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A DISPERSÃO E O CENTRALISMO BUROCRÁTICO DISPUTAS NA COOPERAÇÃO CULTURAL BILATERAL DO ESTADO PORTUGUÊS, 1974-1999 Armando Marques Guedes FDUNL N.º6 - 1999

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A DISPERSÃO E O CENTRALISMO BUROCRÁTICO

DISPUTAS NA COOPERAÇÃO CULTURAL BILATERAL DO ESTADO PORTUGUÊS, 1974-1999

Armando Marques Guedes

FDUNL N.º6 - 1999

Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa Working Papers

Working Paper 6/99

A DISPERSÃO E O CENTRALISMO BUROCRÁTICO.

DISPUTAS NA COOPERAÇÃO CULTURAL BILATERAL DO ESTADO PORTUGUÊS, 1974-1999

Armando Marques Guedes

© autor

Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de

textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como

Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de

textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-

Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares

Maduro, [email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão Pinto,

Campolide 1400-Lisboa.

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A DISPERSÃO E O CENTRALISMO BUROCRÁTICO. DISPUTAS NA COOPERAÇÃO CULTURAL BILATERAL DO ESTADO PORTUGUÊS, 1974-1999

Armando Marques Guedes “Imaginemos uma criança e um adulto no Paraíso,

ambos mortos na Fé Verdadeira, mas tendo ao adulto nele sido atribuído um lugar mais elevado. E a criança pergunta a Deus, ‘Porque deste áquele homem um lugar mais alto?’. E Deus responde, ‘Ele fez muitas boas acções’. Então pergunta a criança, ‘Porque me deixaste morrer tão cedo que fui impedido de praticar o Bem?’. Deus responde, ‘Eu sabia que irias crescer como um pecador, foi por isso melhor que morresses enquanto criança’. Sobe então um grito dos condenados nas profundezas do Inferno, ‘Porquê, ó Senhor, não nos deixaste morrer antes que nos tornássemos pecadores?’”.

al-Ghazali1, século X

Este artigo visa vários objectivos interrelacionados. Quase nada tem sido escrito sobre a Cooperação (ou ajuda pública ao desenvolvimento) que o Estado português tem vindo a levar a cabo nos PALOP. Brilham sobretudo pela sua ausência quaisquer ponderações académicas do tema. O meu foco genérico é simples. Sem pretender constituir, de maneira nenhuma, uma verdadeira abordagem histórica da Cooperação Cultural oficial portuguesa em África, ou sequer um esboço de uma sua Sociologia Política, neste estudo é sugerida uma primeira aproximação no sentido de colmatar lacunas. Dado a Cooperação Cultural formar na prática uma parcela, ainda que com numerosas especificidades próprias, da Diplomacia Cultural do Estado sobre que tenho vindo a escrever, este trabalho visa também dar mais um passo na direcção do levantamento geral desta. Um passo, como iremos ver, muito particular. Muito pouco têm sido esmiuçadas e arrumadas as coordenadas das inúmeras intervenções do Estado português contemporâneo na África dita “lusófona”: não tem constituído objecto de investigações científicas sistemáticas nem a mecânica dessas acções e actividades estatais nas ex-colónias, nem as suas motivações ou instrumentos; tal como pobre tem sido o logrado no que toca a uma qualquer avaliação técnico-política da sua eficácia. Não há trabalhos publicados que explicitamente as encarem como redes internacionais de relacionamentos bilaterais e que como tal as ponderem. Sem 1 Esta passagem [tradução minha] é citada por Simon van der Bergh (1978: X), na sua extensa introdução à tradução inglesa do compêndio medieval anti-filosófico e anti-aristotélico de Averróis intitulado Tahafut Al-Tahafut (A Incoerência da Incoerência).

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âmbições excessivas, tento equacionar algumas das coordenadas que me parece ser imprescindível tomar em linha de conta para um eventual tratamento exaustivo dessas dimensões complementares da Cooperação Cultural oficial portuguesa. Este trabalho difere dos que anteriormente dediquei à política de criação de Leitorados de Língua e Cultura portuguesas (1999) e aos regimes de celebração de Acordos Culturais bilaterais (1998a). Nesses outros estudos, a minha atenção manteve-se focada na acção e actividades internacionais do Estado, que encarei como apenas inteligíveis em termos da dinâmica dos processos e objectivos próprios dessa tão complexa instituição e se enquadrados nas conjunturas externas em que este se tem visto envolvido. No presente artigo, a perspectiva é como que invertida: a minha atenção prende-se sobretudo com a orgânica, os processos e as representações internas do Estado português das últimas décadas, e a sua intervenção externa é entrevista como por estes em grande parte constrangida. Há duas ordens de razões para esta mudança de tónica: por um lado, ela justifica-se pela preponderância empírica que, no que diz respeito à ajuda pública ao desenvolvimento, tais processos e representações e tal orgânica me parecem efectivamente ter. Enunciar esta observação pela negativa é talvez mais revelador: comparativamente pouco, na lógica e na evolução da Cooperação do Estado português, tem efectivamente respondido às conjunturas concretas sobre que esta se tem debruçado. Por outro lado, no entanto, a ordem de análise que sigo é a que me parece exigida pela complexidade da situação da ajuda pública ao desenvolvimento, que creio só com trabalhos prévios deste tipo podemos esperar vir a desenvencilhar e a tornar compreensível.

A decisão de investigar, num primeiro esforço analítico, as interacções internas das instituições e organismos de retaguarda, desse ponto de vista, redunda em pouco mais do que na escolha de um ponto de partida conveniente. Mas não é inconsequente. As diferenças entre este artigo e os estudos anteriores que levei a cabo são cruciais: os regimes internacionais a que os Leitorados e os Acordos dão corpo, defendi, são as expressões de projectos do Estado que, de uma ou outra maneira, se adequam à arquitectura do sistema internacional. Enquanto que, no caso da ajuda pública ao desenvolvimento, aquilo que é realizado é-o independentemente de quaisquer projectos e, por via de regra, apesar da inexistência destes; conquanto seja de sublinhar, todavia, que alguma sensibilidade tem vindo a ser manifestada pelo Estado relativamente aos cenários africanos. É irónico e paradoxal, por isso, que a Cooperação Cultural seja (sem sombra de dúvida) o domínio em que a Diplomacia Cultural oficial melhor tem logrado defender os interesses portugueses, actuando como uma forma algo eficaz, se difusa, de poder. Pretendo desfazer este paradoxo. Tento-o, em primeiro lugar, por intermédio de uma elucidação geral da evolução das formas de exercício do soft power português nas ex-colónias. Em segundo lugar, esforço-me por alinhavar, retrospectivamente, um reenquadramento conjuntural interno da Cooperação do Estado: logrando tornar inteligíveis as inúmeras transformações a que tem sido submetida a orgânica estatal e os processos e representações que lhe têm sido associadas. Quanto à sensibilidade moderada que o Estado português tem manifestado no que toca aos cenários da sua actuação em África, o meu lugar de arranque é simples: desde há pelo menos uma quarentena de anos têm sido aduzidos argumentos a favor de uma ponderação sistemática daquilo a que Kenneth Walz memoravelmente chamou the second image: o impacto das

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dimensões políticas “domésticas” nos relacionamentos internacionais (K. Walz, 1959; R. Keohane, 1998:299). Um qualquer escrutínio empírico elaborado segundo esta perspectiva terá de dar ênfase às estruturas (instituições e regimes) internacionais existentes, sem dúvida; mas também às configurações cambiantes de interesses e ambições, materiais e corporativos, inerentes à orgânica do Estado - para além de focar o papel das representações ideais e das formulações políticas e jurídicas que (de maneira complexa, e por vezes transversal) encapsulam relações de poder e as cristalizam como formas histórico-sociais. Tudo isto tento aqui fazer; ou, pelo menos, tento delineá-lo.

Irei abordar esse tipo de questões no âmbito da Cooperação Cultural empreendida pelo Estado português nas cinco ex-colónias africanas que ascenderam à independência após o 25 de Abril de 1974. Mutatis mutandis, no entanto, parece-me defensável a opinião segundo a qual a aplicabilidade do modelo heurístico que aqui utilizo é muito mais geral. Tratando-se de um primeiro levantamento sobre uma área complexa, a minha atenção estará em parte focada no enquadramento jurídico dessa Cooperação Cultural. Devo porém sublinhar que não o faço em consequência de uma qualquer postura simplista que confundiria regras com práticas, ou de uma ou de outra maneira reduziria uma compreensão das últimas a uma análise (por exaustiva que fosse) das primeiras. Bem pelo contrário: faço-o na convicção de que, como tem sido notado (J. Barnes, 1961; P. Bohannan, 1969; D. Kennedy, 1979, J.Starr e J. Collier, 1989; J. Paul, 1991; T. Svensson, 1997), quadros legais muitas vezes emergem como expressões cristalizadas e condensadas de conflitos e disputas (ou mesmo como tentativas para a sua “mediação” activa) entre actores sociais, nomeadamente os actores estatais por definição mais próximos do poder. Tal é particularmente o caso no que se refere às chamadas bureaucratic politics2, como talvez fosse de esperar. Espero aqui equacionar, de maneira precisa e sucinta, algumas das “arenas formais” (F. Bailey, 1960) em que se têm manifestado e exprimido disputas entre elites estatais, disputas essas que tornam inteligíveis alguns dos constrangimentos a que tem sido sujeita a acção e a actividade internacional do Estado português.

Um dos principais fios condutores do que se segue percorre efectivamente esse nível, e perpassa, com uma nitidez que espero saber pôr em evidência, os quadros jurídicos que o exprimem e constituem: no que diz respeito à ajuda pública ao desenvolvimento, o Estado português tem sido uma arena de tensões e conflitos burocráticos crescentes (que cada uma das partes envolvidas retrata e

2 É longa a genealogia dos estudos que visam explicar e compreender o funcionamento das relações internacionais com modelos que se esforçam por analisar decisões com referência às posições nos sistemas burocráticos daqueles que as tomam. O trabalho clássico é aqui decerto o de Graham Allison (1971), em que a crise dos mísseis de Cuba foi investigada sob três perspectivas, sendo a “governamental” (p. 3-5) a alternativa preferida contra explicações mais tradicionais. Apesar de concordar com a ideia subjacente de que é abusivo conceptualizar o Estado como um lugar de interesses monolíticos (preferindo encará-lo como um conjunto de organismos burocráticos com ideologias e lógicas próprias para as quais apelos ao “interesse nacional” são muitas vezes simples estratégias de legitimação), a minha preocupação é aqui sobretudo “arqueológica”: mais que elaborar um rasteio integral das coordenadas dos processos de tomada de decisão pretendo, no que se segue, identificar a natureza e as transformações tanto dos constrangimentos, como das potenciações, que o discurso burocrático sobre a Cooperação têm logrado na formatação da acção e das actividades do Estado português.

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tenta legitimar segundo interesses, conveniências e objectivos próprios), internamente desencadeados para o seu controlo. Como se irá verificar, a legislação produzida tem vindo a exigir uma concentração crescente de todas as acções e actividades de Cooperação no âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E os textos mapeiam, ainda que de maneira complexa e muitas vezes recorrendo a omissões, a indirecções e a formulações oblíquas, as disputas entre este e outros organismos, nomeadamente o Ministério das Finanças3. O que, nos termos da perspectivação antropológico-jurídica crítica a que aludi, interpreto como uma manifestação particular dos avatares da geometria de distribuição do poder no seio das elites que (por vezes tão conflitualmente) controlam o aparelho do Estado. Uma geometria variável que tento cartografar. Um esforço deste género tem inevitavelmente duas dimensões indissociáveis: uma, descritiva; outra, analítica. Começo assim por encadear três secções cujas finalidades são as de ordenar, cronológica e desdobradamente, o que considero as três fases sucessivas por que tem passado a Cooperação Cultural do Estado4. Em cada um dos blocos que integram esta periodização, debruço-me sobre o que reputo como as condições principais para a sua circunscrição e para a sua integridade e relativa autonomia. Em todos eles, tento pôr em evidência tanto as lutas burocráticas, como as representações e os processos político-ideológicos a elas associados, que creio formam um dos seus mais importantes (e invariáveis) contextos, ou talvez melhor, suportes discursivos. Devo sublinhar (repetindo-me) que não é minha intenção levar a cabo um qualquer estudo exaustivo da Cooperação pública portuguesa, histórico ou sociológico, que excederia os meus bem mais modestos objectivos: pretendo, tão somente, equacionar o que creio serem coordenadas cruciais da sua inteligibilidade, viabilizando deste modo a eventual análise sistemática das múltiplas dimensões que tem. Num segundo tempo, avento, em todo o caso, destilar o que reputo são as principais linhas de força da progressão cronológica da Cooperação Cultural do Estado, e sugiro termos para uma sua reperspectivação político-analítica. 3 Muito longe estamos, como se pode verificar, da ficção tradicional com que habitualmente os juristas se referem a um sujeito idealizado como autor dos actos legislativos, que intitulam “o legislador”. Pelo contrário na esteira de D. Kennedy (1979) e J. Paul (1991) textos legais são aqui vistos como expressões de distribuições conjunturais particulares do poder pelas estruturas estatais, e como intervenções nesse âmbito. Uma perspectiva no essencial weberiana, que tem sido seguida por inúmeros autores que têm escrito trabalhos (e formulado considerações) sobre a lógica (própria e semi-autónoma) das bureaucratic politics. No caso que aqui abordo, esta perspectiva não será uma surpresa: a própria feitura das leis a que aludo depende de negociações logradas por meios de circulação de versões-projecto dos textos pelas várias partes interessadas. 4 Um dos principais traços distintivos dos regimes internacionais ( se é que podemos considerar como institucionalizados a esse ponto os esforços empreendidos) da Cooperação portuguesa tem sido a natureza da sua inclusão progressiva (de facto, e de forma ad hoc) na política externa nacional. Ao contrário do que se passa com a ajuda pública ao desenvolvimento levada a cabo pela maioria dos outros países, por regra lançada num arco amplo, a Cooperação oficial bilateral portuguesa tem tido como destino quase exclusivo as cinco ex-colónias africanas: entre 1991 e 1997, de um valor total de 1300 milhões de dólares, 1200 milhões (mais de 90%) foram canalizados para os PALOP; em 1997, esta percentagem tinha aumentado para 97,5% do montante total (cf. ICP, 1998: 22; OCDE, 1997: 7-8).

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A COOPERAÇÃO CULTURAL PORTUGUESA, 1974-1999 A fase de gestação da Cooperação Cultural portuguesa Se ensaiarmos uma divisão da Cooperação Cultural portuguesa (ou da Diplomacia Cultural portuguesa de Cooperação, como se poderia chamar-lhe) em fases, épocas e períodos, em unidades temporais mais ou menos discretas e bem circunscritas, três grandes blocos, com características e durações variáveis, se parecem impôr. Uma primeira fase, que apelido de fase de gestação da Cooperação Cultural do Estado português, corresponde ao intervalo que vai do 25 de Abril de 1974 até 21 de Janeiro de 1977, data da assinatura do primeiro Acordo Cultural do Estado português com um PALOP, Cabo Verde5. Nesta época inicial da política de Cooperação Cultural do Estado, foi levada a cabo uma primeira enunciação geral dos (poucos) grandes princípios estratégicos oficiais portugueses neste âmbito. A Cooperação (a ajuda pública ao desenvolvimento das hoje ex-colónias) começou num contexto de enorme indefinição para o Estado português. Com a Revolução de Abril a aventura africana tivera um fim abrupto. O anti-colonialismo, de um dia para o outro, tornara-se indiscutível. A autoridade do Estado, ela própria, entrara em crise. Curiosa e, como iremos ver, paradoxalmente, esta fase de arranque (não obstante a forte politização6 que à época pautava toda a acção do Estado) acabou por ser marcada por uma postura pública quanto à Cooperação Cultural que fazia questão de bem reflectir os chamados “interesses nacionais mais permanentes”. A posição oficial, relativamente a África, no fundo nisso não mudara: sem dúvida em consequência das incertezas relativas tanto ao futuro de Portugal, como quanto aos das colónias, insistia-se, apesar das truculências conjunturais então vividas, na imprescindível independência genérica da Cooperação (e sobretudo da Cultural) relativamente a todas e quaisquer opções de regime que viessem a ser assumidas pelos novos países africanos. E, correlativamente, em relação a quaisquer alternâncias democráticas a que sucessivos governos portugueses fossem dando expressão. Não era claro como isso seria exequível; mas tratava-se decerto de mais que de uma mera salvaguarda. Num certo sentido, foi como se se asseverasse que a ajuda pública ao desenvolvimento, visto responder a imperativos históricos indeléveis, não iria fazer parte, pelo menos enquanto instrumento político-ideológico, da acção

5 Poder-se-ia talvez porém argumentar, porventura com alguma fundamentação, que esta primeira fase se estende no entanto e efectivamente apenas até 22 de Fevereiro de 1976, data do reconhecimento oficial da declaração unilateral, pelo MPLA, de independência da República Popular de Angola. Com efeito, este acontecimento teve enormes consequências, inclusivamente no que toca à acção cultural do Estado português no grupo das (a partir daí) ex-colónias africanas. No entanto, e já que apesar destas consequências esse reconhecimento não está relacionado com aspectos culturais, não me parece útil esta linha eventual de demarcação. As suas repercussões a nível do design oficial das intervenções culturais portuguesas em África justifica em todo o caso que se lhe faça esta alusão. 6 Ou, pelo menos, a natureza fragmentada e muitas vezes contraditória das “forças vivas” que então se manifestavam no âmbito então tão permeável do Estado português.

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externa do Estado; ou, fosse como fosse, que não iria ser condicionada por considerandos desse tipo. Uma declaração piedosa de boas intenções que, como veremos, nunca houve nem a isenção nem a firmeza necessárias para cumprir de maneira sustentada. A dimensionação no essencial política desta primeira fase da actividade de Cooperação Cultural do Estado português é porém incontornável. Nuno Severiano Teixeira (1996: 81-82) teve muito provavelmente razão ao caracterizar as opções diplomáticas do “período pré-Constitucional” de pós-25 de Abril de 1974 como “o último avatar, agora socializante, da tese tão cara a Salazar, da ‘vocação africana’ de Portugal” (ibid: 82). Não obstante as divergências, as oscilações, e as dúvidas7 havidas, insistiu, “durante os governos provisórios e em particular aqueles de maior preponderância militar, a orientação global da política externa portuguesa tende para uma opção terceiro-mundista e para o desenvolvimento de relações privilegiadas com os novos países saídos da descolonização portuguesa”(ibid.). Os olhos do poder continuaram postos em África; e, com eles, muitas das prioridades da nossa política internacional. A acção cultural do Estado, naturalmente (e num prenúncio de uma tensão, que se iria agravar, entre modelos ideais e práticas diplomáticas concretas) não escapou a esta orientação largamente intrínseca e tácita. Mais que propriamente uma postura assumida, ideológica ou politicamente fundamentada com minúcia ou coerência, tratava-se como que da permanência, largamente impensada, de uma orientação geopolítica e de uma perspectivação estratégica já então de uma centralidade secular para os modelos oficiais da identidade nacional portuguesa. Esta fase de gestação da Cooperação Cultural oficial foi todavia crucial, ao implicitamente conceptualizar a ajuda pública ao desenvolvimento como uma das finalidades centrais do Estado português. Um padrão de ideias que configurava de facto um legado do passado colonial, transmitido, no essencial, aos vários regimes políticos que se foram sucedendo. A transformação foi simples. Imperceptivelmente, o “discurso civilizador” do regime autoritário deslizou para a “responsabilidade histórica” da Democracia recém-instaurada. Numa versão não esbatida mas reinvigorada por novas e mais legítimas coordenadas de “correcção política” avant la lettre, o excepcionalismo português tradicional pôde melhor articular essa responsabilização ético-humanitária com enunciados sobre o interesse nacional numa síntese “solidarista” rica em potencial. A Cooperação (e, enquanto uma sua parcela nobre, mas soft, a Cooperação Cultural) emergiu assim desta época gestacional e formativa dos anos imediatamente subsequentes à Revolução como um dos instrumentos de eleição, supra político-ideológico, da acção externa do Estado português. Uma parcela de início concebida não como

7 Ou, segundo N. Severiano Teixeira, “apesar das lutas, das hesitações e da indefinição” (ibid. 81). Três teses, chamemos-lhes assim, estavam então em confronto: uma federativa, de António de Spínola, de que alguns proponentes não enjeitavam a variante que previa a “independência branca”; outra, terceiro-mundista, que favorecia independências depois de “períodos de transição” de autodeterminação crescente, protagonizada por Melo Antunes; e uma última, a vencedora, cuja face visível era Vasco Gonçalves, que insistia na independência imediata das colónias, sob liderança dos movimentos político-militares que nelas tinham conduzido “lutas armadas” contra a “ocupação portuguesa”. Como escreveu N. Severiano Teixeira, “sob as lutas ruidosas do processo de democratização interna, trava-se uma outra luta, silenciosa, sobre os objectivos e as opções estratégicas da política externa portuguesa”(idem).

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um utensílio político: antes como um meio pragmático, para o qual havia um largo e muito abrangente consenso nacional, em que todas as ideologias se podiam rever; e um meio com virtualidades amplamente consideradas indiscutíveis. Mas sem que tais ambições passassem de meros projectos. Numa visão crítica de conjunto, a fase de gestação da Cooperação Cultural portuguesa pode ser caracterizada por uma grande generosidade de declarações aliada a uma notória paucidade de realizações concretas. Muito se gizou e se sublinhou ser de empreender; e, talvez sobretudo, muito se aventou quanto aos nobres objectivos e à consequente natureza ética e humanitária da Cooperação oficial. Mas muito pouco foi efectivamente feito8. Um menu rico, para o que afinal redundava numa dieta frugal.

Outra coisa não seria de esperar. Entusiásticas mas inconclusivas, as poucas realizações levadas a cabo que marcaram esta fase inicial da acção do Estado nos PALOP traíam, com nitidez retrospectiva, a incapacidade das elites oficiais portuguesas de então para reconhecer tanto a alteridade9 dos novos países africanos, como a especificidade de cada um deles. E o Estado português não tinha disponibilidades, reais projectos consequentes, nem estruturas organizacionais que lhe permitissem actuar de forma eficaz nessa nova frente. As poucas acções e actividades empreendidas foram por conseguinte muitas vezes idealistas, voluntariosas, ideologizadas, soltas, avulsas, inadequadas às realidades empíricas dos novos países. Um rol de limitações que só o tempo e a experiência iriam esbater, mas sem infelizmente nunca efectivamente para elas se ter sabido encontrar remédio. Em todo o caso, e sem embargo das formulações ambiciosas e utopistas que se faziam ouvir, esta fase de gestação cedo confirmou uma espécie de primeira integração10, ainda que de forma ambígua e muito sui generis, da

8 A Cooperação Cultural realizada (mesmo se a expressão for tomada numa acepção lata) foi avulsa e essencialmente circunscrita ao Ensino e à divulgação de técnicas. Cheio de idealismo utópico e voluntarista, o Estado raramente o soube moderar com realismo: há que referir, neste contexto, as tentativas então levadas a cabo de montar em África, com o apoio do Movimento das Forças Armadas e alguns dos seus aliados políticos objectivos (como então se dizia), ambiciosos Programas de Alfabetização de populações urbanas e rurais, em campanhas tão de acordo com o Zeitgeist que condicionava os políticos e militares portugueses então no poder. 9 Uma leitura cuidada das inúmeras opiniões expressas e dos artigos de intervenção, então publicados na imprensa por responsáveis e políticos portugueses, deixa a impressão que a Cooperação Cultural seria vislumbrada como algures a meio caminho entre a “dinamização cultural” e os Cursos de Língua e História Pátria tão caros ao regime autoritário anterior. Como se o objectivo primeiro fosse, não cultural e educacional, mas de fabricar e montar apressadamente uma ponte virtual que unisse, num todo político maior e mais correcto, as carências deixadas pela colonização a as ambições de agitação e propaganda daqueles que sentiam ser primordial ajudar a criar bases para as jovens nações africanas. 10 Viria a revelar-se uma confirmação de peso. Mas, como iremos ver, uma confirmação só plenamente levada a cabo pari passu com a progressiva reinserção de Portugal nos palcos internacionais de que desde há muitos anos andara arredado. Numa perspectiva de mais longa duração, esta primeira fase de Cooperação Cultural do Estado português significou, em todo o caso, como que uma tomada de consciência preliminar e irreversível, pela Diplomacia portuguesa, das relativas especifidades nacionais e sócio-culturais de países cujas diferenças eram até aí sobretudo concebidas, pelo menos a nível

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Cooperação (e, em particular, da Cooperação Cultural) no âmbito genérico da política externa portuguesa. Para levar a cabo uma Cooperação que reunia consensos unânimes (ou quase unânimes) cedo se revelaram imprescindíveis instituições públicas de suporte. Havia que montá-las. O que, na situação de fluxo vivida à época, nem administrativa nem politicamente foi fácil de concretizar. Como poderia ser de esperar para um Estado em rápida mutação, a definição de uma natureza e de um lugar de inserção de organismos dedicados à Cooperação Cultural portuguesa (ou à sua incipiência) nesta primeira fase constituiram decisões complexas. Mas, por isso mesmo, foram decisões instrutivas porque particularmente reveladoras. Face à polémica então acesa quanto à forma de autodeterminação a adoptar para as chamadas Províncias Ultramarinas, o antigo Ministério do Ultramar (em essência, senão na denominação) manteve-se, no quadro orgânico dos Governos Provisórios do pós-25 de Abril, sob a égide de uma unidade englobante genérica a que foi dado o nome abrangente de Ministério da Coordenação Interterritorial11. Uma solução interessante para um problema explosivo: como se para exorcisar o colonialismo o Estado precisasse de primeiro o controlar. Uma solução, afinal, bem pouco duradoura, como seria de antever.

A catadupa de acontecimentos encadeados em atropelo que definiu a conjuntura, depressa tornou porém essa decisão anacrónica. Ou, em todo o caso, insuficiente: a arquitectura orgânica do Estado deixara de reflectir, de forma adequada, a nova distribuição do poder. Com o evoluir fluído das reestruturações políticas e administrativas típicas da época, pouco depois, logo a 31 de Dezembro de 1974, foi criado um Gabinete Coordenador para a Cooperação, que incluía, nas suas atribuições e competências, a Cooperação Cultural, Educacional e Científica com os futuros Estados que viriam a ser apelidados de PALOP. E foi ancorado na Presidência da República. A um tempo mais e menos que uma panaceia para o carácter transitório da medida anterior, esta solução, ainda que apenas remédio temporário e fugaz, teve o mérito inegável de destacar a ajuda pública ao desenvolvimento das ex-colónias como um domínio com estrutura e integridade próprias; e, da perspectiva dos poderes públicos, a vantagem de assegurar ao Estado o seu controlo efectivo. O Gabinete, constituído para fazer face a questões reputadas urgentes por um Governo que se previa instável, a operar directamente ao abrigo de uma Presidência da República e, sobretudo, de um Conselho da Revolução, difíceis de contornar, manteve-se em funcionamento até finais de 1979. A sua caracterização seria determinante. Mas a sua hegemonia, como haverá ocasião de verificar, foi efectivamente sol de pouca dura12.

oficial, como variações regionais. Uma tomada de consciência que como linha de força desde então tem vindo a percorrer toda a acção cultural do Estado em África. Mais: uma percepção que se tem intensificado e se tem afirmado como um dos principais fios condutores que tornam inteligíveis as transformações que têm ocorrido na postura oficial portuguesa neste domínio; se bem que de maneira nenhuma o único. 11 Ao facto, e também seguramente em consequência da transferência directa de um para outro organismo do grosso do “pessoal do quadro”, se devem algumas das dificuldades deparadas ao procurar dar uma forma adequada à nova Cooperação dedicada ao relacionamento com as jovens nações africanas em gestação. 12 O preço pago pelas hesitações e pelas soluções de compromisso do Estado foi altissimo. Como escreveu João G. Cravinho, num curto artigo de opinião que oferece um excelente tour d’horizon sobre a Cooperação portuguesa, “para Portugal o ‘regresso a

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Vale a pena esmiuçar um pouco o carácter jurídico-político deste Gabinete. Um orgão dotado de autonomia administrativa, constituído mediante um Despacho e sob o controlo do Presidente da República (na altura F. da Costa Gomes), o Gabinete Coordenador para a Cooperação tinha como finalidade explícita geral a missão de “elaborar estudos, pareceres e relatórios de síntese e formular sugestões relativamente ao processo de cooperação com os novos ou futuros Estados de expressão portuguesa” (Artigo 3º, 1). Segundo o Decreto-Lei que o institucionalizou (Decreto-Lei nº 791/74, de 31 de Dezembro) competia-lhe, entre outras funções, “recolher e coordenar as informações de natureza…cultural, educacional e de investigação” (Artº 3º, 2a)) sobre esses Estados. E, de acordo com a mesma alínea (preconizando, aliás, uma vontade de centralização que iria marcar os esforços oficiais portugueses nesta área) cabia-lhe “coordenar os trabalhos e propostas da mesma índole que lhe forem fornecidos pelos diferentes departamentos de Estado”. Ou seja, gerir aquilo que no seguimento do que fora a prática colonial, outros sectores estatais continuavam a levar a cabo. O estipulado no diploma legal não previa ainda uma obrigatoriedade; alguma discricionaridade era deixada a outros “departamentos”. Mas já continha indícios de uma tendência para a centralização burocrática que se iria tornar formato administrativo indiscutível de toda a Cooperação (incluíndo a Cultural) de natureza pública13. O objectivo era tão grandioso como irrealista. Foi sobretudo, porém, politicamente expressivo da época de transição que corria. O número 2, alínea 8, do Artigo 3º do Decreto-Lei que o criou enunciava e retratava, com clareza, tanto a finalidade que lhe subjazia como a tensão político-ideológica que na altura se vivia: ao Gabinete competia o “estabelecimento, em base voluntária, de uma comunidade cultural e enventualmente [sic] política”, entre Portugal e os futuros PALOP. Não se tratava verdadeiramente de uma prescrição: a fórmula encontrada era pouco mais que a expressão de um dos denominadores comuns das orientações geopolíticas e das perspectivações estratégicas que então cohabitavam no Estado. Sem grande contenção, o papel da Cultura na prossecussão dessa magna finalidade era claramente delineado, e delineado de maneira categórica e exaustiva: cabia ao Gabinete, para esse fim, “estudar…numa base de independência e igualdade, tendo em atenção os interesses recíprocos” portugueses e africanos, a “cooperação técnica e cultural, com particular relevo

África’ começou de forma penosa” (1998:22). O que emergiu da descolonização, à mercê de lutas político-ideológicas agravadas por tensões e resistências burocráticas e corporativas de retaguarda foi, com efeito, “uma estranha forma de cooperação”(ibid.): o que com ironia e coragem se chamou o “modelo português” de ajuda pública ao desenvolvimento. É pena que Cravinho se tenha limitado a um artigo de jornal, sem se abalançar a um trabalho científico de fundo (para o qual seria sem dúvida a pessoa indicada), que bem falta faz para uma melhor conceptualização de conjunto da Cooperação portuguesa. 13 O Gabinete Coordenador para a Cooperação foi criado no mesmo dia em que o Movimento das Forças Armadas lograra instituir, uma vez mais por intermédio de um Despacho presidencial, uma Comissão Nacional de Descolonização; embora (curiosamente) não fosse então detalhada qualquer ligação entre estas duas instituições, houve pelo menos uma óbvia lógica expressiva nessa dupla iniciativa, que sugere uma clara natureza de instrumento politico para o Gabinete, ainda que de uma forma oblíqua. Mas e sobretudo, de instrumento político interno dentro do aparelho do Estado.

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para o recrutamento de professores e técnicos em geral, bolsas de estudo e estágios de aperfeiçoamento e formação profissional, permanência de institutos de cultura portuguesa, desenvolvimento de novas metodologias de ensino de língua portuguesa, criação de novos organismos ou reestruturação dos existentes com vista ao desenvolvimento cultural, económico, científico e técnico” (Artigo 3º, número 2, alínea 3)). Numa visão historicista do seu próprio papel, o Estado instalava com este texto notável como que a matriz de base do que viria a tornar-se nas traves mestras da política de Cooperação Cultural portuguesa, tanto em termos da forma de enquadramento político (enquanto forma de “poder brando”), como ao nível dos seus conteúdos substantivos principais, que enumerava.

Num rápido balanço, as características e as limitações inerentes na instituição de rectaguarda que era este Gabinete iriam ter, como abaixo veremos, consequências não-despiciendas e de longa duração. Recapitulando o que foi dito: numa concessão aos tempos conturbados que então se viviam, e dada a natureza de facto presidencialista do regime de transição da época, o lugar de inserção destas atribuições e competências do Gabinete Coordenador no Estado traía a conjuntura política diacrítica da época; tudo o resto reflectia, com algum realismo pragmático, o status quo da distribuição de poder dentro do Estado. Criado de improviso em 1974, o Gabinete via-se todavia forçado a uma submissão à ordem legal vigente, que cometia funções, nas ainda Províncias Ultramarinas, a organismos próprios: os vários Ministérios e outras instituições públicas existentes. Hábitos político-burocráticos bem sedimentados tornavam esta dispersão consensual. O diploma legal que o instituíu instalou-se, no entanto, na brecha que fora aberta pela inoperância crescente desses vários organismos; e, sem dúvida por isso, decretou que “o Gabinete poderá, supletivamente, e a título excepcional, suprir a deficiência ou falta de resposta dos serviços públicos competentes, propondo a estes a execução das tarefas que lhes competirem” (ibid, número 3). Num estilo literário e gramatical dúbio mas com uma oportunidade indiscutível, os imperativos políticos foram obviamente encarados como legitimando um esforço concebido como devendo ser, obrigatoriamente, um gesto de coordenação central. Uma propensão estrutural que tinha vindo para ficar. Em finais de 1974, porém, um organismo como o Gabinete não tinha uma grande esperança média de vida. Ou melhor, tinha-a excelente a nível de instância de controlo, mas deficiente a nível organizacional. Com as rápidas alterações políticas, económicas, militares e sociais conjunturais, internas como externas, então comuns, uma mera cabine de controlo depressa se terá revelado improcedente: impunha-se a necessidade de ancorar a Cooperação oficial portuguesa num quadro simultâneamente mais estruturado, organicamente mais conforme à forma do Estado e, last but not least, politicamente mais expressivo dos novos tempos que se viviam. Os terrenos eram no entanto movediços. Era preciso mais, como base de sustentação. O que foi feito. O Gabinete manteve-se; mas em reconhecimento da divisão tradicional de funções entre os vários organismos do Estado, na vigência do IV Governo Provisório foi criada e, num sinal inambíguo das intenções eminentemente políticas das elites dominantes no Estado, foi integrada no Ministério dos Negócios Estrangeiros uma denominada Secretaria de Estado da Cooperação Externa14. Uma associação instrumental que preconizava uma confluência prolongada de funções; e um encetar de tensões

14 Cujo titular foi Jorge Sampaio.

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indissociável da definição de personagens. Em todo o caso foi claro este segundo gesto de inclusão da Cooperação no âmbito da política internacional portuguesa, pace as boas intenções iniciais.

Tal integração não aconteceu, porém, sem avanços e recuos. Pouco depois, durante o VI dos Governos Provisórios que se sucediam a bom ritmo, foi emulado o exemplo do Estado francês e deliberado constituír um Ministério autónomo da Cooperação, instituição que, na prática, nunca existiu realmente. Num meio estatal tão politizado como o que então se vivia, fora uma má aposta: num cenário e numa conjuntura em clara busca de legalidade, uma solução institucional alternativa urgente logo se tornou imprescindível face às reticências gerais, de imediato manifestadas, quanto à medida de criar um órgão ministerial novo para questões reputadas prioritárias; sobretudo quando o projecto parecia significar que, em termos políticos, a ajuda pública ao desenvolvimento iria poder funcionar em roda livre. O que era cada vez mais tido como impensável. A ineficácia dos formatos até aí ensaiados aliou-se por esta maneira à luta surda de interesses corporativos empenhados num monopólio centralista da acção externa do Estado, para exigir uma nova formulação. O momento, o da preparação do texto da primeira Constituição democrática do pós-25 de Abril, era apropriado; e na nova Constituição produzida, sem grandes surpresas, este monopólio iria caber ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mesmo as boas intenções de tornear implicações e cores mais carregadas para a Cooperação (evitando pelo menos condicionalismos expressamente político-ideológicos) revelavam ter alguma coisa de um expediente político.

A subida ao poder do primeiro Governo Constitucional levou ao abandono definitivo de figurinos incompatíveis com o novo quadro jurídico e assegurou assim a manutenção na orgânica deste Ministério, logo em 1976, da pasta da Cooperação. Desta vez para aí ficar indisputada por um longo período; a tentação de uma solução à francesa (a de uma Cooperação instalada num Ministério próprio) não resultara. O Governo extinguiu o projecto do hipotético Ministério da Cooperação e atribuíu ao MNE todas as suas competências virtuais (incluindo as culturais). Uma nova era tivera início. Foi seguramente um período de dolorosas incertezas; mas também de confirmações. Transladadas de organismo para organismo, todas as finalidades que eram da Cooperação Cultural oficial iriam sobreviver incólumes quanto ao essencial. As transformações políticas em curso, tanto em Portugal como em África, implicaram, como é óbvio, algumas sintonizações finas. A matriz estava porém instalada. Mais e pior: a permanência do mesmo quadro de pessoal que integrara o velho Ministério do Ultramar15 assegurou uma continuidade que iria ser difícil de abalar.

Muito tinha acontecido em dois longos anos. Política como administrativamente muitíssimo se tacteara. Tudo isto teve lugar, no entanto, sem que se tivesse verdadeiramente decidido dotar o Ministério dos Negócios Estrangeiros de mais que uma vaga “coordenação” da Cooperação portuguesa. Uma coordenação a que se contrapunha a disseminação empírica da pobre mas já muito variada ajuda pública ao desenvolvimento à época empreendida. Uma Cooperação em todo o caso cada vez mais densa e cada vez mais fragmentada por

15 Um ponto que mereceria decerto um tratamento mais extenso e detalhado, tanto em termos histórico-politicos como em termos sociológico-administrativos. Não me parece, porém, ser este o local mais adequado para o fazer.

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vários organismos públicos que se empenhavam, sob uma supervisão cada vez mais miópica de um Gabinete Coordenador presidencial, em acções e actividades dispersas nas suas respectivas áreas de interesse e competência. Contra esse pano de fundo, a atomização fazia-se ressentir. No que toca à Cooperação Cultural, os orgãos titulares das configurações cambiantes das pastas da Educação, da Cultura e da Ciência, partilhavam, com outros Ministérios, Secretarias de Estado, Direcções Gerais e Institutos avulsos (muitos deles legados pela fragmentação do antigo Ministério do Ultramar) diversos domínios em rápida expansão. Um panorama desordenado. Colocar a Cooperação no Ministério dos Negócios Estrangeiros, apesar dessa dispersão crescente e sob uma tutela presidencial e revolucionária exercida de forma episódica não era, contudo, decerto, uma solução organizacional satisfatória. Nem produzia um equilíbrio estável. Redundava em pouco mais que uma entrega de tarefas, ou da sua orquestração técnica, a um organismo do Estado pouco habilitado a fazê-lo. Mais que propriamente a ajuda pública ao desenvolvimento, o Ministério dos Negócios Estrangeiros herdara uma arena para tensões e disputas “territoriais” inevitáveis. Do ponto de vista das elites do Ministério16, não terão ficado dúvidas sobre a direcção em que urgia modificar a situação vigente.

A fase de enquadramento jurídico A esta primeira fase de gestação seguiu-se uma segunda, caracterizável pelos esforços empreendidos no sentido de um persistente e tendencialmente exaustivo esforço de enquadramento jurídico da política de Cooperação Cultural do Estado. De algum modo, tratou-se da configuração de planos directores: quadros de referência que se propunham ordenar e regimentar a acção cultural pública nos PALOP. Como irá ver-se, largos passos foram dados nesse sentido. Passos de alguma consequência. Chamo a esta bloco, comparativamente fácil de delimitar, a fase de enquadramento jurídico17 da Cooperação Cultural portuguesa; corresponde ao período que vai de 21 de Janeiro de 1977, dia da assinatura do Acordo Cultural com Cabo Verde, até 30 de Junho de 1982, data da celebração do último Acordo Cultural com um PALOP. No caso Moçambique.

A par e passo, tudo se foi alterando. Se bem que a ajuda pública ao desenvolvimento se tenha mantido sediada no Ministério dos Negócios Estrangeiros e nele tenha vindo a ser dividida de uma maneira tão artificial como nefasta, tratou-se de um intervalo em que o Estado assestou baterias sobre a

16 Ou, pelo menos e em todo o caso, para aquelas elites do Ministério que à época achavam que as ex-colónias mereciam algum empenhamento e para aquelas outras, mais numerosas, para quem uma defesa sustentada da “imagem da casa” era considerada imprescindível. 17 É de notar que a primeira fase de gestação da Cooperação Cultural portuguesa grosso modo coincide com o que noutros lugares apelidei da East Side Story, respectivamente a política estatal de criação de Leitorados de Língua e Cultura portuguesas (A.Marques Guedes, 1998), e a política de celebração de Acordos Culturais bilaterais (A. Marques Guedes, 1998a). Quanto à fase de enquadramento jurídico da Cooperação Cultural oficial, coincide largamente com as fases de reforço dos laços históricos portugueses que aí delimitei. É interessante verificar, por fim, a sobreposição entre a última fase que irei descrever (de construção de relações de interdependência) e as fases de trivialização política que isolei relativamente a Leitorados e Acordos Culturais.

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orgânica e sobre a regulamentação da sua acção cultural em África. Foram assim assinados não só Acordos Culturais propriamente ditos, mas também Acordos-Quadro de Cooperação, Acordos de Cooperação nos domínios do Ensino e da Formação Profissional, e ainda variados Acordos de Cooperação Científica e Técnica, com todos os PALOP. Uma leitura atenta destes textos é instrutiva: a intimidade desses diversos instrumentos legais, desta rede jurídica de relações, só é comparável com aquela outra que, alguns anos mais tarde, o Estado português viria a estabelecer com os países europeus comunitários. Como poderia talvez ser de esperar para um período de tão grandes transições, a estratégia de celebração dos diversos Acordos que servem de quadro legal de referência para a Cooperação Cultural oficial portuguesa não foi nem homogénea, nem ordenada. Os numerosos Acordos foram sendo assinados ao sabor de conjunturas políticas internas e externas friáveis e em rápida transformação; e foram celebrados em contextos mutáveis das relações diplomáticas bilaterais18 que o Estado entretinha com cada um dos países africanos. Estão por conseguinte longe de formar um todo coerente ou exaustivo. Mas nem tudo foi inconsequente: depois das declarações generosas da primeira fase da Cooperação Cultural pública, este intervalo como que pôs os pés no chão, definindo meios e veículos para acções e actividades culturais, canalizando esforços, estipulando (ou pelo menos circunscrevendo) metas recíprocas implícitas e linhas de horizonte. Não foi, porém, um tempo de uma autêntica definição de políticas de Cooperação Cultural. Em 1976 e finais de 1979 mantiveram-se, em paralelo, uma Secretaria de Estado da Cooperação (no MNE) e um Gabinete Coordenador para a Cooperação (na Presidência da República). Pouco mudou, no que dizia respeito às práticas avulsas e dispersas que davam corpo às intervenções e às campanhas culturais do Estado português nos PALOP: descoordenadas, atomizadas, e em todo o caso por via de regra pouco eficazes, inicialmente respondiam mais a imperativos impressionistas e amadoristas de que a uma política substantiva e consequente de Cooperação Cultural. Depois da fase inicial, reinou nesta segunda fase uma notória frugalidade escondida por trás de convites sonoros para um banquete de Estado. Alguma progressão se foi no entanto tornando palpável. Compreensivelmente, esta fase de enquadramento legal da Cooperação Cultural do Estado (como talvez fosse inevitável dadas as aturadas discussões e negociações subjacentes à preparação dos seus vários veículos e instrumentos) saldou-se na prática por um ligeiro aprofundar da consciência da alteridade dos PALOP. Em resultado dos diferentes escolhos e resistências encontrados, aflorou entre as elites burocrático-estatais portuguesas um leve discernimento inicial quanto à especificidade19 de cada um deles: mais e mais se impunha a evidência 18 Não é por isso surpreendente que se verifiquem inúmeras diferenças formais e materiais nos conteúdos dos muitos textos negociados nesta segunda fase (mesmo entre os que dizem respeito a uma mesma relação bilateral); diferenças que têm levantado dificuldades técnico-jurídicas complexas na conciliação da interpretação do seu alcance e mesmo em termos de eventuais conflitos entre preceitos gerais que instituíam os quadros relacionais. 19 Valerá a pena distinguir, nalgum detalhe, o que significou concretamente, para as elites do Estado português, o primeiro processo a que aludi de tomada de consciência (o da alteridade dos PALOP) do segundo (o das suas especificidades). A consciência da alteridade exigiu a reformulação das coordenadas de uma administração colonial de acordo com a reconversão desta em ajuda pública ao desenvolvimento. Na área cultural

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que cada caso era um caso20, e que o tratamento de todos em bloco reflectia porventura melhor o significado unitário das ex-colónias para a identidade nacional oficialmente propugnada pelas elites do Estado português, do que propriamente a realidade cultural empírica de cada país e da sua ligação a Portugal. Com a instalação desta segunda fase muito disso iria mudar. Novas conjunturas relacionais impunham novos constrangimentos e, no contexto da elaboração de instrumentos jurídicos de interface, era difícil evitá-lo. Estatutos políticos recíprocos foram postos sob luzes fortes. Diferenças foram evidenciadas, com ênfase, nos tipos de subdesenvolvimento de que todos os PALOP eram vítimas. As consequências não se fizeram esperar. Devagar, mas numa progressão que se iria revelar inexorável, em consequência os poderes públicos foram-se tornando um pouco mais selectivos nas decisões de ajuda pública ao desenvolvimento que assumiam, a nível cultural como a outros. Vista do presente, a direcção da evolução das coisas nesse curto intervalo parece nítida. Depois de uma primeira fase em que foram instaladas traves mestras, e em que se viram definidas finalidades voluntaristas para a Cooperação Cultural, o Estado encetou uma segunda fase, mais laboriosa, em que como que tentou sedimentar tabuleiros para as políticas possíveis. Em poucos anos, entrara-se num novo mundo. O horizonte estava pejado de minudências. Com tempos diferentes consoante a relação bilateral, e não obstante as inércias institucionais que inevitavelmente se tinham acumulado, para trás foram ficando as campanhas idealistas de alfabetização, os contingentes maciços de jovens professores cooperantes, as interfaces directas, lineares e policentradas entre organismos estatais portugueses e africanos. As novas regulamentações acordadas reflectiam, evidentemente, as novas conjunturas internas e as relacionais. Mas, num sentido positivo claro, os quadros formais negociados iriam por sua vez canalizar e enformar a Cooperação Cultural que o Estado levou a cabo neste segundo período. As alterações que se radicaram foram sintomáticas. E foram imensamente consequentes. Canais institucionais desenharam mapas para os novos saldou-se, por exemplo, na substituição de um sistema de Ensino, como instrumento de socialização das populações africanas e luso-descendentes, por uma intervenção limitada ao apoio a projectos pedagógicos reputados de interesse para o Estado português: como percurso paradigmático, os antigos Cursos de Língua e História Pátria, obrigatórios para os militares, viram-se reduzidos a Cursos de Língua e Cultura portuguesas, oferecidos, opcionalmente, por Leitores a estudantes universitários. Em contraste, as especificidades culturais dos PALOP, significaram, em termos muito genéricos, uma reformulação dos projectos propagandísticos de "alta cultura" (tão caros à Diplomacia Cultural portuguesa) em programas de formação técnico-profissionais, acoplados numa segunda fase à co-produção de programas de Televisão para crianças e a alguma Cooperação Desportiva (ambas claramente concebidas como de "baixa cultura", ou "cultura popular"). Uma rara concessão. Não obstante a coexistência de esquemas alargados de atribuição de numerosas bolsas de estudo de vários tipos e níveis a membros das elites africanas, a abertura das Escolas Portuguesas a locais e alguma cooperação inter-universitária bi- e multilateral, parece ser esta a tendência evolucionária mais recente de Cooperação Cultural oficial portuguesa. 20 O reconhecimento deste facto, como iremos ver, tardou a chegar: a Direcção Geral da Cooperação, criada em 1979, não incluía na sua orgânica nenhuma entidade dedicada a uma qualquer coordenação geográfica da Cooperação, nela um mero pelouro. No Instituto da Cooperação Portuguesa, que se lhe seguiu, essa unidade foi criada como uma Direcção de Serviços de Coordenação Geográfica.

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relacionamentos culturais bilaterais, em termos políticamente tão assépticos quanto possível. Chegara-se ao domínio das Bolsas de Estudo, dos Cursos de Formação Profissional, dos “intercâmbios de pessoas” e “de materiais”, das “equivalências académicas”, dos Institutos e Centros, das exposições itinerantes e outras. As implicações foram profundas. De cenários dominados por clamores político-ideológicos em disputa, transitou-se imperceptivelmente para o domínio das lutas silenciosas de burocracias e gabinetes.

Mais uma vez a situação vivida extravazava o quadro que a era suposto conter. Uma vez adoptados novos ritmos e assumidas novas práticas de relacionamentos bilaterais, impunha-se um novo enquadramento institucional que lhes soubesse fazer justiça. Como insisti, o regresso da Cooperação ao Ministério dos Negócios Estrangeiros fora, em 1976, levado a cabo em cumprimento de uma forte vontade corporativa e de acordo com os preceitos constitucionais vigentes. Mas, como também alertei, este Ministério não estava então tecnicamente apetrechado para lograr assegurá-lo de um modo eficaz. Talvez mais gravoso, o Ministério não tinha, nesse âmbito, grande autonomia. Nem era fácil, na última metade dos anos 70, retirar competências a uma Presidência da República com o mesmo titular que um Conselho da Revolução ainda preponderante. Cada vez mais interessado numa ligação a África cujas virtualidades, em termos de poder e protagonismo (nacionais e internacionais), cresciam a olhos vistos, o MNE via-se forçado a conviver com um Gabinete Coordenador para a Cooperação cada vez mais alheado. Uma situação que se iria agravar e arrastar durante três anos; capturar a Cooperação para o seu portfolio de finalidades, ou pelo menos de atribuições e competências, fora talvez uma vitória demasiado rápida e fácil. Durante esses três anos suplementares, o Ministério viu-se ademais obrigado a uma articulação (ainda que indirectamente) com outros Ministérios na definição da ajuda pública ao desenvolvimento que empreendia; uma experiência que deixou marcas profundas. Pior: à medida que avançava o decénio, maior peso adquiria em África a Cooperação paralela conduzida pelo PCP e por agrupamentos cívicos “independentes” que juntavam portugueses e luso-descendentes nas ex-colónias. Para elites diplomáticas que não tinham já então dúvidas em ver na Cooperação uma dimensão política crucial para a reafirmação externa de Portugal, e que acordavam para o potencial dela em termos da sua própria afirmação interna, a situação foi vivida21 como calamitosa.

Em finais de 1979, o pesadelo, finalmente, terminou. Uma parte do problema logrou ver-se resolvida: um Gabinete perspectivado nos Negócios Estrangeiros como a meio caminho entre uma arma presidencial de arremesso e um peso morto foi em definitivo extinto. Com a estabilização da nova ordem democrática, os poderes presidenciais entraram em retrocesso. O Ministério, por fim, pôde bater-se por uma tão almejada hegemonia na Cooperação. E, talvez por 21 O que é no mínimo curioso e sublinha bem o corporativismo centralista vigente naquele Ministério: em quaisquer outras condições, a participação da sociedade civil na Cooperação seria encarada como uma aliança útil e encorajadora. Será interessante um eventual estudo empírico destas tensões exclusivistas, sobretudo no que diz respeito a Cooperantes e a Escolas Portuguesas: dois dos palcos principais dos braços de ferro locais entre o Estado e a Cooperação Cultural “civil”. É interessante notar que, se é verdade que tensões da mesma natureza foram vividas noutras áreas da Cooperação, foi no entanto na área cultural (porventura por esta ser reputada como mais “ideológica”) que elas mais se fizeram sentir. Um outro exemplo foi o da Cooperação Militar.

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precipitação, cometeu uma imprudência: porventura alarmados com a escala do seu novo acquis, e face a um Ministério das Finanças que não queria ceder terreno, as elites diplomáticas consentiram então numa divisão cujas implicações não parecem ter sabido antever22. Numa curiosa distribuição de competências, foi constituída no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1979, uma chamada Direcção Geral da Cooperação, que abarcava toda a Cooperação Cultural, Educacional, Científica, da Saúde e Segurança Social, Desportiva e Militar, englobando a chamada Cooperação "sócio-cultural". Em tutela partilhada com o Ministério das Finanças, já antes fora lá erigido, logo em 1976, um Instituto para a Cooperação Económica, que guardara para si toda a Cooperação Técnica e Formação Profissional, no âmbito de uma acção concebida como sendo no domínio "económico-financeiro". Com esta coexistência consumava-se a instalação de uma linha de fractura estranha e artificial, que separava duas entidades orgânicas diferentes para objectivos estratégicos (no âmbito cultural lato, como noutros) unitários, ou pelo menos dificilmente dissociáveis. Uma

22 Talvez seja mais adequado conceptualizar esta fractura entre a DGC e o ICE não enquanto a expressão de uma vontade de legitimar uma divisão dúbia, mas antes como uma táctica política para uma contenção do Ministério das Finanças: desta perspectiva, não foram propriamente criados dois organismos para a Cooperação, mas antes circunscrita ao limite do possível (o ICE) a intervenção das Finanças nesta área que o Estado insistia em conceber como parte integrante da sua política externa.

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receita para o desastre23, o que não passou despercebido a uma meia dúzia de observadores atentos e críticos24, logo quando do início da sua operação.

A escala da imprudência era bem legível na legislação (o Decreto-Lei nº 486/79, de 18 de Dezembro, por exemplo, relativo à Direcção Geral da Cooperação) então publicada. Mais uma vez, os quadros legais negociados e produzidos forneciam um reflexo das principais linhas de clivagem existentes na conjuntura interna do Estado. Faziam-no de uma maneira sofisticada. Tanto a forma como a ordem sequencial da divisão instituida soletravam, elas próprias, a presença de uma séria linha de falha entre o Ministério das Finanças, com fortes pretensões de controlo e protagonismo na área da Cooperação, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, com intuitos semelhantes. A este nível macro, chamemos-lhe assim, as relações de forças subjacentes viam-se, não à transparência, mas nas divisões e nas distinções operadas. Acomodadas as exigências das Finanças, tanto o híbrido Instituto para a Cooperação Económica (ICE), como a Direcção Geral da Cooperação (DGC) que congregou (depois de o primeiro estar constituido), todas

23 Mas nem tudo se mostrou negativo. Para a Cooperação Cultural portuguesa, as consequências foram decerto particularmente dolorosas e ainda hoje se fazem sentir; foi em todo o caso sob a égide da Direcção Geral da Cooperação que, em termos substantivos, o Estado português encetou verdadeiramente a sua política de Cooperação Cultural. Em termos gerais, os Acordos Culturais celebrados com os PALOP, entre 1977 e 1982, instalaram (e muitas vezes apenas formalizaram) o que iria tornar-se nas principais linhas de força da utilização, na África “lusófona”, de soft power cultural pelo Estado português. Como indiquei noutro lugar (A. Marques Guedes, 1998a), os Acordos celebrados com os PALOP eram ricos e minuciosos, compreensivelmente membros da família daqueles outros textos desse tipo negociados com países, então também socialistas, do leste europeu. Foram, simultaneamente, de uma enorme intimidade e de uma enorme prudência, ou contenção, no subtexto e nas entrelinhas. A circulação constante de pessoas e informações, em todas as áreas da Educação, Investigação Científica, Cultura, Meios de Comunicação, viu-se consagrada; a tendência parecia ser para uma geminação, ou emparelhamento, sistemático de instituições congéneres nesses vários âmbitos. Programas intensos de atribuição de bolsas de estudo para instituições portuguesas foram iniciados; como o foi o envio, para os países africanos, de professores de todos os graus. Equivalências académicas foram garantidas a todos os níveis de habilitação, configurando uma quase equiparação entre os seis currículos de Ensino e Educação. A defesa da Língua Portuguesa foi prevista. Intercâmbios em numerosas áreas culturais muitas vezes incluíam projectos de Formação Profissional, a ministrar, cá ou lá, por docentes portugueses. A instalação e abertura de Centros Culturais oficiais foi acordada. A nível da Comunicação Social, consagrou-se e assegurou-se enquadramento a redes de colaboração directa entre instituições equiparadas, numa rara cedência por parte dos poderes monopolísticos do Estado. Para melhor acompanhamento, avaliação e programação de todos os passos dados foram instituídas Comissões Mistas bilaterais e determinadas reuniões periódicas formais desses grupos. Em termos normativos (e na sedimentação de hábitos) a casa foi arrumada. 24 Muitos deles, compreensivelmente, funcionários dos Ministério dos Negócios Estrangeiros e das Finanças. Infelizmente, para lá de eventuais queixumes formulados em Ofícios, Informações de Serviço, ou Relatórios internos, pouco parece ter sido escrito sobre estas questões. Durante anos foi, porém, uma critica azeda comum nos corredores. É difícil apurar se as motivações subjacentes resultariam de uma ponderação racional e “objectiva” das condições de operacionalidade daqueles organismos públicos, ou se seriam uma expressão das convicções corporativas e das ambições centralizantes destes críticos.

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as atribuições e competências remanescentes foram, mais que propriamente organismos desenhados segundo quaiquer critérios de eficácia, soluções de compromisso. Mas sem que tal significasse um qualquer equilíbrio estável: os Decretos-Lei promulgados fizeram mais do que simplesmente asseverar, face à dispersão empírica até aí existente, a clivagem funcional possível e uma simples partição pragmática de águas. Concordaram em discordar. Mas deram um novo passo avante: preconizaram ainda, como princípio doutrinário, a desejabilidade de uma administração e de uma coordenação política futuras, porventura mais centralizadas no Ministério dos Negócios Estrangeiros25. Fizeram-no, porém, discretamente. Os textos legais continham, para o efeito, várias formulações inovadoras.

Vale a pena detalhá-lo. As inovações enunciadas foram particularmente edificantes. Eram, sobretudo, uma espécie de mediações prudentes. Segundo um formato que se iria tornar a regra, a legislação abordava a questão geral da dispersão (cujos meandros se viriam a revelar complexos) em termos de princípios políticos e logísticos formulados como consensos legitimadores. Plácidas indirecções que, como iremos ver, preenchiam um papel que importa saber não subestimar: escondidas por detrás deste véu, mal se entreviam as correlações de forças e interesses que os tinham negociado. Mas, subtendendo as coordenadas pragmáticas, essa efervescência estava lá. Assim, logo no Preâmbulo do texto que definiu a orgânica da DGC, a Cooperação portuguesa foi cartografada como uma expressão, simultânea, dos “princípios da solidariedade internacional” (em que, afirmava-se com convicção, “pelo seu passado histórico” Portugal se inseriria “com naturalidade”) e dos “interesses profundos e permanentes do povo português”26. Sob apelos éticos, o passado ligava-se ao futuro, com os olhos postos no exterior.

A esta preocupação com a política externa, o Decreto acrescentava, numa perspectivação que se propunha como sensata e se pretendia realista, ambições internas: no mesmo quadro interpretativo, era asseverado haver “a conveniência de evitar uma indesejável dispersão de meios e de recursos”, e era também sublinhado ser “o momento de dotar o Ministério do Negócios Estrangeiros com estruturas vocacionadas” para a Cooperação, nomeadamente a “sócio-cultural, científica e tecnológica”. Não era evidente quando (ou como) esses inconvenientes iriam ser ultrapassados, nem essas estruturas montadas. Quanto a um ponto este texto legal era porém claro, e era aí que se exprimia a irredutibilidade e o jogo de forças: se muito do esforço a empreender foi entregue ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, a essa responsabilidade não correspondeu (mais uma vez) nenhum real poder, pelo menos em termos monopolísticos.

25 Inversamente, porém, e dada a ambiguidade profunda das suas formulações, o diploma legal constitutivo da DGC pode ser visto como uma vitória da doutrina que propugnava a dispersão da Cooperação do Estado. 26 Preâmbulo, Decreto-Lei nº486/79, de 18 de Dezembro. Todo este notável texto preambular clama por uma eventual análise político-simbólica de detalhe. Limitar-me-ei aqui a sublinhar adjectivações relativas aos interesses nacionais como “profundos” ou “permanentes”; e a sublinhar também a extraordinária “naturalização” da ajuda pública ao desenvolvimento no “passado histórico” português. Talvez o mais interessante (como irei argumentar) seja a localização, conceptual e prática, da Cooperação na confluência de “princípios” e “interesses” portugueses.

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Com estudada neutralidade, o discurso legal esboçava um autêntico mapa topográfico de algumas das linhas de falha que se mantinham irresolvidas. O texto do Decreto de 1979 reconhecia, aliás, abertamente (no Preâmbulo, como no articulado) a legitimidade da partilha prescrita: “o Governo…preservará ou alargará as competências próprias de organismos…com responsabilidades no âmbito da Cooperação”. Sugeria, no entanto, ainda que em termos inócuos e não-específicos, haver uma consciência aguda das insuficiências engendradas por essa repartição. Nisso, mais uma vez, o Preâmbulo era inambíguo; atribuindo explícitamente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros um papel supletivo, o diploma distribuíu assim, sem embargo, à DGC “uma dupla tarefa”: a de, por um lado, garantir “a coordenação” das acções levadas a cabo por “entidades interessadas em programas de cooperação…no âmbito das suas respectivas competências”; por outro lado, a responsabilidade do “tratamento das formas de Cooperação não enquadráveis na competência de outros organismos oficiais”. Organismos e entidades com pudor nunca nomeados. Para bom entendedor a equação estava todavia alinhada. A finalidade, ou melhor, o virtual “centro geodésico” do texto legislativo: lograr “[dessa] forma…a desejável inserção [de todas] no quadro de uma política externa comum do conjunto de acções levadas a efeito” a nível oficial. Com alguma ambivalência, e muita indirecção, foi por conseguinte mapeada (mas só mapeada) uma reasserção vigorosa. Reconhecendo, de facto e de jure, a dispersão (e a sua legitimidade)27, o Estado não se poupava mais uma vez a esforços para declarar categoricamente preferir-lhe uma coordenação, sempre, é claro, em nome dos “interesses nacionais”.

Foi como que uma beatificação laica do centralismo burocrático, uma consagração articulada de maneira apaziguadora mas com alguma frontalidade. E, tal como já se vinha tornando hábito, foi um centralismo que aparecia legitimado enquanto requisito de uma política internacional eficaz. Mas, ainda que isso fosse desta feita asseverado em texto legislativo relativo à orgânica do MNE, sem ainda porém lograr formular uma localização institucional precisa para a definição dessa política. A extinção do Gabinete Coordenador deixara um vácuo pequeno mas perigoso. Um vazio, nomeadamente, no que tocava à liderança.

Para o Ministério dos Negócios Estrangeiros algum território tinha sido no entanto, a esse nível, ocupado. Vale a pena percorrê-lo em pormenor. No âmbito da Cooperação Cultural, as atribuições e competências entregues à DGC foram na prática enunciadas segundo um formato sincrético que (cometendo-lhe poucas funções específicas) lhe garantia um droit de regard28 e alguma legitimidade para intervir nas “competências de outros organismos oficiais” (Decreto-Lei nº486/79, de 18 de Dezembro, Capítulo I, Secção I, Artigo 2º). Sob o cravo estava todavia uma ferradura: no ponto (o Artigo 1º) imediatamente anterior, a nova Direcção-Geral fora circunscrita (de par com o ICE) como o instrumento “da acção do 27 O que, da perspectiva das elites apostadas na centralização de toda a Cooperação pública (nomeadamente aquelas, cada vez mais numerosas, que no MNE nisso se empenhavam), condenava o Estado a um eterno desfazamento entre autoridade e responsabilidade. 28 Talvez droit de regard seja um termo forte demais, visto que tal só funcionava realmente quando havia consenso: não era verdadeiramente um direito, visto não estarem previstos quaisquer mecanismos que assegurassem o cumprimento do prescrito. Pior: já que a DGC na prática nada conseguia alterar na actuação de outros organismos, depressa se cansou (e frustrou) de só olhar. Mas o texto assevera essa competência.

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Ministério dos Negócios Estrangeiros em matéria de cooperação internacional” [itálico meu]; era difícil ser mais explícito. Uma vez esclarecido este ponto prévio (um ponto de resto abundantemente repetido ao longo de todo o documento), o articulado do diploma legal estipulava que à DGC cabia “acompanhar e apoiar…[todas]…as actividades de cooperação nos domínios sócio-cultural, científico e tecnológico”, bem como “nos demais” não sujeitos a “outros organismos oficiais”; enumerava como matérias próprias da Direcção-Geral, a “avaliação” e a “execução” de “programas e projectos” culturais, a “coordenação”, “negociação” e “execução” de Acordos nesses domínios, permitindo-lhe “colaborar e intervir” na cooperação “cultural e científica” de “institutos e demais organismos…vinculados a outros Ministérios”29; e entregava-lhe controlo efectivo sobre tudo o que dizia respeito a Cooperantes oficiais30 portugueses, que à época abundavam em África. Os domínios recém-ocupados eram assim mais que meros territórios. Albergavam novas funções. Retomando o que atrás foi sublinhado: se o Decreto que criou a Direcção Geral da Cooperação reflectia ambições e correlações de forças, nele se espelhava também uma nova configuração de posturas para a luta burocrática pela hegemonia, num domínio central da articulação dos poderes públicos; e nele se exprimiam, correlativamente, novos objectivos, expressos sob as roupagens de novos consensos e princípios.

A razão de ser de tudo isso deve ser talvez procurada, em parte, no contexto sócio-político envolvente. Ou, pelo menos, nalguns dos seus traços. Repor o texto cartografado no meio concreto em que o diploma se imbricava restitui-lhe muito do seu sentido. A conjuntura externa de enquadramento apresentava-se como uma série de teias intrincadas e interligadas que o Estado português se empenhava em finalmente reintegrar, depois dos anos de ostracismo a que o regime autoritário condenara o país até 1974. A Cooperação aparecia na linha de horizonte como um campo privilegiado para a nossa afirmação e o nosso posicionamento internacional. Para quaisquer observadores atentos, o cenário para eventuais reinvindicações burocráticas estava por isso como que delineado de maneira categórica. Para as elites do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sempre alerta para questões de posicionamento, afirmação e representação, um enquadramento como este sublinhava nas entrelinhas, sem quaisquer dúvidas, a urgência de fundir firmente a Cooperação no âmbito da política externa do Estado, naturalmente sob sua condução.

29 Consequências não se fizeram esperar. Foi verdadeiramente épica a luta entre a DGC, e o Gabinete de Relações Internacionais, tutelado pelas várias pastas da Cultura que se foram sucedendo na orgânica do Estado português. O apoio subreptício à DGC dado pela maioria dos Embaixadores colocados nos PALOP, terá sido decisivo nos seus desenlaces locais, apesar do papel crucial do segundo em actividades como Feiras do Livro, Semanas de Cinema, etc.. O coup de grace verificou-se em 1994, na grande reestruturação geral da área cultural do Estado, que coincidiu com a integração do Instituto Camões no MNE e com a fusão da DGC e do ICE no Instituto da Cooperação Portuguesa. 30 Definidos como aqueles que exerciam as suas funções segundo um contrato trilateral que tinha como cosignatários o próprio, o Estado português, e o Estado africano receptor. Ao entregar à DGC este controlo efectivo, foi-lhe dado um presente envenenando: o MNE tornou-se alvo de tudo, desde conflitos políticos com a Esquerda a questões sindicais e laborais complicadas, passando pela abertura de tensões graves entre a Cooperação e a Imigração.

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O que não era uma ambição pacífica. No mesmo quadro, e ao invés, outros Ministérios e organismos não tiveram hesitações em ver os interesses nacionais como melhor assegurados, área por área, por entidades públicas vocacionadas para cada um dos subdomínios envolvidos (e neles experientes). O diploma legal reflectia claramente uma fórmula de compromisso entre estas posições negociais. Ainda que o fizesse de forma oblíqua. Mas espelhava também um ponto menos óbvio, para o qual todas as elites (ainda que contrafeitas) convergiam, quaisquer que fossem as instituições que representavam: as vantagens de uma eventual coordenação centralizada de esforços. Um ponto com que todos tinham dificuldades em discordar, dadas as novas oportunidades que tão aparentemente se ofereciam ao Estado.

E novas funções e oportunidades se vinham efectivamente a manifestar, à medida que o tempo passava e os cenários se sedimentavam. Portugal vivia, nos primeiros anos da década de 80, nos primórdios de um equilíbrio político-ideológico instável, que se manifestava por uma constante (mas tranquila) alternância democrática. Desde a passagem do decénio, numa saudável oscilação político-partidária, o panorama interno ia-se estabilizando. Mas, no aparelho de Estado, pouco mudara: o quadro orgânico de retaguarda em que iam sendo gizados Acordos Culturais portugueses nos PALOP continuava a ser o da Secretaria de Estado da Cooperação e, aí, o do par institucional constituído pela Direcção Geral da Cooperação e pelo Instituto para a Cooperação Económica. Uma parceria que se mostrava singularmente inoperante. Sempre integrados por um numeroso contingente de ex-funcionários das antigas administrações coloniais, com lideranças providas como regra por diplomatas, para quem postos desse tipo pouco mais significavam que um passo suplementar na sua lenta progressão numa carreira corporativa cada vez mais estrangulada, estes organismos tendiam para performances modestas na eficácia e deficientes no planeamento e logística de intervenções que se quereriam táctica e estratégicamente gizadas. O pequeno vácuo causado quando da extinção do Gabinete Coordenador para a Cooperação mantinha bem viva uma muito tangível acefalia; com consequências graves.

No início da nova década de 80, pouco tempo após a criação da DGC e o seu emparelhamento com o ICE, uma meia dúzia de anos depois dos seus primeiros passos, urgia novamente reformular e dar bases mais sólidas à Cooperação Cultural portuguesa. Como, aliás, a toda a ajuda pública ao desenvolvimento a que o Estado se comprometera com África. O que infelizmente se tentou fazer sem alterar estruturalmente o quadro de retaguarda: um meio que cada vez mais se ia caracterizando como o palco (a arena agonística) de uma luta entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e vários outros organismos públicos, convenientemente retratada e representada como uma disputa entre a dispersão e o centralismo enquanto estratégias do Estado. Pior ainda: dentro do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros (ou meio dentro meio fora, dada a dupla tutela do ICE), coagulava-se um ambiente cada vez mais marcado por um crescendo de dissonâncias entre os dois organismos vocacionados para a Cooperação com África. Foi uma época marcada por lutas surdas e localizadas. Manifestou-se por incompatibilizações pessoais, por pequenos duelos (pontuais mas recorrentes), e por boicotes no acesso a dados e pela sonegação de documentos. Houve seguramente uma efeverscência e uma contagem de espingardas; eram contudo recontros e desacatos que, se chegaram ao nível dos Ministros ou Secretários de Estado que se iam sucedendo (e chegaram), nunca

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deles exigiram verdadeiramente uma intervenção decisiva. Vivia-se um processo de lenta degeneração. A fase de construção de relações de interdependência Numa ordenação diacrónica da Cooperação Cultural do Estado português, a última fase pode ser denotada como uma fase de construção de relações de interdependência31. Uma época ainda em curso. Esta fase corresponde ao período que vem de 30 de Junho de 1982, a data da assinatura do último Acordo Cultural (com Moçambique), até hoje. Na aparência, tem sido uma fase ambiciosa: neste terceiro segmento temporal da Diplomacia da Cooperação Cultural do Estado, foram, num primeiro momento, nomeados Conselheiros e Adidos Culturais portugueses nas capitais dos PALOP (o último foi destacado para a Embaixada de Portugal em Luanda, em 1985) e foram abertos o que, com pompa e exagero, se apelidou de Centros Culturais portugueses em todos eles; o último32 criado, também em Angola, em 1995. E não foi tudo. Uma rede rica e policentrada de instituições e agentes começou a ser instalada. Numa inédita “viragem para África”, foram abertos pelo ICALP (o antecessor do Instituto Camões), a partir de meados da década de 80, Leitorados de Língua e Cultura portuguesas em variadíssimas instituições africanas de Ensino Superior33. Com cuidados criteriosos acrescidos depois dos desaires voluntaristas dos períodos anteriores, ao longo de toda esta última fase foram enviados para a África “lusófona” novos contingentes de cooperantes portugueses; começaram a ser ministrados variadíssimos Cursos de Formação Profissional; e foi (sem grande contenção) atribuído um número crescente de Bolsas de Estudo em variadas áreas do âmbito cultural (no sentido mais genérico). Um crescendo cumulativo.

Será em todo o caso imprudente formular generalizações excessivas: esta fase mais recente da Cooperação Cultural portuguesa não tem sido homogénea ou indiferenciada; nem a sua progressão tem sido contínua e linear. Seria talvez descabido subdividi-la em subfases, já que não parecem justificáveis quaisquer linhas que verdadeiramente demarquem parcelas mutuamente exclusivas, 31 Ou, pelo menos, de tentativas explícitas e sistemáticas em as erigir, com o intuito muitas vezes expresso de assim diminuir os riscos políticos de instabilidades em ligações que cada vez mais muitos consideravam útil acautelar. Fosse por considerar a relação de Portugal com África como vantajosa, fosse por a considerarem ameaçada pelo desinteresse crescente do Estado na “opção africana” (a que se somavam os desinteresses crescentes, e dia a dia mais explícitos, de alguns Estados africanos na “opção portuguesa”). 32 O primeiro Centro Cultural português num PALOP foi criado em Bissau, em 1979, para defender a Língua Portuguesa. Em 1980 foi aberto um segundo, em Cabo Verde, na cidade de Praia. Em 1984 foram criados mais dois: um também em Cabo Verde, no Mindelo (S. Vicente). Outro em Maputo, em Moçambique. Três outros se lhes seguiram em 1985: um em S. Tomé, outro na ilha do Príncipe, e um último na Beira, em Moçambique. 33 No ano lectivo de 1997-1998, estiveram em operação, nos PALOP, 15 Leitorados, providos por um total de 31 Leitores de Língua e Cultura portuguesas, dos 160 Leitores então em missão no Mundo. Em Cabo Verde havia 3 Leitores num só Leitorado; na Guiné-Bissau, 4 Leitorados incluíam 10 Leitores; em S. Tomé e Príncipe, com apenas um Leitorado, estavam 3 Leitores. Angola, com 2 Leitorados, contava com 6 Leitores, enquanto Moçambique tinha 9 Leitores em 7 Leitorados.

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complementares ou individualmente significativas, para as cinco relações bilaterais em que o Estado português coopera com os PALOP. Não é porém sem fundamento que se poderia fazer alusão a primeiras “subfases” tendenciais, de duração e geometria variáveis, porventura caracterizadas pelo estabelecimento de rotinas culturais relativamente uniformes, políticamente cautelosas e hesitantes no alcance; e poder-se-ia talvez ainda aludir a segundas “subfases” virtuais (ainda em curso) em que Angola, Moçambique (e talvez a Guiné-Bissau) têm sido apontados como problemas claramente especiais, enquanto Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe se encaram como casos exemplares. Ou, em alternativa, não é absurdo que se tente fundamentar34 uma subdivisão de fases no contraste pouco claro (e cronologicamente mal circunscrito) entre um testar inicial de águas e a estabilização de regimes de funcionamento da Cooperação Cultural oficial portuguesa, uma vez instalados interesses africanos dificilmente reversíveis. Apesar de possíveis e com algum fundamento, divisões desse tipo seriam porém aqui pouco úteis. Vejamos rápida e sucintamente a ordenação sequencial e a evolução cronológica das estruturas de retaguarda da ajuda pública ao desenvolvimento durante esta última fase. E faça-mo-lo contra o pano de fundo da variação da sua eficácia. Os primeiros anos do decénio que se seguiu à Revolução viram o enquadramento de sustentação democrática do Estado alargar a sua base de forma marcada. O poder, como consequência, foi redistribuído. Em meados dos anos 80, a correlação de forças no interior das elites do Estado português novamente se tinha alterado; e mais uma vez em benefício das expectativas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. As finalidades estratégicas, quaisquer que elas fossem, continuavam no entanto a escassear. O pequeno vácuo mantinha-se e com ele a indefinição política da Cooperação. Uma tendência geral era apesar disso nítida: lenta, mas progressiva e inexoravelmente, a água foi sendo levada ao moinho da coordenação central; por pequenos passos, é certo, mas numa progressão segura. Compreensivelmente descontentes com o que viam como limitações da Direcção Geral da Cooperação e do seu próprio papel, as elites da MNE não descansaram. E contra enormes inércias institucionais, com apoios políticos consentâneos e muito esforço, conseguiram alguns sucessos.

34 O que não creio com fundamentação legítima seria estabelecer uma linha de partição entre uma primeira fase, anterior à criação, em 1995, do Instituto da Cooperação Portuguesa (ICP), e uma segunda, que se lhe seguiria. Após quase duas dezenas de anos de inoperância, e face a um consenso pluripartidário, o Governo decidiu por fim, em meados dos anos 90, fundir num só organismo a DGC e o ICE criando o ICP. E em paralelo, foi deliberado criar um outro organismo, interministerial, que assumisse responsabilidades no financiamento (cada vez mais complexo e ineficiente) das acções e actividades de cooperação do Estado: o Fundo para a Cooperação. É questão interessante a de apurar até que ponto a concentração de funções, a par com a sua permanência no Ministério dos Negócios Estrangeiros, tiveram reais consequências em qualquer sector que seja da Cooperação oficial portuguesa. No âmbito cultural, a criação do ICP não se fez verdadeiramente sentir. Do mesmo modo, não creio ser legítimo operar uma partição entre subfases cuja linha divisória fosse 1992, quando da criação com pompa e circustância do Instituto Camões (IC) que chamou a si atribuições e competências até aí dispersas por vários organismos públicos. Também neste caso não houve alterações substantivas em quaisquer dos regimes de acção cultural externa do Estado português.

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O primeiro passo foi porém uma espécie de remendo: em meados de 1985, durante um Governo que tinha Mário Soares como Primeiro-Ministro e Jaime Gama na pasta dos Negócios Estrangeiros, foi promulgado o Decreto-Lei nº 266/85, a 16 de Julho, criando, “no Ministério dos Negócios Estrangeiros” (Artigo 1º) uma Comissão Consultiva para a Cooperação (CCC)35. O Preâmbulo desse novo diploma legal era inambíguo, entoando que “cabe ao Ministério dos Negócios Estrangeiros a coordenação global da política externa portuguesa”. Sem quaisquer concessões, o droit de regard estigmático anteriormente conquistado dera um marcado salto qualitativo. Fora um remendo com carácter de reforço. Às indirecções substituiam-se agora asserções categóricas. Talvez mais importante, o mesmo enunciado preambular justificava pelo menos o aspecto formal deste volte-face com uma nova prescrição doutrinária de fundo sobre a Cooperação portuguesa: uma concentração era imprescindível, dado que “só esta coordenação permitirá uma capacidade de resposta articulada e eficaz às solicitações e à possibilidade de execução de uma política de cooperação coerente”. A mudança foi iniludível. Nunca antes a formulação assumira tal formato de exigência e imprescindibilidade. O equilíbrio de forças alterara-se de maneira evidente. Era uma aparente vitória em duas frentes: para o centralismo burocrático e para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas foi uma vitória, no fundo, pírrica. Ou, talvez melhor: uma vitória com pouco mais do que um valor indicativo da nova correlação conjuntural das forças em confronto; e talvez, simultaneamente, uma premonição (ou um pré-aviso) do que estava para vir. Para além de ser um mero expediente (que acrescentava, sem nada alterar) tratava-se de um expediente modesto. Como mero orgão consultivo, na área cultural como noutras, por exemplo, à CCC cabia não muito além do que “consultar os operadores…públicos e privados”36, para desse modo assegurar a implementação das “grandes linhas de cooperação”. Grandes linhas essas, cuja “correcta elaboração” (Artigo 5º, alínea a)), porém, incumbiria a uma entidade definida de forma imprecisa por um texto omisso. No entanto, a Comissão era presidida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros (ou, por sua delegação, pelo Secretário de Estado da Cooperação); e assim, ainda que apenas a nível simbólico, tratava-se de uma entidade que estava firmemente nas mãos do MNE. As Finanças ficaram representadas pelo Tesouro e, indirectamente, por membros permanentes como o Presidente do ICE. Potencialmente, em todo o caso, o poder dos Negócios Estrangeiros no novo orgão colegial revelava-se mais do que apenas ritual, ou ceremonial: o Presidente da Comissão Consultiva poderia designar, “na qualidade de membro eventual”, quaisquer membros do “pessoal dirigente do Ministério dos Negócios Estrangeiros” (Artigo 4º, número 2). A maioria estava-lhe assegurada, assim como a legitimidade para uma eventual liderança. O controlo efectivo da Comissão pelo MNE era porém tudo menos fácil, ou sequer realmente exequível. Sendo a Comissão um simples orgão consultivo (e não prevendo quaisquer mecanismos que efectivamente alterassem um status quo na realidade caracterizado pela dispersão) para lhe resistir era suficiente que os adeptos desta 35 Uma Comissão Consultiva para a Cooperação Técnico-Económica, mais ampla (porque, no fundo, interministerial) existia já, desde 1979, no ICE. Não tinha, porém, a mesma dimensão corporativa. 36 Uma novidade considerável, este reconhecimento oficial de operadores privados. A intenção, porém, parecia ser mais a de tentar uma coordenação estatal da acção desses operadores, que propriamente a de os potenciar.

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se limitassem a ignorá-la, sem que formas mais activas37 de confrontação fossem necessárias. Como expediente a CCC foi em resultado disto de uma utilidade muito reduzida e muito passageira. Ao contrário da partição DGC-ICE, não se tratava agora já de uma receita para o desastre; mas entrevia-se uma receita para a ineficácia. Longe de simplificar ou resolver fosse o que fosse, as tentativas de coordenação central a que esta solução dava corpo limitavam-se a adicionar um novo nível de complexidade a uma ajuda pública ao desenvolvimento cada vez mais burocratizada. Sem sombra de dúvida, no entanto, todos os pequenos passos (mesmo o pequeno-grande salto que consistiu na criação da Comissão Consultiva para a Cooperação) preencheram um papel que importa saber não subestimar. A progressão centralista manteve-se. E muito do que era simbólico e meramente indicativo se enraizou e medrou. O vácuo político, não obstante, não fora verdadeiramente colmatado. Do ponto de vista da acção cultural externa do Estado português, a primeira metade dos anos 90 foi (em vários sentidos) rica em expectativas38. Em Julho de 1992 tinha sido criado, no Ministério da Educação, o Instituto Camões, sobre as cinzas do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP) e de uma série de organismos e entidades de vários outros Ministérios, incluindo a Direcção das Relações Culturais Bilaterais do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Num outro teatro de operações, chamemos-lhe assim, era mais uma vitória, paralela, numa mesma frente, a da centralização estatal: tratava-se de uma concentração, no entanto, levada a cabo fora do MNE. Mas era um evento que o afectava directamente ou, no mínimo, ameaçava as ambições das suas elites e as respectivas agendas. Era a hegemonia que estava em risco.

Os alarmes soaram, e para grandes males administraram-se grandes remédios. As elites bem sintonizas e muito bem sincronizadas do Ministério dos Negócios Estrangeiros reagiram, durante dois anos neutralizando abertamente o novo Instituto e (com a subida a Ministro de J.M. Durão Barroso, até aí Secretário de Estado da Cooperação) garantindo surpreendentemente, em 1994, a passagem da sua tutela, do Ministério da Educação para o dos Negócios Estrangeiros. A aliança subjacente entre um político próximo do poder e os “jovens turcos” das elites diplomáticas revelou-se imbatível. O revés transformava-se numa oportunidade; se a correlação de forças fora sem dúvida favorável a este último Ministério, melhor ainda foi o seu timing. A vitória, transfigurada, adquiriu várias faces, todas convenientes para as ambições das bem posicionadas elites dos Negócios Estrangeiros: aproveitando uma reestruturação de fundo de um Ministério considerado como mal desenhado para contracenar nos novos palcos internacionais, foi levada a cabo uma fusão dos dois organismos até aí existentes vocacionados para a Cooperação (a DGC e o ICE); e a Comissão Consultiva para 37 Uma das quais foi rapidamente esbatida pelo Regulamento da CCC, aprovado pela Portaria nº725/95, de 26 de Setembro desse mesmo ano de 1985, que estipulava “mediante determinação do Presidente” (Artigo 4º, número 3) poderia o Conselho reunir “por secções especializadas”. Nesses casos a Portaria não consentia ambiguidades: fosse qual fosse o tema, “a coordenação dos trabalhos será confiada ao representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros” (Artigo 4º, número 2). Um centralismo tanto macro- como microscópico. 38 Depois dos Acordos de Bicesse e do seu sucesso aparente, vivia-se num clima de normalização que se generalizou a todas as relações de Cooperação do Estado português com as ex-colónias.

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a Cooperação (a CCC) foi transformada numa alargada Comissão Interministerial para a Cooperação (a CIC)39. Em termos formais, em todo o caso, a vitória alcançada na frente centralizadora tinha sido efectivamente retumbante. A partir de invocações de imprescindibilidade e de ostensivos sine qua non racionalistas, as formulações jurídicas cristalizaram uma solução aparentemente simples e linear. Um desenlace. Alto e bom som, o texto preambular do Decreto-Lei nº 60/94, de 24 de Fevereiro (que aprovou a Lei Orgânica do novo Instituto da Cooperação Portuguesa, o ICP), declarava, com frontalidade imperativa, que o Instituto “assume a função de único interlocutor institucional do Estado português no âmbito do planeamento, coordenação, acompanhamento e avaliação da política de cooperação” [itálico meu]; uma formulação aparentemente radical. Era um formato que parecia exprimir uma vitória conclusiva numa nova geometria da distribuição do poder no interior do Estado. Mas há que não subestimar o ecumenismo dos diplomas legais; porque não foi, em todo o caso, uma vitória em toda a linha: o texto continuava especificando, morna e teimosamente, que o ICP iria “desempenhar” essa política “em estreita articulação com os departamentos governamentais sectoriais, a fim de ser assegurada a prossecução do interesse nacional”. Por baixo do cravo, continuava a estar uma ferradura. Com algum recuo, esta última reformulação foi notável. No intuito de realçar as linhas de força que a subtenderam, abordemos as invocações mais gerais enunciadas. O pragmatismo nacionalista fora até então apenas invocado como complemento da solidariedade, com o intuito de legitimar a Cooperação. Reaparecia, em meados dos anos 90, para justificar a relegação da actividade de Cooperação de todos os departamentos governamentais para o papel de simples mão-de-obra de uma política a definir, hegemonicamente, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os gestos tinham-se transmutado em opiniões definitivas. Tratava-se, finalmente, da decisão explícita de plenamente integrar a ajuda pública ao desenvolvimento no âmbito geral da política externa nacional. Uma integração equacionada no diploma, sem ambiguidades, com a centralização.

Para o efeito, no texto, a par do monopólio concedido ao MNE, vinha uma prescrição clara: procurava-se garantir a constituição de uma “política de cooperação para o desenvolvimento, como vertente integrada da política externa do Estado Português” (Artigo 1º, itálico meu)40. De um centralismo soft, parecia ter-se deste modo passado a uma versão mais hard. E a uma nova valoração da

39 Uma CIC que, essencialmente, diferia da CCC pela inclusão de representantes de todos os Ministérios portugueses (o grosso dos existentes) que empreendiam acções de Cooperação. A CIC apenas reuniu quatro vezes. Num meio pejado de lutas e ambições hegemónicas e, apesar das grandes esperanças nela depositadas pelo decerto bem-intencionado Secretário de Estado da Cooperação J. Briosa e Gala (dado o seu sucesso na ajuda alimentar de emergência a Moçambique), foi um nado-morto. Tal como, de resto, a CCC o tinha sido. Foi tão somente um remendo maior. 40 Tratava-se de uma finalidade em que ecoava uma medida paralela tomada, na mesma data, no quadro da Lei Orgânica (Decreto-Lei nº 48/94 de 24 de Fevereiro) do Ministério dos Negócios Estrangeiros no seu todo: com efeito, tanto o ICP como o Instituto Camões (este último, como vimos, recém-integrado no MNE) viam a sua acção de alguma forma submetida à vigilância do órgão colegial denominado Conselho de Coordenação Político-Diplomática, criado para assistir à “coordenação da actividade” do Ministério, sob a presidência de um novo e omnipresente Director-Geral da Política Externa.

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ideia de liderança. No diploma legal, coordenação e centralização eram termos articulados como quase sinónimos. Mas não com total irrealismo: de fora continuava o intocável Ministério das Finanças. Na enumeração das atribuições cometidas ao ICP, nomeadamente quanto à “participação” (Artigo 2º, número 1, alínea g)) e à “representação do Estado português” nas mesmas (ibid., número 2), foi repetidamente salvaguardado que o ICP o fazia “sem prejuízo da competência do Ministério das Finanças no referente às instituições financeiras internacionais”. A capacidade negocial de criar uma nova doutrina não era total, apesar do apoio “político-militar”, chamemos-lhe assim, conseguido pelas elites do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mesmo a ambição parecia ter limites. Por detrás das aparências, e não obstante toda a pompa e circunstância bem como o tom triunfalista do diploma, o desenlace não era, afinal, conclusivo. O que, para além de uma nova táctica de expressão da velha correlação de forças reflectia, porventura, a evidência de pouco de substancial ter sido alterado; apesar de se ter atingido um outro patamar: um patamar político, uma espécie de novo plateau em que centralidade, integração e liderança eram porventura as coordenadas principais. Tentemos delineá-lo. Podemos começar por notar que, no que diz respeito à Cooperação Cultural, de um ponto de vista substantivo a criação do Instituto da Cooperação Portuguesa acrescentou muito pouco: as suas atribuições e competências foram cometidas a uma Direcção de Serviços de Cooperação Sócio-Cultural (Decreto-Lei nº 60/94, de 24 de Fevereiro, Artigo 17º). Era essencialmente o núcleo duro da DGC dentro do novo Instituto. Nada no fundo mudava. Alguma da terminologia, é verdade, era nova: competir-lhe-ia, rezava o texto, a “coordenação…das acções, projectos e programa de cooperação nas áreas social, da educação, da língua e cultura portuguesas e da investigação” (ibid., número 1). Esta linguagem respondia, porém, mais a um espírito do tempo renovado do que propriamente a quaisquer inovações de conteúdo: não fora esse, de facto, o ponto de aplicação das lutas pela mudança. Aquilo por que os adversários tinham esgrimido era a vontade de controlar paradoxalmente mitigada pela urgência de minimizar desacatos.

Olhando para trás, a criação do ICP, se alterou algumas coordenadas, fê-lo sobretudo a nível da forma da intervenção oficial portuguesa na área da Cooperação Cultural. Redimensionou-a. Nunca até aí a acção cultural externa tinha verdadeiramente sido equacionada como parte integrante da política internacional do Estado. Estilizada e relocalizada, a Cooperação Cultural agora era-o; o que não deixou de ter consequências. Consequências fáceis de vislumbrar. Ao defini-la (como a toda a Cooperação pública) enquanto “vertente” da política externa portuguesa, essa inclusão a um tempo instrumentalizou-a e secundarizou-a. Ao qualificá-la como vertente “integrada” dessa política, simultaneamente exprimia uma vitória dos proponentes das vantagens de uma coordenação central e reformulava o seu delineamento. Atendo-nos ao estipulado nos textos legais, o ICP parecia ser a expressão complexa de mais um passo (na sua aparência decisivo) nas ambições centralizantes41 expressas pelas elites do Ministério dos 41 A transformação da DCG e do ICE no Instituto dotado de relativa autonomia poderia parecer significar um passo no sentido de alguma descentralização, e assim foi retratado por alguns sectores. Basta no entanto considerar a sua dependência no Conselho de Coordenação Político-Diplomática e a origem diplomática das suas chefias para que essa hipótese seja de abandonar; constituiu, isso sim, passos na direcção de uma relativa desresponsabilização do MNE e de uma maior politização da Cooperação.

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Negócios Estrangeiros; e, em simultâneo, sugeria estar-se perante um passo suplementar (e porventura não antevisto) no sentido da trivialização de uma Cooperação Cultural com especifidades próprias: uma neutralização levada a cabo, como era já da praxe, em nome dos “interesses nacionais” portugueses. Uma imbricação da Cooperação, e do cultural, no político. Basta encará-la nos termos da sua inserção no Ministério dos Negócios Estrangeiros para entrever a mudança maior que teve lugar. A vitória tivera um preço; desde logo, um ónus cultural. O pior era que não se tratava todavia dos custos definitivos: de batalha em batalha, as guerras burocráticas parecem ser intermináveis, sobretudo quando as finalidades prosseguidas são amantes tão volúveis e tão exigentes como a centralização. O preço da redefinição política da acção cultural externa do Estado ainda iria subir. E ia significar novos encargos: esforços com duas frentes nunca são fáceis de conduzir e o seu tráfego é difícil de antecipar. A emergência do ICP veio criar um problema tão novo como imprevisível para as elites empenhadas, com obstinação, na apropriação da Cooperação Cultural oficial portuguesa; uma luta intestina implacável com o outro Instituto com competência em área afim: o então novíssimo Instituto Camões.

Visto retrospectivamente, e com as vantagens da exterioridade e distância, o embate era de prever. A ausência de linhas estratégicas claras tornavam-no inevitável. O facto de se tratar, no essencial, de uma guerra intestina, tornou-a particularmente destrutiva. Foi uma luta em cujos combates pela primeira vez se viam directamente envolvidos, para além de Directores-Gerais e equiparados, Secretários de Estado e os próprios Ministros. Em larga escala como consequência da veemência dos conflitos o derradeiro Director-Geral da DGC não transitou para o Instituto da Cooperação Portuguesa, o Presidente do Instituto Camões demitiu-se e o então Secretário de Estado da Cooperação, compreensivelmente abusado, anunciou a sua indisponibilidade para permanecer na política activa. A crise instalara-se. Com a criação do ICP e a aquisição quase simultânea do Instituto Camões, o Ministério dos Negócios Estrangeiros como que transferiu, para o seu interior, uma disputa centralista de fundo. Mas sem totalmente a fechar na frente externa.

Non nova sed novae, a colisão42 entre o Instituto Camões (IC) e o Instituto da Cooperação Portuguesa, teve consequências mediatas e imediatas difíceis de contabilizar. O empenho das elites burocráticas tornara-se claramente sério. A disputa era a do costume: mais uma vez se tratava de um conflito pelo controlo centralizado de decisões político-culturais. E, mais uma vez, um conflito convenientemente retratado como uma disputa entre a dispersão e o centralismo burocrático, representados como estratégias alternativas para uma política externa do Estado verdadeiramente eficaz. Mas, agora, dentro do MNE. Em contenda estavam, por exemplo, a tutela dos Centros Culturais portugueses, a nomeação de Conselheiros e Adidos Culturais, a coordenação e acompanhamento de programas e projectos Culturais e Científicos43, e a gestão das nesta altura já 42 A tensão potencial entre o ICP e o IC não era nova: desde 1992, data de criação do IC, que cresciam em intensidade, amplitude e frequência os embates entre a DGC e o IC no que tocava à cordenação das intervenções culturais oficiais portuguesas nos PALOP. 43 Preemptivamente, o Secretário de Estado da Cooperação, logo em 1993, decidiu integrar e consolidar toda a Cooperação Cultural portuguesa nos PALOP sob a sua égide. Fê-lo com energia. Potenciando a CIC, promoveu dezenas de reuniões, com dúzias de participantes de todos os organismos (estatais e alguns privados) activos nas suas áreas, e

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complexas redes montadas. Houve poucas discussões e muitas tomadas de posição. O objectivo era, do ponto de vista dos dois Institutos, o de assegurar uma tutela burocrática centralizada: num caso, a da Cooperação Cultural oficial portuguesa em África; no outro (mais ambicioso), a da Diplomacia Cultural portuguesa no seu todo (incluindo os PALOP).

Em contraste com as disputas anteriores, foram embates duros. Em termos comparativos, houve poucas tréguas. Com os benefícios da retrospecção poder-se-á todavia asseverar que foi, apesar de tudo, uma tempestade num copo de água. Parecia que a escalada final do centralismo burocrático (que de táctica passara quase a ideologia e parecia ir a caminho de doutrina), tivera início; não restavam, aparentemente, senão operações de limpeza. Num primeiro tempo, o desenlace das hostilidades pareceu pender a favor do ICP, com “créditos” firmados nos PALOP e no MNE, presidido por um diplomata de carreira, apoiado por uma Secretaria de Estado. Mas num segundo tempo, sobretudo a partir de 199744, tudo indica terem vencido as teses mais maximalistas, que advogam como prioritária a coordenação integrada do todo constituído pela Diplomacia Cultural do Estado. Nas mãos, por assim dizer, do Instituto Camões. Uma coordenação cuja parcela africana será disciplinada, ainda que à distância, por um Orçamento Integrado para a Cooperação também emanado no essencial do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Não só um triunfo da tentação centralista, mas também um formou vários subgrupos de trabalho de um denominado Programa de Acção para a Língua, Educação, Cultura e Ciência para África (PALEFCCA). Um elefante branco, o programa sucumbiu ao confronto aberto entre a DGC e o IC e à activa resistência de quase todos os outros delegados; mas durante mais de um ano serviu de ponto estratégico focal para a Cooperação Cultural portuguesa nos PALOP. 44 Uma nova Lei Orgânica foi aprovada para o IC pelo Decreto-Lei nº 170/97, de 5 de Julho, que desanuviou muitos dos conflitos, impondo uma nova partição de águas e uma maior concentração. Para trás (e para o resto da Cooperação) ficaram as lutas externas com outros Ministérios e organismos: o chamado Orçamento Integrado para a Cooperação de meados de 1998, que potencialmente pune a não colaboração com o MNE nesta área, é característico. No Verão de 1998, o mais recente Secretário de Estado da Cooperação, Luís Amado, divulgou a criação deste novo Orçamento Integrado para a Cooperação (OIC) que discrimina, por organismos públicos, a dotação pecuniária que lhe seria devotada (Resolução do Conselho de Ministros, nº 102/98, de 12 de Agosto). Tal como um anterior detentor da pasta, J. Briosa e Gala, Luís Amado tem sido um crítico sem contemplações de uma Cooperação descoordenada e não submetida a quaisquer verdadeiras avaliações ou fiscalizações. Ao contrário da PALEFCCA, que atrás referi (que dependia inteiramente da boa-fé e disponibilidade para o diálogo das várias entidades públicas envolvidas), o OIC parece prever, implicitamente, eventuais sanções centrais para uma não-colaboração; mas sem nunca o enunciar. Mais um passo na direcção de uma coordenação burocrática hegemónica pelo MNE, ou uma tentativa (oblíqua mas concertada) de definir linhas estratégicas para uma Cooperação que tenta tornar-se num objecto da atenção explícita do Presidente do Conselho de Ministros? A Resolução do Conselho de Ministros que citei usa, logo no seu texto preambular, termos como “planeamento” e “coordenação”; mas mantém uma postura de estudada neutralidade. A Resolução nº 128/98, de 3 de Novembro, que aprovou as dotações previsionais para 1999, é ainda mais neutra e asséptica. Mais uma vez parece insuficiente a distinção entre a urgência de uma estratégia política clara e a vontade de exercer uma coordenação burocrática central. Uma indiscriminação que neste caso poderá ser fatal: enquanto o primeiro imperativo é pacífico, o segundo conta já com declarações antagónicas de um muito vocal Ministro das Finanças: o Professor Sousa Franco.

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intensificar do processo geral de integração da acção cultural no seio da política externa portuguesa. Num certo sentido, é como se estar a assistir à consumação do processo de secundarização anti-excepcionalista a que o europeísmo crescente dos anos 90 vem a relegar a África dita lusófona; noutro sentido, mais positivo, significa mais um passo na tomada penosa de consciência, pelas elites do Estado, da alteridade e da diversidade dos cinco PALOP, assim tratados a par com quaisquer outros países45.

Parece em todo o caso prematuro anunciar seja o que for. É cedo, decerto, para aventar hipóteses optimistas ou pessimistas sobre o futuro de um domínio externamente tão friável e internamente tão marcado por disputas institucionais. Assim, por exemplo, a aparente vitória da centralização burocrática não redundará talvez em mais do que num recuo temporário dos proponentes da dispersão. Como me parece plausível que ou o tempo ou uma alteração menos favorável das conjunturas internacionais das relações entre o Estado português e os PALOP venham, mais tarde ou mais cedo, a reactivar tensões adormecidas. Seria com efeito um erro presumir que, em matéria de Cooperação Cultural, o Estado português encontrou finalmente, com a redimensionação tardia desta sua terceira fase, um caminho estruturado. É verdade que, na maior parte dos novos Estados africanos, realinhamentos político-ideológicos (a que se adicionam novas posturas e atitudes perante um passado colonial cada vez mais longínquo) têm vindo a soletrar, dia a dia, quadros de referência partilhados no que toca aos meios desejáveis e às finalidades almejadas para a Cooperação Cultural; e que têm traduzido numa bastante maior fluência nos diálogos bilaterais mantidos. As melhorias, nestes casos, resultam porém apenas de acasos conjunturais. São por isso instáveis e volúveis. Porque, a nível da Cooperação Cultural portuguesa, no fundo, nada mudou46: nem com a entrada em cena do Instituto Camões, que não

45 Um breve balanço crítico desta terceira fase da Cooperação Cultural do Estado não será inapropriado. Apesar da modéstia dos passos dados, de persistência de um pequeno (mas crucial) vácuo político, e da incongruência de fundo entre burocratização centralista e diversidade, no entanto, ao longo desta última fase alguma coisa parece ter estado a tornar-se mais eficaz na Cooperação Cultural pública portuguesa. Nesta terceira fase da sua acção cultural em África, com efeito, o Estado como que modernizou a Cooperação. Algumas das mudanças foram mais sensíveis; outras, menos. Nenhuma foi ainda plenamente realizada. Uns quantos passos sensatos foram seguramente dados: com alguma consciência tanto da alteridade como da especificidade dos PALOP, o Estado tem-se empenhado na Cooperação na área dos audio-visuais de massas, constituindo, para o efeito, desde canais de Rádio em ondas curtas (a RDP África, por exemplo), a canais próprios de Televisão (a RTPi e a RTP África) como veículos de penetração e intercâmbio. Tem, ademais, tentado fomentar a acção, em África, de empresas privadas e de ONGs de incidência cultural. Em termos gerais (e sem embargo da relativa ineficácia e do carácter largamente desordenado do que tem levado a cabo mesmo nesta última fase, não obstante as lições aprendidas e as poucas melhorias consequentes) nesta fase da Cooperação Cultural do Estado português têm sido feitos avanços no sentido de uma constituição de uma trama complexa de interrelações culturais (directa como indirectamente); uma teia que visa potenciar as relações de afinidade entre Portugal e as ex-colónias africanas. 46 Como asseverou, no curto trabalho já citado, João G. Cravinho, nunca houve (e continua a não haver) uma qualquer “política ou doutrina [portuguesa] de cooperação” (ibid:22). Como aliás insisti, a partir de inícios dos anos noventa, com a clara reorientação

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parece ter mãos a medir e se afigura condenado a flutuar sem norte; nem com a sua transmutação em parcela da política externa.

Quanto ao Orçamento Integrado para a Cooperação (a inovação introduzida pela nova – e nisso activa – maioria governamental) ainda é cedo demais para ensaiar um qualquer balanço. A menos que seja, todavia, para registar que por muita que seja a argúcia dos políticos e por maiores que revelem as cumplicidades conseguidas com as elites diplomáticas, a melhor fórmula para mudar as coisas parece continuar a ser o apoio sustentado do poder central. É verdade que os palcos internacionais da ajuda pública ao desenvolvimento se modificaram (na maioria dos casos) para melhor. Mas de facto pouco se alterou nas práticas estatais portuguesas. Houve nos últimos anos, finalmente, alguma comensalidade, ainda que em refeições compostas segundo receitas pobres do ponto de vista alimentar e insuficientes em termos dietéticos. No fundo, a frugalidade revisitada; e, ademais, uma frugalidade imposta por uma nouvelle cuisine agora servida em estabelecimentos mais onerosos. Nada de muito promissor47. Continuando sempre a ter por foco o Estado português: há para isso razões óbvias e razões menos óbvias. Para além dos diferendos irresolvidos (e dos seus aprofundamentos e redimensionações), nestes últimos anos um novo factor entrou na equação. É tentador ver nas inépcias gritantes havidas apenas o resultado de negligências, ou incompetências, de elites do Estado pouco vocacionadas para a Cooperação Cultural com os novos países africanos, ou, ao invés, encará-las como uma mera consequência de divisões e partilhas institucionais destrutivas, ou, ainda, em confrontá-las com uma inevitabilidade a que uma teimosa incapacidade de definição política tem condenado os poderes públicos. Tal redundaria, no entanto, num perder de vista dos efeitos do que tem sido uma tendência de longa duração da política externa portuguesa durante a última centena de ano. Uma tendência que, durante esta última fase, se acelerou de maneira notória. Nuno Severiano Teixeira, no artigo que atrás referi, enunciou-o com lucidez: “apesar do desenvolvimento de relações e laços de amizade e cooperação com os novos países de expressão oficial portuguesa continuarem [em 1986] a constituir uma preocupação importante da política externa portuguesa e, desde 1976 até ao final da década de 80, não só o governo mas também os presidentes da República, não terem poupado esforços diplomáticos para uma melhoria de relações com os PALOP, a verdade é que a opção estratégica de Portugal passa agora pela ‘opção europeia’” (ibid:83). Pela primeira vez nos últimos cem anos, as prioridades de base do Estado português estão a mudar; e esta parece ser uma mudança definitiva. Trata-se mais de uma reorientação do que de um realinhamento, visto limitar-se a subordinar (de acordo como uma tendência que vinha já pelo menos dos anos 60) o atlantismo habitual ao europeismo também comum. Mas trata-se de europeia levada a cabo por um Estado satisfeito com um novo posicionamento e um novo protagonismo na ordem internacional, a situação tendeu a piorar. 47 A política de envio de cooperantes propôs-se repensada e reformulada, senão reformada. Num esforço titânico de racionalização dos processos de oferta, seriação e seguimento das Bolsas de Estudo para o Ensino Superior, tudo se manteve, no essencial, inalterado. Em Centros Culturais exíguos (e com mais características de repartições de propaganda e recreação que de placas giratórias de irradiação sustentada), Conselheiros e Adidos Culturais têm, desde há já alguns anos, estado limitados a gerir o quotidiano, mal ancorados em Missões Diplomáticas por regra mais focadas em ajustamentos representacionais e hierárquicos do que na prossecussão ou na execução de quaisquer estratégias concertadas. Resta apurar quanto tempo durará a sorte da conjuntura.

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uma reorientação de peso: o novo posicionamento que a política externa do Estado logrou para Portugal tem vindo na prática a significar uma progressiva subalternização de todas e quaisquer dimensões48 da velha “opção africana”. O que, paradoxalmente, para as instituições dedicadas à ajuda pública ao desenvolvimento pode, ou não, ser um bom augúrio. DOS CONSTRANGIMENTOS DA COOPERAÇÃO CULTURAL BILATERAL DO ESTADO PORTUGUÊS

Podemos agora tentar encadear algumas conclusões genéricas para este escrito. A 31 de Dezembro de 1974 o General F. da Costa Gomes, Presidente da República e do Conselho da Revolução, assinou o Decreto-Lei nº 971/74. Um diploma que, ao criar um Gabinete Coordenador para a Cooperação sob firme controlo presidencial afirmava, numa formulação memorável, competir a essa instituição viabilizar o “estabelecimento, em base voluntária, de uma comunidade cultural e eventualmente política” entre Portugal e as jovens nações da África “lusófona”. Uma frase lapidar, que poderíamos ser tentados a ver como mero subproduto da tensão político-ideológica que então se vivia, ou como um enunciado gauchiste. O que, creio, seria um erro: a ânsia correspondia a uma expectativa que vinha de longe e ainda tinha um longo caminho a percorrer. Exprimia uma imagem relacional profunda, e de longa duração que, dessa ou de outra guisa, iria reemergir. Uns meros cinco anos depois, sob novas vestes, a ambição com efeito renascia. Tendo em vista a natureza complexa e laboriosa da decisão política que, como vimos, em finais de 1979 levou o Conselho de Ministros presidido por Maria de Lurdes Pintassilgo (em consonância com o Presidente A. Ramalho Eanes e o Conselho da Revolução) a aceder à criação (no Ministério dos Negócios Estrangeiros) da DGC e do ICE, parece particularmente significativa a frase preambular do Decreto-Lei nº 486/79, de 18 de Dezembro, ao definir “tarefas de Cooperação” como um “acatamento [do Estado] pelos princípios da solidariedade internacional, sem deixarem de coincidir com interesses profundos e permanentes do povo português”. Uma formulação dicotómica elucidativa, numa linguagem e num estilo característicos da época. Invocações, em paralelo, de motivos como “a solidariedade” e “interesses...do povo”, por parte de um Estado que até aí sempre se justificara (e, noutros e nesse mesmo domínio, continuava a sustentar) nos

48 É pouco reconfortante, porém, o paliativo oferecido por considerandos deste tipo, por justos e empiricamente legítimos que eles sejam. Já que, como é evidente, a subordinação esgota-se numa secundarização e de maneira nenhuma pode significar exclusão; e que é, por isso, difícil de compreender a ausência de uma política cultural africana, ainda que submentida a ditames de uma orientação europeia dominante. Sobretudo em novos palcos como os resultantes da ordem mundial pós-bipolarização, em que a constituição de blocos solidários parece trazer óbvias vantagens de posicionamento e protagonismo. Os valores pecuniários da Cooperação Portuguesa com os PALOP têm vindo a diminuir nos últimos anos; a quebra parece ser em flecha se atentarmos apenas nos valores percentuais que dizem respeito ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e aos seus organismos vocacionados para África. Mas o caso muda de figura se limitarmos o foco à Cooperação Cultural que, nas novas conjunturas e mesmo em termos puramente bilaterais, tem vivido com orçamentos cada vez maiores, ainda que exíguos e dramaticamente mal distribuídos.

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termos dogmáticos dos seus legítimos interesses nacionais, poderiam parecer formar uma síntese inovadora.

A presteza com que o Estado português a levou a cabo denuncia, porém, a ilusão. Não era grande a mudança. Não fora, com efeito, formalmente descabida a fórmula inovadora encontrada: a substituição, subtil mas pura e simples, de asserções como a da “missão civilizacional” (que expressariam, numa versão doméstica, um manifest destiny, ou um white man’s burden, nacionais) por novos enunciados relativos às nossas “responsabilidades históricas”, disponibilizava uma transição institucional, ideológica e conceptual fácil e portanto com poucos sobressaltos. Foi uma trouvaille. Tratava-se, efectivamente, de uma alteração ligeira que tinha as vantagens de tomar a sério tanto o idealismo utopista como a urgência de protagonismo e de indispensabilidade, tão caros à consciência portuguesa tradicional: era, por conseguinte, culturalmente palatável. Mas também se inscrevia, bem, no novo espírito de um tempo em que Portugal descobria o potencial legitimador das posturas pragmáticas e realistas, tão essenciais em processos democráticos: era, por conseguinte, também por outro lado politicamente correcta. O ponto de partida e o ponto de chegada da aparentemente nova síntese foi o venerando excepcionalismo português: um excepcionalismo que continuava a constituir elemento fundamental da definição generalizada da identidade nacional portuguesa.

Facilmente, por isso, ganhou foros de cidadania uma visão largamente partilhada da ajuda pública ao desenvolvimento das ex-colónias, veiculada, em tom oficial, por invocações retóricas irredentistas com que as elites Estado português visavam explicar as suas finalidades, ao mesmo tempo que faziam apelo ao interesse nacional para justificar as suas tácticas. Assim, a transição, enquanto construto conceptual, resultou. Mais: parece ter-se instalado para ficar. Equações modernas deste tipo têm sido em larga medida consensuais, no que toca à Cooperação (incluindo a Cultural) a que o Estado português tem devotado exerções. Com algum sincretismo, as elites burocrático-estatais (e faixas amplas da opinião pública) têm vindo a sublinhar, nomeadamente, a urgência de apoios concertados à Língua Portuguesa nos PALOP, como meio de lograr o duplo objectivo de consolidar a construção nacional de cada um daqueles cinco países; e para, em paralelo, assim melhorar o posicionamento e o peso específico de Portugal na nova ordem internacional que está a emergir. Tal como têm defendido a formação de quadros, em todos os domínios, com ajuda pública portuguesa, com a finalidade de criar, ou fortalecer, elites locais. Nesses casos justificando o objectivo e os meios usados por alusão ao interesse português nas interdependências por esse modo constituídas. A evidência de exprimir uma nova síntese, tem-nas tornado apelativas para todos os que buscam um melhor posicionamento para Portugal no Mundo. O facto de se tratar, no essencial, de uma reformulação do discurso colonial tem permitido, ainda, o exercício consentido de uma áspera Realpolitik49 de Cooperação Cultural. 49 Com alguma frieza, de forma consensual e por regra são sentidas como mais produtivas ajudas desenhadas para públicos-alvo concretos e específicos, sobretudo membros das elites africanas ou crianças. E, numa clara asserção do reconhecimento público da centralidade e eficácia (no âmbito da Cooperação) de formas de soft power, sobretudo quando se trata de juízes, militares, médicos, académicos e artistas. Mas não é tudo. Sob a égide da mesma equação sincrética, tem vindo à tona um consenso entre as elites estatais portuguesas e a opinião pública, segundo o qual deveria ser prioritária uma penetração

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Face a uma postura tão generalizada de realismo frio e interessado (no duplo sentido do termo), é particularmente surpreendente a paucidade do que tem sido feito pelo Estado português em África, tanto em relação Cooperação Cultural como, de resto, com respeito a toda a Cooperação. Porque se bem que sejam amplos os consensos deste tipo que têm emergido (e que pontualmente algumas destas tónicas tenham sido assumidas como pontos de aplicação avulsos da Cooperação Cultural oficial portuguesa), nem a formatação empírica desta, nem a sua intensidade, de maneira alguma os têm efectivamente seguido.

Há muito que, com frustração ou resignados, os operadores públicos e privados de alguma forma ligados à Cooperação se têm habituado a conviver tanto com o seu carácter episódico e fragmentário como com a sua inconsequência. O que é, no mínimo, estranho: a ninguém, em Portugal como nos cinco países africanos, parece50 agradar este arrastar de coisas. E ao desagrado tantas vezes manifestado desde cedo se tem adicionado a incompreensão, para produzir o que se tem vindo a exprimir com enorme desencanto, que facilmente se transmuta em oposição a qualquer forma que seja de ajuda pública ao desenvolvimento.

Tanto do ponto de vista do excepcionalismo, como de uma perspectiva de política externa, não são fáceis de compreender, com efeito, as causas da indecisão que parece pesar sobre a definição de finalidades e objectivos para a Cooperação Cultural oficial. Como não é fácil perceber a incapacidade endémica desta em ultrapassar a distância entre expectativas51 e concretizações (ou, talvez melhor, entre consensos e realizações); nem o é a aparente inexequibilidade de grandes processos de aprendizagem com a experiência. Nem, enfim, se têm mostrado facilmente inteligíveis as inúmeras irracionalidades que têm ferido de ineficácia a Cooperação Cultural do Estado português. As justificações mais comuns para os desaires vão da alusão a enormes carências e às dificuldades político-militares conjunturais que têm vitimado os PALOP, às insuficiências das dotações orçamentadas para a Cooperação portuguesa (passando pela desorganização dos serviços do Estado a ela devotados) e à alegada incompetência dos seus funcionários e agentes. Todas são justificadas. Julgo, no entanto, mais útil (não obstante a legitimidade, e mesmo, a verosimilhança, de algumas destas críticas) procurar a um nível mais estrutural as causas profundas tanto da disjunção entre expectativas e práticas como da tão propalada ineficácia da Cooperação Cultural portuguesa. Um nível analítico que explique tanto a mecânica das falhas como as representações políticas que lhes têm sido associadas. Antes de passar às conclusões propriamente ditas, recapitulemos então rapidamente o que foi alinhado nas secções anteriores deste relancear. O tipo de perspectivação das elites do Estado, de políticos e da opinião pública (assumida de cultural cujos pontos de aplicação sejam os da “cultura popular”: o Desporto, a Televisão e a Rádio. O que conta, ao que tudo indica, nas representações partilhadas da Cooperação Cultural é a penetração eficaz dos interesses portugueses e o seu potencial multiplicador. 50 Um estudo revelador seria uma análise dos interesses (vários e silenciosos) enraizados no actual estado de coisas. Agradeço ao João G. Cravinho o ter-me chamado a atenção para esse facto. Não creio em todo o caso que o jogo desses interesses esgote a questão que aqui suscito. 51 Há que sublinhar, por uma questão de justiça, que uma opinião pública excepcionalista tem colocado a fasquia demasiado alto, exigindo muitas vezes o inexigível ao presumir um poder estatal português ilimitado e inesgotável.

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maneira tácita e por isso acrítica) sobre a natureza e as finalidades da ajuda pública ao desenvolvimento, conjugada com vácuos institucionais prolongados e com hábitos de articulação directa com congéneres das ex-colónias africanas, constitui (como penso ter mostrado) o pano de fundo complexo que está na origem da situação prevalecente. Entre as prescrições da cultura política dominante de um sollen, tácito mas centralizado, conducente ao que, segundo muitas das elites estatais, é considerado como uma política externa consequente e desejável, e as proscrições de um sein que, inamovível, se estabeleceu como prática no período imediatamente pós-revolucionário, os processos políticos internos de tensões e conflito entre diferentes posturas de elites do Estado tem progressivamente vindo a reduzir o fosso52.

Arenas de eleição para estes processos (e onde eles se plasmam) têm sido os seus enquadramentos jurídicos, ao exprimir, e ao cristalizar, em cada conjuntura, a distribuição existente do poder. Como tentei pôr em evidência, é particularmente notória a maneira como os textos legais de numerosas formas reflectem e expressam (e portanto legitimam, “naturalizando-os”) conflitos subjacentes. Um reflexão que não tem sido linear nem homógenea: como seria de esperar visto as formulações finais resultarem de equilíbrios variáveis das forças em tensão. Variáveis, mas com resultantes em sentido único, já que a progressão funcional dos organismos de ajuda pública ao desenvolvimento tem tido apenas uma direcção: a de uma crescente centralização burocrática da sua coordenação.

Uma progressão centralista como a que se tem verificado tem tido inevitavelmente pela frente asserções de droits de territoire por parte de interesses corporativos instalados um pouco por todo o aparelho do Estado. Os protagonistas têm sido afoitos. Dos dois lados do conflito institucional, têm-se empenhado elites (as políticas e as burocráticas53) dos vários organismos públicos envolvidos em acções de Cooperação. Na área cultural, como nas outras, o papel combativo de um Ministério dos Negócios Estrangeiros apostado numa sua própria eventual hegemonia, tem sido central. Tal como crucial também tem sido a exigência de autonomia e independência absolutas de um Ministério das Finanças talvez ainda mais poderoso e com mais esprit de corps. O prolongado pas de deux tem sido incontornável. Mas não têm sido estes dois os únicos personagens. Sem dúvida que as elites de outros organismos públicos (Ministérios e não só) têm conseguido, primeiro através de uma postura activa de ciosa separação e depois, progressivamente, por intermédio de formas cada vez mais passivas de resistência, manter dispersos e multicentrados os esforços de Cooperação do Estado português54. Uma maior resolução das imagens relativas às arenas burocráticas

52 O meu foco foi aqui restrito, alcançando pouco mais do que os textos jurídicos; estou no entanto seguro que estudos de caso aturados corrobarão as minhas hipóteses. Não quero, no entanto, deixar de sublinhar as insuficiências daqueles modelos das chamadas “ideologias burocráticas” que não tomam em consideração nem o carácter relacional e instrumental das “representações”, nem a dimensão constitutiva e construtiva dos “filtros normativos” de grande alcance performativo em que muitas vezes se desenvolvem. 53 Casos tem havido, em que, incautamente, políticos eleitos se têm empenhado de lados diferentes das barricadas onde se alinham as burocracias que supostamente tutelam. Salvo raras excepções, não têm levado a sua avante. Por regra, têm ademais visto, em consequência, ameaçada a sua própria sobrevivência política. 54 É o seguinte o rol dos Ministérios que, de uma ou de outra forma, estavam durante o periodo cavaquista envolvidos em acções e actividades de Cooperação Cultural com os

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destes conflitos mostraria certamente que organismos diferentes têm assumido diferentes formas de luta e resistência. Mas todos nelas se têm empenhado: à chacun la politique de ses moyens. Em qualquer caso, recontros não se fizeram esperar.

Os desencontros burocráticos a que aludi, apesar de muitos e variados, não são difíceis de circunscrever. De tensões ligadas a indefinições e delimitações insuficientes de âmbitos de actuação e intervenção, deu-se uma escalada rápida que levou a uma segmentação ligada a clivagens e lealdades múltiplas, até chegar a escaramuças mais sérias focadas em questões logístico-administrativas de facies mais políticos. Uma vez ultrapassada essa soleira, a consequente redimensionação hierárquica abriu, desdobrou e agudizou os desacatos. A nível dos resultados, a progressão dessa contenda, como tentei pôr em evidência, deu-se aos solavancos, começando por boicotes e sabotagens, passando por exclusivismos e separatismos, e desembocando em atitudes agressivas e predatórias ainda mais paralizantes. Todas estas formas de luta enformaram os textos, tanto nas divisões e distinções operadas, como nas formulações enunciadas, como ainda nas omissões sofridas. Fizeram também mais do que isso: ao reconfigurar uma situação estrutural complexa à medida de uma série de conflitos, as facções que se têm alinhado por trás das fórmulas legais e das verdadeiras ficções nocionais elaboradas, têm vindo a levar-nos perspectivar a sua articulação mútua de forma redutora55. A disconexão entre as formulações “ideológicas” que cartografei nos diplomas, e quaisquer apreciações objectivas sobre a situação, não é difícil de compreender. A fabricação é tranparente. E não é muito convincente. Posto de uma maneira linear: persistir em equacionar a urgência de uma definição de uma política explícita de Cooperação com a desejabilidade de uma coordenação burocrática centralizada de acções e actividades, parece-me em última instância tão falacioso como insistir nas vantagens de uma descentralização56 pura e simples. Tem sido no entanto a procura constante de uma espécie de equilíbrio instável entre estas duas posições polares extremas, como tentei demonstrar, aquilo que aparentemente subtende e gera as transformações manifestadas nos enunciados jurídicos produzidos. Como sublinhei (e me parece claro) ambas as posições redundam porém em posturas tácticas mais apropriadas a cenários micropolíticos de bureaucratic infighting do que a noções macro adequadas à condução responsável de uma política externa

PALOP (na maioria dos casos em áreas ligadas à Formação): Defesa Nacional; Administração Interna; Finanças, Planeamento e Administração do Território; Justiça; Agicultura; Indústria e Energia; Obras Públicas; Transportes e Comunicações; Saúde; Emprego e Segurança Social; Comércio e Turismo; Ambiente e Recursos Naturais; Mar; Juventude; Cultura; Modernização Administrativa. Desde então só mudaram os nomes... Não incluo aqui os inúmeros Institutos e outros organismos públicos também activos nesse domínio da acção cultural externa do Estado português. Tudo isto redunda entre interfaces multidimensionadas no relacionamento do Estado português com o de cada PALOP. 55 Como a criança, o adulto virtuoso e os condenados da história de al-Ghazali que introduzi em frontespício. Julgo interessante, por isso, uma análise detalhada destas ficções e fórmulas segundo uma variante das metodologias propostas, por exemplo, pelos defensores da abordagem Law and Semiotics. 56 Uma perspectiva que me parece mais enfática da desilusão ou das ambições “territoriais” de quem a expressa do que baseada no neo-liberalismo em que se encapota ou nalgum critério plausível de sustentabilidade.

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nacional57. O que não é despiciendo: em termos muito empíricos e concretos, os conflitos sofridos têm significado não só desencontros e ineficácias graves, mas ainda a impossibilidade radical de, internamente58, vir a ser gerada uma solução local para as disputas. Só uma intervenção externa o poderá porventura lograr. Com algum recuo, repondo e articulando os textos jurídicos nos seus contextos e uma vez explicitado o enquadramento analítico que proponho, podemos assim ensaiar um balanço de conjunto. Em termos estruturais, três ordens de constrangimentos me parecem subjazer à formatação genérica da Cooperação Cultural do Estado. Não serão, seguramente, os únicos constrangimentos operantes. Mas não creio que seja preciso insistir no seu enorme poder e eficácia. Na periodização que propus das sucessivas fases por que tem passado a Cooperação Cultural oficial, esbocei o que julgo terem sido os passos principais da luta surda de elites estatais, que ora favorecem a concentração, ora lhe preferem a disseminação59 das acções e actividades do Estado; uma disputa interminável. A par e passo, fui aludindo, nessa sistematização, às formulações “ideológicas” que têm subjazido aos projectos oficiais de Cooperação Cultural no seu sentido mais lato: outros tantos avatares do legado excepcionalista utilizados, aleguei, como tácticas de legitimação negocial. Neste contexto, tem sido notável a plasticidade do conceito de “interesse nacional”. A ausência de uma política 57 A equação tácita entre centralização burocrática e coordenação explícita é facilmente refutada em termos comparativos. Em França, que claramente utiliza a Cooperação como um instrumento da sua política externa (nomeadamente em África), o Ministére de la Coopération está dissociado do des Affaires Étrangeres. Na Grã-Bretanha, no entanto, embora se insista na independência da aid relativamente à foreign policy, ambas eram tuteladas por um mesmo Foreign Office até aos escândalos resultantes de envolvimentos político-financeiros indevidos quando da compra de armamentos pela Malásia, no ano passado. Todas as combinações parecem, aliás, possíveis. Os países escandinavos, tradicionalmente avessos a quaisquer usos políticos directos da ajuda pública ao desenvolvimento, mantém a Cooperação e a Política Externa sob organismos separados. Enquanto o Estado português insiste tanto em ligar a Cooperação à Política Externa, como as suas respectivas coordenações. Em termos objectivos, no entanto, uma associação de maneira nenhuma exige a outra, como mostram os exemplos (todos eles bastante eficazes) que aduzi; como tentei demostrar, a asserção da sua implicação recíproca tem sido uma táctica manuseada no contexto de um conflito endémico entre elites estatais. 58 Concordo vivamente, por isso, com a opinião de João G. Cravinho, que prefiriria que a Cooperação portuguesa estivesse na “dependência directa” do Primeiro-Ministro (op.cit.:24). Não posso no entanto concordar com a sugestão de que “a Secretaria de Estado da Cooperação” deveria também aí ser necessariamente sediada (ibid.). O que subjaz a esta sugestão ancilar parece-me ser uma insuficiente distinção entre o conceito de estratégia e o de coordenação. A não ser que se não acredite na eficácia de qualquer coordenação que não suponha uma definição de uma autoridade decisora última e imediata. 59 Quantas vezes de maneira coerentemente racionalizada. Os defensores do centralismo burocrático, como lhe chamei, por regra aduzem vantagens como a de uma melhor distribuição de recursos limitados, a de uma mais sofisticada coordenação estratégica, ou a reputadamente adveniente da apresentação externa de uma face “unitária” do Estado. Os adeptos da dispersão, tendem a sublinhar, por seu lado, a maior capacidade dessa solução para a identificação de interlocutores nos países africanos, a melhor agilidade e flexibilidade desta estratégia e, não menos importante, a sua relativa independência política.

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concertada é naturalmente mais difícil de ordenar e contabilizar, já que exigiria circunscrever alguma coisa que lá não está; o problema é, no entanto, ultrapassável se o reformularmos, não como um vazio, mas como a presença de uma omissão: um constrangimento real que tem operado de maneiras muito concretas e consequentes. Como tentei mostrar caso a caso, cada um destes constrangimentos é na prática potenciado pelos outros dois. A inadequação do legado milita a favor da permanência de um vácuo, tal como o fazem as disputas burocráticas, que no essencial o eternizam. As lutas inviabilizam ainda verdadeiras concertações e quaisquer reformulações mais congruentes com as novas coordenadas da posição de Portugal no Mundo contemporâneo. E a persistência de um vácuo retira legitimidade política, e até base firme de sustentação, a quaisquer reestruturações, ou reformulações, desejadas. É a interacção destas três regras principais (que as leis denotam) que me parece produzir os formatos da ajuda pública ao desenvolvimento existente. E é dos seus doseamentos relativos (e variáveis) que creio resulta a progressão temporal verificada.

Pelo menos uma das implicações deste estado de coisas é interessante. Pouco, segundo este modelo da Cooperação oficial, tem respondido, seja de que maneira for, a quaisquer constrangimentos externos. As implicações parecem-me incontornáveis. Não creio abusivo afirmar que a operação conjunta destes três constrangimentos estruturais tem sido responsável pelo amorfismo da Cooperação portuguesa, pelas suas incapacidades pragmáticas endémicas, pela sua relativa estagnação e pela sua pouca eficácia genérica60. É verdade que a Cooperação Cultural não tem sido totalmente alheia às inúmeras alterações políticas nos relacionamentos bilaterais entre o Estado português e os PALOP, nem insensível às tranformações ocorridas nas conjunturas locais, nem cega perante novas técnicas e tecnologias de intervenção. Em diferentes momentos, durante o último quarto de século, esses factores externos têm decerto operado, em paralelo com os constrangimentos internos que isolei; mas a predominância destes constrangimentos internos parece-me ser um facto incontornável. Sujeita a 60 Uma conclusão menos geral também não será difícil de formular. A Cooperação Cultural oficial constitui, sem sombra de dúvida, o domínio em que o Estado português melhores condições tem para exercer soft power essas formas de poder brando que tão eficazes se podem mostrar a nível dos alinhamentos conseguidos em palcos internacionais. No contexto de uma qualquer comparação com o que tem sido o baixo grau de eficácia genérica da Diplomacia Cultural, a Cooperação Cultural tem tido indubitáveis sucessos. São, é verdade, sucessos modestos. No entanto, parece tê-los tido apesar das suas formas organizacionais, e não devido a elas ou à sua adequação. O que é um testemunho das virtualidades do soft power para o Estado português em África e não evidência de um qualquer mérito dos modos de agir adoptados e que valha a pena, por isso, reter. Pelo contrário, o Estado tem gasto energias em antagonismos intestinos e tem vindo a propender na direcção de uma centralização burocrática que parece julgar poder substituir (ou poder ser funcionalmente equivalente a) uma estratégia concertada e deliberada para a acção e a actividade nas áreas da Cooperação Cultural bilateral; não obstante um constante acumular de oportunidades desperdiçadas. Compreensivelmente, o soft power do Estado português em África tem sobretudo logrado formatar quadros locais quanto a opiniões e decisões favoráveis por meio de instrumentos como a Televisão (com a RTP África), a Rádio (com a RDP), a Investigação Científica e Tecnológica, ou o Desporto. Ou seja: em domínios onde reina uma saudável descentralização, mas em que, simultaneamente, mais nítidas são as finalidades subjacentes.

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deslocações, indeterminações e reconfigurações constantes por disputas e por tutelas sempre em mudança, avulsa e desconjuntada, confrontada com um vácuo político que tende a remetê-la para os seus variados contextos e para as suas conjunturas mais imediatas, não é decerto surpreendente a situação contemporânea da Cooperação Cultural bilateral do Estado português.

Versões anteriores deste trabalho foram lidas por (e/ou longamente

discutidas com) António M. Hespanha, Armando M. Marques Guedes, Carlos Ferreira de Almeida, Cristina Montalvão Sarmento, Francisco Seixas da Costa, João G. Cravinho, Jill R. Dias, José Medeiros Ferreira, José de Sousa e Brito, Jorge Bacelar Gouveia, José Carlos Tiago d’Oliveira, Nuno Severiano Teixeira, Pedro Tavares de Almeida, Rui Pinto Duarte, Susana B. Brito e Tito Cardoso e Cunha. Num Colóquio organizado em 1999 na Universidade de Coimbra li uma versão condensada de parte do meu argumento. Recebi comentários muito úteis. A responsabilidade pelo produto final é no entanto por mim inteiramente assumida. BIBLIOGRAFIA DR, Decreto-Lei nº791/74, de 31 de Dezembro DR, Decreto-Lei nº486/79, de 18 de Dezembro DR, Decreto-Lei nº487/79, de 18 de Dezembro DR, Decreto-Lei nº266/85, de 16 de Julho DR, Decreto-Lei nº725/85, de 26 de Setembro DR, Decreto-Lei nº48/94, de 24 de Fevereiro DR, Decreto-Lei nº50/94, de 24 de Fevereiro DR, Decreto-Lei nº60/94, de 24 de Fevereiro DR, Decreto-Lei nº170/97, de 5 de Julho DR, Resolução do Conselho de Ministros nº102/98, de 12 de Agosto DR, Resolução do Conselho de Ministros nº128/98, de 3 de Novembro Allison, G. (1971), Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis, Little, Brown, Boston. Averroes, (ed) Simon van der Bergh, (1978), Tahafut Al-Tahafut (The Incoherence of Incoherence), vols 1 and 2, Luzac & Co., London. Bailey, F. (1960), Tribe, Caste and Nation, Manchester University Press. Barnes, J.A. (1961), “Law as politically active: an anthropological view”, in (ed.) G. Sawer, Studies in the Sociology of Law: 167-196, Canberra. Bohannan, P. (1965), “The differing realms of the law”, American Anthropologist 67 (6,2): 33-42. Cravinho, J.G.(1998), “Cooperação e contribuintes”, Expresso, 1 de Maio, pp22 e 24. Kennedy, D. (1979), “The structure of Blackstone’s Commentaries”, 28 Buffalo Lawl Review 205. Keohane, R. (1999), “International Institutions: can interdependence work?”, Foreign Policy: 82/96.

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