a dialetica do conceito de democracia em o capital de karl m

10
A dialética do conceito de Democracia em O Capital de Karl Marx Carlos Batista Prado * A questão da democracia é, desde o final do século XIX, uma problemática fundamental para os estudiosos de Marx. Essa questão já foi o cerne de inúmeros debates, discussões e controvérsias entre os pensadores marxistas. Investigar o conceito de democracia no pensamento marxiano tem sido uma tarefa na qual, vários estudiosos já se arriscaram. Todavia, é interessante notar que vários autores quando questionam o conceito de democracia em Marx, desprezam a análise de O Capital, pois compreendem que sua obra magna é uma obra de Economia e que, portanto, temas pertinentes à política não estão presentes, como por exemplo, o próprio conceito de democracia. Ao buscarmos compreender o conceito de democracia em O Capital, pensamos ser necessária uma análise da esfera política a partir das determinações econômicas da produção capitalista, evidenciando que a própria constituição organizativa da política está em relação direta com a base econômica que regulamenta a produção capitalista. Assim, como os interesses políticos são sempre fundadas em interesses econômicos a própria organização política e a democracia são também determinados pelas relações econômicas. Para Marx uma compreensão mais exata e minuciosa de categorias determinantes da superestrutura política é inseparável de uma investigação precisa sobre a base econômica. O presente artigo se apóia no pressuposto de que é possível desenvolver o conceito de democracia em O Capital, seguindo o modo de exposição dialético da obra. Partindo, fundamentalmente da análise da estrutura dialética do Livro Primeiro, temos o objetivo de analisar como o conceito de democracia é exposto pela obra, ou seja, pretende-se investigar como ele é posto pelo modo de exposição dialético. Democracia na esfera da circulação de mercadorias No livro I, nas duas primeiras seções que compreendem os capítulos I a IV, Marx permanece na esfera da circulação. A exposição começa analisando a mercadoria, a forma * Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Upload: ademir-predes-jr

Post on 23-Oct-2015

8 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

A dialética do conceito de Democracia em O Capital de Karl Marx

Carlos Batista Prado*

A questão da democracia é, desde o final do século XIX, uma problemática

fundamental para os estudiosos de Marx. Essa questão já foi o cerne de inúmeros debates,

discussões e controvérsias entre os pensadores marxistas. Investigar o conceito de democracia

no pensamento marxiano tem sido uma tarefa na qual, vários estudiosos já se arriscaram.

Todavia, é interessante notar que vários autores quando questionam o conceito de democracia

em Marx, desprezam a análise de O Capital, pois compreendem que sua obra magna é uma

obra de Economia e que, portanto, temas pertinentes à política não estão presentes, como por

exemplo, o próprio conceito de democracia.

Ao buscarmos compreender o conceito de democracia em O Capital, pensamos ser

necessária uma análise da esfera política a partir das determinações econômicas da produção

capitalista, evidenciando que a própria constituição organizativa da política está em relação

direta com a base econômica que regulamenta a produção capitalista. Assim, como os

interesses políticos são sempre fundadas em interesses econômicos a própria organização

política e a democracia são também determinados pelas relações econômicas. Para Marx uma

compreensão mais exata e minuciosa de categorias determinantes da superestrutura política é

inseparável de uma investigação precisa sobre a base econômica.

O presente artigo se apóia no pressuposto de que é possível desenvolver o conceito

de democracia em O Capital, seguindo o modo de exposição dialético da obra. Partindo,

fundamentalmente da análise da estrutura dialética do Livro Primeiro, temos o objetivo de

analisar como o conceito de democracia é exposto pela obra, ou seja, pretende-se investigar

como ele é posto pelo modo de exposição dialético.

Democracia na esfera da circulação de mercadorias

No livro I, nas duas primeiras seções que compreendem os capítulos I a IV, Marx

permanece na esfera da circulação. A exposição começa analisando a mercadoria, a forma

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Page 2: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

mais imediata, mais abstrata do modo de produção capitalista.1 Por que partir da riqueza, a

categoria mais abstrata e ilusória dessa sociedade? “Trata-se de partir do modo de produção

capitalista como ele aparece para a consciência atual mais imediata e alienada, consciência

ainda adormecida pela ideologia burguesa, consciência sem nenhum desenvolvimento”

(BENOIT, 1997, p.13). Dessa maneira, a exposição se inicia pela forma mais aparente da

sociedade capitalista.2 A partir dessa forma abstrata serão introduzidos, pouco a pouco, pelo

desenvolvimento dialético da exposição os pressupostos históricos, sociais e econômicos que

compõem a sociedade capitalista.

No primeiro capítulo, a mercadoria aparece como a “riqueza” da sociedade

capitalista, como um “objeto externo ao homem”, “uma coisa”, que por meio de suas

propriedades satisfaz necessidades humanas. Assim, a mercadoria é apresentada como “valor

de uso”. No entanto, mesmo Marx permanecendo na forma mais abstrata do modo de

produção capitalista, as contradições surgem. A contradição interna da mercadoria se expressa

devido ao seu duplo caráter. Pois, a mercadoria é portadora de “valor de uso” que se

manifesta como suporte do “valor de troca”, que por sua vez é a manifestação de outro

conteúdo, o “valor”. Da contradição interna da mercadoria entre “valor de uso” e “valor”,

surge a contradição externa entre “valor de uso” e “valor de troca”. Esse antagonismo exige a

existência da forma dinheiro (que aparece como moeda e ainda não como capital), que exerce

o papel de equivalente universal de troca.

Nesse nível da exposição, o que ocorre é um aparente intercâmbio de equivalentes,

na qual a única relação econômica que surge é uma relação comercial, onde um vendedor de

uma mercadoria indeterminada se relaciona com um comprador de mercadorias. As

mercadorias aparecem como “produtos de trabalhos privados, exercidos independentemente

uns dos outros” (MARX, 1983, p. 71). O operário e o burguês não aparecem como tal, mas

apenas o proprietário da mercadoria e o proprietário do dinheiro.

1 No Prefácio da Primeira Edição, Marx salientou que: “Todo começo é difícil; isso vale para qualquer ciência. Oentendimento do capítulo I, em especial a parte que contém a análise da mercadoria, apresentará, portanto, adificuldade maior”. (1983, p. 11).2 “Marx inicia a crítica da sociedade burguesa e a exposição de seus conceitos e momentos fundamentais,tomando como ponto de partida as representações mais sensíveis e grosseiras que os agentes da produção, tantooperários quanto capitalistas, possuem sobre o próprio capitalismo. Toma como ponto de partida a opinião queambos formam sobre a riqueza da sociedade burguesa e desta, escolhe a mercadoria singular para análise ecrítica. Toma como ponto de partida, portanto, a própria temporalidade presente, imediata, cotidiana, destesagentes. Toma como ponto de partida em primeiro lugar, as representações mais sensíveis presentes naconsciência mais imediata das duas classes fundamentais da sociedade burguesa e, simultaneamente, toma comoponto de partida histórico temporal o tempo presente destes agentes.” (ANTUNES, 2005, p. 38).

Page 3: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

No processo de intercâmbio de mercadoria, a relação comercial é apresentada da

seguinte forma: M – D – M. Portanto, o dinheiro aparece apenas como o mediador dessa

relação. O fim do processo de troca aparece apenas como a satisfação da necessidade de

ambas as partes envolvidas na relação comercial, portanto, o objetivo final é o valor de uso.

Com o desenvolvimento das contradições da forma dinheiro, ele deixa de ocupar a posição de

mediador da relação de troca e se transforma em fim último do processo. A relação agora é: D

– M – D. Assim o objetivo final da relação se tornou o valor de troca.

Depois dessa conclusão, Marx se atenta para uma importante questão. Como o

dinheiro se desenvolveu e se transformou em Capital? Está problemática é investigada no

capítulo IV, “A transformação do dinheiro em capital”. Essa relação na qual o dinheiro é a

finalidade do processo só faz sentido se ao final do intercâmbio houver uma diferença

quantitativa. Assim, a fórmula é: D – M – D’. Esse aumento quantitativo do valor inicial é o

que converte o dinheiro em capital. E é justamente esse excedente que Marx chama de mais-

valia.

Uma nova questão surge, onde a mais-valia é produzida? Na esfera da circulação?

Para Marx a resposta é negativa, pois “Se forem trocados equivalentes, não nasce daí mais-

valia, e se forem trocados não-equivalentes, ainda assim também não nasce nenhuma mais-

valia. A circulação ou troca de mercadorias não cria qualquer valor” (1983, p.136). A mais-

valia não tem sua origem no mercado, na abstrata troca de equivalentes. Nessas condições,

Marx ao final do capítulo IV, faz um convite ao leitor: “Abandonemos então, junto com o

possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, essa esfera ruidosa, existente na

superfície e acessível aos olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção” (1983,

p.144).

Para desvelar os segredos da produção da mais-valia é necessário abandonar a esfera

aparente e enganosa da circulação, na qual o que reina é mais pura democracia. Segundo

Marx:A esfera da circulação ou do intercambio de mercadorias, dentro de cujos limites semovimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro édendos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade,Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de umamercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sualivre-vontade. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas comopossuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Poiscada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de simesmo. (1983, p. 145).

Na esfera da circulação todos os homens se relacionam entre si, como livres e iguais,

ou seja, os princípios essenciais da democracia é o que orienta o intercâmbio e a circulação

Page 4: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

das mercadorias. O modo de exposição se inicia ao nível mais imediato e abstrato da

sociedade capitalista. O importante a se destacar é que nesse nível da exposição, as classes

sociais estão ocultadas e aparecem na forma de proprietários livres, autônomos, independentes

e iguais que se encontram no mercado e trocam mercadorias equivalentes. As determinações

históricas da produção capitalista ainda não aparecem, estão apenas pressupostas.

Na esfera da circulação simples de mercadorias, reina a democracia, ou seja,

liberdade e igualdade entre os produtores de mercadorias. A democracia reina justamente

porque as classes estão encobertas e aparentemente não existem, estão encobertas na forma de

proprietário livres e autônomos. Neste primeiro momento da exposição, trata-se da afirmação

da democracia, é o momento positivo, a sociabilidade burguesa é tratada da maneira mais

abstrata, desprovida de conteúdo e determinações históricas.

Democracia na esfera na produção

Na seção III, é investigada “A produção da mais-valia absoluta”, no interior do

processo produtivo. As contradições, já manifestadas na esfera da circulação, não

desaparecem ou são resolvidas na esfera da produção, mas, pelo contrário, são desdobradas

em novos antagonismos. Na fábrica se encontram o trabalhador que vende sua força de

trabalho e o capitalista que a compra por um salário. No exame sobre a produção da mais-

valia absoluta, aparecem discussões como limitação da jornada de trabalho. E a voz do

operário ecoa: “Exijo a jornada normal de trabalho, porque exijo o valor de minha

mercadoria, como qualquer outro vendedor” (MARX, 1983, p. 239).

O operário luta pela regulamentação do tempo diário de trabalho e por um salário

“justo”. A consciência que no início da exposição era a mais aparente possível já sofreu

transformações e a aparente democracia, liberdade e igualdade fundamentada pela troca de

equivalentes evaporou e, o que se revela é o antagonismo entre a classe possuidora e não-

possuidora dos meios de produção. A luta dos trabalhadores nesse momento é exigir que se

aplique também nessa relação trabalho-capital, a lei de troca de equivalentes, ou seja, redução

da jornada de trabalho e um salário que corresponda ao valor da sua força de trabalho.

Nessa altura da exposição, a luta de classe é posta. No exame da mais-valia absoluta

às contradições se aprofundam. Aqui, se revela a sede vampiresca do capitalista em sugar

trabalho vivo. Surge o antagonismo entre uma classe que cria valor e outra que se apropria

desse valor, se apropria do trabalho alheio. “As contradições e a crítica começam a mostrar-se

como perpassadas pela luta histórica, a luta cujos personagens começam a tornar-se classes

Page 5: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

determinadas, classes em luta, e não meras categorias econômicas ou lógicas, não meros

possuidores individuais de mercadorias” (BENOIT, 1996, p. 29).

Se a primeira vista, se relacionavam no mercado homens livres e autônomos, agora

se relacionam trabalhador e patrão, as classes são determinadas de maneira concreta. No chão

da fábrica, trabalhador e capitalista são postos frente a frente e se revela claramente os

antagonismos entre as classes que se confrontam na produção. A exploração de uma classe

sobre a outra se revela com a investigação em torno da duração jornada de trabalho, das

péssimas condições de trabalho nas fábricas, da exploração do trabalho infantil e feminino,

etc.

Quando “A produção da mais-valia relativa” é analisada por Marx na seção IV, se

revela que o desenvolvimento das máquinas possibilitou a diminuição da jornada diária de

trabalho, mas a melhor produtividade das máquinas tem como verdadeiro objetivo apenas

melhorar a produtividade do trabalho do operário. O desenvolvimento das forças produtivas

(divisão do trabalho, cooperação, manufatura e indústria) aumenta a produtividade e a

intensidade do trabalho, mas não liberta a classe trabalhadora das relações coercitivas no

interior do processo produtivo, apenas desenvolve as contradições, aumenta a exploração e

acirra ainda mais a luta entre as classes.

Nesse segundo momento da exposição, trata-se a negação da democracia. É o

momento negativo no qual a liberdade e a igualdade que reinavam num primeiro momento

são superados dialeticamente e se convertem no seu contrário direto. A liberdade e a

igualdade deram lugar ao que Marx denomina de “despotismo de fábrica”, ou seja, na

exploração da classe trabalhadora, na não-liberdade e não-igualdade.

A noção de liberdade e igualdade entre os homens se transformou em liberdade

apenas para o capital. No interior da fábrica as classes foram reveladas e postas em luta. Ao se

revelar a extração da mais-valia, processo no qual o capitalista se apropria de trabalho alheio

não pago, as noções de troca de equivalente que garantiam a igualdade foi negada. Com os

debates acerca da duração da jornada de trabalho e sobre o valor do salário se revelou

claramente que capitalistas e proletários possuem interesses antagônicos e contraditórios. No

interior da fábrica se revelou a exploração da classe capitalista sob a classe proletária;

jornadas de trabalho extensivas, salários rebaixados, péssimas condições de trabalho, saúde

fragilizada e moradias precárias são apenas alguns exemplos.

Democracia na esfera da acumulação capitalista

Page 6: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

Na sétima seção de “O Capital”, a exposição avança para as formas mais concretas

da produção capitalista e a luta de classes revela-se em sua forma mais violenta. Na esfera da

acumulação capitalista são investigadas a reprodução simples e ampliada do capital, a

transformação da mais-valia em capital e a tendência geral da acumulação capitalista. Nesse

nível da exposição, a negação da democracia ganha formas ainda mais concretas.

Quando na seção VII, capítulos XXI e seguintes, analisam a “Reprodução Simples”,

“Transformação da Mais-Valia em Capital”, “A Lei Geral da Acumulação Capitalista” e

finalmente o processo de “Acumulação Primitiva” se revela à natureza do modo de produção

capitalista na sua totalidade, essência. A origem do capital, apesar de presente desde o

primeiro capítulo (A mercadoria), este pressuposto aparece somente ao final da exposição

como posto, somente aí se revela enquanto ex-posto. Depois de mostrar o capital na esfera da

circulação e na esfera da produção, Marx investiga a origem daquilo que estudou nos

capítulos anteriores.

Viu-se como dinheiro é transformado em capital, como por meio docapital é produzida mais-valia e da mais-valia mais capital. Aacumulação do capital, porém, pressupõe (Voraustzt)a mais-valia, amais-valia a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência demassas relativamente grandes de capital e força de trabalho nas mãosde produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto,girar num círculo vicioso, do qual só podemos sair supondo umaacumulação “primitiva” (previous accumulation em A. Smith),precedente à acumulação capitalista, uma acumulação que não éresultado do modo de produção capitalista, mas sim seu ponto departida (Ausgangspunkt). (MARX, 1984, p.261).

A última afirmativa da concepção econômica burguesa é desvendada pela

acumulação originária do Capital.3 Marx elucida a violência como ponto de partida da gênese

burguesa, ou seja, ponto de partida da formação do capital. A mercadoria e o dinheiro para

sua transformação em capital requerem certas condições materiais. As relações capitalistas

para se desenvolverem necessitam “de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e

meios de subsistência (...) do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de

trabalho” (MARX, 1984, p. 262). Mas, trabalhadores livres em que sentido? “Trabalhadores

livres no duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção, como os

3 “O paradoxo da noção de acumulação primitiva de capital consiste em que ela é uma acumulação de capital quese realiza sem o capital, é uma acumulação necessária para formar o capital. Diferente da noção de acumulaçãoprimitiva é a noção de acumulação de capital. Esta se realiza a partir da existência do capital e, por isso, o temcomo pressuposto. A acumulação de capital se realiza convertendo o resultado do capital, a mais-valia, em novocapital, se realiza a partir, portanto de um capital já formado. A acumulação primitiva de capital é a acumulaçãonecessária para formar o primeiro capital e não parte, portanto, de um capital já formado, mas, ao contrário, parteda inexistência do capital” (ANTUNES, 2005, p. 490).

Page 7: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

escravos, os servos etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como por exemplo, o

camponês economicamente autônomo” (MARX, 1984, p. 262).

O trabalhador se tornou livre e no reino da democracia e liberdade burguesa ele não

pôde mais satisfazer suas necessidades básicas, e para produzir sua vida material, passou a ser

necessário que ele vendesse a sua força de trabalho. Essa divisão da sociedade em duas

classes distintas, proprietários e não-proprietários dos meios de produção é a condição

necessária para o desenvolvimento do modo de produção capitalista.4 Era preciso que se

produzisse mão-de-obra assalariada em escala crescente, ou seja, trabalhadores desprovidos,

expropriados, alienado dos meios de produção, o camponês economicamente autônomo não

deveria mais existir. “A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o

processo histórico de separação (Sheidung) entre produtor e meio de produção. Ele aparece

como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe

corresponde” (MARX, 1984, p. 262).

A grande preocupação de Marx é, portanto, desvendar como ocorreu a separação do

trabalhador direto das condições objetivas do trabalho. O que interessa é demonstrar como o

antagonismo entre a classe burguesa e proletária se fundou historicamente. No segundo item

do capítulo XXIV, “Expropriação do povo do campo de sua base fundiária”, são descritos os

vários momentos da violenta separação do camponês aos seus meios de produção: O item

seguinte, “Legislação sanguinária”, evidencia o papel disciplinador das leis. O camponês

expropriado era açoitado e marcado a ferro para se enquadrar a nova ordem.

Ao desmascarar a violenta origem da sociedade capitalista, o último item do capítulo

XXIV, “Tendência histórica da acumulação capitalista”, aponta para o fim do modo de

produção capitalista. “O que está agora para ser expropriado já não é o trabalhador

economicamente autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores [...] Soa a

hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados” O

movimento dialético se completa. “Lá, se tratou da expropriação da massa do povo por

poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do

povo” (MARX, 1984, p. 293 - 294).

Ao investigar o processo de formação do primeiro capital, a violência aparece como

o motor da produção capitalista. Todas as ilusões de liberdade, igualdade e independência

evaporaram. A democracia que reinava na esfera do mercado foi submetida ao movimento

dialético e converteu-se em seu contrário direto. O conceito de democracia se revelou,

4 “A relação capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização dotrabalho” (MARX, 1984, p. 262).

Page 8: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

portanto, na essência em violência da luta de classes. A exposição dialética revelou que a

violência impera como o fundamento da sociedade burguesa, fundamento que já está

pressuposto desde a análise da mercadoria no primeiro capítulo, mas que só é posto enquanto

ex-posto ao final da exposição.

Considerações finais

Marx diz que o proletário é preso por fios invisíveis, o que fez a exposição dialética,

foi tornar esses fios visíveis e por as claras todos os mecanismos de dominação e exploração

que se desenvolvem na relação capital-trabalho. No Livro Primeiro de O Capital, Marx

desenvolveu minuciosamente as contradições e antagonismos inerentes ao processo de

produção do capital. Ele revelou a violência da classe capitalista exercida sobre a classe

trabalhadora e que qualquer forma de liberdade e igualdade, símbolos que são tomados de

empréstimo e apropriados pela democracia são apenas formas aparentes e ilusórias que

apagam e encobrem a luta de classes.

A exposição de O Capital revelou que, ao contrário do que afirma a literatura

pertinente ao tema, capital e democracia não estão em contradição. Enquanto boa parte das

pesquisas sobre essa problemática afirmam que o desenvolvimento e ampliação da

democracia se chocam e negam os princípios capitalistas, afirmamos o contrário. A

democracia é o regime político apropriado para a sociedade burguesa, pois a democracia tem

a faculdade de igualar todos os homens a um mesmo plano, no qual todos aparecem como

livres, iguais, independentes e autônomos e, dessa forma, a democracia legitima a dominação

do capital sob o trabalhador.

O que atualmente se costuma chamar de liberdade e igualdade é o resultado do

desenvolvimento do mercado capitalista que ao longo de séculos destruiu todos os resquícios

de qualquer modo de produção pré-capitalista, seja o feudalismo na Europa ou o modo de

produção asiático na Índia, China e em partes da América. Por toda parte do globo as forças

capitalistas destruíram todos os entraves, que impediam a liberdade dos produtores privados,

que encontra sua melhor tradução na livre circulação das mercadorias e na igualdade entre os

seus guardiões. Tal democracia, tal liberdade e igualdade são necessários e adequados ao

modo de produção capitalista, pois são fundamentos para a realização das mercadorias e

ampliação do capital.

Todo o processo de exploração e dominação do capital sobre os trabalhadores ocorre

mediado pelos princípios democráticos que regem e regulam o mercado. É a própria

democracia que possibilita e garante a reprodução do capital. Na democracia as distinções

Page 9: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

entre as classes desaparecem, pois juridicamente nenhuma classe tem poder sobre a outra. A

exploração capitalista, fundamentada por contraditórias relações sociais de trabalho

estabelecidas entre as classes possuidora e não-possuidora dos meios de produção é apagada

pela democracia.

A democracia é apenas mais uma forma fantasmagórica da sociedade capitalista,

produto de suas próprias relações de produção, cuja faculdade é apagar e distorcer a luta de

classes travada no seio da sociedade produtora de mercadorias. A democracia pode ser

entendida como mais um desenvolvimento dessas formas mistificadoras e enganadoras da

consciência. O fetiche da democracia encobre a luta de classes e faz com que a desigualdade e

exploração “passe as costas do trabalhador”, criando a ilusão de um mundo encantado no qual

a liberdade e a igualdade reinam entre os homens. A liberdade e igualdade entre os homens se

revelam mera aparência, mas trata-se de uma aparência necessária e produzida para a própria

manutenção e preservação da reprodução capitalista e, portanto, não é contraditória a

produção de mercadorias, mas imanente.

BIBLIOGRAFIA

ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado: Marx e o momento maquiaveliano.Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

ANTUNES, Jadir; BENOIT, Hector. A dialética do conceito de crise em O Capital de KarlMarx. São Paulo: Tikhé, 2008.

ANTUNES, Jadir. Da possibilidade à realidade: o desenvolvimento dialético das crises em OCapital de Marx. Campinas: Unicamp/IFCH (Tese de Doutoramento em Filosofia), 2005.

BENOIT, Hector. Pensando com (ou contra) Marx? Sobre o método dialético de O Capital.Revista Crítica Marxista, n° 08. São Paulo: Xamã, 1999, p. 81 – 92.

______. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, n° 03. São Paulo:Xamã, 1996, p. 14 – 44.

______. Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital. In: NAVARRO, Caio et. ali.Marxismo e Ciências Humanas. São Paulo: FAPESP/Cemarx/IFCH-UNICAMP, 2003.

BICCA, Luiz. Marxismo e liberdade. São Paulo: Edições Loyola, 1987.

FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política. Tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1983.

______. Marx: Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Page 10: A Dialetica Do Conceito de Democracia Em o Capital de Karl m

LÊNIN. V. I. L. O Estado e a Revolução. Tradução de Arisitides Lobo. São Paulo: Hucitec,1983.

LUKÁCS, Gyögy. Socialismo e democratização. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Rio de Janeiro: Livraria ciência e Paz, 1984.

______. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Régis Barbosa e Flávio R.Kothe. Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

______. O Capital: Crítica da Economia Política Tradução de Régis Barbosa e Flávio R.Kothe. Vol. I, Tomo 2. São, Paulo: Abril Cultural, 1984.

______. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret. 2002.

MCLELLAN, David. Karl Marx: Vida e pensamento.Tradução de Jaime A. Clasen.Petrópolis: Vozes, 1990.

OLIVEIRA, Avelino da Rosa. Marx e a liberdade. Porto Alegre: Edipucrs, 1997.

RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. Tradução de José Amaral Filho. São Paulo:Brasiliense, 1980.

______. Determinismo e indeterminismo em Marx. Revista Brasileira de Economia. nº 02.Rio de Janeiro, 1994, p. 189 – 202.

POGREBINSCHI, Thamy. O enigma da democracia em Marx. Revista Brasileira de CiênciasSociais. Vol. 22, N. 63. São Paulo, 2007.

______. Jovem Marx, nova teoria política. Dados, Vol. 49. nº 03, Rio de Janeiro, 2006.Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S001152582006000300004& script=-sci_arttext&tlng=.> Acesso: 03 de abril de 2008.

ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx.Tradução de CésarBenjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

ROSENBERG, Arthur. Democracia e socialismo. Tradução de Margaret Presser e AntonioRoberto Bertelli. São Paulo: Global editora, 1986.

TEXIER, Jacques. Revolução e democracia em Marx e Engels. Tradução de Duarte PachecoPereira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

TOGLIATTI, Palmiro. Socialismo e democracia. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Riode Janeiro: Edições Muro, 1980.

WHEEN, Francis. O Capital de Marx: uma biografia. Tradução de Sérgio Lopes. Rio deJaneiro: Zahar, 2007.