu osempresários que costumavam manipular a compra de figosdos produtores. Como o preço de compra só devia serfixado após determinado o lucro líquido, os camponeses sórecebiam um adiantamento por conta do valor da sua pro-dução. Contudo, na ausência de uma campanha de informa-ção, a kubiratif era tida como um comerciante entre outrosou, melhor, como um comerciante oficial dotado do apoioda “repartição pública” (local), o que suscitava certa des-confiança. Mas a confusão será melhor avaliada se se sou-ber que a cooperativa era constituída por antigos comerci-antes de figo: nestas condições, como os camponeses acei-tariam vender sua produção sem antes passarem pelo rega-teio tradicional, sem terem promovido a concorrência entrecompradores, sem, sobretudo, terem fixado de uma vezpor todas o preço do quintal de figos e sem estarem segurosde receber imediatamente o dinheiro da venda do produto?Compreende-se que tenham sido poucos os camponesesque negociaram a sua produção com a cooperativa, e quetodos os outros tenham preferido vendê-la a compradoresclandestinos que pagavam 80 francos o quintal.

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Confrontado com o teste da realidade, essesistema, inspirado em uma ideologia populista, estáse convertendo em seu oposto, uma organizaçãoautoritária. A autogestão está gradualmente – e deforma muito lógica – sendo substituída por aquiloque os juristas romanos chamavam de negotiorumgestio: o tutor, isto é, o Estado, na pessoa do dire-tor, do administrador ou da SAP, age no lugar dopupilo, que não saiu ainda da menoridade. Seupoder está limititado à obrigação de prestar con-tas. E pode-se perguntar se a “desconfiança cam-ponesa”, que tanto evocam os críticos, não seráafinal a resposta a uma desconfiança inconfessadaem relação ao camponês real, desconfiança quese dissimula sob a aparência da generosidade e dorespeito em relação ao camponês fictício e, pode-se dizer, ideal.

Os partidários do socialismo autoritário podemencontrar os seus melhores argumentos naconstatação das contradições que a autogestãoengendra: tratar explícita e deliberadamente os tra-balhadores como simples assalariados, totalmen-te excluídos da gestão e da partilha dos lucros, é,pelo menos, poupar-se das ambigüidades ou damá fé das eleições “orientadas” ou dos conflitos etensões entre os representantes eleitos dos traba-lhadores e os burocratas; é, neste mesmo senti-do, ganhar em rendimento e rentabilidade, comoa experiência tem mostrado em muitos casos. Alémdisso, da mesma maneira que se pode argumen-tar, em defesa da autogestão, que ela visa satisfa-zer a aspiração muito viva dos camponeses paracultivar as terras retomadas dos colonos comosuas terras, também os partidários do socialismoautoritário podem justificar-se com o fato de queos camponeses descamponeisados aspiram à se-gurança que lhes é dada por um salário regular epela condição de “operários-camponeses”.

Sem dúvida que esse tipo de organização temo mérito de apresentar-se por aquilo que é; masela não tenderá a substituir pura e simplesmente ocolono por uma burocracia estatal? Que benefí-cio duradouro terão tido os antigos trabalhadoresagrícolas com a independência, senão o de poderpersuadir-se de que aceitam os seus baixos salári-os por um sacrifício gratuito e em nome da revo-lução? Deverá surpreender que eles permaneçamsurdos em relação à exaltação da “consciênciasocialista”? Que, comportando-se como simplesassalariados movidos unicamente pelamaximização do lucro, meçam o seu esforço pelorendimento monetário que dele retiram e que, na

sua luta velada contra o Estado-patrão, usem asarmas tradicionais do subproletariado, a esperte-za ou mesmo a fraude43? Seria um exagero dizerque a pequena-burguesia letrada usa cinicamentea linguagem revolucionária como um instrumentode exploração. Contudo, não há dúvida de que osocialismo autoritário, isto é, centralizado e buro-crático, para o qual tendem, por uma escolha ex-plícita, ou pela força das coisas, as diferentes ex-periências argelinas, não pode senão servir aosinteresses dessa pequena-burguesia que tem inte-resse na burocratização, dando uma justificaçãotécnica e ideológica à sua autoridade e aos seusprivilégios e colocando-a ao abrigo das exigênci-as impacientes e freqüentemente incoerentes dossubproletários dos campos e das cidades.

Mas, além disso, se é sabido que o rendimentoindividual médio dos agricultores era, em 1960,de 160 francos por mês, e o dos assalariados agrí-colas, de 132 francos (para o conjunto da Argé-lia) e, mais precisamente, que 87,1% dos agricul-tores e 89,4% dos trabalhadores agrícolas tinhamum rendimento mensal inferior a 200 francos, vê-se claramente que, com os seus 7 francos por dia(210 francos por mês) aos quais se acrescentamos abonos e, eventualmente, uma parte dos lu-cros, os fellah’in das propriedades em regime deautogestão não podem deixar de parecer privilegi-ados aos olhos dos trabalhadores eventuais, doskhamnés, dos pequenos camponesessubempregados e da massa dos indivíduos parci-al ou supostamente ocupados. Para todos aquelesque não obtiveram da independência aquilo quedela esperavam, a saber, a terra, a decepção já égrande; do mesmo modo, a tensão não pode dei-xar de aumentar entre os “privilegiados” dos do-mínios autogeridos e os trabalhadores sazonais,excluídos de certo número de vantagens econô-micas e políticas (por exemplo, a eleição de depu-tados). Assim, ainda que a aposta econômica epolítica nas experiências de autogestão seja imen-sa, visto que dela depende o futuro da agriculturamoderna e a possibilidade de inventar uma orga-nização simultaneamente justa e eficaz das rela-ções de produção, o setor autogerido não deve enão pode ser considerado como um mundo à par-te. Deixar instaurar-se uma disparidade demasia-do marcada entre uma agricultura rica, assegu-

43 O que vale, evidentemente, para todos os comitês degestão, onde, devido à ingerência da burocracia, a participa-ção dos trabalhadores é fraca.

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rando rendimentos regulares e relativamente ele-vados a uma minoria de trabalhadores permanen-tes, e a grande massa da população rural, é perpe-tuar, sob uma outra forma, a contradição que pai-ra sobre a sociedade colonial e acelerar adescamponeização, fazendo aparecer como ins-crita na natureza das coisas a dualidade de doistipos de agricultura e acabando por convencer osfellah’in situados nas margens das terras ricasque estão irremediavelmente condenados à eco-nomia de subsistência e ao tradicionalismo do de-sespero.

X. O EDUCADOR E O BUROCRATA

Mas, no fim das contas, em que medida osobjetivos de uma política racional são compatí-veis com os fins contraditórios que o camponêsargelino traz consigo em estado virtual? Por ra-zões ao mesmo tempo políticas e econômicas, umaação racional deve conciliar meios e fins que po-dem estar em contradição sem serem intrinseca-mente incompatíveis: em primeiro lugar, a inter-venção da autoridade central parece indispensávele, de qualquer maneira, inevitável, seja ela cum-prida por meio de uma burocracia, seja por meiode um sindicato, de um partido ou de um corpode técnicos.

Isso acontece porque, deixados por conta pró-pria, os camponeses assentados nas grandes pro-priedades abandonadas pelos colonos e, a fortiori,pelos demais, estão propensos a manterem-se fi-éis ao modo de produção mais tradicional, por faltade meios técnicos e financeiros que, e eles sabemdisso, constituem a condição necessária da mo-dernização e da racionalização e também porquetoda a sua atitude em relação ao mundo (ligada àssuas condições de existência pela mediação daconsciência que têm delas) e toda a sua tradiçãocultural tendem a fazer com que escolhammaximizar a segurança, ainda que em detrimentodo lucro, ao invés de maximizar o lucro em detri-mento da segurança. Não se viu, por exemplo, novale de Soummam, camponeses organizados es-pontaneamente em comitês de gestão dividir apropriedade de um colono em lotes capazes dealimentar uma família e cultivar aí, segundo astécnicas mais tradicionais, trigo, cevada e feijão,até a intervenção da autoridade central44?

A intromissão, entretanto, não pode limitar-se àesfera econômica, visto que as escolhas econômi-cas são também, e antes de tudo, escolhas cultu-rais. Encerrado na contradição, o camponês nãopode, fundamentalmente, ter uma representaçãoadequada da sua condição e, menos ainda, das con-tradições dessa representação. Assim, cabe a umaelite revolucionária definir com ele (e não para ele)o que ele deve ser em uma e para uma ação orien-tada segundo uma teoria sistemática e realista, querdizer, levando em conta todos os aspectos, mesmose contraditórios, do que ele realmente é.

Contudo, o meio requerido para o cumprimentodos fins econômicos e culturais, a saber, a inter-venção externa, não é passível de entrar em con-tradição com os próprios fins que este meio su-postamente deve servir? Se é verdade, como vi-mos, que o camponês identifica a “posse da ter-ra”, a condição da sua adesão, com a liberdade defazer o seu trabalho como lhe convém, é evidenteque uma interferência destinada a organizar e aestimular a atividade conforme os imperativos eco-nômicos e culturais definidos anteriormente cor-re o risco de não contar com a participação doscamponeses. Isso quer dizer que se deve e se podeescolher? De fato, como realizar uma revoluçãoeconômica e uma revolução cultural sem a parti-cipação entusiasta das massas? Não se trata, nosdois casos, de criar uma nova ética exaltando aprodutividade e o espírito de sacrifício?

Só uma ação educativa, inclusiva e total, podeultrapassar as contradições sem as negar magica-mente pela conciliação fictícia dos contrários. Essaação supõe, em primeiro lugar, uma definição cla-ra e realista dos fins perseguidos – em suma, umateoria sistemática da realidade econômica e soci-al, fundamento de um programa metódico e pro-gressivo. Mas a tarefa de cada educador particu-lar não pode deixar-se definir pela letra de um re-gulamento que prevê todos os casos particulares:em uma situação revolucionária, o educador deve

44 O tradicionalismo do camponês, na sua forma tradicio-nal ou na sua forma regressiva, e o ethos que lhe é solidário,não podem deixar de entrar em conflito com o esforço para

instaurar uma organização racional da produção e das rela-ções de produção. Daí resulta que a consideração daracionalidade econômica tanto quanto a exaltação revoluci-onária do espírito de sacrifício levam necessariamente acombater a volta às tradições culturais mais enraizadas,como o espírito de clã ou o nepotismo, que constituem umobstáculo à gestão racional do empreendimento, provocan-do conflitos ou favorecendo o fechamento cada unidadeeconômica em si mesma.

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criar, dia-a-dia, o conteúdo e a forma da sua açãoprática (quer dizer, de incitação e de organização)e a sua formação prévia deve fornecer-lhe pri-mordialmente os meios de operar essa criaçãocontínua. A especificidade da ação educativa, nasua forma ideal, é precisamente a de se adaptar àsaptidões e expectativas daqueles que procura ele-var e transformar, portanto de conhecê-los erespeitá-los; de definir, em cada caso, um sistemade exigências ajustadas a essas aptidões e expec-tativas, assim como à sua transformação sob ainfluência da ação educativa; em suma, de impe-direm-se de propor arbitrariamente exigênciasdefinidas abstratamente para assuntos abstratos.Assim, a ação centralizada de uma burocracia rí-

Pierre Bourdieu ocupou a cadeira de Sociologia no Collège de France, onde dirigiu também o Centro deSociologia Européia e editou a revista Actes de la recherche en sciences sociales até sua morte, em 2002.Ele é autor de vários livros clássicos em Sociologia e Antropologia, incluindo La Reproduction: élémentsd’une théorie du système d’enseignement (com Jean-Claude Passeron; 1970), Esquisse d’une theoriede la pratique (1972), La Distinction: critique sociale du jugement (1979), Ce que parler veut dire:économie des échanges linguistiques (1982) Homo Academicus (1984), La Noblesse d’État. Grandesécoles et esprit de corps (1989) e Les règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire (1992).Dentre seus estudos etnográficos estão: Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie(com Adbelmalek Sayad, 1964), Algérie 60: structures économiques et structures temporelles (1977),La misère du monde (1993) e Le Bal des célibataires: crise de la societé em Béarn (2002).

Abdelmalek Sayad, sociólogo de origem cabila, foi Diretor de Estudos do Centre National de la RechercheScientifique e pesquisador no Centro de Sociologia Européia até sua morte, em 1998. Ele foi um dosprimeiros estudantes e colaboradores de Pierre Bourdieu na Argélia no final dos anos 1950 e devotou suavida ao estudo histórico e antropológico das migrações franco-argelinas e aos seus impactos em ambasas sociedades. Seus trabalhos mais importantes incluem: com Pierre Bourdieu: Le déracinement: lacrise de l’agriculture traditionnelle en Algérie (Paris: Minuit, 1964); L’immigration, ou les paradoxesde l’altérité (De Boeck Université, 1992); com Eliane Dupuy: Un Nanterre algérien, terre de bidonvilles(Paris: Autrement, 1998); Histoire et recherche identitaire suivi de Entretien avec Hassan Arfaoui (St.-Denis: Bouchène, 2002); A imigração ou os paradoxos da alteridade (São Paulo: USP, 1999) e Ladouble absence. Des illusions de l’émigré aux souffrances de l’immigré (Paris: Seuil, 1999).

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A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 133-135 JUN. 2006ABSTRACTS

COLONIAL RULE AND CULTURAL SABIR

Pierre Bourdieu (Collège de France) and Abdelmalek Sayad (Centre national de la recherchescientifique, Paris, France)

The French policy of ‘resettlement’ of Algerian peasants, designed to undercut popular support forthe nationalist war of liberation (1954–62), led to the displacement of one-fourth of the indigenouspopulation of Algeria in 1960. By disciplining space and rigidly reorganizing the life of the fellahinunder the sign of the uniform, the French military hoped to tame a people, but it only completed whatearly colonial policy and the generalization of monetary exchanges had started: the ‘depeasantization’of agrarian communities stripped of the social and cultural means to make sense of their present andget hold of their future. War thus accomplished the latent intention of colonial policy, which is todisintegrate the indigenous social order in order to subordinate it, whether it be under the banner ofsegregation or assimilation. But imperial domination also produces a new type of subject containingwithin himself or herself the contradictions born of the clash of civilizations: the patterns of behaviorand economic ethos imported by colonization coexist inside of the exiled Algerian peasant with thoseinherited from ancestral tradition, fostering antinomic conducts, expectations, and aspirations. Thisdouble-sidedness of objective and subjective reality threatened to undermine the efforts to socializeagriculture after independence, as the logic of decolonization inclined the educated petty bourgeoisieof bureaucrats to magically deny the contradictions of reality as shameful ghosts of a dead colonialpast.

KEYWORDS: colonialism; war; peasantry; uprooting; French imperialism; Kabyle culture; Algeria.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 139-141 JUN. 2006RÉSUMÉS

LA DOMINATION COLONIAL ET LE SABIR CULTUREL

Pierre Bourdieu (Collège de France) et Abdelmalek Sayad (Centre national de la recherchescientifique, Paris, France)

La politique française de« regrupement » des paysans algériens, mise en oeuvre pour miner l’appuipopulaire à la guerre de libération nationale (1954-1962), a provoqué le déplacement d’un quart de lapopulation native de l’Algérie en 1960. En disciplinant l’espace et en aménageant rigoureusement lavie des fellahin, les militaires français espéraient dominer un peuple, mais cela n’a fait qu’acheverce que la première politique coloniale et la généralisation des échanges monétaires avaient déjàentrepris : la « dépaysannisation » de communautés agraires dépouillées de tous les moyens sociauxet culturels qui donnaient du sens à leur présent et qui réglaient leur futur. Ainsi, la guerre a accomplil’intention secrète de la politique coloniale : la désintégration de l’ordre social local dont l’objectifétait de le soumettre, soit sous le drapeau de la ségrégation, soit sous le drapeau de l’assimilation.Mais la domination impériale produit aussi un nouvel sujet qui porte les contraditions issues du chocdes civilisations : les modèles de comportement et d’ethos économique importés par la colonisationet ceux hérités de la tradition ancestrale cohabitant chez le paysan algérien exhilé, ce qui fait naîtredes attitudes, des attentes et des aspirations antinomiques. Cette double dimension de la réalité,objective et subjective, menaçait miner les efforts de socialisation de l’agriculture après l’indépendance,tandis que la logique de la décolonisation amenait la petite bourgeoisie lettrée des bureaucrates à nierpar magie les contradictions de la réalité comme des fantasmes honteux d’un passé colonial mort.

MOTS-CLÉS : colonialisme; guerre; paysannat; déracinement; impérialisme français; culture kabyle;Algérie.

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