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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE CURITIBA 2006

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MESTRADO

A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE

CURITIBA 2006

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HAROLDO OSMAR DE PAULA JÚNIOR

A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Filosofia, na linha de pesquisa Ética, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal

CURITIBA 2006

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DEDICATÓRIA

Em especial e sem ressalvas ou palavras prolongadas, as quais jamais

reproduziriam o sentimento que esta menção representa, à Angelita Lombarde

Divino, minha esposa e à Aline Candido de Paula, minha filha.

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AGRADECIMENTOS

À minha família e aos amigos, que souberam reconhecer em minha ausência

um intercurso necessário ao crescimento e aperfeiçoamento que está longe de ser

uma conquista pessoal, mas antes coletiva, e que é merecedora de comemoração

de uma história de vida.

Ao meu orientador Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal, que desde a

graduação exercita a paciência/sabedoria e a dedicação desmedida para que o

mínimo êxito pudesse ser alcançado por este procrastinador aluno/discípulo.

Aos colegas do exercício de docência na Pontifícia Universidade Católica do

Paraná, PUCPR, que sempre contribuíram para sanar as necessidades

invariavelmente urgentes impostas pela nossa incompletude originária. O

companheirismo faz dar um sentido especial a cada conquista pessoal, que é, em

última instância, gregária.

Aos amigos que, fora do convívio profissional e oriundos de áreas distintas à

filosofia, tiveram pela sua solidariedade uma contribuição indelével na realização

deste trabalho.

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Bem-aventurado o povo dos helenos! Quão grande deve ter

sido entre vós Dionísio, se o deus de Delos considera

necessárias tais magias para curar vossa folia ditirâmbica!

(Nietzsche, na última página de

O nascimento da tragédia)

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SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................................... vii

ABSTRACT........................................................................................................... viii

INTRODUÇÃO....................................................................................................... 1

1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A TEORIA DO UNO-PRIMORDIAL...............................................................................................

6

1.1 Contextualização filosófica: influências...................................................... 6

1.2 A tragédia grega e a filosofia nietzschiana.................................................. 18

1.3 A teoria do Uno-primordial............................................................................... 32

2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM NIETZSCHE...........................................................................................................

46

2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche.............................................................................................

46

2.2 Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer.................

54

3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA – UMA MANIFESTAÇÃO DO UNO-PRIMORDIAL................................................

68 3.1 As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica...........

69

3.2 O coro como manifestação do Uno-primordial na tragédia grega.......

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4 O MÚLTIPLO E O DEVIR EM HERÁCLITO – A INTUIÇÃO COMO ACESSO AO UNO-PRIMORDIAL........................................................................................

88

4.1 Heráclito, o filósofo intuitivo........................................................................... 88

4.2 O múltiplo e o devir ........................................................................................... 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................

108

REFERÊNCIAS................................................................................................................ 117

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RESUMO

O presente trabalho é uma investigação sobre a dimensão dionisíaca na tragédia

grega, encontrada na produção filosófica do jovem Nietzsche, no período entre 1870

e 1876. Tem como ponto de partida uma reflexão sobre a Teoria do Uno-primordial e

sua natureza dionisíaca, apresentada especialmente em O nascimento da tragédia

(1872). A arte trágica é apontada pelo filósofo como fundamento de uma experiência

autêntica, vivida pelos gregos da Antiguidade, e que configura uma atitude afirmativa

da vida, frente à inexorável experiência de dor e contradição originários. A metafísica

de artista tem na coexistência das duas pulsões da vida, representadas pelos deuses

Apolo e Dionísio, em constante oposição, a dinâmica que corresponde à construção

e à destruição, à dor e ao prazer, à consciência e à embriaguez, que caracteriza o

Uno-primordial. Ao analisarem-se os pressupostos que sustentam os escritos do

primeiro Nietzsche, em relação a este tema, constatou-se a interface necessária

entre a temática em torno do nascimento e da morte da tragédia grega, em especial

à expulsão da música do palco trágico e a crítica à racionalidade conceitual

instaurada por Sócrates. Nietzsche sustenta que a intuição é o instrumento do

filósofo para conceber a dimensão estética e primitiva do Uno-primordial, em sua

irracionalidade e tragicidade, assumindo a aparência como mais importante que a

essência, justificando o mundo como fenômeno estético e apresentando Dionísio,

deus da embriaguez, do inconsciente e da desmesura, como força plasmadora do

universo. Nesta pesquisa, o diálogo entre Nietzsche e a civilização grega pré-

socrática aponta para um filósofo que avalia a cultura e a própria existência a partir

da ótica da arte. Percebeu-se seu esforço em justificar a vida a partir da perspectiva

estética encontrada na arte trágica e a ênfase dada à dimensão dionisíaca do Uno-

primordial.

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ABSTRACT

The present work is an investigation about the Dionysian dimension in Greek tragedy,

found in Nietzsche's youth's philosophical production, written between 1870 and

1876. Has as a starting point a reflection on the Ur-Ein Theorie and its Dionysian

nature, especially presented in Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und

Pessimismus (1872). The tragic art is pointed by the philosopher as the foundation of

an authentic experience, lived by the Greeks of the Antiquity, which configures an

affirmative attitude of life, in opposite to the inexorable pain experience and original

contradiction. The artist's metaphysics has in the coexistence of the two impulses of

life, represented by the gods Apollo and Dionysius, in constant opposition, the

dynamics that corresponds to construction and destruction, pain and pleasure,

conscience and ecstasy, which characterize the Ur-Ein. By analysing the

presuppositions which sustain the writings of first Nietzsche concerning this theme,

the necessary interface was verified among the thematic around the birth and the

death of the Greek tragedy, especially the expulsion of the music of the tragic stage,

and the critic to the conceptual rationality established by Socrates. Nietzsche sustains

that the intuition is the philosopher's instrument to conceive the aesthetic and

primitive dimension of the Ur-Ein, in its irrationality and tragicity, assuming

appearance as more important than essence, justifying the world as an aesthetic

phenomenon and presenting Dionysius, god of ecstasy, unconscious and excess, as

a universe's shaping force. In this research, the dialogue between Nietzsche and the

Greek pre-socratic civilization points to a philosopher that evaluates culture and

existence from the optics of the art. His effort in justifying life starting from the

aesthetic perspective found in the tragic art was noticed, as well as the emphasis

given to the Dionysian dimension of the Ur-Ein.

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INTRODUÇÃO

A problemática concernente aos primeiros escritos de Friedrich Wilhelm

Nietzsche (1844-1900) ocupa lugar central neste trabalho, tendo como foco especial

a obra O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Nesse escrito, são

abordados a apresentação da arte trágica como expressão das pulsões artísticas

figuradas pelos deuses gregos Apolo e Dionísio; a crítica à racionalidade conceitual,

instaurada por Sócrates e Platão; e a proposição de Nietzsche em ler o seu tempo

histórico a partir da enaltecida fase da cultura grega. No presente trabalho, serão

examinadas as duas primeiras, tendo como foco de pesquisa a recorrente noção do

termo Uno-primordial no livro em questão e em algumas outras obras de sua

primeira fase.

Dentre os assuntos fundamentais explorados pelo autor no conjunto de sua

obra e, mais especificamente, na sua primeira fase, serão estudados, nesta

investigação: a conformidade da música e das artes representativas com a vida; a

questão do pessimismo e a justificativa da existência; a tragédia grega e a teoria do

Uno-primordial em relação à sua filosofia. Todos esses elementos imbuídos da

dimensão dionisíaca.

A pergunta à qual esta investigação pretende responder e que constitui o

problema da pesquisa é: se Nietzsche enfatiza, em sua metafísica de artista, o

equilíbrio e a coexistência das pulsões apolínea e dionisíaca como base para a

compreensão da existência, por que acentua o caráter dionisíaco em sua obra?

A hipótese a ser examinada é a de que na relação entre Apolo e Dionísio há

uma oposição, mas não excludente e sim complementar. Não obstante, é a

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dimensão dionisíaca que permite a compreensão desta oposição, pelo caráter

transformador que implica, e que conduz à intuição de um fundo originário ou a uma

essência indizível e racionalmente inacessível, que em Nietzsche aparece como

Uno-primordial.

Sobre a teoria do Uno-primordial, o propósito da presente pesquisa não tem

como base uma especulação sobre uma provável contradição do autor ao recorrer a

uma “noção metafísica” sobre a qual teceu tão violentamente várias críticas ao longo

de sua produção filosófica. É, porém, entender o papel desta teoria nos escritos do

filósofo, uma vez que aparece apenas no início da sua produção. Outrossim,

constatou-se ao longo desta pesquisa, que Nietzsche relaciona o nascimento da

tragédia com a música, a partir da metafísica de artista. Ou, em outras palavras, a

tese do Uno-primordial é apresentada como fundamento de uma reflexão sobre a

cultura a partir da arte.

O filósofo constrói uma cosmovisão na qual o conceito Uno-primordial tem

recorrência, configurando uma teoria. Esta abrange o entrelaçamento de diversos

temas, entre eles a oposição entre os princípios apolíneo e dionisíaco, a intuição

como instrumento de investigação da filosofia, a crítica à racionalidade e a primazia

da arte sobre a ciência, a idéia de permanente transformação ou devir e a dimensão

dionisíaca como cerne dessa transformação.

Nesse contexto, o próprio Nietzsche afirma, na Seção 21 da sua obra O

nascimento da tragédia, a música dionisíaca como uma das manifestações artísticas

de mais alta expressão da vida e em consonância com essa dimensão primordial.

Não se pode ignorar o fato de que a música, a palavra e a representação formavam

um todo expressivo indivisível na cultura grega. Ao contrário, para Nietzsche e para

o seu contexto histórico-cultural, e em especial nos países germânicos, a música,

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em si, era tida como a mais nobre manifestação artística. Deve-se considerar, por

fim, a importância que a música tinha no pensamento do filósofo.

A teoria do Uno-primordial, em Nietzsche, está intimamente ligada à tragédia

grega e ao papel do coro no palco da representação, à intuição como instrumento de

investigação intelectual sobre a realidade, à natureza, tida como “mãe do ser” e à

metafísica de artista, vista como a dimensão dionisíaca reabilitada. O fio condutor

desta pesquisa é a reflexão sobre a tensão e o equilíbrio entre Apolo e Dionísio,

como apontado pelo filósofo, e o possível desequilíbrio entre esses deuses, visto

que, com a socratização, a música dionisíaca foi expulsa do palco da tragédia.

Ao termo Uno-primordial, o filósofo confere uma noção de ordem ontológica,

essencial repleta de dor e contradição, concomitantemente a um supremo prazer e

inconsciência. Ou seja, um plano originário, que tem suas manifestações no mundo

das aparências e, nele, cumpre o papel de redenção e cura para o sofrimento.

Nesse contexto, a música é uma manifestação deste plano originário no mundo

fenomênico, traduzindo-o e corporificando-o. Essa concepção só pode ser percebida

de forma intuitiva e não lógica ou racional.

O primeiro capítulo da presente pesquisa tem como função situar Nietzsche

nas suas influências filosóficas fundamentais, bem como os principais autores

presentes em suas reflexões: Arthur Schopenhauer, os poetas e pensadores gregos

trágicos, como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, Anaximandro, Heráclito e Sócrates, no

campo da filosofia, e Richard Wagner e a tragédia ática, no campo da música. Não

tem como alvo a discussão sobre a originalidade ou não de determinados preceitos

ou mesmo a linguagem nietzschiana. Serão abordados o legado do pessimismo

schopenhaueriano e o romantismo da época, bem como a crítica de Nietzsche à sua

primeira obra, O nascimento da tragédia, publicada em 1872. Essa crítica foi

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publicada somente em 1886, no prefácio que escreveu para a segunda edição do

livro, prefácio este intitulado Tentativa de auto-crítica. O próprio autor, por tê-lo

escrito bem mais tarde e à luz de um amadurecimento filosófico, não o chama de

prefácio, mas de posfácio, referindo-se ao seu primeiro livro de forma um tanto

severa, porém, reeditando-o, o que demonstra que, apesar da sua crítica e auto-

crítica, reiterava o seu conteúdo.

O segundo capítulo desta investigação trata de esclarecer as diferenças entre

o conceito de vontade em Schopenhauer e a noção do Uno-primordial em Nietzsche.

Isso, tendo em vista que tal distinção faz-se necessária para compreender o tema

proposto, para entender o conceito de metafísica de artista e, assim, aproximar-se

da arte como ela é vista por Nietzsche: oposta à ciência e à moral.

O terceiro capítulo tem a dimensão musical como preocupação central,

partindo da metafísica de artista e de sua relação com as dimensões apolíneo-

dionisíacas na tragédia grega e, em especial, no papel do coro no palco trágico. Ou

seja, como Nietzsche entende e elege a arte como critério de avaliação da vida. A

morte da tragédia grega configurou-se como que fundamental na pesquisa para

compreender o que se perdeu, quando, a partir de Eurípides e Sócrates, a tradição

filosófica se nega a conceber a dimensão dionisíaca e a escolha da racionalidade

passa a ter ordem no cenário do pensamento ocidental.

O quarto capítulo apresenta a herança do homem intuitivo, de Heráclito, e sua

noção do devir e do múltiplo, enquanto integrados ao conceito do Uno-primordial e

sua natureza inconsciente, dinâmica e transformadora. Nietzsche, ao resgatar a

intuição como instrumento de investigação filosófica, aponta o caminho para a

percepção do Uno-primordial. Ao não recorrer à razão e à ciência, características da

socratização, conduz para a inocência da criança no jogo da construção e da

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destruição da existência, sem recair na culpa protagonizada pela cultura do mundo

ocidental.

Por fim, nas Considerações Finais, buscou-se estabelecer relações entre os

objetivos propostos e os resultados obtidos no decorrer da pesquisa, em que se

recorreu, excepcionalmente, a um livro escrito em 1888, Ecce Homo: como se torna

o que é. Nesta obra, a autobiografia filosófica de Nietzsche, à luz de uma distância

ímpar de seu primeiro livro, mais uma vez o autor se auto-avalia e distingue os

elementos que caracterizam uma originalidade em sua produção filosófica.

De maneira geral, pôde-se observar a ambigüidade e a coexistência das

dimensões apolínea e dionisíaca, sempre em constante oposição e reconciliação,

caracterizando ao mesmo tempo a tragédia grega, a metafísica de artista, a música

dionisíaca e a intuição heraclitiana como acesso ao Uno-primordial.

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1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A

TEORIA DO UNO-PRIMORDIAL

São abordados neste capítulo, inicialmente, alguns aspectos pertinentes às

influências que o autor recebeu de sua época, com as suas características ligadas

ao pessimismo filosófico schopenhaueriano e ao romantismo wagneriano, bem como

a sua contribuição mediante a produção intelectual filosófica, em especial de sua

primeira fase.

Em seguida, são apresentadas a tragédia grega e sua relevância naquilo que

Nietzsche denomina filosofia trágica. Suas características ligadas à ambigüidade e à

contradição retratam a própria natureza humana e são apresentadas pelo filósofo na

personificação dos deuses Apolo e Dionísio.

Ao finalizar o primeiro capítulo, é realizada uma exposição sobre a teoria do

Uno-primordial no primeiro Nietzsche, relacionada à dor originária, que tem na

projeção da aparência a sua manifestação como processo artístico. Daí a natureza

da tragédia grega, intimamente ligada à tragicidade da existência.

1.1 Contextualização filosófica: influências

Certamente, existem outros meios de se

encontrar a si mesmo, de escapar do

aturdimento no qual nos colocamos

habitualmente, como envoltos numa nuvem

sombria, mas não conheço coisa melhor do

que lembrar dos nossos mestres educadores.

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É por isso que vou lembrar hoje o nome do

único professor, único mestre de quem eu posso

me orgulhar, Arthur Schopenhauer. (Nietzsche)1

Apesar de proximidades e semelhanças temáticas no decorrer de toda a sua

trajetória filosófica, Nietzsche se submete a autocríticas e re-interpretações de suas

próprias obras. As mudanças decorrentes dessas avaliações do seu próprio

pensamento permitem aos seus estudiosos identificar fases ou períodos distintos.

Porém, a idéia de periodização dos seus escritos, enquanto compartimentos, não é

aceita por todos os seus leitores,2 pois o próprio filósofo não compreendia seus

trabalhos de forma fragmentada e, em especial, não os tomava como frutos de

etapas evolutivas.3

A discussão sobre como ler Nietzsche, apresentada por Scarlett Marton no

livro: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, elucida a polêmica sobre

a periodização dos escritos filosóficos do filósofo. Nele, a autora apresenta as

posições de Klossowski, Deleuze, Lyotard, Löwith, Andler, Jaspers, Kaufmann,

Hartmann, Granier, Fink, Strong e Heidegger, entre outros.

No estudo de Marton, que traz uma demarcação dos comentaristas acerca da

obra nietzschiana, destaca-se Karl Löwith, que sugere uma leitura pontual sobre

Nietzsche e alerta para o fato de que o mesmo reexaminou seus próprios escritos

nos prefácios de seus livros publicados e em sua autobiografia Ecce homo, fazendo,

assim, um balanço de seu próprio pensamento. Este estudioso de Nietzsche

1 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre Educação. Trad., apres. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2003. p. 142. 2 O texto aqui apresentado com a exposição sobre a periodização e as primeiras influências sofridas pelo autor tem como objetivo discernir didaticamente o campo de pesquisa, pois os conceitos habituais nos estudos de Nietzsche, quando abrangem o todo de sua obra, não estão presentes na primeira fase. Nem tampouco há concordância quanto às datas de periodização. 3 MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993. p. 48.

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descarta as posições de ir além do texto, buscando a sua “força exterior”, como

sugere Deleuze; ou mesmo a partir dos textos do filósofo, produzir “novas e

diferentes intensidades” como interpretação, na compreensão de Lyotard. Ainda

defende Löwith a importância de se perceber a produção aforismática de Nietzsche

como um sistema.

Destaca-se também, da revisão de Marton, a posição de Charles Andler, que

considera Nietzsche como um pensador assistemático e mesmo anti-sistemático.

Não obstante, Andler assume que a obra de Nietzsche abriga pelo menos dois

sistemas, estes originários de duas “intuições”: o do pessimismo estético, entre 1869

e 1881 e o do transformismo intelectualista, que compreende o período entre 1881 e

1888. Para Andler os dois períodos são parcialmente incoerentes entre si, mas têm

uma unidade em si mesmos.

Jaspers, Kaufmann e Granier apontam contradições nos textos de Nietzsche,

enfocando ora a forma da escrita, ora o tema. Além destes elementos, consideram

os fragmentos póstumos como importantes contribuições que devem ser

consideradas e hierarquizadas para se pensar os processos do pensamento de

Nietzsche e sua lógica interna.

O perspectivismo e o experimentalismo adotados na produção filosófica

nietzschiana contribuem com a noção de Nicolai Hartmann de que “Nietzsche não é

um pensador-de-sistemas, mas um pensador-de-problemas”.4

Para o interesse de distinguir fases relacionadas à produção filosófica de

Nietzsche nesta pesquisa, interessa a periodização que também é reconhecida por

Charles Andler, bem como a nomenclatura adotada por ele para três períodos

distintos: o do pessimismo romântico, o do positivismo cético e o da reconstrução da

4 HARTMANN, Nicolai apud MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1997. p. 38.

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obra, lembrando que Andler admite pelo menos mais duas periodizações válidas. As

datas sugeridas por ele não são coincidentes com as que aqui serão adotadas.

Marton aproxima esta distinção dos três períodos, daquela leitura que o

próprio Nietzsche fez de sua vida, na carta de 11 de fevereiro de 1883 a Overbeck,

em que discorre sobre sua oscilação entre inquietação e recolhimento e sobre seu

avanço a cada seis anos. O próprio Nietzsche afirmou: “toda a minha vida

decompôs-se diante de meus olhos: esta vida inteira de inquietação e recolhimento,

que a cada seis anos dá um passo e nada quer além disso.5 Assim, Marton e

Paschoal, sem fazer uma interpretação estanque de unidades pretensamente

fechadas ou rígidas, apresentam didaticamente a periodização apresentada a

seguir.

O primeiro período compreende os anos de 1870 a 1876 e dele são os

escritos que constituirão as fontes de pesquisa no presente trabalho; o segundo

refere-se à produção entre os anos 1876 e 1882; a última fase de sua obra foi

escrita entre 1882 e 1888. Em janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso em

Turim, que o privaria da razão até a sua morte em 1900. Usualmente, estes períodos

são denominados de Pessimismo Romântico, Positivismo Cético e Reconstrução da

Obra, respectivamente.6

Contribuindo com a polêmica acerca deste assunto, Jean Lefranc também

recorre a Andler para sustentar a presente periodização.

Bem cedo foram distinguidos três períodos da filosofia de

Nietzsche, ou até três “filosofias”, às quais foram atribuídos

títulos diversos. Esta divisão, na opinião de muitos comentaristas, 5 NIETZSCHE apud MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 35. Carta de Nietzsche a Overbeck, em 11 de fevereiro de 1883. Uma das referências dadas pelo próprio Nietzsche para demarcar as fases de sua produção filosófica. 6 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 29.

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é tão evidente que eles nem se dão o trabalho de justificá-la,

como se a filosofia devesse ceder à evidência da cronologia.

Em sua importante obra (1920), Charles Andler dá como títulos

a essas três filosofias: “o pessimismo estético” (O nascimento

da tragédia, as Considerações intempestivas); “o transformismo

intelectualista” (Humano, demasiado humano, Aurora, Gaia

ciência) e enfim “a última filosofia” (a partir de Assim falava

Zaratustra). Este último título mostra perfeitamente que a

divisão em períodos encontra seu sentido num acabamento em

que o pensamento de Nietzsche seria enfim ele mesmo, o que

de fato supõe Andler [...]. Três fases do nietzschismo, eis o que

é sedutor e seríamos tentados a dialetizar (como o fizeram

alguns). Mas o próprio Charles Andler admite que poderiam ser

duas (antes e depois de Zaratustra) ou até quatro.7

Desta forma, aceita-se tal divisão, por tratar-se de uma análise que permite

localizar o aparecimento de conceitos fundamentais e observar o amadurecimento

de determinados temas ao longo de sua trajetória filosófica.

A primeira fase dos escritos nietzschianos, isto é, o chamado período do

Pessimismo Romântico, com obras escritas entre 1870 e 1876 e sobre o qual

repousa esta pesquisa, compreende os seguintes textos: A visão dionisíaca do

mundo, O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, de 1870; O nascimento da

tragédia, de 1871 [livro que teve sua conclusão em 1871 e foi publicado no ano

seguinte]; Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, e Cinco prefácios

para cinco livros não escritos, de 1872; A filosofia na época trágica dos gregos,

Sobre a verdade e mentira no sentido extra moral e Primeira consideração

extemporânea: David Strauss, o devoto e o escritor, de 1873; Segunda consideração

extemporânea: da utilidade e desvantagem da história para a vida e Terceira

7 LEFRANK, Jean. Compreender Nietzsche. Trad.: Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 33.

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consideração extemporânea: Schopenhauer como educador, de 1874; Quarta

consideração extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth, de 1876;8 além de

fragmentos póstumos.9

Entre as características do primeiro Nietzsche, a preocupação em relação à

renovação da cultura alemã, segundo Paschoal, “não é suficiente para diferenciá-lo

dos demais, pois essa preocupação aparece também em seus escritos até 1888”.10

O que marca mais decisivamente esses primeiros escritos é que esta renovação,

segundo Nietzsche, está ligada à filosofia de Schopenhauer e à música de Wagner.

Em O nascimento da tragédia, primeiro livro do autor, estas influências estão

evidentes e claramente assumidas, assim como os primeiros passos para uma

ruptura com seus mestres. Esta obra foi criticada e incompreendida principalmente

pelos filólogos da sua época, que acompanhavam a trajetória acadêmica do jovem e

promissor catedrático de filologia.

Vale observar três idéias centrais que norteiam O nascimento da tragédia, no

que se refere aos seus objetivos. Segundo Roberto Machado, no livro Nietzsche e a

polêmica sobre o nascimento da tragédia, a primeira idéia é uma abordagem sobre a

origem, a composição e a própria finalidade da arte trágica grega. É a expressão das

pulsões artísticas apolínea e dionisíaca, apresentadas como alternativa à

racionalidade conceitual instaurada a partir de Sócrates (470-399 a.C.) e Platão

(427-347 a.C.) ou a partir das categorias metafísicas de essência e aparência na

dualidade schopenhaueriana de vontade e representação.

A segunda idéia fundamental de O nascimento da tragédia é a denúncia à

estética racionalista que passou a vigorar com a morte da arte trágica e cujo mentor

8 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 34, 35 e 36. 9 Os fragmentos póstumos aqui referenciados encontram-se no seguinte livro de Nietzsche: Sabedoria para depois de amanhã. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 10 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 30.

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12

foi Eurípides, o poeta que subordinou a beleza à razão e, com isso, promoveu a

expulsão da música do palco trágico. Passagem esta chamada por Nietzsche de

socratismo de Eurípides ou socratismo estético, pois o poeta foi apenas uma

máscara, no sentido de que quem falava por ele não era Dionísio nem Apolo, mais

antes Sócrates, subordinando assim o poeta ao homem teórico e a beleza à razão.

A terceira idéia ou objetivo do livro é que a análise do nascimento e da morte

da tragédia foi realizada com o propósito também de diagnosticar a época em que o

autor vivia, isto é, de encontrar na concepção trágica do mundo algumas

manifestações culturais da modernidade.11

A antinomia apresentada por Nietzsche entre a arte trágica e a metafísica

racional abordadas em seu primeiro livro enaltece a dimensão dionisíaca na tragédia

grega, dando acesso às questões fundamentais da existência e servindo, mesmo,

como antídoto à racionalidade. Em outra obra de Roberto Machado, Zaratustra,

tragédia nietzschiana, este autor explica que “enquanto a metafísica é incapaz de

expressar o mundo, em sua tragicidade, pela prevalência que concede à verdade

em detrimento da ilusão, ou pela oposição que estabelece entre a essência e a

aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à

beleza, que é uma ilusão, uma aparência”.12

Nietzsche opõe sua perspectiva sobre a arte trágica grega à cultura de seu

tempo e em especial à cultura alemã, criticada como sendo o triunfo histórico da

razão, desprovida de compromisso com a vida. Segundo Paschoal,

trata-se, portanto, de procurar na história uma unidade que

possibilite pensar, com todas as suas conseqüências, a

11 MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7-13. 12 MACHADO, Roberto. Zaratustra tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 12.

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13

solução para a oposição entre o ‘saber artístico’ e a

‘onipotência da razão’. A concepção de Nietzsche de história,

nesse período, tem a ver com sua compreensão da tragédia

ática, como a síntese entre Apolo e Dionísio, que pode revelar

o quanto é trágica a existência humana, mas que nunca dirá

não à vida.13

O tema dionisíaco e a sua relação com o apolíneo foram abordados por

Nietzsche especialmente em sua primeira obra de 1871. Porém, Rosa Maria Dias

alerta que, embora ainda não existisse a antítese entre Apolo e Dionísio, quanto aos

dois impulsos artísticos da natureza, ela estava presente nas suas primeiras

conferências de 1870, nos textos preparatórios para O nascimento da tragédia.

Segundo a autora, “Nietzsche não faz nenhuma referência ao Deus Apolo e o nome

de Dioniso14 quase não é mencionado, mas o fenômeno do dionisíaco está presente,

[...] relacionado a um fenômeno da natureza, ao impulso primaveril, que se

manifesta de súbito e intensifica as forças vitais”.15

De fato, em A visão dionisíaca do mundo, O drama musical grego e Sócrates

e a tragédia, textos de 1870, mencionados por Rosa Maria Dias, Nietzsche

apresenta as suas concepções sobre o teatro grego, as quais foram expostas mais

detalhadamente nas seções 7, 8 e 9 de O nascimento da tragédia. A forças

orgiásticas, os cortejos dionisíacos, o coro trágico e o seu envolvimento com o

público na tragédia grega foram apresentados por Nietzsche nestes textos

preparatórios. Observa-se, nas palavras do próprio filósofo, o seu enfoque sobre o

povo grego trágico: “na consciência do despertar da embriaguez, ele [o grego] vê por

toda a parte o horrível ou absurdo do ser humano: esse o repugna. Afora ele 13 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 31. 14 Alguns autores adotam a escrita de Dioniso, ao invés de Dionísio. 15 DIAS, Rosa Maria. Um Dionísio bárbaro e um Dionísio civilizado no pensamento do jovem Nietzsche. Apud: AZEVEDO, Vânia Dutra de (Org.). Encontros Nietzsche: Ijuí: Unijuí, 2003. p. 180-181.

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14

entende a sabedoria do deus silvestre”.16 Essas forças vitais mencionadas, a

embriaguez e o impulso primaveril serão chamados posteriormente de Uno-

primordial em O nascimento da tragédia. Este livro trouxe ao debate a relação entre

a ciência, a arte e a filosofia.

Nietzsche, em seu primeiro livro, foi além de um simples exercício estético,

elaborando, antes, uma concepção ontológica da arte ou, em outras palavras, uma

metafísica de artista. “A arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da

existência, não nas aparências, mas por traz delas”.17 Para Nietzsche, a história da

arte trágica dos helenos brotou do espírito da música e não da palavra falada.

A originalidade de Nietzsche em O nascimento da tragédia foi,

inspirada na idéia wagneriana de drama musical, valorizar a

música para pensar a tragédia grega como sendo uma arte

fundamentalmente musical, ou como tendo origem no espírito

da música, concebida como única força capaz de expressar o

dionisíaco. Mas também articular a filosofia de Schopenhauer

[...] para pensar a cultura alemã através do espírito trágico,

idéia que não existe em Schopenhauer.18

A reflexão sobre o valor da Grécia arcaica para a Alemanha, que perpassa

um dos temas de O nascimento da tragédia, insere seu primeiro livro na discussão

de um projeto de política cultural alemã, da época do filósofo.

O fato é que Nietzsche escreveu seus livros e propôs uma filosofia dionisíaca

durante a época da Alemanha de Bismarck, o chanceler que chegou ao poder

16 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da Trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. § 3, p. 25. 17 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 17, p. 102. 18 MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 34.

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anunciando a imposição de uma política de ferro e sangue.19 A formação de

Nietzsche em meio a professores clássico-liberais, a herança da educação religiosa

familiar e o nacionalismo prussiano da metade do século favoreciam uma

diversidade de fatores que amadureceram o jovem filósofo, promovendo re-

interpretações acerca da vida, da política, da ciência, da filosofia e da arte.

Sua principal preocupação, em 1870, foi usar o novo clima político como

ocasião para exigir um renascimento da cultura trágica e do pessimismo, inspirados

pela música de Wagner e por Schopenhauer, os quais Nietzsche acreditava serem

capazes de dar uma nova profundidade aos ideais clássicos da educação, da

política e da cultura alemãs.20

Em seus primeiros escritos sobre a educação, como na III Consideração

intempestiva: Schopenhauer educador (1874), o filósofo já apontava criticamente a

inconformidade da própria universidade para desempenhar a base para uma cultura

superior. Condenava a pobreza pedagógica e os educadores, que, para ele, não

estavam comprometidos com a autêntica emancipação da vida. Da mesma maneira,

condenava os governantes, sobre os quais afirmava: “qual não seria a aversão das

gerações futuras, quando tiverem de se ocupar com a herança deste período, em

que não são os homens vigorosos que governam, mas os arremedos de homem, os

intérpretes da opinião”.21

O jovem Nietzsche da década de 1870 mostrou-se diferente do filósofo das

décadas seguintes quanto à sua participação e envolvimento nas questões políticas.

Mostrou-se um crítico sagaz da política moderna alemã.

19 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 37-38. 20 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 39. 21 NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Trad., apres. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2003. p. 139.

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O objetivo da ciência é aniquilar o mundo. Todavia, seu efeito

imediato acaba sendo o mesmo de pequenas doses de ópio: o

aumento da afirmação do mundo. Sendo assim, em política nos

encontramos atualmente nesse estágio. Há de se provar que,

na Grécia, esse processo já se realizou em pequena escala,

embora essa ciência grega seja pouco significativa. A arte tem

a tarefa de aniquilar o Estado. Isso também aconteceu na

Grécia. Depois, a ciência também dissolve a arte. (Logo

aparece uma época em que o Estado e a ciência caminham

juntos, a idade dos sofistas – nossa época). As guerras não

devem ocorrer, para que finalmente o sentimento de Estado

sempre avivado adormeça.22

Observa-se nesta passagem dos fragmentos póstumos que, desde muito

cedo, 1869-1870, os elementos inovadores da sua filosofia já se mostravam

contundentes, tendo a Grécia antiga e a filosofia trágica como modelos para

contrapor e avaliar a cultura de sua época. Sua postura diante da cultura e da

religião, bem como a sua opção pela dimensão dionisíaca e embriagante (menção

ao ópio), orientada pela sua reflexão sobre a Grécia antiga, também se mostram

claras no próximo fragmento de 1871, em que afirma: “como artistas, devemos estar

acima da religião e manejar seus mitos tão livremente como o fazia o trágico

ateniense em suas produções, sem nenhuma participação patológica”.23

Nietzsche preocupa-se com o problema da finalidade, ou sentido da

existência. E, como resposta à civilização moderna européia, propõe “cultivar a

única atitude que ele acredita ser capaz de redimir o mundo na ausência de um

22 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Inverno de 1869-70 e primavera de 1870, 3 [11]. p. 5. 23 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Setembro 1870 e janeiro de 1871, 5 [47]. p. 8.

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ponto central ou um Deus, e restabelecer a inocência no fluxo da vida: ‘um trágico

pessimismo da força’. O que é trágico é o fato de que a vida tem de ser vista como

desprovida de propósitos finais ou objetivos morais”.24

Daí o papel importante também da sua II Consideração intempestiva sobre a

utilidade e os inconvenientes da História para a vida (1873-1874), como estudo

crítico da cultura do século XIX e, antes de tudo, uma crítica ao historicismo, em

especial, ao historicismo que recaía em uma teleologia idealista. Aos seus

propagadores hegelianos, Nietzsche conjectura sobre os riscos e males desta

história monumental utilizada por malfeitores egoístas, causando estragos e

destruindo ao que a Antigüidade produziu.

Tomemos o exemplo mais simples e mais freqüente.

Imaginemos as personalidades totalmente ou parcialmente

indefesas à arte, armadas e paramentadas pela história

monumental dos grandes criadores: contra quem voltariam elas

as suas armas? Contra os seus inimigos hereditários, contra as

fortes naturezas artísticas, quer dizer, contra os únicos que

sabem tirar desta história um verdadeiro ensinamento, um

ensinamento orientado para a vida, para em seguida

transformá-lo numa prática superior.25

Pode-se observar, diante dos fragmentos póstumos e dos textos anteriores a

O nascimento da tragédia, que Nietzsche iniciava um embate com o seu contexto

histórico e filosófico. Ao apresentar Dionísio, e em especial a arte dionisíaca, como

expressão da vida, opunha-se veementemente ao otimismo vigente no século XIX,

24 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 57. 25 NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. In: Escritos sobre História. Apres., trad. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2005.

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marcado pela crença na ciência e pela influência do positivismo, embora também

tenha sido influenciado por este. Notam-se nas obras da sua primeira fase o ímpeto

e a força de um jovem filósofo que desde cedo se mostra além do seu tempo,

intempestivo. Assume um pessimismo ativo, ou pessimismo da fortitude, como

escreve na Tentativa de autocrítica, diante da sua visão sobre a tragédia grega,

entendendo com ela a implacável necessidade de assumir a vida em sua

transbordante saúde e superabundância, plenitude.26

A seguir, será examinada a filosofia que Nietzsche desenvolve a partir de

uma perspectiva particular sobre a tragédia grega.

1.2 A tragédia grega e a filosofia nietzschiana

Encontrou-se [na tragédia grega] o sentido

profundo e ingênuo, divino e infantil ao

mesmo tempo dos velhos mitos surgidos da

imaginação primitiva. (Paul de Saint-Victor)27

A arte trágica, surgida em inícios do século VI a.C., é uma representação que

vai além de uma história fictícia. Constitui, antes, a própria experiência humana em

sua ambivalência e contradição. A tragédia, sob a ótica nietzschiana, não pretende

promover ensinamentos morais ao final, nem se destina à mera diversão. Ela tem

um papel, tem uma função, mas não é moralizadora. O público era acometido por

um clima de tensão e dúvida, no qual a realidade do homem era problematizada,

26 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 1, p. 14. 27 SAINT-VICTOR, Paul de. As duas máscaras – a cultura da Grécia em seu teatro. Trad.: Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Germape, 2003. p. 9-10.

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mas jamais resolvida. Convivem na tragédia o aspecto enigmático e as suas duas

faces: a da reflexão, ligada ao pensar consigo mesmo, e a outra, ligada ao

desconhecido e ao imprevisível.

A base da teoria nietzschiana sobre a filosofia trágica está na interpretação da

tragédia ática, um espetáculo dramático, musical e religioso que, para Nietzsche,

representa um dos períodos mais relevantes de um povo na história. Nela o “gênio”

grego conseguiu promover a coexistência das pulsões artísticas apolínea e

dionisíaca, que estão em permanente inter-relação no interior da vida do povo grego.

Uma concepção única que ousou conciliar dor e prazer, criação e destruição,

consciência e inconsciência, em uma afirmação extasiada da vida como totalidade.

Superabundância de poder e medida convergindo em uma elevada afirmação da

vida, partindo exatamente da dualidade entre Apolo e Dionísio.

A perspectiva de Nietzsche sobre a Grécia antiga e sobre o cenário trágico28

é oriunda da sua leitura sobre do gênio helênico, que deu um salto decisivo frente ao

pressentimento de que o devir e a dor são o sentido último de todas as coisas e, ao

invés de condenar a vida perante a intuição do uno-originário, soube afirmá-la em

sua natureza mais trágica. Para ele, a alegria é a essência da tragédia, agindo como

prodigioso antídoto frente à angústia, à dor e ao sofrimento do mundo ou da vida.

“Assim, a tragédia, com seu consolo metafísico, aponta para a vida perene, daquele

cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências. Do mesmo

modo, o simbolismo do coro satírico já exprime em um símile a relação primordial

entre coisa e fenômeno”.29 Sua crítica a esta forma de entender a existência como

28 É importante salientar que a abordagem de Nietzsche sobre a tragédia grega é resultado de uma reflexão ou de uma ótica muito particular do filósofo, não se encontrando concordância geral, uma vez analisada a revisão bibliográfica e mesmo filosófica sobre o assunto, como será apresentado nos conceitos de Goethe e de Aristóteles sobre a tragédia grega. 29 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 8, p. 57-58.

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martírio inexorável é a contribuição nietzschiana para transvalorar os valores que

permearam a formação do pensamento ocidental, desde a filosofia de Platão,

passando pelo cristianismo, até chegar ao seu mestre, Schopenhauer.

Nietzsche proclama a alegria trágica de viver a partir da sabedoria dionisíaca

como afirmação da vida e contra o otimismo racional. ”Invertendo o platonismo,

Nietzsche transmuta o trágico em verdade e divindade. Afirma o todo, aliás, aquilo

que caracteriza um todo não-totalizável. Nietzsche abençoa a ‘vida trágica’, seja ela

decepcionante ou não, tentando amá-la como tal e não fugir dela”.30 Para ele, a

verdadeira tragédia funciona como um consolo metafísico, fazendo entender que a

vida, “no fundo das coisas”, e apesar de toda a mudança das aparências

fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.31

O trágico para Nietzsche não existe enquanto dicotomia indissolúvel, como no

conceito de Goethe,32 nem é a perspectiva de renúncia da vida, ou pessimismo

diante da supressão do homem perante o destino, da culpa ou da vontade cega. Daí

pode-se destacar o papel do herói trágico, quase sempre perecendo no espetáculo

trágico em um percurso curto de tempo, mas com toda a intensidade. “O universo

trágico pode ser concebido como uma crise cujo ponto central é a ambigüidade. Isso

porque a tragédia é o resultado de um mundo que se apresenta como o choque

entre forças opostas: o mítico e o racional. Deste modo, a função primordial da

tragédia é a palavra poética que responde à situação do século V a.C.”.33 Assim, no

presente trabalho, entende-se tal ambigüidade em Nietzsche como a coexistência

30 GILES, Thomas Ransom. Nietzsche: no limiar do século XXI. São Paulo: EPU, 2003. p. 148. 31 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 55. 32 Conceito de Goethe sobre a essência do trágico em 6 de junho de 1824: “Todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação desaparece o trágico”. (GOETHE apud LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 31) 33 COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988. p. 8.

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das duas pulsões artísticas: a apolínea e a dionisíaca. Esse enfoque é importante

para perceber a perspectiva nietzschiana sobre a tragédia grega.

Em A tragédia grega, de Albin Lesky, encontra-se uma exposição sobre os

conceitos e a origem da tragédia. Lesky faz alusão a épocas, a culturas e a autores

diferentes, porém, sucintamente, é possível apontar a ênfase que dá a Aristóteles

para conceituar a tragédia. Descreve-a como a catástrofe do destino de um herói,

atentando para a dignidade da queda ou entendendo o elemento trágico como uma

contradição inconciliável. Em Nietzsche, esta visão de “queda” do herói não existe,

nem a contradição é inconciliável. Antes, tem-se pelo herói trágico a experiência

profunda da intuição de uma dimensão inconsciente que o faz um gênio

transfigurador.34 Apolo e Dionísio, em Nietzsche, são pulsões da vida necessárias e

co-existentes, embora haja entre elas a tensão constante e transformadora, que ao

mesmo tempo gera e destrói. Em suma, o fundo originário ou o Uno-primordial

apresenta-se como um problema de ordem estética e metafísica. E, neste mesmo

conceito, de forma paradoxal, a metafísica de artista mostra a oposição e a

reconciliação na relação de forças entre as duas pulsões artísticas.

A Seção 24 de O nascimento da tragédia traz uma reflexão sobre o papel do

herói trágico glorificado como “lutador” e representado repetidamente na idade mais

viçosa e juvenil de um povo, como um prazer superior sob a imagem do herói

sofredor.35

De acordo com as concepções gregas, os termos trágicos derivam dos mitos,

mas também é possível encontrar neles a dimensão de delimitação de ordem social.

Na sua encenação, isto é, na manifestação desta dramaticidade, que corresponde

ao âmago da alma da Grécia antiga, observam-se o uso da máscara enquanto 34 Sobre o herói trágico e o papel da intuição em Heráclito, ver página 86 e ss. da presente pesquisa. 35 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 24, p. 140.

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metamorfose, que é a essência da representação teatral, bem como o coro que

muitas vezes personifica a multidão e o herói trágicos;36 e, como se examinará no

Capítulo 3, também personifica o deus Dionísio. Lesky faz uma referência a esse

conceito aristotélico mencionando Nietzsche:

Aristóteles reconheceu claramente quando, na Poética (Cap.

6), caracterizou a tragédia não como imitação de pessoas, mas

de ações e da vida. Com isto, compreendeu a tragédia clássica

de seu povo melhor que seus intérpretes modernos, [... contra

os quais] Nietzsche tantas vezes nos acautela.37

De fato, ao observarem-se as palavras do próprio Aristóteles a esse respeito,

em Poética, na comparação entre a tragédia e a comédia, o filósofo aponta que a

primeira é a representação de uma ação elevada, com linguagem adornada, com

atores que encenam e não narram, fazem uso do canto e das falas, despertam a

piedade e o temor, resultado de uma catarse38 de emoções.

O mais importante é a maneira como se dispõem as ações,

uma vez que a tragédia não é imitação de pessoas e sim de

ações, da vida, da felicidade, da desventura; mas felicidade e

desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é

uma ação, não uma qualidade. Os homens possuem diferentes

qualidades, de acordo com o caráter, mas são felizes ou

infelizes de acordo com as ações que praticam. Assim, segue-

se que as personagens, na tragédia, não agem para imitar os

caracteres, mas adquirem os caracteres para realizar as ações.39

36 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 27-32. 37 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 33. 38 Catarse é um termo aristotélico, não nietzschiano. 39 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores) p. 44.

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Nesse aspecto, não se percebe distinção entre Aristóteles e Nietzsche, porém,

este supõe que a arte não seja apenas imitação da realidade natural, mas um

suplemento metafísico desta realidade que, colocada junto dela, pode superá-la.40

No fragmento apresentado a seguir, escrito por Nietzsche em 1871 e

publicado postumamente no livro Sabedoria para depois de amanhã, o filósofo

ilustra como em um ensaio, o que vai desenvolver mais extensamente em O

nascimento da tragédia. Observa-se que o indivíduo, neste aforismo, ocupa o lugar

do herói trágico.

Aquilo que chamamos de “trágico” é justamente essa

elucidação apolínea do dionisíaco: quando separamos e

dispomos numa série de imagens essas sensações tecidas

entre si, que a embriaguez de Dioniso produz em conjunto,

essa série de imagens expressa o “trágico” [...]. A forma mais

universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de

alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é

derrotado e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento

como uma vitória. Para o herói trágico, é necessário sucumbir

por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos

algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de

que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de

prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável

quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao

perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo.41

40 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 24, p. 140. A imitação é um ponto em comum entre Aristóteles e Nietzsche, mencionado aqui apenas como referência para compreensão do conceito da tragédia. 41 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos Fragmentos Póstumos por Heinz Friedrich. Trad.: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Final de 1870 - abril de 1871. 7 [128]. p. 12.

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Como foi apresentado no início deste fragmento, sobre o papel do herói

trágico Nietzsche aponta para a necessidade ou para a coexistência das duas

pulsões ou fenômenos da natureza, representados pelos deuses Dionísio e Apolo, o

último elucidando o deus da embriaguez. O filósofo expõe, ainda, uma noção de

movimento ao abordar a dignidade tanto do nascer como do perecer. A relação

conflitante, desta forma, não está entre as polaridades divinas que compõem a

tragédia grega. A oposição criticada por Nietzsche está entre o instinto e a natureza

lógica, levada a cabo por Sócrates. Nietzsche aborda este tema em especial na

Seção 13 de O nascimento da tragédia, mostrando que o Daimon de Sócrates, a voz

divina, sempre esteve presente em situações especiais, atuando quando sua

descomunal inteligência vacilava, apesar de sua excessiva e super-valorização da

natureza lógica.42 Daí Sócrates assumir a sua condenação à morte, de acordo com

Nietzsche, de forma caricata. A oposição desta forma é entre Sócrates e a interação

das pulsões artísticas (Apólo-Dionísio) na tragédia grega.

A função de Dionísio, ou do instinto, em Nietzsche, não obstante, é sempre

referenciada com ênfase, justamente porque o filósofo observa na história da

filosofia e na própria derrocada da tragédia, a negação da embriaguez do deus do

êxtase e da inconsciência, em nome daquilo que é equilíbrio, medida, sobriedade ou

racionalidade dialética. Elementos estes, referentes e responsáveis pela morte da

tragédia na Grécia antiga.

Aqui interessa, portanto, sintonizar o argumento com a peculiaridade da

leitura nietzschiana sobre a tragédia e a sua distância do conceito clássico e literário

da tragédia ática, mencionado em Lesky.

42 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 13, p. 85-86.

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Para Platão, a virtude é sinônimo do saber racional. Felicidade e justiça

derivam dessa capacidade filosófica de superar ou ultrapassar a pseudo-realidade

das aparências, pois são reflexos do mundo empírico, ou a esfera inferior ao mundo

das Idéias.

A busca para ir além das aparências, em Platão, é a tentativa de

compreender o Bem em si por meio da razão. A principal objeção que Platão tinha a

fazer contra a arte mais antiga era a de ser imitação43 de uma imagem da aparência,

de permanecer, portanto, em uma esfera ainda mais baixa que a do mundo

empírico.44

Para Nietzsche, no entanto, Platão simboliza junto a seu mestre o papel dos

“homens teóricos”, socráticos, satisfeitos em tornar a existência compreensível e

justificada, em verdade, curada. “A partir desse único ponto, julgou Sócrates que

devia corrigir a existência”.45 O otimismo socrático manifesta-se abominando a arte

trágico-dionisíaca e iniciando uma luta particular contra a tragédia do poeta Ésquilo.

A arte e a dimensão dionisíaca encontradas na tragédia grega é que dão os

fundamentos para Nietzsche compreender e traçar novas metas para transpor o

ideal socrático em uma outra perspectiva, superando essa pretensão lógica em uma

cosmovisão aberta ao vir a ser. Um Dionísio que jaz despedaçado é ressuscitado e,

assim, cria-se a possibilidade de um mergulho em uma unidade primogênia, que é 43 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Trad.: Artur M. Pereira. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 982-983. O ataque de Platão é dirigido principalmente contra a poesia imitativa. Mas o que é a imitação? Platão esclarece a questão pelo processo habitual, partindo da hipótese das idéias, que designam a unidade na pluralidade, operada no pensamento. As coisas que os sentidos transmitem ao indivíduo são reflexos das idéias, isto é, as cadeiras ou as mesas são reflexos ou imitações da idéia de cadeira ou de mesa, que é sempre única. O carpinteiro cria os seus produtos, tendo presente a idéia como modelo. O que ele produz é a mesa ou a cadeira, não a sua idéia. Uma terceira fase da realidade, além das da idéia e da coisa transmitida pelos sentidos, é a que representa o produto da arte pictórica, quando um artista representa um objeto. É precisamente com esta fase que Platão compara a relação que existe entre a poesia e a verdade e entre a poesia e o ser. 44 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 88. 45 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 13, p. 85.

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diferente da vontade irascível schopenhaueriana, mas está em sintonia com a vida

e, mais especificamente, com o Uno-primordial.

Ainda com referência a Platão, quando este conheceu Sócrates, rasgou seus

primeiros ensaios de poesia ditirâmbica46 e tragédias e não mais as escreveu,

permanecendo com os conhecidos Diálogos, ou seja, as conversas e os debates

com seu mestre e com seus interlocutores.47

Platão tinha começado por fazer tragédias. Era de facto

maravilhosamente dotado para a arte dramática, não só para a

tragédia, mas também para a comédia e a sátira dos ridículos.

Não admira pois que tenha escolhido a forma do diálogo para

expor suas idéias. Aliás, nisto imitava o seu mestre Sócrates,

incansável questionador, que nunca praticava outro método

que não fosse a investigação por perguntas e respostas.48

Para Platão, o trágico é a representação de um mundo “baixo”, no qual

vigoram mitos e mentiras; é a separação entre o que é ideal e o que é perfeito. Para

seu mestre Sócrates, aponta Nietzsche,

parecia que a arte trágica nunca ‘diz a verdade’ [...]. Como

Platão, ele a incluía nas artes aduladoras, que não

representam o útil, mas apenas o agradável, e por isso exigia

de seus discípulos a abstinência e o rigoroso afastamento de

tais atrações, tão pouco filosóficas; e o fez com tanto êxito que

46 Ditirambo: "canção do culto dionisíaco, com acompanhamento de aulos (instrumento de palheta dupla)”, instrumento que evocava sensualidade e liberdade [MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. p. 173 (Aquém do título Atlas de Música, esta obra, cujo original foi escrito em alemão, figura entre as mais importantes e respeitáveis sobre o assunto)]. 47 PLATÃO. O banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 13. 48 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Notas e trad.: Sampaio Marinho. Portugal: Europa-América, s.d. p. 23.

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o jovem poeta trágico chamado Platão queimou, antes de tudo,

os seus poemas, a fim de poder tornar-se discípulo de Sócrates.49

Na perspectiva de Nietzsche, a tragédia ática apresenta a inseparabilidade

daquilo que se entende por bem e mal, verdadeiro e falso, êxtase e sofrimento. É

este paradoxo que apresenta a unidade originária ou o Uno-primordial.

Mas, em um mundo cindido pela racionalidade socrática, que nega a

aparência, a tragédia tem uma vida curta e cede lugar ao drama, à comédia e,

filosoficamente, dá lugar à retórica, ao discurso e aos diálogos socráticos dialéticos.

Nos diálogos A República e O Banquete, de Platão, percebe-se que Sócrates,

cujo pensamento Nietzsche tanto critica, fala pela voz do seu discípulo. Platão

descreve, em seu texto O Banquete, um jantar na casa do poeta Agatão, que

comemorava sua vitória em um concurso de tragédias e, entre seus convidados

presentes, resolve instituir outro concurso, oratório desta vez, no qual o tema do

discurso deveria ser o Amor (Eros, divindade, servo e companheiro de Afrodite). No

entanto, o maior elogio ao amor é feito no campo da teoria das idéias, traçando o

destino do homem numa linha de ascensão espiritual e de abstenção dos prazeres

sensuais,50 perturbadores da virtude da reflexão e da pretensa capacidade de

administrar os desígnios da vida.

Os elementos que poderiam caracterizar a tragédia, como a embriaguez de

Alcebíades, são sobrepujados pela lógica dialética de Sócrates. E o amor, assim, é

exaltado sob a luz e a vigilância da razão, como se observa no diálogo:

49 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 87-88. 50 PLATÃO. O Banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 9-13.

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Depois disso, continuou Aristodemo, reclinou-se Sócrates e

jantou com os outros; fizeram então libações e, depois dos

hinos ao deus e dos ritos de costume, voltaram-se à bebida.

Pausânias então começou a falar mais ou menos assim: Bem,

senhores, qual modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim

digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem

e preciso tomar fôlego — e creio que também a maioria dos

senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo

poderíamos beber o mais comodamente possível.

[...] quanto a Sócrates, eu excetuo do que digo, que é ele

capaz de ambas as coisas e se contentará com o que quer que

fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a

beber muito vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez

eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável.

[...] Como, então, continuou Erixímaco, é isso que se decide,

beber cada um o que quiser, sem que nada seja forçado, o que

sugiro então é que mandemos embora a flautista e que ela vá

flautear para si mesma ou para as mulheres lá dentro; quanto a

nós, com discursos devemos fazer nossa reunião hoje; e que

discursos — eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.51

Observa-se no curto diálogo a prática socrática no domínio racional dos

apetites e dos sentidos do corpo, pelos personagens da cena, resistindo tanto à

fadiga e à dor como ao prazer, tal como queria Platão ao conduzir o diálogo. Nota-se

que, junto da abdicação da bebida farta, foram dispensadas a música e a flautista.

Apenas com o intuito de referenciar a negativa socrático-platônica à dimensão

do inconsciente e da embriaguez e também de evidenciar a reticência para com a

própria música e a esfera feminina, acrescentou-se este diálogo do Banquete de

Platão, cujos elementos são valorizados na leitura da Grécia nietzschiana. É

51 PLATÃO. O banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. § 176 a, b, c, d, e. p. 94.

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evidente o intuito moralizante nos diálogos platônicos, levando os interlocutores e o

leitor a conclusões conduzidas pelo seu autor e pelo seu mestre.

Nietzsche, no texto O drama musical grego, faz menção às Dionisíacas

Urbanas,52 associadas às forças vitais e aos estados coletivos de deleite. Da mesma

forma, em O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta um argumento sobre as

festas dionisíacas como comemorações de redenção universal, celebrações que

consistiam em desenfreada licença sexual, sobrepassando todas as convenções

familiares e sociais. Estas celebrações estão associadas ao rompimento do

principium individuationis como um fenômeno artístico trágico.53 Novamente a

relação Apolo e Dionísio está presente: o primeiro, responsável pelo princípio

individualizador; e o segundo, pelo seu rompimento, o que aqui se associa ao

conceito de catarse apresentado na visão de Aristóteles.

Aristóteles estabeleceu que o sentido do termo [catarse,

associada à tragédia] é um alívio, combinado ao prazer, dos

mencionados afetos. [...] A catarse deste tipo não está ligada,

para Aristóteles, a nenhum efeito moral. Por outro lado, ela lhe

parece totalmente inofensiva, e aqui ele entra em contradição

clara, ainda que não declarada, com Platão. Que baniu

rigorosamente a tragédia de sua República ideal, por

considerá-la perigosa à moral dos cidadãos.54

52 As Grandes Dionisíacas ou Dionisíacas Urbanas eram festas em homenagem a Dionísio, celebradas em Atenas no mês de Efabolion, que corresponde ao período que vai da segunda metade de março até meados de abril (n. do t.). Nietzsche aponta também manifestações desse tipo de permissão social em festas da Idade Média e no carnaval. (NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 54) 53 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 2, p. 34-35. 54 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 28-29.

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No Livro III de A República, encontra-se este traço de contestação à tragédia

e à imitação, em prol da epopéia, bem como a um certo tipo de música e à harmonia

de determinados instrumentos que não servem à educação ou ao Estado enquanto

formadores de cidadãos, pois podem remeter à experiência dionisíaca. A citação

seguinte traz um diálogo de longa argumentação que tenta descartar a imitação da

arte como caminho pedagógico, artístico ou filosófico:

— Há uma espécie de narrativa oposta a esta [imitação],

quando se suprime o que diz o poeta entre os discursos e se

deixa ficar unicamente o diálogo.

— [...] É a forma própria da tragédia.

— [...] Há uma primeira espécie de poesia e de ficção inteiramente

imitativa que compreende [...] a tragédia e a comédia; uma

segunda em que os factos são relatados pelo próprio poeta —

encontra-las-ás sobretudo nos ditirambos — e, finalmente, uma

terceira formação da combinação das duas precedentes em

uso na epopéia e em muitos outros gêneros.

— [...] tínhamos de decidir se permitiríamos aos poetas compor

narrativas meramente imitativas ou imitar uma coisa, e não

outra, e quais de uma e outra parte, ou se lhes proibiríamos a

imitação.

— Adivinho que vais analisar se devemos admitir ou não a

tragédia e a comédia na nossa cidade.55

Por intermédio do diálogo entre Sócrates com Gláucon e Simónides, e

também mediante uma argumentação lógica, o texto de A República segue em

confronto claro com os elementos dissonantes que compõe a música e a tragédia grega:

55 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Notas e trad.: Sampaio Marinho. Portugal: Europa-América, s.d. p. 109.

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— E a harmonia e o ritmo devem adequar-se às palavras?

— Como não?

— Mas nós dissemos que não devia haver queixas e

lamentações nos nossos discursos.

— Quais são, então, as harmonias plangentes? Diz-nos, visto

que és músico.

— São [...] a lídia mista, a lídia aguda e outras semelhantes.

— Por conseguinte, essas harmonias devem ser suprimidas,

não é verdade?, porque são inúteis para mulheres honradas e,

com mais forte razão, para homens.

— Certamente. [...]

— Sendo assim — repliquei —, não teremos necessidade, para

os nossos cantos e as nossas melodias, de instrumentos com

muitas cordas, que reproduzem todas as harmonias.56

Observa-se nos dois textos de Platão mencionados a abordagem negativa à

embriaguez, à música e à sensualidade. Isso é essencial, também, para a

compreensão posterior dos conceitos nietzschianos, principalmente no tocante à

morte da tragédia grega, com a expulsão da música do palco do espetáculo trágico.

A nova arte proporcionada por Platão a partir da severa lei antiga da unidade

da forma lingüística é o protótipo do romance, em que a poesia vive com a filosofia

dialética, como escrava.

Ao tratar da arte do herói trágico e do mito trágico, Nietzsche assume que só

pela música é possível acessar a universalidade dionisíaca. “Com essa harmonia

pré-estabelecida que impera entre o drama perfeito e a sua música, alcança o drama

um grau supremo de visualidade, de outro modo inacessível ao drama falado”.57

56 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Portugal: Europa-América, s.d. Notas e trad.: Sampaio Marinho. p. 115-116. 57 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 21, p. 126, 128.

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A fim de se compreender esta universalidade dionisíaca e o seu acesso pela

música trágica, apresentar-se-ão em seguida os fundamentos do Uno-primordial.

1.3 A teoria do Uno-primordial

O Uno-primordial como ‘uno vivente’

representa a totalidade da força vital da

natureza concebida como um único ser

vivo não individualizado. (Benchimol)58

É no início dos seus escritos, que Friedrich Nietzsche concebeu, ou intuiu,

uma série de elementos que proverão sua original produção filosófica posterior. Ou,

por que não dizer, desenvolveu os preceitos que justificam sua ruptura com a

tradição filosófica platônica.

Para se entender o conceito do Uno-primordial na perspectiva de Nietzsche, é

necessário encontrar na dimensão dionisíaca, excluída do cenário socrático, a via de

acesso mais autêntica para a compreensão da existência, sem deixar de considerar

a dimensão apolínea, necessária à consciência, à harmonia e ao processo de

individuação.

Os primeiros escritos da obra de Friedrich Nietzsche têm, entre outras

peculiaridades, a relevância dada à filosofia da Grécia antiga ou, mais

apropriadamente, à tragédia grega e aos filósofos pré-socráticos. Porém, a tese do

Uno-primordial passa pela noção romântica de sua época, em que se concebe a

imagem do mundo como um único organismo vivo que gera a si mesmo.

58 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32.

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É a partir da dimensão dionisíaca, presente na tese do Uno-primordial, que

Nietzsche desfere um ataque aos pressupostos do racionalismo da tradição

filosófica ocidental. Esse ataque está presente em seus primeiros escritos e conjuga

um esforço intelectual para superar a bipartição metafísica do mundo, estabelecida

pela racionalidade e compreendida até então entre o “real” e o “aparente”, ou seja,

entre a realidade do mundo físico e a do mundo metafísico. A idéia do mundo como

organismo vivo só pode ser concebida a partir desta superação da bipartição

metafísica.

Para tornar possível tal superação, Nietzsche analisa o momento em que

ocorre a supremacia da razão, que passa a ser entendida como princípio constitutivo

do Ser, concomitantemente à morte da tragédia grega. O filósofo pressupõe uma

incongruência entre o conceito e a realidade e, inspirado em Heráclito de Éfeso,

valoriza uma “percepção intuitiva” da existência, traço fundamental da filosofia

trágica, como um instrumento superior à racionalidade, para investigar a existência.

Daí a retomada da Grécia antiga como modelo para verificar e valorizar uma outra

forma de interpretação da vida e da existência e elaborar a metafísica de artista,

diferente da tradição ocidental, racionalista, e, assim, diagnosticar seu próprio

tempo.

Ao propor a superação da identidade entre conceito e realidade, questão que

se inicia em Sócrates,59 Nietzsche pretende subordinar a razão e a própria ciência a

uma instância de investigação anterior e mais essencial, qual seja, a interpretação

estética, artística e intuitiva da vida.

59 A leitura particular nietzschiana sobre Sócrates o aponta como responsável pela Decadence, mas esta terminologia não é usada por Nietzsche em seus primeiros escritos.

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A vida, para Nietzsche, tem como fonte original uma natureza obscura,

irracional, cega e selvagem, dolorosa e atuante. É a perspectiva dionisíaca em

questão, ou o Uno-primordial.

Para elucidar o que significa essa natureza irracional, faz-se necessário

entender a oposição Apolo-Dionísio na tragédia grega, vista pela perspectiva de

Nietzsche, a fim de diferenciá-la da vontade (sua fonte inspiradora) em

Schopenhauer,60 que já havia constatado esta natureza irracional, em O mundo

como vontade e representação:

A Vontade também é o Em-si da coisa particular e do indivíduo

que a conhece, os quais a objetivam imperfeitamente. Vontade

que, alheia à representação e a todas as suas formas, é uma

única e mesma tanto no objeto contemplado quanto no

indivíduo que se eleva à contemplação e se torna consciente

de si como puro sujeito. Esses dois, por conseguinte, não são

em si diferentes, pois em si são a Vontade que aqui se

conhece a si mesma. Pluralidade e diferença existem apenas

devido à maneira como esse conhecimento chega à Vontade,

ou seja, apenas no fenômeno, e em virtude de sua forma, o

princípio da razão. Assim como eu, sem o objeto, sem a

representação, não sou sujeito que conhece, mas pura

Vontade cega, assim também sem mim, como sujeito do

conhecer, o objeto não é coisa conhecida, mas pura Vontade,

ímpeto cego.61

60 Ver o Capítulo 2.1 da presente investigação. 61 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 34, p. 248-249.

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A teoria do Uno-primordial é relevante para compreender a filosofia afirmativa

e dionisíaca de Nietzsche, diante da qual razão e consciência são apenas suas

manifestações superficiais.

Segundo Nietzsche, é a vida em seu transbordamento e não a vontade cega,

como descrita por Schopenhauer, que existe “no fundo das coisas”. Aponta

Benchimol que,

de fato, Nietzsche, através da idéia do Uno-primordial,

procurou compreender, assim com os filósofos pré-socráticos,

o surgimento dos entes individuais a partir da diferenciação de

um Ser primordial, afirmando, ao mesmo tempo, a necessária

dissolução destes entes novamente no seio daquele Ser. Com

isto, novamente à semelhança da filosofia pré-socrática,

procurou explicar o surgimento da pluralidade a partir da

unidade e do determinado a partir do indeterminado, bem como

dar conta da relação entre o Ser e o devir.62

Em Schopenhauer, a vontade como coisa em si sugere uma nostalgia pelo

nada. Para Nietzsche, esta vontade schopenhaueriana é aparência, fenômeno. O

prazer, em Nietzsche, é mais originário que a dor. A dor é considerada como

fenômeno decorrente da vontade de prazer, ou vontade de vir a ser.

Anna Hartmann Cavalcanti, esclarece sobre este distanciamento entre

Schopenhauer e Nietzsche:

A concepção da vontade como aparência representa [...] o

distanciamento de Nietzsche em relação à metafísica da

vontade de Schopenhauer e o desenvolvimento de uma

62 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 36.

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concepção artística do Uno-primordial, descrito como um

processo de criação e produção ativa da aparência [...]. Esse

tema é apresentado na tese, desenvolvida no fragmento 12 (1),

de que a vontade é a forma mais universal da aparência. A

vontade é diferenciada do ser originário e descrita tanto como

forma da aparência quanto como alternância de dor e prazer.

Nietzsche caracteriza o sofrimento como fonte originária das

coisas, o ser verdadeiro, caracterizado como ‘a sensação de

si’. Esse sofrer e sentir projetam a vontade como um processo

artístico originário, através do qual é engendrada a forma e a

visão, a libertação da dor na aparência. A vontade,

compreendida como a forma mais geral da aparência e

associada ao devir.63

Assim, observa-se que existe um elemento essencial no Uno-primordial, que

é a necessidade de libertação do ser verdadeiro, em sua eterna dor e contradição,

por meio da visão extática e da aparência prazerosa, conclui Cavalcanti.

A dimensão dionisíaca que se pode perceber a seguir diz respeito à

dissolução do princípio individualizador apolíneo:

Vejo Apolo diante de mim como gênio transfigurador do

principium individuationis, único através do qual se pode

alcançar de verdade a redenção na aparência, ao passo que,

sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da

individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser,

para o cerne mais íntimo das coisas.64

63 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 188. 64 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 16, p. 97.

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É evidente a importância das duas forças na sustentação nietzschiana de que

a tragédia grega, pela metafísica do artista, enaltece a aparência como necessária à

vida e como única via de acesso “à essência”, ou ao Uno Primordial.

Ao evidenciar a filosofia socrática que privilegia, lega, uma visão racional e

lógica da realidade, Nietzsche evidencia a fonte moral intencional do instinto do

conhecimento. O que o filósofo propõe é uma perspectiva alternativa que implica

uma apologia à arte trágica em que, em Dionísio, reside a afirmação da vida pela

aparência, porque a própria vida é aparência.

Anna Hartmann Cavalcanti apresenta em seu livro Símbolos e alegoria: a

gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, um estudo sobre O nascimento

da tragédia e os Fragmentos póstumos, os pressupostos metafísicos que dão

origem à teoria estética nietzschiana e ao conceito do Uno-primordial.

O filósofo observa que as pulsões artísticas da natureza, em

sua aspiração à aparência, revelam um elemento essencial do

Uno Primordial, a saber, a necessidade de libertação do ser

verdadeiro, em sua eterna dor e contradição, por meio da visão

extática e prazerosa.65

Cavalcanti ainda acrescenta uma importante observação quanto a um duplo

movimento de Nietzsche, que, ao conceber o conceito ontológico do Uno-primordial,

desenvolve, assim, uma metafísica da arte, ao mesmo tempo que tece uma crítica à

metafísica e os seus pressupostos clássicos.

Segundo Nietzsche, há uma oposição entre um instinto estético e um instinto

de conhecimento. Ele aponta Apolo como gênio transfigurador do principium

65 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 187.

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individuationis, proposto como único veio de alcance da verdade (instinto de

conhecimento). Porém, apesar deste afã socrático, é pelo júbilo dionisíaco (aquela

“isca” perigosa do instinto estético, que aturdiu o filósofo na hora da morte),66 que tal

feitiço da individuação se dissolve dando acesso ao caminho para as “Mães do Ser”,

ou “cerne mais íntimo das coisas”, ou seja, o Uno-primordial.

A essência do Uno-primordial é a contradição, caracterizando-se tanto pela

dor suprema quanto pelo prazer supremo.

O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais

barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um

elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do

passado. Assim se separam um do outro, através desse

abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o

da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a

ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea;

uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de

tais estados.67

Por “limites da existência” e “usuais barreiras”, entendem-se a dimensão

moral criticada por Nietzsche, ou a opção pelo conteúdo luminoso da razão, ou

ainda o princípio individualizador próprio do deus Apolo que proporciona a

capacidade de tolerar o absurdo da existência.

O elemento letárgico, que Nietzsche descreve como oriundo das vivências

pessoais do passado, é o que impede de alcançar uma perspectiva sobre o

movimento e sobre a transformação da existência que a arte trágica, a música

66 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 78. 67 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 55-56.

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ditirâmbica ou o instinto estético proporcionam. Segundo Leon Kossovitch, em

Signos e poderes em Nietzsche, a figura, ou arte plástica apolínea, é passiva, é a

ignorância de movimento – as intensidades móveis estão do

lado de Dionísio. Supressão das distâncias e da visão: o

movimento dionisíaco suscita as reações musicais – canto e

dança. Mas não menos essencial – que só a música e a

mística fornecem – é o estabelecimento de uma comunicação

que unifica as singularidades, abolindo-as como indivíduos,

como consciência.68

Desta forma, pode-se compreender a validação dos dois movimentos: o de

dissolução das consciências e das individualidades pela dimensão dionisíaca; e a de

tomada de consciência e de individuação proporcionada pela dimensão apolínea.

Contudo, na composição da tragédia grega, a partir do coro, há uma ênfase

na música dionisíaca, vista como apta a conduzir o homem ao “coração da natureza”

e, assim, promover a sua reconciliação com a existência. Esta é a justificativa de

Nietzsche ao interpretar a civilização grega como referência, ao ser capaz de

conjugar a arte trágica como curativa e redentora da vida.

Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual

feiticeira da salvação e da cura, a “arte”; só ela tem o poder de

transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o

absurdo da existência em apresentações com as quais é

possível viver: são elas o “sublime”, enquanto domesticação

artística do horrível, e o “cômico”, enquanto descarga artística

da náusea do absurdo. O coro satírico do ditirambo é o ato

salvador da arte grega; no mundo intermédio desses

68 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 169-170.

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acompanhantes dionisíacos esgotam-se aqueles acessos há

pouco descritos.69

Esta é a relação da tensão entre os opostos que se complementam e não se

aniquilam. Esta luta oferece, ora em Apolo, ora em Dionísio, os determinantes para a

afirmação da vida, pois conferem a dinâmica da tragédia grega.

Para lograr o êxito proposto de encontrar na dimensão dionisíaca a via mais

autêntica para compreender a existência, faz-se necessário entender o sentido da

vontade e sua distinção da concepção schopenhaueriana do que Nietzsche chama

de “fundo originário” desta própria vontade, ou sentido primordial de todas as coisas

– o Uno-primordial, fonte da suprema dor e do intenso prazer.

A dor, compreendida como fundo originário da vontade e como é concebida

por Schopenhauer, é absorvida como influência pessimista por Nietzsche. Não

obstante, em O nascimento da tragédia e, novamente, na Tentativa de Autocrítica,

encontra-se também uma revisão de sua posição frente ao seu mestre, marcada

pela presença mais pujante de Dionísio. Esta se mostra na interpretação deste fundo

originário, também como prazer e sensualidade. E deste prazer evoca a força de

redenção diante da obliteração, socrática e cristã. Para os dois filósofos, a vontade é

a contradição e a dor. Não obstante, para Schopenhauer, a arte possibilita um

apaziguamento diante da vontade, enquanto em Nietzsche, a própria vontade é

aparência e, portanto, a possibilidade artística de redenção nela mesma. Em última

instância, esta dimensão dionisíaca é o elemento adotado por Nietzsche para a

superação do pessimismo schopenhaueriano.

69 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 56.

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O ódio ao “mundo”, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à

sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o

lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo

repouso. [...] A moral mesma – como? A moral não seria uma

“vontade de negação da vida”, um instinto secreto de

aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento,

difamação, um começo do fim? E, em conseqüência, o perigo

dos perigos? [...] Contra a moral, portanto, voltou-se então,

com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto

em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma

contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente

artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de

filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma

liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do

Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei

“dionisíaca”.70

Esta força dionisíaca mostra-se em duas facetas do mesmo deus. Uma, do

deus da desmesura, do caos, do êxtase; e outra, do deus da fecundidade da terra.

Esta diferenciação torna-se cada vez mais clara diante da recorrência que Nietzsche

faz das forças dionisíacas e marca a retomada deste “impulso” ou “instinto” estético,

que apareceu na segunda fase dos seus escritos. Daí, estar na Tentativa de

Autocrítica, quatorze anos depois da primeira edição de O nascimento da tragédia, e

em Assim Falou Zaratustra, permanecendo até os últimos escritos da terceira fase.

Deleuze aponta tal distinção, distinguindo as características das duas faces do deus

Dionísio mencionadas. Afirma que “estamos longe do primeiro Dionísio, aquele que

70 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 19-20.

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Nietzsche concebia sob a influência de Schopenhauer, como reabsorvendo a vida

num Fundo original, como aliando-se a Apolo para produzir a tragédia”.71

É a este Dionísio da afirmação da vida que Nietzsche faz o seu elogio. E lhe

dá a importância de “antídoto”, contra a socratização da cultura apolínea. No texto

de As Bacantes, de Eurípides, ficam claras as duas aparições dionisíacas: uma

personificada, outra impessoal, uma interpretação que impregna medo, outra que

seduz e inebria.

Em Diálogo, Penteu que já se referia aos atributos físicos de Dionísio,

descreve-o deste modo:

A verdade é que não és desgracioso de corpo, ó estrangeiro,

pelo menos para o gosto das mulheres, por quem vieste a

Tebas. Os teus cabelos compridos, porque não lutas nas

palestras, caem-te pelas faces, plenos de desejo. Graças aos

teus cuidados, possuis uma tez branca, conservada, não aos

raios do Sol, mas no recanto da sombra, e com a tua beleza

consegues captar as graças de Afrodite. 72

A exemplo destas duas aparições, nas notas da tradutora de As bacantes,

Maria Helena da Rocha Pereira, são expressos os conteúdos ligados ao uso das

máscaras na tragédia grega, bem como a afirmação do coro como representações

dionisíacas.

Pereira comenta, ainda, que o uso dessa máscara por Dionísio traz um

sorriso ambíguo: ora um sorriso de mártir, ora um sorriso destruidor.73 No coro de As

bacantes, no épodo, são referidas as formas animalescas que Dionísio pode

assumir, invocando um enigmático sorriso bizarro: “aparece com a forma de touro ou

71 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 29-30. 72 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. § 455, p. 57. 73 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. p. 22, 49, 57, 86 passim.

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serpente multifauce ou leão ignispirante. Vai, ó Baco, com teu rosto sorridente, e ao

caçador das Ménades rodeia-o com teu laço mortífero, quando ele tomba na

manada das Bacantes”.74

Na citação a seguir, Roberto Machado traz uma passagem que ilustra a força

Dionisíaca retomada pelo próprio Eurípides, autor de As Bacantes, como

arrependimento pela morte da tragédia. O culto dionisíaco das bacantes – cortejos

orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando

tamborins em honra de Dionísio, à noite, nas montanhas, invadiram a Grécia, vindos

da Ásia – é a negação dos valores principais da cultura apolínea. Em vez de um

processo de individuação, é uma experiência de reconciliação do homem com os

outros homens e com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico

de unidade:

Sob a magia do dionisíaco, torna a selar-se não apenas o laço

de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada,

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa da

reconciliação com seu filho perdido, o homem. [...] A

experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão,

da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a

possibilidade de integração da parte na totalidade.75

A arte trágica é caracterizada pela complementaridade entre Apolo e Dionísio,

e não por uma suposta oposição entre estes deuses. E esta peculiaridade é a nova

estratégia artística nietzschiana de integrar, e não mais de obliterar, o elemento

74 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. Coro § 1020, p. 87. 75 MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 88-89.

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dionisíaco que outrora fora transformado no próprio desgosto e horror pelo “absurdo”

da dor da existência.76

A complementaridade parte de uma diferença essencial entre as divindades.

Sem esta compreensão, não se pode entender a tese do Uno-primordial. Kossovitch

faz um esclarecimento desta diferença, no âmbito da dinâmica de movimento,

transformação e afirmação do devir, inerentes a esta tese.

A diferença Apolo/Dionísio é a da arte passiva e da ativa. A

experiência dionisíaca é a dor do criador: é aqui que a alegria

disseminadora de signos se exibe, mas é aqui também que se

exprime o sim. Afirmar o devir no seu duplo movimento de

criação e destruição das distribuições; não mais a visão, por

essência recuo, separação, variedade, mas a experiência da

inclusão numa totalidade subterrânea, em todos os pontos

ativa: o amor fati.77

Assim, o Uno-primordial adquire status ontológico de coisa-em-si e também

de origem de todo o mundo fenomenal, desempenhando o papel da vontade em

Schopenhauer, porém distinguindo-se em sua formulação. A vida é tomada como

tese fundadora e anterior a qualquer forma fenomênica.

Para compreender melhor a tese do Uno-primordial e as suas implicações

com relação à vontade e à representação ou ao mundo fenomênico e ao mundo

aparente, faz-se necessário identificar nas perspectivas de Schopenhauer as

distinções e categorias nietzschianas. Para tal, serão abordadas a seguir a vontade

76 MACHADO, Roberto, Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 22 ss. 77 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 170. As questões do devir e da criação e destruição serão abordadas no Capítulo 4, Item 4.2 do presente trabalho.

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em Schopenhauer e a teoria do Uno-primordial em Nietzsche, bem como os

diferentes significados do pessimismo em cada um destes filósofos.

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2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM

NIETZSCHE

O propósito deste capítulo é estudar o pensamento de Friedrich Nietzsche,

examinando-o a partir das suas principais influências filosóficas, qual sejam, a

interpretação do mundo como vontade e representação, e o pessimismo metafísico

de Schopenhauer. É, também, apresentar a tentativa de superação deste

pessimismo, por parte de Nietzsche.

A partir da diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial

em Nietzsche, burcar-se-á retomar as questões apolíneas e dionisíacas presentes

no pensamento destes dois filósofos. Assim, pretende-se contrapor o pessimismo

schopenhaueriano ao encontrado em O nascimento da tragédia, e examinar o

esforço do jovem filósofo para superar tal legado em uma proposição afirmativa da

vida, a qual é fruto de uma ênfase nietzschiana a Dionísio.

2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em

Nietzsche

Também para Schopenhauer o homem deve

ser superado; mas em Schopenhauer o

homem é o superado e para Nietzsche aquele

que supera. (Georg Simmel)1

1 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 157. Tradução livre.

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O distanciamento entre a filosofia de Schopenhauer e a de Nietzsche ocorre

antes mesmo deste último concluir seu livro O nascimento da tragédia, embora a

influência schopenhaueriana esteja presente na obra de Nietzsche.

Esta ruptura já se mostrava na mudança de interpretação sobre a arte e em

especial sobre a música. No texto A visão dionisíaca do mundo, de 1870, observa-se

uma leitura mais fiel de O mundo como vontade e representação sob o aspecto

musical, do que em O nascimento da tragédia, no qual já se percebem indícios de

um afastamento em relação à metafísica de Schopenhauer.

Anna Hartmann Cavalcanti, em um estudo sobre o fragmento póstumo 12 (1)

no livro Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche,

aponta tal distinção:

Nietzsche introduz, no fragmento 12 (1), importantes

modificações na teoria do sentimento desenvolvida em A visão

dionisíaca do mundo, na qual afirma, em concordância com a

filosofia de Schopenhauer, que a música simboliza todas as

nuances do sentimento, sendo capaz de expressar a própria

essência da vontade.2

Trata-se de uma mudança em relação à filosofia da arte schopenhaueriana e

sua interpretação sobre a música. Esta forma de arte era considerada por

Schopenhauer como a mais elevada em função de manifestar a vontade. Para

Nietzsche, por sua vez, ela é a própria expressão direta de um “fundo originário”.

2 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 149.

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Mudou, então e por conseqüência, em Nietzsche, a noção schopenhaueriana em

relação à vontade.

Nietzsche aponta uma contradição em seu mestre, pois, para ele, a música

não pode ser a manifestação de algo que não pode ser representado. Para

Schopenhauer, a música é a reprodução direta da vontade mesma, porém,

contraditoriamente, elas não são idênticas, pois a vontade, enquanto coisa em si, é

irrepresentável.

José Thomaz Brum faz um estudo sobre a diferença entre os dois filósofos no

que concerne ao pessimismo e concorda neste ponto com Nietzsche:

se a música designa a essência do mundo e da vontade e

engendra prazer violento, ela não pode convidar à resignação

como vimos no caso da tragédia. Schopenhauer, que rejeita as

manifestações dolorosas da vontade no mundo, extasia-se

com o prazer musical. Ele experimenta uma satisfação estética

nesse mundo à parte nessa ‘língua do sentimento e da paixão’.

A filosofia schopenhaueriana da música, que representa a

coisa em si efetivamente a cantar, revela um pessimista que

se submete ao poder efêmero da consolação pelo som.3

O mundo é para Schopenhauer sobretudo vontade. E é com o corpo que se

tem acesso à realidade originária e dolorosa. A vontade, enquanto impulso cego e

visceral, ávido de vida, se objetiva em idéias e fenômenos, e é percebida pelo

princípio de individuação no mundo dos fenômenos, dentro do espaço e do tempo. A

vida se consome a si mesma e isto é a causa da dor e do sofrimento. “Aquele tipo

3 BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 94.

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mais suave, mais rápido, mais sutil de ação dos corpos uns sobre os outros, ao qual

agradecemos a de longe mais perfeita e pura das nossas percepções”.4

Georg Simmel, ao considerar as diferenças entre Nietzsche e Schopenhauer,

apresenta a seguinte distinção:

A diferença de posição entre ambos os filósofos, apesar da

concordância quanto ao ponto de partida – negação do fim

absoluto como ser –, acentua-se naqueles valores aos quais

se dirige principalmente a desvalorização schopenhaueriana

do mundo. Quando num dado momento não existe nem um

fim absoluto, como no cristianismo, nem um relativo, como na

teoria da superação de Nietzsche, o valor se traslada

indefectivelmente e as emoções são determinadas pelo

próprio momento, em dor e em prazer.5

Schopenhauer aponta, na música, a capacidade de causar alívio

momentâneo a esta dor que é sentida pelo corpo.

Em Nietzsche, a noção de vontade – o princípio originário – é,

simultaneamente, dor e prazer supremos. Em A visão dionisíaca do mundo, ele

escreve que “nos gregos a vontade queria se contemplar transfigurada em obra de

arte: para se magnificar, as suas criaturas precisavam se sentir como dignas de

magnificação, elas precisavam se rever em uma esfera mais alta”.6

A tragédia grega está assentada em meio a um transbordamento de vida,

enaltecido por Nietzsche, aceitando sofrimento e prazer em um êxtase sublime e

4 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índices: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 272-273. 5 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 20. Tradução livre. 6 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Maria Cristina dos Santos de Souza. Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 18.

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dionisíaco. A tragédia escuta um cantar distante – o cantar que fala das Mães do

Ser, cujos nomes são ilusão, vontade e dor da vida em abundância.7 O termo Mães

do Ser, em Nietzsche, é usado como recorrência ao Uno-primordial, assim como as

expressões Fundo Originário e Fonte Primaveril e, mesmo Vontade. Todos esses

termos, apesar dos diferentes significados e símbolos que carregam, remetem à

mesma tese do Uno-Primordial, que os engloba. A natureza do Uno-primordial,

marcada por dor e sofrimento, neste filósofo, é também supremo prazer e embriaguez.

Anna Cavalcanti salienta que a tese nietzschiana do Uno-primordial tem uma

natureza conflituosa e que o sofrimento originário, cuja essência é a contradição,

procura sua superação na aparência. Ainda referenciando o fragmento 12 (1), neste

âmbito, ela explica que:

O principal aspecto que diferencia o fragmento 12 (1) de O

nascimento da tragédia é justamente o de formular a

existência de dois diferentes domínios da experiência, o

âmbito fenomênico e um âmbito que escapa às

representações, a partir do questionamento do caráter

metafísico da vontade, assim como da caracterização da

linguagem como uma atividade simbólica, sem relação com a

essência das coisas. Diferentemente de O nascimento da

tragédia, onde esse distanciamento em relação a

Schopenhauer não é explicitado, nesse fragmento a vontade,

assim como o conjunto do mundo pulsional, só podem ser

conhecidos enquanto representação, não segundo a essência.

E o fundamento originário, não mais associado ao conceito de

vontade de Schopenhauer, passa a ser descrito de modo

7 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 20, p. 123.

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indireto, a fim de enfatizar o caráter inacessível às nossas

representações, indecifrável desse domínio originário.8

Em contraposição, para Nietzsche, a vontade é uma forma de fenômeno, ou

ainda, ela pertence ao mundo da aparência. Assim, a arte, para Schopenhauer e

Platão, é pura imitação das idéias. Já para Nietzsche ela é a própria “aparição” de

uma instância originária que, na tragédia grega, pela música trágica, ocorre no coro

a figura do deus Dionísio.

A estética de Schopenhauer é um elogio ao homem contemplativo que foge

do mundo. Já a estética de Nietzsche se mostra como um elogio às aparências e

promove a reconciliação das pulsões artísticas com a existência.9 O que resulta em

dizer que a arte, para Schopenhauer, é apenas um consolo, um sedativo

momentâneo, enquanto, para Nietzsche, ela se mostra como a via de acesso para a

essência do mundo.

Anna Hartmann Cavalcanti aponta, ainda sobre o Uno-primordial, que o

substancial é a sensação, o aparente é o corpo ou a matéria. Em seu estudo, a

distinção entre sensação e a forma é um elemento essencial para reflexão sobre a

teoria do Uno-primordial.10 A autora observa que a sensação não é produto do

corpo, mas ele é o resultado da sensação, ou seja, é uma projeção artística, uma

imagem.11

Para Rosa Maria Dias, em conformidade com esta idéia, Nietzsche percebe

esta vontade diferentemente de Schopenhauer, por ultrapassar as barreiras usuais

8 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 54-55. 9 BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 115-116. 10 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: Daad, 2005. p. 189. 11 A autora usa em seu texto a palavra célula para o que aqui foi apresentado como corpo.

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dos postulados da racionalidade. Obtém-se, assim, a compreensão por intermédio

da intuição12 poética.13

Por fim, o que diferencia o pensamento de Schopenhauer do de Nietzsche é o

seu posicionamento diante da vida.

Schopenhauer carece de compreensão para com o sentimento

que perpassa Nietzsche plenamente, quanto ao sentimento da

solenidade da vida. Nietzsche, em oposição a Schopenhauer,

extraiu do pensamento da evolução um conceito completamente

novo de vida: o de que a vida é, no seu ser mais íntimo e

próprio, intensificação, aumento, concentração cada vez maior

das forças ambientes no sujeito.14

O que Simmel reconhece em Nietzsche é o sentimento de solenidade perante

a vida. A idéia de dor, medo e sofrimento schopenhaueriana é substituída, em

Nietzsche, por um regozijo diante da vida. A visão do terror diante da vontade, em

Schopenhauer, é transfigurada em louvor à vida, em Nietzsche, que fala em dádiva

já na Seção 1 de O nascimento da tragédia, quando descreve a transfiguração

dionisíaca proporcionada não pela tristeza, mas, antes, pela alegria.

Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual

se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu

próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido

rasgado e reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso

Uno-primordial. Cantando e dançando, manifesta-se o homem

12 A intuição é o instrumento de investigação que Nietzsche observa, por exemplo, na filosofia heraclitiana. A intuição, em Heráclito, será apresentada no item 4.1. da presente investigação. 13 DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e Schopenhauer: uma primeira ruptura. In: FEITOSA, Charles et al. A fidelidade à terra: arte, natureza e política. Assim falou Nietzsche IV. Rio de Janeiro: DPA, 2003. p. 240. 14 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 15-16. Tradução livre.

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como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu

a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando

pelos ares.15

A arte trágica permite afirmar o sofrimento universal como que inerente à vida

e sua expansão inexorável, ou, como salienta Rogério Miranda de Almeida em

Nietzsche e o paradoxo: “o heleno profundo lança seu olhar sobre as forças

destruidoras da história e da natureza, corre sempre o risco ‘de aspirar a uma

negação budística da vontade’. Mas a arte vem em seu socorro, ela o salva...

transfigurando-o [o sofrimento universal] pela afirmação ou pelo sim à vida”.16

A influência de Schopenhauer está presente em todo O nascimento da

tragédia e, com ela, as idéias de Kant e as implicações entre o que é acessível e o

que é incognoscível. Porém, por meio da arte trágica, mediante a ilusão apolínea e a

música dionisíaca, é revelado o fundo mais íntimo das coisas, da vontade ou do

Uno-primordial, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico.

Ainda no texto de Rogério Almeida, se assevera o distanciamento de

Nietzsche em relação à doutrina schopenhaueriana da resignação.

Nos últimos capítulos [de O nascimento da tragédia], Nietzsche

não se contentará mais em se interrogar sobre as relações

entre o apolíneo e o dionisíaco, nem em somente constatar que

a tragédia reproduz a vontade universal, onde o artista e o

espectador dionisíaco mergulham o olhar no Uno originário e,

assim, transfiguram o sofrimento por meio da arte. Não! Ele

dará um passo a mais na tentativa de captar este fenômeno

15 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 1, p. 31. 16 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 29.

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original que é a arte dionisíaca e de compreender em que

propriamente consiste o gozo que nela experimentamos.17

Sem recorrer a uma justificativa moral sobre o prazer, Nietzsche contesta a

interpretação do mito trágico, quando visto como catarse ou efeito de alívio. O mito

é, segundo o filósofo, uma forma superior de arte e não uma descarga de tensões

sociais. Para entender esta forma de arte e a sua pulsão e sua alegria dionisíacas,

faz-se necessário apresentar a perspectiva do pessimismo em Schopenhauer e em

Nietzsche. Isso, além de observar a tentativa de superação por parte do discípulo

em relação à postura schopenhaueriana de resignação frente à vida.

No próximo item da presente pesquisa, após identificar as diferenças entre a

vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche, abordar-se-á a

superação do pessimismo na filosofia que se pretendia afirmativa da vida.

2.2 Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer

Todo o querer nasce de uma necessidade,

portanto de uma carência, logo, de um

sofrimento. A satisfação põe um fim ao

sofrimento; todavia, contra cada desejo

satisfeito, permanecem pelo menos dez

que não o são. (Schopenhauer)18

Ainda hoje, as discussões acerca da “superação” do pessimismo

schopenhaueriano nos primeiros escritos de Nietzsche ter sido alcançada ou não,

17 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 29-30. 18 SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índices: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 266.

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divide a opinião de seus comentadores. A proposta afirmativa da vida baseada na

dimensão dionisíaca manifestada especialmente na arte, e não na transcendência,

já se mostrava vigorosa nesta sua primeira obra e define um referencial para tal

superação. Para o filósofo, não é o otimismo que substitui o pessimismo, mas antes

uma outra forma de entender o pessimismo pela via trágica.

O próprio Nietzsche, na sua auto-crítica a O nascimento da tragédia,

reconheceu a “dificuldade” de sua compreensão. Apesar de afirmar que o livro

estava destinado “para iniciados”, apontando a sua “inconveniência”, tanto quanto à

sua forma, quanto ao seu conteúdo. Considerou-a

edificada a partir de puras vivências próprias prematuras e

demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do

comunicável, colocado sobre o terreno da arte [...]. Um livro

talvez para artistas [...]. Ainda assim não quero encobrir de todo

o quanto ele me parece agora desagradável, quão estranho se

me apresenta agora [...]. Este livro temerário ousou pela

primeira vez aproximar-se – ver a ciência com a óptica do

artista, mas a arte, com a da vida...19 [grifo presente no original]

Afirma também, na mesma auto-crítica:

Um livro talvez para artistas dotados também de capacidades

analíticas e retrospectivas (quer dizer, um tipo excepcional de

artistas, que é preciso buscar e que às vezes nem sequer se

gostaria de procurar...), cheio de inovações psicológicas e de

segredos de artistas, com uma metafísica de artista no plano

de fundo, uma obra de juventude, cheia de coragem juvenil e

de melancolia juvenil, independente, obstinadamente autônoma, 19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.

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mesmo lá onde parece dobrar-se a uma autoridade e a uma

devoção própria, em suma, uma obra das primícias, inclusive

no mau sentido da palavra.20

Com esta perspectiva, faz uma crítica ao contexto de sua época,

reafirmando a dimensão dionisíaca ou artística como antídoto ou cura às

conseqüências da metafísica tradicional. Reedita o que ele chamou de “livro

impossível”,21 sem modificações, apenas com o acréscimo do posfácio Tentativa de

autocrítica. Nele, apresenta sua preocupação quanto ao pessimismo e sua interface

com o dionisíaco.

Como pressuposto fundamental desta pesquisa, aceitam-se a importância e

a deferência da obra primeira de Nietzsche como intuição e origem, suporte e

“húmus filosófico” da sua construção teórico-filosófica. Nela, reconhecem-se a arte

trágica e a dimensão dionisíaca como critérios básicos para a realização de toda a

sua produção.

Quanto ao contraste entre o pessimismo de Schopenhauer e a afirmação da

vida na obra de Nietzsche, cabe observar que, quando Nietzsche escolhe o autor de

O mundo como vontade e como representação como inspiração do seu primeiro

livro, foi porque este lhe ofereceu todo um arcabouço de reflexões impregnadas de

inovações no campo crítico de superação do que estava instituído como válido e

vigente na filosofia do século XIX.

Schopenhauer foi um dos primeiros pensadores a criticar o idealismo, que

teve como ponto de partida os pressupostos filosóficos de Platão e de Kant,

passando também por Hegel. Esses pressupostos delineavam um pensamento

20 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15. 21 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.

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otimista, confiante na capacidade de a ciência e a lógica responderem aos anseios

da civilização. Mas, para Nietzsche, as idéias modernas e a crença na ciência

banalizavam o que havia de mais sublime: a vida

Segundo Paschoal, em Notas preliminares à leitura da I Consideração

extemporânea [ou intempestiva] de Friedrich Nietzsche (1873),

em oposição a esse mundo desencantado das idéias

modernas, Nietzsche propõe uma renovação da cultura alemã,

por meio da filosofia de Schopenhauer, de alguns aspectos da

cultura grega antiga e da música de Wagner. Frente à

banalização do sublime, propõe a arte como representação da

tensão que caracteriza a existência da força mítica da vida,

como expressa a figura de Dionísio.22

A filosofia de Schopenhauer é fruto de uma “intuição” de mundo, em que o

filósofo estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (noumenon),

ou seja, entre o aparente e o que existe em si mesmo. Deve-se lembrar que, para

Kant, a coisa-em-si não pode ser objeto de conhecimento científico como até então

pretendeu a metafísica clássica. Assim, a ciência restringir-se-ia ao mundo dos

fenômenos e seria consolidada pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e

tempo) e pelas categorias do entendimento.

Em sua metafísica, Schopenhauer introduz algo que não existia no

pensamento kantiano. Conclui que o mundo não seria mais do que representações,

ou seja, intui que “o mundo”, num primeiro momento, seria uma síntese entre o

subjetivo e o objetivo ou entre a consciência humana e a realidade exterior. Assim,

22 PASCHOAL, Antonio Edmilson. Notas preliminares à leitura da I Consideração extemporânea de Friedrich Nietzsche. 2006. Inédito. Segundo Paschoal, este texto compreende a preocupação do autor em ler a cultura de seu tempo.

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contrariando Kant, Schopenhauer pretendeu apreender a coisa-em-si, que para

aquele é inacessível ao conhecimento humano.

Para o autor de O mundo como vontade e representação, a experiência

interna revela ao “indivíduo” que ele é um ser que move a si mesmo. É pela

experiência interna do indivíduo, que ele se percebe mais do que um objeto entre

outros. Ainda, a coisa-em-si, conclui o autor, a raiz metafísica de toda a realidade,

seria a vontade.

O mundo para Schopenhauer é, em essência, vontade. Ao pensar a vontade

e a representação, o filósofo, em sua obra principal, esclarece que o mundo aparece

ao homem em sua multiplicidade e em suas numerosas particularidades. Ele, o

mundo, tem duas faces inseparáveis e necessárias: uma é o objeto – suas formas

são o espaço e o tempo –, daí a pluralidade; a outra metade é o sujeito, que não se

coloca no espaço e no tempo, no momento em que percebe ou que tem consciência

da realidade.

Porém, como perceber essa realidade que se encontra “oculta” por detrás

das aparências? Para Schopenhauer é por meio do corpo que se tem acesso a esta

realidade, ou se toma consciência interna de que ela é vontade – um em si.

Também, o corpo humano é apenas objetivação da vontade, tal como aparece sob

as condições da percepção externa.

A vontade é, de acordo com Schopenhauer, o princípio fundamental da

natureza, uma espécie de vontade única, superior, de caráter metafísico, presente

no mundo vegetal, animal, assim como nas relações humanas.

O real é para este filósofo, cego e irracional enquanto vontade.

Aqui ele vai diametralmente contra Hegel, que afirma que a realidade

suprema é o pensamento e que todas as coisas constituem um universo racional. Ou

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seja, o real é racionalizável. Para Schopenhauer as formas racionais da consciência

não passariam de ilusórias aparências, contrariando a prepotência idealista de

“abarcar” toda a realidade pela razão. Schopenhauer observa que a experiência

mostra o contrário de um mundo bom e idealizado, evidenciando antes a dor e o

sofrimento, as maldades, as fatalidades, as perversões e os horrores, fundamentando

que esta vontade cega define a realidade suprema, origem de todas as coisas, e isto

explica o seu caráter irracional.

Evidenciar a arbitrariedade tirânica e visceral da vontade sobre a realidade é

o que caracteriza a concepção schopenhaueriana, abrindo espaço para a

construção nietzschiana.

Repensando a caracterização de Schopenhauer como pensador pessimista,

este filósofo é também reconhecido como filósofo da vontade. Não obstante a

vontade entendida como fundo originário, ela é concebida por ele como a fonte de

todo o sofrimento e de toda a dor. Assim, pode-se ressaltar para posterior

comparação com Nietzsche, que vontade e sofrimento, em Schopenhauer, não se

diferenciam. O egoísmo (individuação) é natural na relação com o outro e com o

meio em que se vive (natureza), uma vez que o corpo é habitado pela vontade, daí a

sua susceptibilidade ao prazer e à dor, oriundos do desejo e da frustração, e a

conseqüente luta de todos contra todos. Para Schopenhauer, a dor é perene e o

prazer, momentâneo. Nietzsche inverte esta visão, como se pôde observar.

A vontade irracional, fonte de horror e sofrimento, é a imagem do suplício da

humanidade e de um ciclo permanente dada a perversidade da natureza, vista pela

perspectiva da vontade como cerne da realidade ou do mundo. Os parágrafos a

seguir, do livro Crítica da filosofia kantiana, de Schopenhauer, descrevem esta

concepção da doutrina do sofrimento do mundo:

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Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o

açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois

em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade

justamente agora o destino nos prepara –, doença, perseguição,

empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte etc. A

história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não

ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos

parecem apenas curtas pausas, entreatos, uma vez aqui e ali.

E de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua,

porém não somente metafórica, com a necessidade ou o tédio;

mas também realmente com outros. Por toda parte ele encontra

opositor, vive em constante luta, e morre de armas em punho.23

Para esta leitura preliminar e que se fundamenta na afirmação da superação

do pessimismo herdado por Nietzsche, parece que o pessimismo deriva da noção de

vontade como conseqüência ética no pensamento do “Cavaleiro Solitário” como

Nietzsche denomina seu mestre. Nietzsche não nega a realidade da guerra e da luta

constante, mas as vê, como Heráclito (Capítulo 4), aceitando-as como inerentes à

existência.

Todavia, no sistema schopenhaueriano, como mencionado, a vontade é a

raiz metafísica do mundo e define a moral e a conduta humanas. Porém, é também

sua fonte inesgotável de sofrimento. A vontade não tem meta ou finalidade, é um

querer inconsciente que gera, em última instância, sempre dor e infelicidade. Na sua

filosofia pessimista, o mal e o egoísmo são inerentes ao homem.

Em Schopenhauer, o prazer é apenas um momento fugaz de ausência da

dor e a felicidade uma interrupção momentânea, temporária, de um processo de

23 SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da filosofia kantiana. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). § 150 e 151, p. 278.

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infelicidade que permeia o mundo, pois viver é sofrer. Ainda assim, observa-se que,

apesar do seu pessimismo, o filósofo aponta para algumas vias de superação da

dor. A citar: a contemplação artística – foco deste diálogo; a superação ou o

desaparecimento da individualidade, que podem tornar o homem bom, como diz a

máxima: não prejudiques pessoa alguma, sê bom com todos; e a mortificação dos

instintos, o caminho do Nirvana, ou seja, a fuga para o Nada.24

O que se percebe é uma tentativa de libertação do homem, mesmo que

fugaz, diante da vontade. Porém, essa questão serve como ponto de partida para

referenciar o estudo da influência do pessimismo de Schopenhauer na obra de

Nietzsche e ressaltar a proposição afirmativa e dionisíaca deste, superando o legado

de seu mestre.

Em Schopenhauer, é necessário também resgatar os elementos ou as vias

de superação desta dor, que são a arte; a superação do egoísmo – a compaixão; e a

auto-anulação da vontade – o Nirvana.

Schopenhauer não entende que a libertação proporcionada pela arte seja

completa. No entanto, a atividade artística para ele revelaria as idéias eternas em

diversos graus, passando pela arquitetura, escultura, pintura, poesia e em especial

pela música. O mérito de colocar a música ocupando a primazia entre as artes é de

Schopenhauer.25

Outra noção importante é a de superação da individualidade ou do egoísmo

em um grau superior de conduta ética. Schopenhauer rejeita a ética kantiana, presa

à noção de “dever”, acusando-a de ser coercitiva e ancorada em mandamentos

24 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Vida e obra. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). p. 11. 25 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Vida e obra. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). p. 10-11.

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(imperativos), mas aceita a noção de que a contemplação da verdade é o caminho

de acesso ao Bem, que é uma noção platônica.

O indivíduo não é mais do que objetivação da vontade. Tal individualidade,

na proposta schopenhaueriana, é pura ilusão gerada pela razão para conseguir seus

fins (egóicos); servindo a razão, em última instância, à irracionalidade da vontade universal.

A vida moral, portanto, consiste na renúncia à individualidade e em

reconhecer-se como pura expressão da vontade universal. A arte aqui seria, pela

contemplação estética, um exercício de desapego do egoísmo às coisas. É este

egoísmo que faz do homem inimigo do próprio homem; e tal problema só pode ser

superado pelo conhecimento da natureza única e universal da vontade.

A transição possível – embora, como dito, só como exceção –

do conhecimento comum das coisas particulares para o

conhecimento das Idéias ocorre subitamente, quando o

conhecimento se liberta do serviço da vontade e, por aí, o

sujeito cessa de ser meramente individual e, agora, é puro

sujeito do conhecimento destituído de vontade, sem mais

seguir as relações conforme o princípio de razão, mas concebe

em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à

conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se

nessa contemplação.26

Ainda assim, o filósofo não entende que seja suficiente esta ética da

comiseração, compaixão ou compadecimento, e que ela venha a constituir,

efetivamente, um princípio de conduta para o homem.

Para Schopenhauer, a salvação do homem só pode ser encontrada na

renúncia ao mundo. O homem pode tornar-se inerte, cessar o seu centro ambicioso

26 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 34, p. 245.

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de vida, livrando-se do tumulto de aspirações sem fim, desejos e busca de alegria

em meio ao “mar de sofrimento”, ou seja, a salvação está na mortificação dos

instintos, na auto-anulação da vontade e na fuga para o nada:

Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e

preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar da

natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado. A

tempestade das paixões, o ímpeto dos desejos e todos os

tormentos do querer são, de imediato, de uma maneira

maravilhosa, acalmados. Pois no instante em que, libertos do

querer, entregamo-nos ao puro conhecimento destituído de

vontade, como que entramos num outro mundo, onde tudo o

que excita a nossa vontade e assim, tão veementemente nos

abala, não mais existe. Tal libertação do conhecimento eleva-

nos tão completamente sobre tudo isso quanto o sono e o sonho.

Felicidade e infelicidade desaparecem. Não somos mais indivíduo,

este foi esquecido, mas puro sujeito do conhecimento.27

Se em Schopenhauer a busca de superação da dor na arte se mostra

provisória, na moral, enquanto compaixão, essa busca de superação é definitiva. É

uma consolação ou uma resignação, pois a vontade continua a fazer imperar a dor e

o sofrimento. Na busca da superação da dor, Schopenhauer mostra-se talvez mais

como um filósofo da vontade que propriamente do pessimismo, apontando que o

mundo é a vontade e nada mais.

Uma observação do caminho que Nietzsche percorreu nos passos do mestre:

ambos viam na música uma expressão artística superior e a relacionavam à tragédia

grega. Enquanto para Schopenhauer ela apenas atenua o sofrimento diante da

27 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 268-269.

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vontade, perante o momento de contemplação, para Nietzsche ela configura o

próprio mergulho e acesso à dimensão dionisíaca em uma afirmação da vida.

A tragédia, para Schopenhauer, é o retrato da dor. Este espetáculo trágico

mostra quão angustiante é o mundo real, ou o mundo da vontade. Enquanto para ele

a arte significava apenas um distanciamento passageiro e não a supressão da

vontade, ao contrário, na obra de Nietzsche, a arte aparece como critério básico

para a interpretação da vida.28 Nesse contexto, a tragédia grega é a possibilidade de

afirmação desta mesma vida.

Em sua juventude, ao ler O mundo como vontade e representação, Nietzsche

se deparou com a seguinte interrogação: uma vida absurda, sem razão, da vontade,

merece ser aprovada? Na sua obra O nascimento da tragédia, o autor assume esse

desafio, optando pela tragédia grega como uma resposta afirmativa e alegre diante

do sombrio pessimismo schopenhaueriano.

Nietzsche, em lugar de anular a individualidade, ressalta a importância de

fazer surgir o herói trágico, personagem este, que revigora exatamente aquelas

forças instintivas, dionisíacas, oprimidas e rejeitadas pela racionalidade. Afirma,

assim, a vida em sua tragicidade e o fundo originário, carregado de dor e sofrimento.

Nesse sentido, ele se opõe ao seu mestre, que escolhe anular os instintos e opta

pela fuga para o Nada, o Nirvana.

Nietzsche não tenta resolver a questão da metafísica clássica no campo

racional. Ele aborda a metafísica junto à questão da verdade no campo da moral.

Tenta desvencilhar-se da metafísica e afirma o homem no mundo e não fora dele –

metafisicamente – como fez Schopenhauer.

28 MACHADO, Roberto Cabral de Melo. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 8.

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Apesar de Nietzsche apontar em O nascimento da tragédia, os dois impulsos

artísticos da natureza, o apolíneo e o dionisíaco, ambos já estavam presentes na

filosofia de Schopenhauer. É, no entanto, na interpretação de Dionísio por

Nietzsche, que se encontra a diferença essencial entre os dois filósofos.

Apolo é o deus da luz, da medida ordenadora do mundo, dos contornos

precisos, é o princípio da lei e da individuação. Deus da verdade, da interpretação

dos sonhos (Oráculo de Delphos), da música e da poesia, era “claramente luminoso

e ordenadamente belo”.29 Medida, proporção, equilíbrio eram cânones próprios do

princípio apolíneo.

Dionísio, por sua vez, é para os gregos o deus “das forças primitivas da

natureza que embriagam os sentidos, deus do vinho, da dança e do teatro,

sensualmente extático e ebriamente mítico, da música grega”.30 É o deus do fluxo da

vida e também da sexualidade, em certo sentido, da desmesura e do êxtase;

representa a fecundidade da terra. Também é o deus da música enquanto força

primitiva da natureza que embriaga os sentidos.

Os opostos complementares expressos pelos deuses Apolo e Dionísio, na

filosofia de Nietzsche, permitem um paralelo com a oposição entre representação e

vontade, no pensamento de Schopenhauer. Como ressalta Roberto Machado, o

mérito de Nietzsche, na oposição clara que faz a Kant e a Schopenhauer, embora

influenciado por eles, é optar pela aparência como necessária à vida e como via de

acesso à “essência”, à coisa-em-si ou, ainda, ao fundo originário. Faz, enfim, uma

apologia à arte, pois, para ele, a arte lida com a aparência de forma autêntica. Em

última análise, a aparência, para Nietzsche, é a representação. De outro lado, a

vontade de Schopenhauer é o Uno-primordial de Nietzsche.

29 MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. v. 1. Madrid: Alianza, 1989. p. 171. 30 MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. v. 1. Madrid: Alianza, 1989. p. 171.

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Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschiana,

ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou

afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma

concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A

apologia da arte já significa, como sempre significará para

Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não

apenas à manutenção, mas à intensificação da vida.31

Mas, ao ressaltar a importância da aparência no desfecho de O nascimento

da tragédia, Nietzsche, em sua oposição apolíneo-dionisíaca aponta a embriaguez

trazida “do estrangeiro”.32 É na embriaguez que acontece a morte ou o

aniquilamento das individualidades e que o homem, retornando a um estado natural,

reconcilia-se com a natureza, identifica-se com o Uno-primordial ou fundo originário.

Do exposto pode-se inferir que a ênfase de Dionísio no pensamento

nietzschiano tem o efeito análogo às festas dionisíacas da antiga Grécia,33 por conta

de que o pretenso equilíbrio entre as pulsões deve ser rompido pela força extasiante

da embriaguez, da fecundidade e da inconsciência. É o desequilíbrio entre Apolo e

Dionísio que leva o filósofo, assim como o poeta trágico, à percepção do indizível, do

fundo originário, que Nietzsche chama de Uno-primordial.

O principium individuationis, por força do deus Apolo, é o oposto à dimensão

dionisíaca, na qual as individualidades são dissolvidas na embriaguez da

inconsciência. O herói trágico relaciona-se com as duas pulsões, cumprindo, na

tragédia grega, seu papel de redenção e de cura, diante da dor e do sofrimento

31 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 20. 32 Dionísio é um deus estrangeiro vindo do Oriente, não pertencente ao Olimpo. É o próprio Nietzsche, em O nascimento da tragédia, que aponta o deus do vinho como estrangeiro. No livro As bacantes, de Eurípides, há evidências de que Dionísio é um deus estrangeiro. § 780-785, p. 73. 33 Essas festas realizadas em homenagem ao deus Dionísio eram chamadas de Grandes Dionisíacas ou de Dionisíacas Urbanas. Ver citação 49, à p. 28 da presente investigação.

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revelados pela percepção do Uno-primordial e trazendo o indivíduo à consciência

depois do mergulho na inconsciência.

Assim como o poeta trágico se posiciona frente ao mundo e à representação

do espetáculo, assumindo o elemento enigmático, o filósofo trágico percebe a

contradição da existência e pode afirmá-la em sua ambivalência. Sofrimento e dor,

prazer e êxtase convivem paradoxalmente em Nietzsche.

A dimensão dionisíaca aproximada ao Uno-primordial tem na música, para

Nietzsche, a sua manifestação imediata; e, na tragédia grega, o coro tem a função

de incluir os espectadores dentro da dramaticidade, problematizando e envolvendo-

os neste mergulho extático, além de representar a própria voz de Dionísio. Isto será

analisado mais pontualmente no capítulo a seguir.

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3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA – UMA MANIFESTAÇÃO DO UNO-PRIMORDIAL

O presente capítulo apresenta a coexistência das pulsões apolínea e

dionisíaca como base para a compreensão da existência a partir da metafísica de

artista. Essas pulsões artísticas são manifestações fenomênicas expressas nas

características dos dois deuses, Apolo e Dionísio, apresentadas anteriormente.

A poiesis, a manifestação artística que constituía uma unidade e que envolvia

a música, a encenação e a poesia, como os gregos entendiam a arte, era o cerne da

tragédia grega. O papel em especial do coro trágico, era o de envolver os

espectadores, trazendo-os para dentro da representação cênica, expressando a

dimensão dionisíaca. No entanto, com a morte da tragédia pelo socratismo, essa

divindade foi expulsa do palco trágico. Com esse argumento, ressalta-se a

importância da tensão entre as duas pulsões artísticas e à sua complementariedade,

problema da presente pesquisa.

É pela expulsão da embriaguez e da inconsciência dionisíacas do cenário

trágico, que Nietzsche percebe a ausência da dimensão trágica no equilíbrio das

pulsões. Foi a racionalização socrática que deu origem à morte da tragédia; e é ao

mesmo tempo, a origem do racionalismo da modernidade, questionado por

Nietzsche. É na busca da coexistência dos opostos representados por estes dois

deuses gregos, que Nietzsche resgata a força de Dionísio.

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3.1 As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica

A dialética otimista, com o chicote dos

seus silogismos, expulsa a música da

tragédia: destrói a essência da tragédia.

(Nietzsche)1

A oposição arte-ciência tem seu ápice, segundo Nietzsche, em Sócrates, visto

como o “divisor de águas” entre a arte trágica e a racionalidade científica. Para ele, a

arte trágica e a dimensão dionisíaca são elementos emancipadores do modelo

socrático, isto é, do espírito científico (crença na penetrabilidade da natureza e na

virtude do saber). Constitui, nesta pesquisa, o ponto de reflexão para reencontrar na

arte grega a força originária do pensamento de Nietzsche.

Para ele, a arte é mais importante que a ciência, porque está ligada à

afirmação da vida. O filósofo percebeu que na modernidade não há oposição entre a

moral e a ciência, mas antes, que estas são conseqüentes. Em sua crítica, aponta a

arte como princípio avaliador da vida.

Na presente pesquisa, ressaltam-se duas das três proposições contidas no

livro O nascimento da tragédia. A primeira é uma explicação da origem, da

composição e da finalidade da arte trágica grega; e a segunda, a denúncia da morte

dessa arte perpetrada por Eurípides.2 Não será abordada a terceira, que é a idéia de

avaliar a modernidade e encontrar nela manifestações da Idade Ática.3 Em outras

palavras, as proposições que serão aqui investigadas, distintas e complementares

1 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 83; § 14, p. 90. 2 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7, 9 e 11. 3 Ver Capítulo 1.

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são: a apresentação da arte trágica como expressão da natureza, nos princípios

apolíneo e dionisíaco; e uma crítica à racionalidade conceitual “inaugurada” com a

morte da tragédia grega, oriunda do socratismo. Com esta antinomia entre a arte

trágica e a metafísica racional inaugurada por Sócrates, Nietzsche denuncia também

a oposição que se manifesta entre a arte e a ciência.

O espírito científico que se desenvolve a partir da opção pela razão socrática

pretende alcançar uma validade universal, ilimitada, capaz de penetrar na essência

das coisas, separando a “verdade” da “aparência”.

A discussão sobre a morte da tragédia grega, apresentada por Nietzsche,

descreve também a confrontação entre verdade e aparência. Nesta exposição, o

poeta “embriagado” e inconsciente, Ésquilo, condenado por Sófocles e posteriormente

criticado por Eurípides, este é o poeta sóbrio, enaltecido por Sócrates. Estes dois

últimos, condenam a aparência em nome da verdade. Os três poetas trágicos,

Ésquilo, Sófocles e Eurípides constituem o que Nietzsche chamou de “os três

sapiens de seu tempo”.4 O julgamento de Sócrates sobre a obra destes poetas e a

sua predileção pela de Eurípides, de acordo com Nietzsche, levou à morte da

tragédia. Para ele, Sócrates falava pela voz de Eurípides. Trata-se de uma

racionalização da obra de arte. Há, porém, uma pista deixada por Sócrates e

Eurípides e, ao mesmo tempo, uma dúvida quanto à opção de ambos pela razão e

pela consciência. Nietzsche a descreve como

Aquela palavra da socrática aparição onírica é o único sinal de

uma dúvida de sua parte sobre os limites da natureza lógica:

será – assim devia ele perguntar-se – que o não compreensível

para mim não é também, desde logo, o incompreensível? Será

4 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 83; § 13, p. 84.

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que não existe um reino da sabedoria, do qual a lógica está

proscrita? Será que a arte não é até um correlativo necessário

e um complemento da ciência?5

Mas a dúvida e a intuição socráticas não foram ouvidas e a razão dialética

ocupou o lugar da arte. Por sua vez, a ciência e a lógica são condenadas, por

Nietzsche, como um fenômeno de superfície. Para ele, a arte trágica é profunda, é

oriunda da desproporção e da intensidade das pulsões dionisíacas. A vida da

diferença6 é, ao mesmo tempo, a criação e a dissolução das formas planejadas pela

razão científica ou socrática, desejosa da verdade.

O excesso dionisíaco e sua música ditirâmbica encontram prazer na

embriaguez, na qual a superfície da consciência só encontra sofrimento e dor. A

crueldade e a tragicidade da vontade, ou do fundo originário, em Nietzsche, superam

a contemplação da superfície. A tragédia tem na expressão musical, em especial no

coro trágico, a manifestação do elemento indizível e inacessível à razão.

Essa importância do musical é rebatida num outro plano: a

tragédia apaga-se no momento em que a música é suprimida.

O fim para Eurípides, ou melhor, para o par Eurípides-Sócrates

são a razão e o consciente que se colocam como senhores do

teatro. Figura híbrida, Eurípides não é apenas a sombra do

socratismo ou um duplo de Sócrates: mais que isso Eurípides é

ele próprio um duplo; misto de poeta e homem teórico, elimina

da tragédia o essencial: o ilimitado, o excessivo. Suprimir a

música é suprimir o trágico: com Eurípides, Dionísio se apaga.

O homem teórico “expulsa a música da tragédia, isto é, destrói

5 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 91. 6 A vida da diferença é um termo que Kossovitch usa para descrever o efeito de Dionísio na experiência humana. KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 170.

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a essência da tragédia, que só é compreensível como uma

manifestação e uma representação simbólicas de estados

dionisíacos, uma encarnação visível da música, o mundo de

sonho que se desprende da embriaguez dionisíaca”.7

Não obstante, a convicção com que Sócrates assumiu a morte faz este

homem teórico, assumido também em vida, transfigurar-se em modelo. O instinto de

ciência, o otimismo dialético, se alargou sobre a posteridade e o homem teórico

assumiu a significação de meta, de protótipo; isto, inclusive para acessar a própria

arte e para perscrutar a natureza das coisas.8 A arte dá lugar à ciência e o belo

passa a ser racionalizado fora da embriaguez.

Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo,

com excesso de honradez, se não de petulância, uma profunda

representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na

pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé de que o pensar, pelo

fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais

profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de

conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo. Essa sublime ilusão

metafísica é aditada como instinto à ciência, e a conduz sempre

de novo a seus limites, onde ela tem de transmutar-se em arte,

que é objetivo propriamente visado por esse mecanismo.9

A luta contra a tragédia grega, e em especial contra a visão esquiliana,

inaugura o socratismo. A tragédia euripidiana exclui a dimensão dionisíaca que,

como se pretende demonstrar na leitura nietzschiana, é a via de acesso mais

7 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 174-175. 8 Assim como Eurípides após ver o “Templo de Dionísio” em ruínas e a derrota de Ésquilo, o poeta embriagado, se interroga. Sócrates também desconfia, se indaga, mas por último, opta pela cicuta e pela morte! 9 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 15, p. 93.

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autêntica para a compreensão da existência. Daí a afirmação de Nietzsche, que a

arte é mais importante que a ciência.

Em A visão dionisíaca do mundo, o jovem Nietzsche aponta o papel dos

poetas trágicos. O primeiro é Ésquilo, o sublime pensador da justiça grandiosa, que

vê deus e homem entrelaçados pelo daimon que leva o homem ao delito, cega o

indivíduo, mas apregoa que é possível escapar da necessidade do crime. O

segundo é Sófocles, que vê na sublimidade o impenetrável da justiça; ele reduz em

todos os elementos o ponto de vista do povo e o caráter imerecível de um horrível

destino, que antes pareceu-lhe sublime. Os enigmas insondáveis eram as suas

musas trágicas, solicitava resignação. “Assim não há culpa e sim piedade”.10

Eurípides, por sua vez, foi o poeta que condenou seus contemporâneos pelas

suas características inconscientes e embriagadas11 e tornou a tragédia mais

discursiva e racional. Isto, pela vertente socrática de que só é belo o que pode ser

compreensível. Com ele temos o que Nietzsche chamou de “a morte da tragédia”.12

Se antes, na tragédia grega, a “aparente oposição” era entre Apolo e Dionísio,

com a morte da tragédia, o confronto passa a ser entre o dionisíaco e o socrático.

Para Sócrates, a arte trágica nunca diz a verdade.13 Desta forma, só pode ser

desvelada pela racionalidade e pela consciência. Trata-se de um confronto entre as

forças instintivas e a pensamento lógico. É o otimismo dialético expulsando a música

(dionisíaca) da tragédia grega.

10 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Maria Cristina dos Santos de Souza. Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 28-29. 11 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade: São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 30. 12 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 79. 13 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 14, p. 87.

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Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e

onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma

arte, uma moral e uma visão do mundo não-dionisíacos – tal é

a tendência de Eurípides que agora se nos revela em luz

meridiana.14

A luz meridiana acusa, à guisa da morte da tragédia, a luz do meio-dia, isto é,

da razão que tudo ilumina e que torna tudo claro, consciente e racional. Funda-se,

assim, uma moral não conformada com a presença dionisíaca.

Ainda em O nascimento da tragédia, na crítica a Sócrates, Nietzsche afirma a

dimensão artística como mais importante que a dimensão racional:

Imaginemos agora o grande e único olho ciclópico de Sócrates,

voltado para a tragédia, aquele olho em que nunca ardeu o

gracioso delírio de entusiasmo artístico – e pensemos quão

interdito lhe estava mirar com agrado para os abismos

dionisíacos: o que devia ele realmente divisar na “sublime e

exaltada” arte trágica, como Platão a denomina? Algo

verdadeiramente irracional, com causas sem efeitos e com

efeitos que pareciam não ter causas; e, no todo, um conjunto tão

variegado e multiforme que teria de repugnar a uma índole

ponderada, constituindo, entretanto, para as almas sensíveis e

suscetíveis uma perigosa isca.15

O próprio Eurípides, no final de sua vida, indaga sobre se realmente Dionísio

deveria subsistir. Foi uma tentativa de retratação do poeta, segundo Nietzsche, uma

consolação frente à dúvida, sobre o que não pode mais voltar atrás. Afinal, o mais

14 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78. 15 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 14, p. 87.

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belo dos templos jazia em ruínas. A tragédia esquiliana foi vencida por Sócrates e

por Euripides.

É assim que Dionísio foi afugentado do palco trágico.16 Todavia, este deus

tentador parece, segundo Nietzsche, ter “seduzido” Sócrates, na hora da morte e

dentro da prisão, a repensar sobre a arte e a música. Era uma voz em sonhos (o

daimon), que dizia repetidamente “Sócrates, faz música, Sócrates, faz música”.17

O orgiástico sentimento de liberdade depende do engano da aparência. O

herói trágico prescinde da derrota e não da vitória, morre mais cedo. A música,

então, é vista como a única e a mais elevada forma de representação para vivificar o

mundo material. Confiando desta forma na nobre ilusão, entregando-se ao orgiástico

sentimento de liberdade, na dança ditirâmbica.18

Esse mergulho orgiástico no Uno-primordial é experimentado ou vivido por

meio do coro, na tragédia grega, como se apresentará no texto a seguir.

3.2 O coro como manifestação do Uno-primordial na tragédia grega

Essa tradição [antiga] nos diz com inteira

nitidez que a tragédia surgiu do coro

trágico e que originalmente ela era só coro

e nada mais que coro... (Nietzsche)19

16 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78-79. 17 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78 e 85. 18 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia. das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 125. 19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 52.

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Dentro do propósito desta pesquisa, observa-se na leitura de O nascimento

da tragédia o coro como um elemento fundamental na arte ática, associado à origem

ou à fonte primordial e à sua natureza dionisíaca. Intenciona-se nesta etapa da

investigação, observar a relevância dada por Nietzsche para o papel do coro na

tragédia grega. A hipótese aqui defendida é a de que, segundo Nietzsche, o coro

trágico é a própria expressão da voz do deus Dionísio, associado, por sua vez, à

dimensão originária e primordial.

Nietzsche compreende o desenvolvimento da arte, ou da tragédia grega,

como uma natureza inconsciente ligada aos mais obscuros instintos vitais. Daí a

concepção valorizada pelo autor, da experiência estética como ponto de partida para

a reflexão sobre a cultura, e a sua investigação filosófica orientada para a dimensão

dionisíaca.

Para Nietzsche, existe uma estreita relação entre a pulsão artística e a

própria vida. Quem teria percebido e vivido com intensidade e autenticidade esta

estreiteza, fora os gregos trágicos? Neles “a vontade queria, na transfiguração do

gênio e do mundo artístico, contemplar-se a si mesma. [...] Tal é a esfera da beleza,

em que eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos”.20

Para examinar o papel do coro trágico, faz-se necessário retomar a idéia da

tensão entre as pulsões apolínea e dionisíaca, bem como a descrição da música

propriamente dita nesse contexto.

Os constantes conflito e reconciliação gerados pelas duas divindades do

mundo helênico configuram o desenvolvimento da arte trágica. De um lado, tem-se

Apolo, o deus da forma. De outro, Dionísio, o deus da arte não figurada, o deus da

20 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 3, p. 38.

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música dissonante21 e da embriaguez. Nesse sentido, Nietzsche inicia seu primeiro

livro com este esclarecimento:

A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio [...] ambos os

impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das

vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a

produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela

contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava

apenas aparentemente a ponte; até que por fim, através de um

miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica, aparecem

emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto

a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia

ática!22

Apolo e Dionísio coexistem de forma ambivalente. Não obstante, a arte

grega e, em especial, a música trágica tacitamente aparecem como diagnóstico

contra o racionalismo socrático. E sobre os gregos e suas obras de arte, Nietzsche

os define como

a mais bem sucedida, a mais bela, e mais invejada espécie de

gente até agora, [...] a que mais seduziu para o viver, [...] os

gregos. [...] Adivinha-se em que lugar era colocado, com isso,

o grande ponto de interrogação sobre o valor da existência. 21 Dissonância: no decorrer da história, as sonoridades tidas como dissonâncias ou consonâncias variaram sobremaneira. São considerados consonâncias os sons “agradáveis ao ouvido” e dissonâncias, os “desagradáveis”. Ora, o que é agradável para uma certa sociedade não o é necessariamente para outra. Como exemplo, pode-se citar o caso da Música Medieval, em que a terça não era apreciada, sendo que no Classicismo e no Romantismo, ela passa a ser a essência da harmonia. Outro exemplo é a música védica indiana, na qual as consonâncias eram a quarta e a quinta, as dissonâncias as segundas e as sétimas, e as assonâncias as terças e as sextas. A dissonância a que Nietzsche se refere é aquela de finais do Romantismo, que ele relaciona com Dionísio, isto é, às emoções intensas, extasiantes e até sufocantes, angustiantes ou doloridas. Para ele, estes elementos caracterizam a tragédia grega (MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. p. 21, 167 e 85). 22 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 1, p. 27.

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Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da

ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados –

como ele o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas

as aparências entre nós, homens e europeus “modernos”? Há

um pessimismo da fortitude? [...] O que significa, justamente

entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais

valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do

dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia?23

Ao se examinar com mais detalhes a Tentativa de autocrítica, percebe-se

que, já no seu parágrafo primeiro, faz uma crítica à ciência, ao socratismo e à moral.

Este prefácio está marcado, do início ao fim, por uma ênfase ao reconhecimento de

Dionísio como necessário contraponto à racionalidade, intimamente relacionado à

música e, portanto, ao coro trágico. Daí a justificativa do problema da presente

pesquisa.

É relevante assinalar que todo o texto constitui uma autocrítica quase que

condenatória a O nascimento da tragédia, pelas adjetivações deletérias das quais

faz uso, designando-o como um “livro bizarro”, “livro temerário”, “defeitos da

mocidade”, “livro impossível”, “desagradável”, entre outras. Não obstante, pela

centralidade dos significados de Dionísio na construção do seu pensamento, mesmo

considerando essa obra “temerária”, ao reeditá-la reafirma sua importância no

cenário filosófico. Enaltece a particularidade do deus da desmesura na trama da

experiência trágica, bem como sua manifestação existencial no plano artístico, isto é,

no plano da vida. Arte e vida se confundem por terem um fundo originário comum,

sintonizadas, então, com a tensão entre as pulsões representadas pelos dois deuses

e manifestadas no coro trágico.

23 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 1, p. 13-14.

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Nietzsche, com maior contensão, também faz um elogio à própria obra,

reconhecendo-a como um livro para artistas especiais, com uma metafísica de

artista no plano de fundo: “este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar-se

– ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida”.24 Neste ponto,

encontra-se a confirmação do elemento musical e dionisíaco pertinente à

argumentação sobre o coro na tragédia grega.

Nietzsche discorre sobre a dificuldade de expressão de um conteúdo

reservado a “iniciados”, ou “batizados em música”, um livro que se fecha ao

profanum vulgus [vulgo profano] dos homens ditos cultos, mais ainda do que ao

“povo”. E finaliza a seção cinco perguntando: “O que é dionisíaco?”.25

Para responder a esta pergunta contida na Tentativa de auto-crítica, pode-

se tomar as palavras do próprio filósofo, que, na Seção 5 do livro em questão,

aborda Dionísio, o Uno-primordial e a música. Baseado em sua metafísica de artista,

Nietzsche expõe o caso do poeta lírico, intuitivo e “embriagado”:

Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco totalmente um

só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz

a réplica desse Uno-primordial em forma de música, ainda que

esta seja de outro modo, denominada com justiça de repetição

de mundo e de segunda moldagem deste: agora, porém esta

música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do

sonho, sob a influência apolínea do sonho.26

24 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 2, p.15. 25 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 4, p. 17. 26 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44.

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Neste contexto, Nietzsche faz alusão em especial ao poeta trágico Ésquilo,

ao dar primazia a um modo não conceitual e imediato de expressão, encontrado no

canto do coral trágico. O filósofo remete a uma realidade inacessível à palavra ou ao

conceito. A dramaturgia grega introduz na narrativa e principalmente no discurso do

herói épico, esta redenção na aparência, ou a cura para a insuportável experiência

de dor e contradição propiciadas por Dionísio.

A partir desta constatação, Nietzsche propõe que existe um “equilíbrio” entre

a realidade não mediada pela palavra e pela narrativa. Observa-se então uma

reflexão sobre o inconsciente e a passagem desta dimensão dionisíaca invisível e

indizível, para uma dimensão apolínea – principium individuationis –, que é visível,

narrada e conceitual, constituindo, assim, o que Nietzsche descreve como o

nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Em suas palavras, no livro de

1872, o autor afirma: “o sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro

e determinado, este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de

espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a idéia poética”.27

Trata-se de uma relação entre o Uno-primordial, enquanto força

inconsciente dionisíaca e o mundo apolíneo fenomênico, ambos retratados de forma

exemplar, curativa28 e única no âmbito da tragédia grega. A dor é oriunda da

percepção de um fundo originário repleto de sofrimento e prazer extremos,

insuportáveis à consciência. Daí a cura dar-se na aparência e no sonho apolíneo.

27 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 44. 28 Os termos curativo ou beberagem curativa, associados à tragédia grega (Seção 21), são explorados por Nietzsche, em O nascimento da tragédia, contrapondo-se à idéia de cura pela razão em Sócrates (Seção 13). O filósofo alemão adota a perspectiva dos poetas trágicos, enaltecendo-a e assumindo-a como sua própria filosofia. Toma a razão como doença e tem, no mergulho da dissolução do indivíduo no Uno-primordial, a noção de reconciliação com a natureza (Seção 16). Nietzsche aponta que a tragédia e a arte são adotadas pelos gregos como proteção e remédio (Seção 15). Nos seus escritos, percebe-se que ele assume essa concepção.

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Aquele reflexo afigural e aconceitual da dor primordial na

música, com sua redenção na aparência gera agora um

segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado.

O artista já renunciou à sua subjetividade no processo

dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o

coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível

aquela dor primordial juntamente com o prazer primogênio da

aparência.29

A tensão entre as pulsões artísticas é fundamental na dinâmica para a

transformação na existência. Na trama trágica, a música do coro é uma das

manifestações desta tensão, que ocorre especialmente na voz da multidão

“embriagada” e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um

só com o Uno-primordial. Este é o papel do coro na tragédia grega: a personificação

do deus Dionísio.

É com freqüência que Nietzsche menciona diretamente As Bacantes, de

Eurípides, para fazer referência à dimensão dionisíaca ou primaveril, relacionando-a

com a música, como segue na Seção 5, de O nascimento da tragédia.

O encantamento dionisíaco-musical do dormente lança agora

à sua volta como que centelhas de imagens, poemas líricos,

que em seu mais elevado desdobramento se chamam

tragédias e ditirambos dramáticos. [...] O músico dionisíaco,

inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor

primordial e eco primordial desta.30

29 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44. 30 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44.

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É em nota de tradução de As Bacantes, que Maria Helena da Rocha Pereira

explica a facilidade que os gregos tinham em passar da personificação à

representação da divindade, ou seja, passar da condição de ser humano à de um

deus. Isso ocorre, por exemplo, no intervalo entre o diálogo de Penteu e Tirésias,

estrofes 370 e 385, no trecho do coro que diz:

Reverência, senhora dos deuses,

Reverência, que sobre a Terra

passas tua asa dourada,

ouves de Penteu as palavras?

ouves a irreverente

insolência para com Brómio,

de Sémele o filho, ele que nos festins

de belas coroas está à frente

dos bem aventurados? ele a quem pertence

fazer cessar os cuidados

dançar no tíaso,

rir ao som da flauta,

fazer cessar os cuidados,

quando ao banquete dos deuses

chega o brilho dos cachos,

e nos festins de hera engrinaldados,

o krater31 derrama o sono

sobre os homens.32

A transformação dos personagens em divindades para que estas falem e

intervenham na vida dos gregos também é observada na voz do coro, que, da

mesma forma, cumpre com o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida ou, 31 Krater: vaso de grandes dimensões, destinado à mistura de água com vinho, que era de regra nos banquetes (Nota 18 do livro As Bacantes, de Eurípides. Lisboa: Ed. 70, 1998. p. 54). 32 EURÍPIDES. As Bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. p. 54, estrofes 370 a 385. Nota-se que Brómio é também um nome de Dionísio.

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como os gregos viam, imposta pelos deuses. A música dionisíaca, por acessar a

fonte originária, ou até por ser a sua própria manifestação, é considerada, na

perspectiva de Nietzsche, como o melhor instrumento para carregar esta tensão e

envolver, também pelas suas características inebriantes e imitativas, o espectador

dentro da trama do espetáculo, da representação, da tragédia.

Nietzsche, na Seção 6 de O nascimento da tragédia, faz uma relação da

música com a poesia lírica, esta justificada como “fulguração imitadora da música

em imagens e conceitos”33 ou representação da vontade no sentido

schopenhaueriano. Não obstante, acrescenta que o espírito da música, em sua

ilimitação, não precisa da imagem e do conceito; ou seja, dispensa a linguagem para

alcançar por completo o simbolismo universal referente à contradição e à dor

primordial no coração do Uno-primordial. Na poesia da canção popular, a linguagem

empenha-se para “imitar” a música e o coro é a representação do povo, que na cena

trágica, mostra-se como um extrato da multidão, ou “espectador ideal”.34

Para Schiller, de acordo com Nietzsche,35 o coro trágico se mostra como uma

muralha viva contra a realidade, ou seja, como uma esfera da poesia que não se

encontra fora do mundo ou da dimensão do mundo fenomenal, mas sim da coisa em

si, o Uno-primordial, tornando-se o consolo metafísico. Esse consolo metafísico,

essa forma de o homem se posicionar frente à vida, essa é a essência da tragédia

grega. O grego dionisíaco quer a verdade da natureza em sua força máxima, com

toda a sua dor e com o seu prazer.

33 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 6, p. 50. 34 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 52-53. 35 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 57-59.

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A excitação dionisíaca é “capaz de comunicar a toda uma multidão essa

aptidão artística de ver-se cercada por uma tal hoste de espíritos com a qual ela,

multidão, sabe interiormente que é uma só coisa”.36 Isto significa, no coro trágico, o

processo de ver-se transformado diante de si como se estivesse entrando em outro

corpo ou outra personagem. Nietzsche usa o termo transe para falar de tal

fenômeno, ou de epidemia que toma conta da multidão, que se sente enfeitiçada.

Talvez se pudesse chamá-lo de catarse37 ou metamorfose: um processo em que o

coro ditirâmbico é um coro de transformados. O coro, aqui, assumindo o próprio

papel do espectador, do público, da platéia. Porém, observa-se que esta catarse não

é uma descarga patológica da moral.

E mais: o autor afirma que “o encantamento é o pressuposto de toda a arte

dramática [...] é a sua metamorfose. [...] Nos termos desse entendimento devemos

compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se

sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”.38

Dionísio, efetivo herói cênico, não está presente, mas representado. É o

princípio mais antigo da tragédia. O coro é a tragédia, não o drama. O coro

contempla em sua visão o seu senhor mestre Dionísio – o coro é a mais alta

contemplação da natureza e da sabedoria. Quando Dionísio aparece (se objetiva),

não é mais o mar perene, ou viver ardente. Agora Dionísio fala como herói épico.39

A arte dionisíaca repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento.

São dois os poderes que principalmente elevam o homem natural, ingênuo, até o

esquecimento de si, característico da embriaguez, a pulsão primavera e a bebida

36 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 59-60. 37 Catarse é um termo aristotélico associado ao descarrego e à liberação de tensões sociais. 38 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 60. 39 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 61-63.

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narcótica.40 Esse arrebatamento pode ser compreendido como a catarse, a

experiência da embriaguez dionisíaca, a muralha citada por Schiller, ou ainda o

aniquilamento da perspectiva do indivíduo: o principium individuationis é rompido. O

princípio da individuação é a dimensão apolínea. O escravo e o homem livre deixam

de existir frente à experiência do coro báquico.41

Aquele cantar e dançar não é mais a instintiva embriaguez da

natureza: a massa do coro em agitação dionisíaca já não é a

massa do povo inconscientemente arrebatada pela pulsão

primavera. A verdade é, agora, simbolizada, ela se serve da

aparência, ela pode e precisa por isso também, usar as artes

da aparência.42

Aqui se infere a importância de Apolo nas artes da aparência. Porém, se, em

A visão dionisíaca do mundo, o autor se mostra mais schopenhaueriano, ao publicar

pela primeira vez O nascimento da tragédia, ele busca um distanciamento e faz uma

crítica ao seu mestre. No posfácio mencionado ele assume definitivamente um

posicionamento dionisíaco enquanto elemento de afirmação da vida. Coloca em

questão o pessimismo de Schopenhauer, bem como a filosofia de sua época.

Por vezes, a vivência da música é tão intensa, que tememos

pelo nosso pobre eu, ameaçado de sucumbir no orgiasmo

musical, de tão excitado com a música. Por isso, é necessário

40 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 8. 41 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 9. 42 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31.

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que entre a música e o ouvinte dionisiacamente receptivo, seja

interposto um meio distanciador: um mito de palavra, imagem e

ação cênica.43

Essa é a explicação de Rüdiger Safranski, em seu livro Nietzsche, biografia

de uma tragédia, no qual afirma a importância das duas dimensões, ligadas à

consciência e à inconsciência. Aponta como Nietzsche entende a música, a qual

leva ao estado de arrebatamento dionisíaco, com a anulação dos limites e fronteiras

comuns da existência. “A música leva ao coração do mundo”.44 Apolo, por sua vez,

propicia a consciência do indivíduo.

No jogo ritualístico encontrado na tragédia grega, o espectador do teatro

ático, enquanto povo, multidão, muralha, está sentado nas pedras do anfiteatro,

disposto para a festa. Ele se dilui junto ao coro e é representado pelo herói trágico,

na mais intensa representação. A tragédia grega leva para o palco a relação de

poder entre a palavra e a música. O protagonista domina a palavra, mas é a música

do coro que domina o que as palavras produzem.

Uma importante ressalva para se compreender este discurso ou esta falsa

dualidade é a compreensão da poiesis, que via todas as linguagens artísticas

(música, poesia, literatura, dança, representação e artes visuais) como integrantes

de uma mesma manifestação da vida.

Sócrates quebra o poder da música e, em seu lugar, coloca a dialética. O

logos vence o pathos. E assim, ser e consciência não se harmonizam mais.45

43 SAFRANSKI, Rüdigger. Ecce Homo: Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad.: Lya Left. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 15. 44 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 61. 45 SAFRANSKI, Rüdigger. Ecce Homo: Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad.: Lya Left. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 54-55.

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Com a morte da tragédia, Sócrates inaugura o pensamento dialético-racional.

Se, na tragédia, o coro era a voz da multidão, a partir de Sócrates, esta mesma

multidão se torna um mero espectador aprendiz. Se a tragédia grega personificava

no seu coro o deus Dionísio e a força da natureza que ele representava, com o

socratismo também a arte sucumbiria aos desígnios da lógica socrática.

A dimensão dionisíaca, traduzida na música trágica, no coro e na metafísica

de artista é o elemento que Nietzsche aponta como via de acesso ao Uno-primordial

ou fonte originária, mediante a percepção intuitiva. Nesse sentido, este filósofo

busca na Antigüidade grega, em especial na discussão de Heráclito sobre o devir, o

fundamento para a constante transformação do mundo, a partir da coexistência de

Apolo e Dionísio.

A intuição heraclitiana, como instrumento de investigação da existência e

acesso ao Uno-primordial, será apresentada no capítulo que finaliza esta pesquisa.

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4 O MÚLTIPLO E O DEVIR EM HERÁCLITO – A INTUIÇÃO COMO ACESSO

AO UNO-PRIMORDIAL

Nietzsche busca em Heráclito e seu devir a coexistência dos opostos, a

eterna guerra, a luta constante na construção e desconstrução do mundo. O fio

condutor da presente pesquisa passa pela necessidade de analisar a coexistência

das duas pulsões da natureza: a apolínea e a dionisíaca. Uma vez demonstrado no

capítulo anterior como se dá essa coexistência e como ela deixa de existir pela

morte da tragédia, é no devir de Heráclito que se alcança tal possibilidade. Heráclito,

o Filósofo da Intuição, possibilita a Nietzsche, por este instrumento, conceber o

caminho de acesso, no mundo fenomênico, ao fundo originário ou Uno-primordial.

4.1 Heráclito, o filósofo intuitivo

Há épocas em que o homem racional e o

homem intuitivo ficam lado a lado, um com

medo da intuição, o outro escarnecendo da

abstração; este último é tão irracional

quanto o primeiro é inartístico. (Nietzsche)1

1 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras Incompletas. Seleção de textos: Gérard Lebrun. Trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). p. 51.

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Ao se estudar a obra de Nietzsche, percebe-se a construção de uma nova

cosmologia.2 Retomam-se a descrição da metafísica de artista e as doutrinas pré-

socráticas como justificação da tese do Uno-primordial, com especial destaque ao

estudo de Nietzsche sobre Heráclito (535-475 a.C.).

Esse pensador da Grécia antiga contribuiu significativamente para a tese de

Nietzsche sobre o Uno-primordial e sua natureza última no devir e no múltiplo

indizível. Heráclito, o filósofo que também fez da suspeita seu instrumento de

investigação, deu sustentação para Nietzsche questionar a premissa básica,

implantada na tradição por Sócrates e Platão, qual seja, que o conceito esteja em

condições de captar adequadamente a realidade ou a essência do existente.

Marcio Benchimol, no livro Apolo e Dionísio, arte, filosofia e crítica da cultura

no primeiro Nietzsche, chama a atenção para o fato de que, até a atualidade, não

tenha sido feita a devida justiça quanto à influência do filósofo Heráclito na primeira

fase do pensamento de Nietzsche.3 Em verdade, não seria de todo inapropriado

afirmar que havia uma grande identificação de Nietzsche com o pensamento do

filósofo de Éfeso.

Extrai-se para este paralelo, do livro de Nietzsche A filosofia na idade trágica

dos gregos, a seguinte menção ao filósofo:

Heráclito era orgulhoso, e quando o orgulho entra num filósofo,

então, é um grande orgulho. A sua acção nunca o remete para

um ‘público’, para o aplauso das massas e para o coro 2 A idéia de Nietzsche ter construído em sua obra uma nova cosmologia, ou uma Filosofia da Natureza, está expressa por Scarlett Marton em seu livro Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos (São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 13, 23-24). Para tal elaboração, a autora, mencionando a sua interação com estudos do filósofo alemão Wolfgang Müller-Lauter, aponta a necessidade de recorrer a conceitos nietzschianos da segunda e da terceira fases para viabilizar esta reorganização cosmológica. Porém, perceberam-se no trabalho da autora importantes recorrências aos textos da primeira fase nietzschiana, em especial à idéia do múltiplo e do devir em Heráclito. 3 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 42.

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entusiasta de seus contemporâneos. Seguir um caminho

solitário pertence à essência do filósofo. O seu dom é o mais

raro e, de certa maneira, o menos natural, excluindo e

ameaçando todos os outros dons. [...] O desprezo pelo

presente e pelo momentâneo é parte integrante da grande

natureza filosófica.4

Nietzsche acentua em Heráclito uma disposição em adotar a intuição como

instrumento fundamental à investigação filosófica, o que o distingue dos outros

filósofos. Pode-se recorrer ao fragmento LXV de Heráclito sobre as multidões: “O

que é então o saber deles senão diafragma? Enternecem-se com os cantores dos

Demos e têm a multidão por mestre, não sabendo que a maioria é má e minoria é

boa”.5

Como mencionado, Heráclito era também conhecido na Antigüidade como

filósofo intuitivo. Nietzsche aponta esta caracterização como uma faculdade sublime

de “representação intuitiva”, revelando, como se percebe nas palavras do próprio

Nietzsche em A filosofia na idade trágica dos gregos, um Heráclito insensível e hostil

ao modo lógico e estritamente racional de pensar e avesso às multidões.

Nietzsche enaltece esta característica heraclitiana em toda a sua obra, ao

criticar a tradição filosófica ocidental racionalista, como se observa nas seguintes

palavras sobre Heráclito:

Heráclito tem algo de inacreditável; e se é verdade que foi visto

ao observar os jogos de crianças barulhentas, ao menos nessa

altura repassou naquilo que jamais alguém considerará numa

ocasião dessas: o jogo da grande criança universal, o jogo de

4 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 8, p. 53. 5 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito. (LXV), p. 207.

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Zeus. Ele não precisava dos homens nem sequer para o seu

conhecimento; todas as informações que deles se podiam

obter ao interrogá-los e tudo o que os outros sábios antes dele

tinham tentado pesquisar não lhe interessavam. Fala com

desprezo desses homens interrogadores, coleccionadores, em

suma, ”históricos”.6

O jogo da grande criança universal é o jogo aqui pesquisado nas pulsões

artísticas do Uno-primordial. Alguns dos fragmentos que se tem de Heráclito

justificariam a importância que Nietzsche dá à sua habilidade intuitiva. Dois

fragmentos revelam a intuição no pensamento do filósofo de Éfeso e mostram-se

interessantes para o tema deste trabalho: “Harmonia inaparente mais forte que a do

aparente”.7 “Diante do daímon, o homem ouve, infantil, como, diante do homem, a

criança”.8

Para Nietzsche, Heráclito, o filósofo da intuição como instrumento de

conhecimento, lançou um passo definitivo e corajoso, com a afirmação do devir

como essência última do existente, que Nietzsche passa a chamar de Uno-

primordial. Ele concebeu o devir em sua radicalidade, ao ponto de sequer reservar à

razão autoridade suficiente como suporte da linguagem. “Heráclito concebeu a

unidade como unidade do devir, e não do ser, e por isso não precisou pensá-la

como oposta ao mundo da multiplicidade, mas sim como imanente a ele”.9 Nesse

ponto, mostra-se uma dúvida em relação às posturas de Nietzsche e Heráclito

quanto às suas visões do devir e do múltiplo.

6 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 8, p. 54. 7 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito, (VII), p. 198. 8 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito, (X), p. 198. 9 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 48.

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Heráclito é o homem estético por excelência, contemplou o mundo como o

artista contempla a obra de arte. A metafísica de artista nietzschiana e a concepção

heraclitiana do devir permitem refletir sobre o Uno-primordial como origem das

formas particulares manifestadas na vida.

Para se abordar o termo Uno-primordial, ligado aos nomes de Dionísio e de

Heráclito, quando se trata de entender e justificar o mundo como fenômeno estético,

principalmente na música e no mito,10 Nietzsche se refere à força plasmadora do

universo, a exemplo da citação a seguir; que deixa transparecer esta preocupação,

presente em obras anteriores a O nascimento da tragédia:

Esse aspirar ao infinito, o bater de asas do anelo, no máximo

prazer ante a realidade claramente percebida, lembram que,

em ambos os estados, nos cumpre reconhecer um fenômeno

dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico

construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de

um arquiprazer, de maneira parecida à comparação que é

efetuada por Heráclito, o Obscuro, entre a força plasmadora do

universo e uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e

ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.11

Giorgio Colli aponta uma possível falha deste filósofo ao retirar do deus Apolo

sua conformidade enquanto divindade da arte.

Todavia, é verdade que Apolo é também o deus da arte. O que

escapou de Nietzsche foi a duplicidade da natureza de Apolo,

sugerida pelos caracteres já recordados de violência diferida,

10 É preciso lembrar que, na cultura grega, a música e a palavra eram uma unidade indivisível e estavam intimamente ligadas ao mito. 11 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 24, p. 142.

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do deus que fere de longe. Assim como o mito de Dionísio

dilacerado pelos titãs é uma alusão à separação da natureza, à

heterogeneidade metafísica, entre o mundo da multiplicidade e

da individuação, que é o mundo da laceração e da

insuficiência, e o mundo da unidade divina, assim a duplicidade

intrínseca à natureza de Apolo testemunha paralelamente, e

numa representação mais envolvente, uma fractura metafísica

entre o mundo dos homens e o dos deuses. A palavra é o

intermediário.12

O que se defende na presente investigação, é que Nietzsche não retira do

deus Apolo as suas características também de deus da arte nem a sua importância,

mas oblitera esta característica em função da necessidade de se retomar o equilíbrio

das duas pulsões no mundo socrático-platônico, que destensionou a oposição entre

Apolo e Dionísio, condenando o último ao exílio.

Heráclito, por sua vez, aborda o deus Apolo como apto a acessar uma

dimensão irracional e mágica da arte. “E a ruptura metafísica que está na base do

mito grego é comentada pelos sábios: o nosso mundo é a aparência de um mundo

oculto, do mundo onde vivem os deuses”.13

Apolo é também um deus que simboliza a vida, a palavra, porém, é o seu

intermediário. Talvez por ser o deus da medida, da forma e da harmonia, Heráclito

evoque neste deus o conceito de harmonia necessária à intuição unificadora.

De acordo com Colli, Heráclito acrescenta à natureza de Apolo a sua

ambigüidade; a esfera da loucura diz respeito à arbitrariedade, ora promovendo uma

ação hostil, ora benigna, instigando o esclarecimento diante da necessidade. Isto se

mostra em sua resposta oracular – Delfos, saindo da obscuridade da terra, mas a

12 COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Lisboa: Edições 70, 1975, p. 36. 13 COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Lisboa: Edições 70, 1975. p. 36.

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palavra traz consigo o ensinamento apolíneo, enaltecida por Sócrates nos preceitos

“nada em excesso” e em “conhece-te a ti mesmo”.

Uma passagem que justifica a crítica de Colli a Nietzsche está na Seção 21

de O nascimento da tragédia. Nela, mesmo depois de apresentar a necessidade da

coexistência das duas divindades que estão em constante oposição e que

configuram a dinâmica do processo de transformação, o filósofo eleva a força de

Dionísio como caráter transfigurador da realidade.

No efeito conjunto da tragédia, o dionisíaco recupera a

preponderância; ela se encerra com um tom que jamais

poderia soar a partir do reino da arte apolínea. E com isso, o

engano apolíneo se mostra como o que ele é, como o véu que,

enquanto dura a tragédia, envolve o autêntico efeito dionisíaco,

o qual, todavia, é tão poderoso que, ao final impele o próprio

drama apolíneo a uma esfera onde ele começa a falar com

sabedoria dionisíaca e onde nega a si mesmo e à sua

visibilidade apolínea.14

A intuição é, sobremaneira, o elemento valorizado por Nietzsche em Heráclito,

porque é ela que dá acesso à suspeita de um fundo originário que não se mostra à

luz da razão. Este, por sua vez, tem as características da embriaguez, da

inconsciência, da irracionalidade, da violência e do prazer, elementos estes,

essencialmente dionisíacos. E o filósofo deixa isto claro em seus textos da

juventude.

Para a presente pesquisa, A filosofia na idade trágica dos gregos implica uma

fonte para o fortalecimento do argumento de que Heráclito é o filósofo trágico por

14 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 129.

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excelência. No texto de 1873, Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral,

também se encontra o fundamento juvenil, para alicerçar o argumento de Nietzsche

de que na arte grega trágica estão os elementos necessários para romper a

dicotomia metafísica dos dois mundos.

É verdade que somente pela teia rígida e regular do conceito

[ou seja, da palavra] o homem acordado [intuitivo, dionisíaco]

tem certeza clara de estar acordado, e justamente por isso,

chega às vezes à crença de que sonha, se alguma vez aquela

teia conceitual é rasgada pela arte.15

Observa-se que a palavra, o conceito, em Nietzsche, está sempre sob

suspeita.

O intelecto, esse mestre do disfarce [...] Aquele descomunal

arcabouço e travejamento dos conceitos, ao qual o homem

indigente se agarra [...] ele revela que não precisa daquela

tábua de salvação da indigência e que agora não é guiado por

conceitos, mas por intuições.16

A arte, na tragédia grega, é o lugar singular de manifestação desta intuição e,

como foi apresentado no Capítulo 2 da presente investigação, é nela que, segundo

Nietzsche, é superada a dicotomia entre verdade e aparência.

15 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras Incompletas. Seleção de textos: Gérard Lebrun. Trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). § 1, p. 50. 16 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras incompletas. Seleção de textos: Gérard Lebrun; trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). § 2, p. 51.

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O homem intuitivo, artístico e embriagado é o gênio helênico. Este alcança

um domínio sobre a vida, que o homem teórico racional e socrático só pode alcançar

por uma ilusão, um engano, tendo antes a necessidade de negar a vida, corrigi-la,

não vendo aquelas necessidades e tomando somente a vida

disfarçada em aparência e em beleza como real. Onde alguma

vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz

suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que

seu reverso, pode configurar-se, em caso favorável, uma

civilização e fundar-se o domínio da arte sobre a vida.17

O mito, a arte e a música trágicos, uma vez não dissolvidos em conceitos, são

capazes de exprimir o Uno-primordial. O coro, como foi visto, cumpre este papel na

tragédia grega. Tal é a experiência do poeta e do herói trágicos que, no estado de

embriaguez dionisíaca, cita Nietzsche,

graças a esse mesmo mito, sabe libertar-nos da pessoa do

herói trágico, da ávida impulsão para esta existência e, com

mão admoestadora, nos lembra de um outro ser e de um outro

prazer superior, para o qual o herói combatente, cheio de

premonições, se prepara com sua derrota e não com suas

vitórias.18

É desta maneira que na metafísica de artista, por intermédio da intuição do

gênio, dionisiacamente, realiza-se o processo transfigurador do Uno-primordial.

17 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / Nietzsche. Obras incompletas Seleção de textos: Gérard Lebrun; trad. e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). § 2, p. 51- 52. 18 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 125.

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97

O estado de embriaguez ou de irracionalidade de Ésquilo ao tratar da tragédia

grega, ou a dimensão intuitiva do filósofo trágico, é que propiciam o “aspirar ao

infinito”, citado por Nietzsche na Seção 24 de O nascimento da tragédia. É o

processo pelo qual a vontade, ou o fundo primordial, satisfaz seus impulsos

artísticos e o homem reconcilia-se com a natureza primavera, ou mães do ser,

termos estes, como mencionado, usados por Nietzsche para referenciar o Uno-

originário, ou Uno-primordial.

Para a arte dionisíaca, diz Nietzsche: “sede como eu sou! Sob a troca

incessante das aparências, a mãe primordial eternamente criativa, eternamente a

obrigar à existência, eternamente a satisfazer-se com essa mudança das

aparências!”19

O jogo da criança brincando na areia, a idéia de mudança e de constante

transformação, ou seja, a doutrina do devir heraclitiana, é apropriada por Nietzsche

que a reconhece inerente ao movimento de criação e destruição do Uno-primordial,

como se observará a seguir.

4.2 O múltiplo e o devir

O cosmo, o mesmo para todos, não o fez

nenhum dos deuses nem nenhum dos homens,

mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo,

acendendo-se segundo medidas e segundo

medidas apagando-se. (Heráclito)20

19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 16, p. 102. 20 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Fragmentos de Heráclito (XXIX), p. 201.

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98

A percepção intuitiva da vida, para Nietzsche, também é fruto de sua leitura

muito particular sobre a doutrina do devir, em Heráclito, da multiplicidade e da guerra

dos opostos. A partir deles é possível conhecer o fundo originário, ou o Uno-

primordial. Este conceito e a sua natureza dionisíaca constituem conteúdos pouco

explorados pelos estudiosos, nos primeiros escritos de Nietzsche.

Por sua vez, atesta Marcio Benchimol que a noção de unidade e

multiplicidade se enraíza em outro problema mais fundamental: o problema da

relação entre o ser e o devir.21

Em Nietzsche, para pensar a unidade, antes deve-se passar pela perspectiva

de Anaximandro e de Heráclito para então se compreender a impermanência de

toda a individualidade. Tudo o que é determinado é fruto de um processo de

transformação permanente e inexorável, um movimento de geração e de destruição,

o devir.

Nietzsche comenta em A filosofia na idade trágica dos gregos, as palavras de

Heráclito:

Contemplo o devir, diz ele, e nunca alguém contemplou com

tanta atenção o fluxo e o ritmo eterno das coisas. [...] Heráclito

tirou desta intuição duas negações entre si solidárias, que só

vêm completamente à luz pela comparação com os

ensinamentos de seu precursor [Anaximandro]. Em primeiro

lugar negou a dualidade de dois mundos totalmente diferentes,

que Anaximandro se vira obrigado a admitir; já não distingue

um mundo físico e um mundo metafísico, um domínio de

qualidades definidas e um domínio da indeterminação

indefinível. Após este primeiro passo, também já não pôde

coibir-se de uma maior audácia da negação: negou o ser em 21 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 42.

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geral [...]. Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro:

só vejo o devir.22

Nietzsche aponta que Anaximandro refugia-se na noção do indefinido

metafísico, porque aquelas qualidades de nascimento e morte, criação e destruição,

haviam-lhes negado a existência verdadeira e essencial.23

Nietzsche sustenta a perspectiva naturalista de Heráclito objetando sobre a

necessidade de voltar a atenção para a fraqueza peculiar do conhecimento dos

homens, quando se fala em devir; uma vez que, na essência das coisas talvez, não

haja devir algum, mas unicamente a coexistência das múltiplas realidades tidas

como verdadeiras, que se subtraem ao devir e à destruição – “Heráclito grita mais

uma vez: O uno é o múltiplo”.24 Compreende-se, nesta afirmação, a idéia da

coexistência das pulsões artísticas Apolo e Dionísio.

Nietzsche ao examinar o enredo dos pré-socráticos em torno da origem de

todas as coisas, indica que o devir, em Heráclito, começa quando aquelas

qualidades originárias se separam do ser primordial, ou do Indefinido.

Nietzsche conclui sobre Heráclito: “É assim que o fogo segue duas vias de

metamorfose que sobem e descem incessantemente, vão e vêm, lado a lado, do

fogo à água, daí à terra, da terra de novo à água e da água ao fogo”.25 Daí Heráclito

afirmar que o cosmo é o movimento do fogo sempre vivo, que se acende e se apaga

segundo certas medidas, compondo o que lá ele chamou de cosmos ou o

indeterminado.26

22 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 5, p. 40. 23 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 45-46. 24 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 45-46. 25 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 47. 26 Ver citação da epígrafe do item 4.2, do presente trabalho.

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Márcio Benchimol sobre o devir heraclitiano em Nietzsche, explica que os

escritos desta fase de produção, concomitantes à concepção de sua primeira obra,

O nascimento da tragédia, são caracterizados por um pensar intuitivo, sem, contudo,

abster-se do elemento científico.

Observa-se aqui sua verve filológica:

Ocorre apenas que na filosofia trágica o pensamento científico

é sobrepujado pela força da representação intuitiva. [...] O

pensamento científico passa então a valer, não como meio de

conhecimento da realidade, mas sim como meio de expressão

de conhecimentos alcançados através da intuição.27

A afirmação corajosa de Heráclito diante de seus contemporâneos foi a de

conceber o devir como essência última do existente. Além disso, baseado na força

da intuição, pôde compreender o devir em toda a sua radicalidade. Desta forma,

afirma Benchimol, Nietzsche o elege como o filósofo que com maior profundidade

percebeu a incongruência entre o pensamento científico causal e o pensamento que

é fruto do filosofar intuitivo.

Daí a sua liberdade ou desprendimento frente a uma pretensa “necessidade”

de justificar o seu pensamento, mediante a lógica científica e a argumentação

dialética, tão características de sua época.28

Alexandre Costa comenta os fragmentos LII a LV, mencionando os quatro

elementos, terra, ar, água e fogo. Aponta que o cosmo constitui um espaço que

contempla a contínua transformação de tudo, a fluência de todas as coisas, notório

27 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 45. 28 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 44-47.

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aspecto da cosmologia de Heráclito e alvo relevante da perspicácia de Nietzsche,

destacando o fato de que a alteração e a preservação servem uma à outra no

acender-apagar.

A lógica do movimento instala-se em todas as coisas, elas em

processo contínuo de alteração: o úmido seca, o quente esfria.

[...] Heráclito toma as mudanças entre os estados físicos como

exemplo do movimento e transformação de tudo. É o que se vê

também no fragmento LIII. Porém, a grande novidade que esse

fragmento traz consiste em nomear essas mudanças de

‘morte’. Do sólido para o líquido, o sólido morreu e o líquido

surgiu. [...] Com isso Heráclito demonstra como a morte vem a

ser um momento necessário à manutenção da vida e à

dinâmica do cosmo.29

Com essa referência, extrínseca à filosofia de Nietzsche, mas fiel a um estudo

de Heráclito, pode-se retornar ao final da Seção VI e início da Seção VII de A

filosofia na idade trágica dos gregos, para acordar um paralelo da noção de morte,

apontada por Costa, e a idéia do fogo como propiciador da metamorfose do que é.

Heráclito parece ter dito com mais precisão: do mar só se

elevam os vapores mais puros, que servem de alimento ao

fogo celeste dos astros; da terra só se elevam os vapores

escuros e nebulosos, que servem de alimento ao húmido. Os

vapores puros são a transição do mar para o fogo, os vapores

impuros são a transição da terra para a água.30

29 COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. p. 241-242. 30 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 6, p. 47.

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Nietzsche sublinha a crença de Heráclito, de que o frio é só uma forma ou um

grau diferente do quente. Porém, mais importante que este afastamento da doutrina

de Anaximandro, é sim uma coincidência: ambos acreditam num colapso do mundo,

que obedece a um ciclo cósmico periódico que sempre se aniquila e ressurge. Em

Heráclito, o fogo puro, como um desejo e uma necessidade de consumação, é o

responsável por tal saciedade. A ambivalência das pulsões apolínea e dionisíaca faz

essa relação do ciclo cósmico.

Nietzsche conjectura, como discípulo de Heráclito, nesta reflexão, sobre a

culpa surgida da transformação do puro no impuro. E também sobre a multiplicidade

surgida do novo impulso de formação do mundo (hybris).

Será que este mundo está cheio de culpa, de injustiça, de

contradições e de sofrimento?

Sim, grita Heráclito, mas só para o homem limitado que vê as

coisas separadas umas das outras e não no seu conjunto, não

para o seu contuitivo; para este, todos os contrários confluem

numa harmonia, invisível, é verdade, ao olhar humano comum,

mas inteligível para quem, como Heráclito, se assemelha ao

deus contemplativo. Perante o seu olhar de fogo, não subsiste

nenhuma gota de injustiça no mundo derramado em seu redor;

e chega mesmo a superar, mediante uma comparação sublime,

a dificuldade principal em explicar como é possível que o fogo

puro possa assumir formas tão impuras. Nesse mundo, só o

jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um

perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação

moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam

o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente

activo, constrói e destrói com inocência. 31

31 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 1987. § 7, p. 49.

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Heráclito oportuniza a redenção na inocência. E em virtude de sua negação

da bipartição metafísica do mundo, uma perspectiva teleológica da existência lhe era

inacessível. Por conta disso, Nietzsche lhe atribui a condição de um filósofo trágico

por excelência. Sua filosofia é fruto de uma perspectiva estética de um jogo do

mundo. Marcio Benchimol sugere que o valor da existência [reforçando a visão de

Nietzsche] é problemático somente para aquele que é limitado e enxerga tudo

fragmentado e não enquanto conjunto; mas não para quem, como Heráclito, pode

compartilhar da perspectiva estética do criador.32

Existe apenas uma vida, que se manifesta necessariamente

em indivíduos, e que é a mesma em cada um. A multiplicidade

dos indivíduos é um fenômeno de superficialidade sob o qual

subsiste a unidade primordial de tudo que vive.33

Esta afirmação está ligada às noções de multiplicidade e de devir como

manifestação da afirmação do poder da vontade e do Uno-vivente. Aqui identifica-se

uma clara influência, já apontada no início da pesquisa, do romantismo da época,

pois este Uno-vivente representa a totalidade da força vital da natureza, concebida a

partir de uma visão organicista do mundo. Esta noção de organismo como ser único

permitirá a Nietzsche conciliar a multiplicidade dos indivíduos com a unidade do

Uno-vivente, ou com o “formidável organismo que gera a si mesmo”.34

A hipótese de um organismo único, visto como um todo, é contrariada pela

visão de Müller-Lauter, quando este estuda a doutrina da vontade de poder

32 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 50. 33 BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32. 34 NIETZSCHE, Friedrich, apud BENCHIMOL, Marcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32.

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nietzschiana. O tema está orientado a partir de textos de Nietzsche aqui não

estudados, mas a reflexão é recorrente.

Müller-Lauter refuta a idéia, antes apresentada por Benchimol, de um ser

vivente ou de um organismo que gera a si mesmo. Para Müller-Lauter, a unidade só

é unidade como organização, daí a impossibilidade de falar da unidade como um

todo do mundo.

Ainda mais sugestiva é a fundamentação de que ele

[Nietzsche] dá para isso. A essa unidade teria de permanecer

‘alguma força, um incondicionado’ [...]. Para a constituição da

unidade do todo, seria necessário um fundante originário, que

organizaria a multiplicidade total. Recairíamos, com isso,

porém, no preconceito metafísico combatido por Nietzsche.35

Müller-Lauter defende que a visão de Nietzsche é de que o mundo é caos e

que não existe uma unidade organizada. Conjectura-se aqui, que o jovem Nietzsche

concebia o incondicionado como o Uno-primordial e, por influência do romantismo,

percebeu, sim, como apontam Benchimol e Marton, o todo como unidade, mas

unidade em profunda e constante transformação e luta.36

Quando Deleuze aborda “a transmutação de todos os valores”, assunto aqui

não explorado, define-a como um “devir ativo das forças, um triunfo da afirmação na

vontade de poder”.37 Parece estar aludindo a uma perspectiva do devir e do múltiplo

35 MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.: Oswaldo Giacoia. São Paulo: Annablume, 1997. p. 103. 36 Na Introdução do presente trabalho, foi salientada a intenção de não fazer desta pesquisa uma investigação que visasse encontrar uma provável contradição em Nietzsche sobre a teoria do Uno-primordial ter origem metafísica ou não. Mas, antes, interpretar esta teoria como o fundamento de uma cosmovisão que sustentou posteriormente o desenvolvimento de sua filosofia. Observa-se, no entanto, que a teoria do Uno-primordial não volta a aparecer em seus escritos. 37 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 28.

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que definem um filósofo dionisíaco, ou intuitivo, aberto à compreensão deste ser

primordial.

O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas

o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido;

tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do

múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-

se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzschiana, ou a

terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser,

o múltiplo ao Uno [...]. Pelo contrário, afirma-se o Uno do

múltiplo, o Ser do devir. Ou então, como diz Nietzsche, afirma-

se a necessidade do acaso. Dionísio é jogador. O verdadeiro

jogador faz do acaso um objeto de afirmação.38

O acaso é abordado por Deleuze como solução à pretensa necessidade de

não recorrer a uma instância metafísica (o ser) ou a uma categoria do

incondicionado. Retorna-se, aqui, à conseqüente exposição de Müller-Lauter que, a

partir da idéia de caos, em Nietzsche, ou da inexistência de um todo organizado,

também não se pode conceber a idéia de vontade de poder como um constituinte do

mundo. Deriva, então, em Müller-Lauter, o conceito de que existem vontades de

poder;39 multiplicidades destas vontades. É a inversão nietzschiana, a transmutação

que Deleuze aponta como possibilidade de coexistência do múltiplo no uno e o devir

do uno.

Ainda pretendendo encontrar as bases, ou influências, que marcaram os

primeiros escritos de Nietzsche, observa-se no estudo de Scarlett Marton, a

38 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 30. 39 O conceito de vontade de poder foi mencionado apenas com o intuito de explicar as idéias de multiplicidade e de devir no argumento de Deleuze e Müller-Lauter, recorrentes a fases posteriores à que aqui se estuda, mas se mostram úteis à compreensão do capítulo que encerra a presente pesquisa.

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proposição de que o filósofo constrói uma cosmologia, ou uma filosofia da natureza.

A luta dos opostos, ou o “jogo de forças” está presente em todo o organismo.

A tensão entre os opostos se apresenta na multiplicidade, não como uma

noção de evolução ou de auto-conservação, outrossim, como voracidade nas mais

ínfimas partículas;40 o que, aqui, se interpreta como força dionisíaca atuando como

afirmação da vida, a exemplo de As bacantes, de Eurípides, em passagens que

mostram o transe das mulheres nos ritos dionisíacos, buscando a saciedade dos

sentidos: “pequeno é o esforço de ver que aí reside a força [...], por lei perene, na

natureza fundada”.41

Tal percepção de uma lei perene ou natureza primeira, remete à questão da

intuição. Ainda em As bacantes, há uma menção ao “transe báquico e seu delírio

trazendo poderes divinatórios”42 oportunizado por Dionísio durante o estado extático

e de inconsciência que aquelas concessões festivas oportunizavam. Nesse sentido,

a intuição seria percebida como esse poder divinatório de elucidação e de

esclarecimento para uma dimensão que se encontra além da razão ou da

racionalidade.

O culto dionisíaco ocorria durante o inverno, com o templo de Apolo fechado

como solução para a colaboração entre o culto às duas divindades opostas, no

entanto, como se pode observar, complementares.

A importância de Heráclito para a filosofia de Nietzsche gira em torno da

justificação da estética da existência. Em função da negação heraclitiana de uma

bipartição metafísica do mundo, adotada também pelo filósofo alemão, uma resposta

teleológica ou moral desta perspectiva é impossível. Ambos assumem, então, o jogo

do mundo, o acaso, a existência trágica e a sua dimensão dionisíaca. 40 MARTON, Scarlett. Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 13-30. 41 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: LDA, 1998. § 895, p. 80. 42 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: LDA, 1998. § 315, p. 51.

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Heráclito, filósofo trágico. Inserido no mesmo universo que

inventa a tragédia, é o criador da interpretação trágica em

filosofia. Mas a comunidade do pensamento e da arte não é

fruto do acaso. Arte e pensamento fazem parte de uma unidade

que, evento único, é a cultura pré-socrática. Esta unidade é

definida como comunidade de estilo: arte e pensamento não só

se comunicam – a arte dirige o pensamento.43

A filosofia nietzschiana “se dá ao leitor enquanto reflexão incessante, em

permanente mudança. Como o rio de Heráclito, ela afirma a inocência do vir-a-ser;

mais ainda, ela se põe enquanto vir-a-ser”.44

Dionísio traduz a tensão por ser o deus da desmesura; sua função é

evidenciar a oposição entre a sua dimensão e a apolínea. Esse é o papel do deus

Dionísio, em sua desproporção e excesso. Ele é o desejo da diferença, o duplo

sentido de criação e destruição, intensidade e afirmação do trágico. Para Nietzsche,

Heráclito é o filósofo que intui essa perspectiva do devir e do acaso na unidade. E é

por essa característica que o deus da fertilidade, da embriaguez e da inconsciência

propicia a mais intensa das experiências, as quais os gregos pré-socráticos

reconheceram e valorizaram, integrando essa sabedoria à concepção da tragédia

grega.

43 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 177. 44 MARTON, Scarlett. A terceira margem da interpretação. In: MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.: Oswaldo Giacoia. São Paulo: Annablume, 1997. p. 48.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Divinizado por uma super abundância de vida, onde

a vontade de aparência, de mentira, de ficção, de

erro e ilusão se desdobra como um sim afirmativo,

um sim transfigurador, o único verdadeiro sim, o sim

supremo de um estado de aquiescência à vida da

qual ‘mesmo a dor, toda espécie de dor’, faz parte

essencialmente como um meio de intensificação, de

elevação, de tensão e gozo. É este o estado trágico

dionisíaco por excelência. (Almeida)1

A sabedoria trágica concebida por Nietzsche e enaltecida pelo filósofo como

parâmetro e fundamento para tecer sua crítica ao otimismo teórico, que perdura

desde Sócrates até a modernidade, firma-se como importante marco e referencial

teórico para se compreender, na contemporaneidade, os limites da própria razão. As

interrogações e proposições instauradas no século XX a partir da obra de Nietzsche

estão longe de ser exauridas, transfigurando-se sempre em desdobramentos

inquietantes. Nas mais diversas áreas do saber, suas obras são consultadas, sendo

incluídas nas pesquisas sobre estética, política, história, psicanálise, teologia, além

da ética e da filosofia.

Observou-se, durante esta pesquisa, no contexto da publicação brasileira

atual, a relevância que os primeiros escritos de Nietzsche vêm recebendo dos seus

estudiosos e quanto ainda há para se compreender quando analisados os

fragmentos póstumos, muitos dos quais ainda não se encontram traduzidos para a

língua portuguesa. 1 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 66.

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Para a presente investigação, constatou-se a complexidade que envolve a

noção ontológica do Uno-primordial, especialmente porque este conceito não é

abordado nas obras posteriores do filósofo, permanecendo, antes e com maior

intensidade, na terceira fase da sua produção, a recorrente alusão ao fenômeno

dionisíaco. Daí esta pesquisa, que faz uma aproximação da divindade grega

dionisíaca ao conceito do Uno-primordial.

Um dos aspectos mais importantes encontrados na filosofia da primeira fase

da produção de Nietzsche está em sua intuição de que a arte, a representação ou a

aparência são fundamentais para a vida.

Assim, o filósofo analisa a sabedoria trágica dos gregos da Antigüidade, que

renderam-se a uma compreensão estética da existência, conferindo à arte ática uma

via de acesso que é perpassada pela aceitação da tragicidade da vida, sem

resignação ou culpa, ao contrário, sustentando uma experiência de afirmação da

vida com toda a sua exaltação característica.

Esta sabedoria permitiu aos gregos trágicos encontrar, na duplicidade do

apolíneo e do dionisíaco, um consolo metafísico só visto no mundo helênico,

conjugando “ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das

vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente em produções sempre novas

[...] até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ aparecem

emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento, tanto a obra de arte

dionisíaca quanto a apolínea geram a tragédia ática”.2

As pulsões apolínea e dionisíaca são o esteio que orienta o conhecimento

estético de Nietzsche e sustenta o que ele chama de metafísica de artista.

2 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 1, p. 27.

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A hipótese inicial desta pesquisa foi gerada a partir da interrogação sobre a

preponderância do fenômeno dionisíaco na perspectiva nietzschiana, em

contraposição a todo o esforço do filósofo em sustentar a metafísica de artista pela

coexistência das duas pulsões artísticas, sempre gerando oposição e reconciliação;

ou seja, a tensão entre as duas polaridades não é excludente, mas antes

complementar.

Mesmo se o nome de Apolo se esfuma à medida que sua

obra avança para apagar-se quase completamente diante de

Dionísio, isso não indica de modo algum uma determinação da

parte de Nietzsche em mostrar as mudanças dessas duas

forças como uma marcha do Saber Absoluto, onde Dionísio

seria a síntese quer teria superado Apolo como um de seus

momentos.3

O princípio apolíneo gera a individuação (principium individuationis) e por

conseqüência a possibilidade do povo grego suportar a dor e o horror revelados

diante do mergulho na esfera dionisíaca, que é indizível, irracional e inconsciente. A

tragédia grega tem esta função de consolo e revelação. Porém, o que aqui se

pretendeu abordar foi exatamente a dimensão dionisíaca em suas faces reveladoras

da natureza originária ou primaveril, selvagem e contraditória do Uno-primordial. “No

fundo, Nietzsche não tentou outra coisa senão adivinhar por que justamente o

apolinismo grego devia nascer de um subsolo dionisíaco: por que o grego dionisíaco

necessitava tornar-se apolíneo”.4

3 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p . 32. É comum e inoportuna a tendência de alguns intérpretes em insistir em uma pretensa síntese ocasionada pela noção dialética, ao abordar a dualidade metafísica de Nietzsche. 4 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 34.

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Estas faces do deus da desmesura, da embriaguez e da inconsciência se

revelam em suas expressões na tragédia grega e são concebidas apenas pela

intuição, não pela razão retórica e lógica.

A música, o ditirambo e o coro são expressões artísticas que revelam a

preponderância da natureza dionisíaca do Uno-primordial. Porém, Nietzsche se

recusa a tomar partido de uma das forças originárias, no entanto é a dimensão

representada por Dionísio que permite a compreensão da própria oposição entre as

duas divindades. “Nietzsche tenta explicar essa aporia a partir do próprio caráter

ambíguo e paradoxal que marca essencialmente a figura de Dionísio”.5

O entrelaçamento entre os temas que envolvem a filosofia nietzschiana em

seus primeiros escritos foi apresentado neste trabalho partindo-se da necessidade

de identificar a influência schopenhaueriana no pensamento do jovem Nietzsche e

distinguí-la na filosofia que se iniciava. Apesar da influência do seu mestre, uma

originalidade se mostrava presente no jovem Nietzsche, em especial na sua primeira

obra, em que foi concebida a teoria do Uno-primordial, da qual derivaram a

metafísica de artista e a intuição como manifestação do pensamento trágico e

dionisíaco.

A demarcação apresentada no primeiro capítulo, teve como função não mais

do que esclarecer tal influência em Nietzsche, demonstrar em que consiste sua

inspiração na filosofia trágica e apresentar os fundamentos da teoria do Uno-

primordial. Ao abordar um plano originário de ordem essencial, que tem sua

manifestação no mundo das aparências, ou fenomênico, entendeu-se a influência de

Schopenhauer e sua descrição desta dicotomia entre essência e fenômeno, na

leitura de seu mestre em O mundo como vontade e como representação.

5 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 35.

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Neste capítulo a apresentação das fases ou periodização da trajetória do

filósofo, além da delimitação do campo do trabalho da presente investigação, teve

por função justificar a ausência da apresentação de terminologia e de conceitos, que

só posteriormente à primeira fase foram apresentados ou “amadurecidos” pelo

filósofo, elementos estes usuais nos estudos de seu pensamento.

Este intercurso apresentou-se como uma séria dificuldade inicial e que

acabou por configurar uma apreciação afirmativa de um filósofo perspicaz e atento

ao seu tempo; ou de uma filosofia completa em sua primeira manifestação. Este fato

foi constatado ao se estudar as fases posteriores e observar a permanente

recorrência aos seus primeiros escritos e em especial ao fenômeno dionisíaco no

nascimento e morte da tragédia.

Aquém de toda a autocrítica apresentada no posfácio de O nascimento da

tragédia, em 1886, o filósofo o reedita. Em Ecce homo, sua autobiografia filosófica

de 1888, ainda tem palavras duras sobre seu primeiro livro e, concomitantemente,

encontra relevância nesta obra para sustentar sua filosofia “amadurecida”, bem

como criticar a moral cristã e o racionalismo moderno.

As duas decisivas novidades do livro são, primeiro, a

compreensão do fenômeno dionisíaco nos gregos – oferece a

primeira psicologia dele, enxerga nele a raiz única de toda a

arte grega. Segundo, a compreensão do socratismo: Sócrates

pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução

grega, como típico décadent. ‘Racionalidade’ contra instinto. A

‘racionalidade’ a todo preço como força perigosa, solapadora

da vida! 6

6 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Reimpr.: 2001. § 1, p. 62.

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Ainda no primeiro capítulo desta investigação buscou-se definir em que

particularidade a leitura de Nietzsche se distingue da visão clássica, aristotélica, da

tragédia grega, visto que abordar o termo sem uma devida distinção implicaria uma

“devoção” acrítica ao filósofo estudado.

Constatou-se, assim, uma perspectiva não conflitante, no que tange à

descrição geral da tragédia por Aristóteles e Goethe, mas sim uma interpretação

sobre os elementos estruturais da tragédia (coro, herói trágico, platéia, máscaras,

palco entre outros). Nesses elementos, Nietzsche “introduz uma nova perspectiva

quanto às origens da tragédia, mas também repensa, com intuições

verdadeiramente originais, as relações entre a arte e a ciência, a civilização grega e

a modernidade, e sabedoria trágica e o conhecimento teórico”.7

O filósofo não percebe a trama trágica enquanto dicotomia indissolúvel ou

contradição inconciliável. Antes, a vê como uma tensão ou crise, cuja centralidade é

a ambigüidade das pulsões artísticas que, na transfiguração dos elementos trágicos,

cumpre mediante a embriaguez do poeta dionisíaco, o papel mais universal do

destino trágico, qual seja, a derrota vitoriosa, ou o alcançar a vitória na derrota. Para

o herói trágico é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer, o perecer é

tão digno quanto o nascer.8 O herói surge durante a trama, representando o princípio

de individuação apolíneo. Em seguida, cede lugar, no movimento cênico, ao

fenômeno dionisíaco, quando perece ou sucumbe tragicamente, transfigurado,

muitas vezes, em coro trágico ou no envolvimento catársico da platéia. Esta

experimenta a dor e o sofrimento do herói e é envolvida no espetáculo, acessando

diretamente, através do deus Dionísio, a dimensão da fonte primaveril, ou originária.

7 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 24. 8 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção de fragmentos póstumos por Heinz Friedrich. Trad.: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Seção 7 [128], p. 12.

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A teoria do Uno-primordial, proporciona a compreensão de dois movimentos

simultâneos do jovem Nietzsche. Ao conceber, desenvolver e apresentar a sua

metafísica de artista em O nascimento da tragédia, o filósofo faz também uma crítica

à ontologia clássica, ou seja, busca uma justificação estética para a existência e,

para tal, ataca a metafísica a partir da arte. Daí sua preponderância em valorizar a

arte mais do que a ciência e a própria filosofia. Segundo Rogério Miranda,

o que está em jogo no mundo da arte e da ciência são as

forças e as relações de forças no seu desdobrar infinito de

acerto e desacerto, de êxito e de malogro. A arte é para

Nietzsche o meio pelo qual a vida é afirmada, aceita,

metamorfoseada e transfigurada no seu excesso, na sua

fecundidade e na sua superabundância. Inversamente, a

ciência, a dialética, o conhecimento teórico e, em suma, o

socratismo se apresentam como sintomas de lassidão, de

decadência e crepúsculo. Estes revelam e disfarçam ao

mesmo tempo, as forças que negam a vida, que a condenam,

a julgam e a depreciam. 9

O Uno-primordial é, sim, uma noção ontológica, concebida a partir da

elaboração metafísica da arte e alcançada pela intuição.

O segundo capítulo teve como função analisar mais pontualmente as

semelhanças e as diferenças encontradas no principal mestre e mais influente

filósofo do primeiro Nietzsche. As aproximações da noção de vontade em

Schopenhauer para compreender o conceito do Uno-primordial em Nietzsche,

passaram pela investigação sobre a superação de um pessimismo como resignação

e negação da vida, para um pessimismo reinterpretado pelo viés trágico que resultou

9 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 64.

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em uma filosofia afirmativa da vida e oposta ao otimismo teórico encontrado na

modernidade. O otimismo teórico da ciência é considerado por Nietzsche como

decadente e incapaz de justificar a vida em sua plenitude, um erro de percurso

histórico-filosófico que Nietzsche promete corrigir de forma inaudita em Ecce homo:

Lancemos um olhar um século adiante, suponhamos que meu

atentado contra dois milênios de antinatureza e violação do

homem tenha êxito. Aquele novo partido da vida, toma em

mãos a maior das tarefas, o cultivo superior da humanidade,

incluindo a destruição implacável de todos os degenerados e

parasitários, tornará novamente possível aquela vida em

demasia sobre a Terra, da qual a condição dionisíaca

novamente surgirá. Eu prometo uma era trágica: a arte

suprema do dizer Sim à vida, a tragédia, renascerá quando a

humanidade tiver atrás de si a consciência das mais duras

porém necessárias guerras, sem sofrer com isso...10

No terceiro capítulo, à luz do esclarecimento obtido na própria pesquisa, e

assumindo a proposição de Schopenhauer e Nietzsche de que a música constitui a

mais nobre manifestação entre as artes, fez-se desta perspectiva, o escopo para

apresentar o confronto entre a metafísica de artista e a sua derrocada, personificada

na morte da tragédia associada ao socratismo teórico. A morte da tragédia grega foi

examinada a partir da expulsão da música do palco trágico, retirando da cena

dramática o deus estrangeiro, e por conseqüência, o coro. Assim o envolvimento da

multidão que outrora participava do espetáculo de forma transfigurada, passou a se

portar como mero espectador e aprendiz, consciente e socratizado.

10 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Reimpr.: 2001. p. 64-65. Grifos presentes no original.

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Por fim, no último capítulo, apresentou-se a intuição heraclitiana como

instrumento de investigação filosófica e o próprio acesso à dimensão originária e

dionisíaca. O múltiplo e o devir são apresentados neste texto como característicos

da inocência da criança ou do jogo das pulsões, que caracteriza o Uno-primordial e

o qual Nietsche propõe como restaurador da intensidade e da autenticidade perante

a vida e a existência.

No decorrer de toda a pesquisa, percebeu-se que a tensão entre as

dimensões artísticas apolínea e dionisíaca, presentes no interior da trama da

tragédia grega, em constante oposição e reconciliação, tem paralelo com a alegoria

heraclitiana da criança construindo e destruindo castelos de areia, inocentemente,

tal como deve ser o acesso intuitivo à dimensão do Uno-primordial.

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