a (des)igualdade de gÊnero e o feminicÍdio: a …des)igualdade_de... · dominar totalmente a...

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www.derechoycambiosocial.com ISSN: 2224-4131 Depósito legal: 2005-5822 1 Derecho y Cambio Social A (DES)IGUALDADE DE GÊNERO E O FEMINICÍDIO: A EVOLUÇÃO SOCIOCULTURAL DA MULHER E OS REFLEXOS DA DOMINAÇÃO PATRIARCAL 1 Nariel Diotto 2 Tatiana Diel Pires 3 Raquel Buzatti Souto 4 Fecha de publicación: 02/01/2017 Sumário: Introdução. 1.- A evolução histórica do gênero “mulher”. 2.- O feminicídio: uma nova conduta delituosa. Considerações finais. Referências bibliográficas. Abstract: This article aims to make a historical review of the socio-cultural situation of women in recent decades, the way 1 Trabalho oriundo do projeto de pesquisa “Da condição sociocultural da mulher e a violência doméstica”, do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade de Cruz Alta-RS, coordenado pela Professora Raquel Buzatti Souto. 2 Graduanda em Direitona Universidade de Cruz Alta UNICRUZ. Integrante do Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - (GPJUR) da UNICRUZ, registrado no Diretório de Grupos do CNPq. Bolsista de Iniciação científica do PIBIC/UNICRUZ denominado “Da condição sociocultural da mulher e a violência doméstica”. Contato: [email protected] 3 Graduanda em Direitona Universidade de Cruz Alta UNICRUZ. Integrante dos Grupos de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - (GPJUR) da UNICRUZ, registrado no Diretório de Grupos do CNPq. Contato: [email protected] 4 Orientadora do artigo. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela UNIFRA. Mestre em Desenvolvimento, linha de pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento pela UNIJUI. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas NPJ da UNICRUZ. Líder do Grupo de Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos, Cidadania e Democracia (GPJUR) do curso de Direito da UNICRUZ. Professora do Curso de Direito da UNICRUZ. Bacharel em Direito pela UNICRUZ. Coordenadora do PIBIC intitulado: “Da condição sociocultural da mulher e a violência doméstica”. Advogada. Contato: [email protected].

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Derecho y Cambio Social

A (DES)IGUALDADE DE GÊNERO E O FEMINICÍDIO:

A EVOLUÇÃO SOCIOCULTURAL DA MULHER E OS

REFLEXOS DA DOMINAÇÃO PATRIARCAL1

Nariel Diotto2

Tatiana Diel Pires3

Raquel Buzatti Souto4

Fecha de publicación: 02/01/2017

Sumário: Introdução. 1.- A evolução histórica do gênero

“mulher”. 2.- O feminicídio: uma nova conduta delituosa.

Considerações finais. Referências bibliográficas.

Abstract: This article aims to make a historical review of the

socio-cultural situation of women in recent decades, the way

1 Trabalho oriundo do projeto de pesquisa “Da condição sociocultural da mulher e a violência

doméstica”, do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da

Universidade de Cruz Alta-RS, coordenado pela Professora Raquel Buzatti Souto.

2 Graduanda em Direitona Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. Integrante do Grupo de

Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - (GPJUR) da UNICRUZ,

registrado no Diretório de Grupos do CNPq. Bolsista de Iniciação científica do

PIBIC/UNICRUZ denominado “Da condição sociocultural da mulher e a violência

doméstica”. Contato: [email protected]

3 Graduanda em Direitona Universidade de Cruz Alta UNICRUZ. Integrante dos Grupos de

Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - (GPJUR) da UNICRUZ,

registrado no Diretório de Grupos do CNPq. Contato: [email protected]

4 Orientadora do artigo. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela UNIFRA.

Mestre em Desenvolvimento, linha de pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento pela

UNIJUI. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas – NPJ da UNICRUZ. Líder do

Grupo de Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos, Cidadania e Democracia (GPJUR) do

curso de Direito da UNICRUZ. Professora do Curso de Direito da UNICRUZ. Bacharel em

Direito pela UNICRUZ. Coordenadora do PIBIC intitulado: “Da condição sociocultural da

mulher e a violência doméstica”. Advogada. Contato: [email protected].

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they were treated in society, at work and at home, comparing

their situation earlier today. Evaluate the importance of feminist

inclined social movements and achievements of women and

acquired rights, in particular the advent of the 1988 Federal

Constitution Similarly, large, there will be an analysis of the

new law on femicide, as well as an important in the protection of

rights of women tool. Arguing that human beings are equal, with

the same rights should be provided with the same intensity,

regardless of gender.

Keywords: Femicide. The gender equality. Sociocultural

condition.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo analisar a condição social das mulheres

no mundo contemporâneo, a conquista por seu próprio espaço em meio a

uma nação comandada pela desigualdade de gênero e pelo patriarcalismo.

No passado, víamos mulheres submissas as ordens do marido, dos

pais, dos irmãos. Até mesmo na forma de vestir-se, não possuíam a

liberdade de escolher o que queriam. As moças eram educadas para ser

uma boa esposa, deveriam saber todas as tarefas domésticas. Hoje em dia,

vemos cada vez mais mulheres independentes, ganhando seu próprio

salário e se sustentando, tendo filhos sozinhas, investindo em sua carreira

profissional. A mulher de hoje é ativa e independente, tem um novo perfil.

O presente artigo irá analisar também as conquistas e garantias

alcançadas pela mulher através dos movimentos sociais e feministas, os

quais proporcionaram, juntamente com a Carta Magna de 1988, um rol de

direitos específicos às mulheres, objetivando a igualdade de gênero.

Não apenas direitos constitucionais surgiram para motivar a luta

feminina, mas também uma legislação específica que, além de garantir

direitos, é uma forma de defesa que a mulher tem contra a violência e às

diversas ações que tendem a denegrir sua imagem. Neste sentido, cita-se a

da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e também a Lei do Feminicídio (Lei

nº 13.104, de 9 de março de 2015).

É importante que a história do gênero feminino seja objeto de análise,

a fim de que através do conhecimento de sua trajetória e luta, possa haver

conscientização da sociedade quanto ao seu importante papel, a sua

condição de sujeito de direitos, garantindo a sua integridade física e

psicológica e permitindo que ela seja valorizada, respeitada e ocupe o seu

espaço, ao lado do homem e de igual importância.

1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO GÊNERO “MULHER”

Em meio ao contexto atual, tendo em vista o comportamento feminino, a

mulher, a cada dia que passa, se distancia mais do âmbito familiar e parte

para uma postura mais ativa na comunidade. Deixa de ser vista apenas

como aquela responsável pelo lar e pela família, e se torna independente,

participativa, nas diversas esferas sociais. Atualmente, as mulheres buscam

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por educação, por uma profissão, estabilidade. Ela passou a viver, lado a

lado com os homens, em situação de igualdade. Agora, empregos, cargos

eletivos, funções de direção de empresas multinacionais ou até mesmo

atividades que exijam esforços pesados, não se limitam apenas aos homens

e se estendem àquelas que, por muito tempo, permaneceram fora do

competitivo mercado de trabalho.

A igualdade entre homens e mulheres ganha cada vez mais

visibilidade. A mulher não se contenta mais com uma posição diferente ou

à margem da posição masculina, ela vem exigindo da sociedade um direito

que lhe é garantido constitucionalmente, através do diploma legal de 1988,

o direito da igualdade. Sobre os direitos fundamentais, Sarlet (2012, p.59):

[...] os direitos fundamentais constituem, para além de sua função limitativa

do poder (que, ademais, não é comum a todos os direitos), critérios de

legitimação do poder estatal e, em decorrência, da própria ordem

constitucional, na medida em que ‘o poder se justifica por e pela realização

dos direitos do homem e que a ideia de justiça é indissociável de tais

direitos’.

Portanto, os direitos fundamentais, são inerentes e essenciais a todos

os cidadãos, pois, através desses direitos, é possível alcançar o ideal de

justiça almejado pelo constituinte e imprescindível para a garantia do bem-

estar dos seus cidadãos. Neste rol de direitos fundamentais, no que

concerne à mulher e a sua condição social, é de extrema importância

destacar o direito à igualdade, que tem se tornado objeto de luta do público

feminino, principalmente por ser o direito capaz de garantir o seu lugar ao

lado do homem. Quanto ao direito de igualdade, Cunha Júnior, 2008, p.

640:

O direito à igualdade é o direito que todos têm de ser tratados igualmente na

medida em que se igualem e desigualmente na medida em que se

desigualem, quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante

as oportunidades de acesso ao bem da vida (igualdade material), pois todas

as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A exigência de

igualdade decorre do princípio constitucional da igualdade, que é um

postulado básico de democracia, pois significa que todos merecem as

mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer tipo de privilégio e

perseguição. O princípio em tela interdita tratamento desigual às pessoas

iguais e tratamento igual às pessoas desiguais.

Destarte, o direito à igualdade garante tratamento homogêneo aos

diferentes gêneros, não limitando-se neste sentido, apenas a homem e

mulher, mas a todos os cidadãos, independentemente de cor, religião, etnia,

ou os mais diversificados caracterizadores sociais. O direito a igualdade faz

de cada brasileiro, sujeito com os mesmos direitos que o seu semelhante,

sem privilégios. Contudo, apesar da igualdade ser constitucionalmente

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tutelada, na situação fática, esse direito está bem longe de ser integralmente

cumprido. A construção histórica e cultural, muitas vezes, mantém as raízes

do patriarcado, ainda não houve sua desconstrução de grande parte da

sociedade brasileira. Ao discorrer sobre o patriarcado, Petersen (1999,

p.20) ensina:

Para que o poder patriarcal se impusesse e perdurasse, foi necessário

organizar o poder paterno na família e apoiá-lo numa ideologia que

enfatizasse uma hierarquia extrema entre os sexos, legitimando o exercício

do poder masculino. Esse processo durou vários séculos e exigiu uma

transformação ideológica, política, econômica, social e até religiosa para

consolidar o poder absoluto do homem.

Pelo viés do autor supracitado, o poder patriarcal perdurou (e ainda

perdura até hoje) devido à organização do grupo familiar que, instituía ao

homem, o comando da família. Supõe-se que, esta visão do homem como

fisicamente mais forte, com tipo físico maior e, em muitos casos, menos

sensível psicologicamente que a mulher, foi preponderante para a formação

de sua imagem máscula e mais forte. Além do mais, às características

físicas da mulher e até mesmo à maternidade, pode ser atribuída a sua visão

de mais frágil, passível de dominação. Além do mais, Petersen (1999, p.34)

pontua:

A maternação das mulheres, no entendimento da autora, é central para a

divisão do trabalho por sexo e a função materna das mulheres tem

profundos efeitos nas suas vidas, na ideologia sobre elas, na reprodução da

masculinidade e desigualdade dos sexos e na reprodução de determinadas

formas de força de trabalho.

Acontece que, a partir dessa construção cultural que perdurou séculos,

onde a mulher estava numa posição de inferioridade e fragilidade em

comparação ao homem, foi se consolidando uma situação de desigualdade

entre os gêneros e, ainda nos dias de hoje, apesar das inúmeras tentativas de

inclusão social da mulher, prevalece um pensamento discriminatório e

pejorativo contra ela. Relativo ao assunto, Cruz (2003, p. 20), leciona:

Nesse sentido, entendemos a discriminação como toda e qualquer forma,

meio, instrumento ou instituição de promoção da distinção, exclusão,

restrição ou preferência baseada em critérios, como a raça. Cor da pele,

descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade,

religião, deficiência física, mental ou patogênica que tenha o propósito ou

efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de

igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos

político, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da

autonomia pública ou privada.

Por conseguinte, tendo em vista o conceito abordado acima e

considerando a raiz histórica patriarcal de opressão contra a mulher, até os

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dias atuais, prevalece a ideia de subordinação feminina, ideia esta que faz

da mulher uma das maiores vítimas da discriminação, justamente pela sua

qualidade de ser mulher. Essa discriminação, também caracterizada por

uma conduta machista, é uma das principais responsáveis pelo desrespeito,

desvalorização e marginalização da mulher. Devido ao gênero, ela é

exposta a uma das mais ignorantes formas de discriminação e desigualdade,

é lhe atribuído menos valor e importância. O que deveras, torna-se

irracional da parte humana, já que a igualdade deveria ser tratada como um

direito absoluto e, o simples fato de ser mulher não é suficiente para

classifica-la como um indivíduo inferior. Por este viés, Beauvoir (1970,

p.13):

[...]durante um tempo mais ou menos longo, uma categoria conseguiu

dominar totalmente a outra. É muitas vezes a desigualdade numérica que

confere esse privilégio: a maioria impõe sua lei à minoria ou a persegue.

Mas as mulheres não são, como os negros dos Estados Unidos ou os judeus,

uma minoria; há tantos homens quantas mulheres na terra. Não raro,

também os dois grupos em presença foram inicialmente independentes;

ignoravam-se antes ou admitiam cada qual a autonomia do outro; e foi um

acontecimento histórico que subordinou o mais fraco ao mais forte: a

diáspora judaica, a introdução da escravidão na América, as conquistas

coloniais são fatos precisos[...].

Ratificando o exposto pela autora e, ciente da ideia histórica de

dominação de um grupo de maior número sobre outro menor, observa-se

que a mulher é comparada a autora pelos grupos de judeus e negros, que

historicamente, foram duas minorias perseguidas e discriminadas devido a

sua distinção étnica e racial. Igualmente a mulher foi discriminada em

virtude das suas particularidades, o que acarretou na sua condição de

subordinação, a exemplo de outras minorias.

Contudo, essa categorização da mulher, como minoria, é ainda mais

inaplicável e inconveniente que os grupos descritos anteriormente já que, se

forem analisados os números, nota-se que a mulher está em um número que

não pode ser considerado inferior. A tentativa de dominação da maioria em

face da minoria, não seria capaz de ser aplicada à mulher, já que esta

permanece em igual número, ou até mesmo maior que o sexo masculino.

Segundo a autora, neste caso, o feminino não pode ser considerado uma

minoria e nem poderia ser um grupo dominado por este motivo.

Entretanto, é inegável que até os dias atuais, permanece essa tentativa

de dominação do masculino em face do feminino. E o fator gênero “sexo

frágil”, relacionado a mulher, é o grande responsável por difundir esse

pensamento. Pires e Ferraz (2008, p.26) acrescentam:

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O conceito de gênero refere que, como se nasce e se vive em tempos,

lugares e circunstâncias específicos, existem muitas e conflitantes formas de

definir e viver a feminilidade e masculinidade. Assim, noções essencialistas

universais e históricas de homem e mulher – no singular – passam a ser

consideradas simplistas e contestadas.

Ou seja, foi a partir das transformações sociais e dos contextos

diferentes nos quais as mulheres passaram a ser inseridas, que houve um

ganho maior de espaço e a perda de grande parcela do patriarcalismo

dominante, que durante toda a história foi o principal responsável pela

opressão e submissão do gênero feminino.

Nada obstante, o instinto humano de libertar-se e ocupar o seu espaço

em meio a sociedade, floresceu de maneira cada vez mais comum. Nesse

sentido, Cisne (2014, p. 16):

O movimento feminista ao longo de sua história trouxe à tona discussões e

lutas que, obviamente estavam ligadas aos interesses das mulheres, mas que

também confrontavam diretamente o capital. Destacamos especialmente a

contestação à propriedade privada e à família nuclear burguesa e

monogâmica, condicionalidades fundamentais para a sustentabilidade do

capitalismo. Além disso, ressaltamos a denúncia à apropriação do corpo da

mulher e à exploração da força de trabalho feminina, tano na esfera

produtiva, como reprodutiva.

A luta do feminismo e transformação da condição sociocultural da

mulher não foi importante apenas para a garantia de seus direitos

individuais, como cidadã. Todo esse rol de conquistas advindo da busca da

igualdade de gênero ocasionou na transformação da própria sociedade que,

em razão dessas mudanças, lentas mas relevantes, foram capazes de

modificar o próprio sistema econômico. Principalmente pelo fato de

inclusão da mulher no mercado de trabalho e da desmistificação de “dona

do lar”, que partiu do limite do núcleo familiar para a exploração de sua

força de trabalho.

Clamando pela igualdade de gênero e buscando o reconhecimento da

mulher como cidadã, com direitos iguais aos dos homens, surgiram vários

movimentos, não apenas representados por mulheres, mas também por

homens que aderiram este ideal. Estes movimentos existem até hoje, e

levantam a bandeira conhecida como “feminismo”. Em relação a esses

movimentos, Gorczevski e Martin (2011, p. 202), aponta que:

No Brasil, o movimento feminista pode ser dividido em dois momentos. O

primeiro, vai do final do séc. XIX ao ano de 1932, quando as mulheres, com

quase um século de atraso em relação aos homens, adquirem direitos políticos. É denominado de “bem comportado”, uma vez que não

questionava a opressão da mulher; buscava unicamente sua inclusão na

cidadania, não havendo o desejo de alterar-se as relações de gênero. O

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segundo, inicia a partir de 1968 e compreende os dias atuais. Reúne

militantes de várias correntes e pensamentos políticos – anarquistas,

intelectuais, líderes operárias – e, além da participação política, defendem o

direito à educação, discutem a dominação masculina e abordam temas

delicados, como a questão da sexualidade, do divórcio e, mais recentemente,

do aborto. Por estas razões é denominado de ‘mal comportado”.

Como leciona o autor supracitado, o feminismo surgiu como um

movimento tímido, inicialmente caracterizado pela busca dos direitos

políticos, não se questionava ainda a subordinação da mulher e nem a

opressão que sofria pela sociedade. Porém, após a aquisição dos direitos

políticos e em virtude da maior participação social da mulher, outros

direitos começaram a pautar a luta deste movimento. A mulher passou a

buscar por direitos iguais, pela liberdade do seu corpo. O movimento

ganhou novos propósitos, assim como novos adeptos. Complementando o

exposto, Cisne (2014, p.17):

A relevância do feminismo ganha maior visibilidade quando

compreendemos que as mulheres são, segundo Mészáros (2002), 70% dos

pobres do mundo. São também as maiores vítimas da precarização do

trabalho e das políticas públicas. São elas que enfrentam as filas de

madrugada nos hospitais públicos para levarem seus (suas) filhos (as), bem

como em busca de vagas nas escolas; são muitas delas que não chegam à

previdência, seja por serem as que mais se encontram na informalidade, nos

empregos mais precarizados sem direitos trabalhistas assegurados, ou até

mesmo por não terem sequer as suas documentações, especialmente as

rurais; são elas que estão no cotidiano da assistência social buscando a

garantia mínima das condições de sobrevivência da sua família.

Juntamente com a construção de uma nova postura, de uma nova

condição, pode-se afirmar que também houve uma desconstrução. Ao

mesmo tempo que a mulher ganhava espaço e liberdade, também

continuava com as suas responsabilidades de dona do lar e da casa. Ao

mesmo tempo que surgia a profissional bem-sucedida, não se perdia a as

tarefas de mãe, de esposa. A mulher ganhou espaço, novos hábitos, novos

horizontes. Mas continuou sendo, ainda, aquela responsável pela tutela da

família, pelo cuidado com os afazeres domésticos. Assim como ocorreu a

aquisição de maiores direitos, também houve a aquisição de uma maior

gama de deveres. Nesse contexto, surgiu uma nova mulher, due deve

dividir-se em uma infinidade de tarefas cotidianas e deve ser capaz de

cumpri-las com o maior zelo possível.

Adaptando-se a esse novo padrão social, originou-se a Constituição

Federal de 1988, que permitiu maior liberdade a todas as esferas e grupos

sociais, não apenas ao grupo objeto deste estudo. Hoje, este diploma

garante vários direitos, principalmente o já mencionado e deveras utópico,

direito à igualdade. Porém, apesar desta garantia legal já estar expressa,

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existem ainda outros empecilhos que não permitem a sua total efetividade.

Desta forma, conforme comenta Bobbio (1992, p. 25):

[...] o problema grave do nosso tempo, com relação aos direitos do homem,

não era mais fundamentá-los, e sim protegê-los. [...]. Não se trata mais de

saber quais e quantos são esses direitos, naturais ou históricos, absolutos

relativos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los, para impedir

que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

Corroborando este pensamento, observa-se que, após a promulgação

da carta magna, não apenas a mulher, mas todos os cidadãos brasileiros,

dispõem de um grande rol de direitos. O grande problema deixou de ser

“possuir determinados direitos”, e passou a ser “alcançar a sua efetivação”.

A exemplo das mulheres, que ainda sofrem discriminações referentes ao

seu gênero e condição feminina, percebe-se que o país ainda está muito

longe de atingir a consolidação das garantias previstas na carta magna. Não

há programas ou políticas públicas suficientes e capazes de tornar a

legislação algo prático, que saia das linhas expressas no ordenamento e

atinja o cotidiano da sociedade.

Sobre os diplomas legais brasileiros, é importante destacar, conforme

o Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Cfemea (2006, p.11):

Inicialmente é importante resgatar o papel da legislação na sociedade. A

legislação,principalmente a legislação federal, nos diz sobre os acordos de

uma sociedade consigomesma, regulando as relações, as instituições e os

processos sociais. Por um lado, resguardaos direitos individuais e coletivos

frente ao Estado e aos demais indivíduos e instituições;por outro,

compromete o Estado com a garantia de direitos, estipulando suas

obrigações e responsabilidades.

A carta magna brasileira, ao dispor de direitos e garantias

fundamentais, deve buscar meios para cumpri-los, pois, é um compromisso

que o Estado assume com os seus cidadãos. Essa é a principal função das

leis, é ser um ideal buscado não apenas pelo Estado, mas por toda a

sociedade. Possuir uma lei é ter objetivos, é ter direitos a tutelar, garantindo

assim boas condições de vida para toda a sociedade.

Portanto, reconhecer os direitos dos brasileiros e abrangê-lostambém

para as mulheres, que, durante muito tempo foram esquecidas, foi um passo

importante para o constituinte no diploma de 1988. Ainda nesse aspecto, o

Cfemea (2006, p.12):

A CF/88 foi um marco na conquista dos direitos das mulheres. Este

instrumento expressaa conquista fundamental da igualdade de direitos e de

deveres entre homens e mulheres (art.5º, I), até então, inexistente no ordenamento jurídico brasileiro. A nova Constituição,denominada

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Constituição Cidadã, aprofunda e cria novos direitos para os sujeitos, e

novasobrigações do Estado para com os indivíduos e a coletividade.

[...]

Quanto aos direitos das mulheres, a CF/88 foi um marco, pela consideração

de homense mulheres iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I). A

Constituição acolheu a amplamaioria das demandas dos movimentos de

mulheres e é uma das mais avançadas no mundo.A partir de então,

legislação regulamentando direitos constitucionais e criando e

ampliandodireitos vem sendo aprovada, como será visto nos itens

subsequentes.

Importante salientar que, o diploma legal brasileiro possui um rol

exemplificativo de direitos, e não taxativo. Isso significa que, outros

direitos podem vir a surgir no decorrer do tempo, em conformidade com as

transformações da sociedade e as necessidades do cidadão. Diante do

exposto, imprescindível reconhecer os direitos atribuídos também à mulher.

Conforme o Cfemea (2006, p.17):

A CF/88 garante a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante

incentivos específicos (art. 7º, XX), prevendo legislação própria. Embora

existam legislações de apoio e proteção ao trabalho das mulheres, há uma

lacuna sobre a regulamentação de incentivos específicos, que por sua vez, é

uma questão polêmica. A criação de incentivos fiscais paraempresas que

apoiem o trabalho das mulheres precisa ser bem avaliada em sua efetividade

e impacto sobre o mercado de trabalho.

[...]

A CF/88 proibiu a diferença de salários, de exercício de funções e de

critério de admissãopor motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7º,

XXX e CLT/1943, art. 5º). Devido à grande discriminação e abusos

cometidos contra as mulheres no mercado de trabalho, Legislação posterior

proibiu a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outraspráticas

discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação

jurídicade trabalho (Lei 9.029/1995). Posteriormente, foi sancionada

legislação inserindo regrassobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho

na CLT (Lei 9.799/1999).

Findas estas considerações, observa-se que, o legislador preocupou-se

em ampliar o espaço da mulher, foi uma resposta aos anseios dos grupos e

movimentos feministas que, durante anos, vieram construindo um novo

perfil da mulher brasileira. Por esta razão, ainda, ela pode ser inserida

igualmente ao homem no mercado de trabalho, sendo-lhe garantidos

direitos em conformidade com as suas necessidades, destacando-se neste

caso, o salário maternidade.

Outrossim, no que se trata aos direitos de igualdade, o constituinte

também preocupou-se em definir critérios para que a mulher e o homem

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fossem tratados sem diferenças de gênero, considerando também o

princípio da isonomia. Atente-se que, foram construídas ferramentas para

que seja oportunizado à mulher (e a toda a sociedade) a tão almejada

igualdade de gênero.

Entretanto, não pode ser esquecido o fato de que a opressão ainda

persiste. Apesar das grandes conquistas, ainda há uma parcela que acredita

na subordinação feminina, na inferioridade. Ainda está bastante presente a

ideia de patriarcalismo. E muito pior que isso, é o fato de que, em razão da

crença da inferioridade feminina, surgiu a vergonhosa questão da violência

de gênero.

Qualquer tipo de violência é inadmissível. Qualquer forma de

opressão é digna de repúdio. E a violência contra a mulher se mostra de

variadas formas, sejam elas ofensas morais, ou contra sua integridade

física. A mulher é uma das maiores vítimas da violência, que, muitas vezes,

está dentro de sua casa, originária de seu próprio companheiro. Dessa

forma, Eluf (2007, p. 231):

As mulheres brasileiras ainda não podem dormir tranquilas, porque

resquícios de opressão ainda persistem, mas nada do que foi feito até hoje

resultou em vão. Houve grandes progressos, não apenas em relação à

impunidade de assassinos de mulheres, mas também quanto à impunidade

de criminosos em geral.

De certa forma, é inimaginável pensar que uma sociedade necessite de

uma lei específica para garantir a proteção de suas mulheres, porque a

desigualdade de gênero ainda persiste e uma de suas piores manifestações é

a violência física. Mas essa realidade se torna mais presente a cada notícia

de um assassinato cometido em virtude do sentimento de posse que o

homem possui em face da mulher. Apenas a Constituição Federal não foi

suficiente para garantir a tutela dos seus direitos. O legislador precisou ir

ainda mais além, criando uma lei específica que fosse capaz de possibilitar

maior proteção à mulher moderna. Mas infelizmente, antes disso, muitas

mulheres perderam suas vidas e em muitos casos prevaleceu a impunidade.

Para suprir a lacuna da legislação (ou ao menos diminuir a violência

advinda desta lacuna), foi criada a Lei nº 11.340/06, também conhecida

como Lei Maria da Penha. Desta forma, Lopes (2013), sobre o assunto,

leciona:

Em setembro de 2006 a Lei 11.340/06 finalmente entra em vigor, fazendo

com que a violência contra a mulher deixe de ser tratada como um crime de

menor potencial ofensivo. A lei também acaba com as penas pagas em

cestas básicas ou multas, além de englobar, além da violência física e

sexual, também a violência psicológica, a violência patrimonial e o assédio

moral.

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[...]

A Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006 veio com a proposta de minimizar a

violência praticada principalmente por homens, contra mulheres com quem

mantém vínculos de natureza afetiva. Sua intenção é garantir uma proteção

integral e por esse motivo, criou mecanismos mais rígidos baseando-se em

fundamentos previstos no ordenamento jurídico internacional e na

Constituição Federal de 1988.

A promulgação da Lei Maria da Penha permitiu uma proteção mais

rápida nos casos de violência familiar e doméstica. Trouxe a possibilidade

da medida protetiva que, em síntese, pode afastar o agressor de sua casa em

48 horas. Outra inovação desta lei é o atendimento especializado à vítima

que, além de receber tratamento médico gratuito, pode participar de

programas de assistência financeira mantidos pelo governo.

Ainda existem hoje, mulheres marginalizadas, trabalhando

informalmente ou vivendo à sombra do homem, que age como seu dono,

rotuladas de “sexo frágil”, menosprezadas profissionalmente em razão do

gênero, submissas e vivendo em situação de extrema violência, ignoradas

no mercado de trabalho devido à insistente e histórica discriminação de

gênero, desvalorizadas em relação ao que vestem e, pior de tudo,

cruelmente assassinadas em virtude da sua condição de “ser mulher”.

Em razão da extrema situação de violência que muitas mulheres estão

inseridas, tornou-se essencial que a legislação evoluísse ainda mais,

punindo de maneira mais severa aqueles que cometessem o crime de

homícidio contra a mulher. Desta forma, complementando a legislação já

vigente, e melhorando o quadro da mulher no contexto social

contemporâneo brasileiro, surge a lei conhecida como Lei do Feminicídio,

que será exposta a seguir.

2. O FEMINICÍDIO: UMA NOVA CONDUTA DELITUOSA

Entre as maiores lutas vivenciadas no século atual, destaca-se a luta contra

o preconceito e a violência derivada dele e, em especial, a que diz respeito

ao sexo feminino. Por muito tempo as mulheres foram vistas como sexo

inferior, incapazes de realizar funções da mesma maneira que os homens e

nascidas com “vocação” para trabalho doméstico. Por essa razão, o

machismo gerou sentimentos e atitudes violentas contra as mulheres e a

violência doméstica passou a ser comum, porém pouco relatada. Nesse

sentido, Mello (2015, p.2) relata:

Em termos estatísticos, o assassinato de mulheres talvez seja o crime menos

revelado nas ocorrências policiais e um dos crimes mais subnotificados. Não se registram adequadamente as circunstancias do crime quando este ocorre

no âmbito das relações afetivas entre companheiros/cônjuges.

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Diante desse contexto, tornou-se necessário dispensar maior atenção à

esses casos e a figura feminina foi ganhando espaço e proteção na

sociedade. Assim, no ano de 2006 foi publicada a lei n° 11.340

popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha” estabelecendo

mecanismo para impedir e punir a violência doméstica, como também

oferecer assistência às vítimas. Tal lei ajudou nas denúncias e na

diminuição da violência, o tema passou a ser mais debatido e mais

denunciado.

Contudo, apesar disso, os índices de homicídios de mulheres

continuaram aumentando. O Mapa da Violência 2015 revela que entre 1980

e 2013, 106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato. De 2003 a 2013,

o número de vítimas do sexo feminino cresceu de 3.937 para 4.762, ou seja,

mais de 21% na década. Em 2013, o país passa para a 5ª posição com uma

taxa de 4,8 homicídios de mulheres a cada 100 mil. Um aumento de 9% no

número de assassinatos registrados. Em 2010, ocupava a 7ª posição no

ranking com uma taxa de 4,4 (MELLO, 2011, p.24).

Em face desses fatores, foi proposta no congresso a lei n° 13.104, Lei

do Feminicídio, e no dia nove de março de 2015 foi sancionada pela

Presidente Dilma Rousseff.

Entende-se por feminicídio o assassinato misógino5 de mulheres por

homens (Radford e Russell, 1992). Nesse sentido, cabe ressaltar que

feminicídio é a expressão máxima da violência contra a mulher através do

óbito. Mortes que decorrem exclusivamente por questões de gênero, ou

seja, morte de uma mulher por razões de discriminação ou menosprezo à

condição de sexo feminino.

A importância da tipificação desta conduta está intimamente ligada ao

fato de que cada vez mais mulheres brasileiras são vítimas de violência

doméstica, sexual e por questões de gênero.

O tipo penal “matar alguém” no art. 121 do Código Penal brasileiro

corresponde ao crime de homicídio, conduta ilícita para o Estado

Democrático de Direito. A palavra feminicídio, resulta da junção das

palavras feminino que corresponde ao gênero, e homicídio, tipo penal.

A violência de gênero se perpetua nas formas mais iniciais como, por

exemplo, xingamentos e demais formas de violência psicológica, até as

formas mais brutais como a agressão física que, muitas vezes, culmina na

5 Palavra composta do grego (misó: odeio, detesto e gine: mulher.) Por tanto aquele que odeia,

ou detesta as mulheres em amplo aspecto e não somente no sentido sexual.

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expressão máxima da violência: a morte da vítima, que vem a ser o

chamado feminicídio. O trecho abaixo ilustra a abrangência da definição:

Femicídio está no ponto mais extremo do contínuo de terror anti-feminino

que inclui uma vasta gama de abusos verbais e físicos, tais como estupro,

tortura, escravização sexual (particularmente a prostituição), abuso sexual

infantil incestuoso e extra-familiar, espancamento físico e emocional,

assédio sexual (ao telefone, na rua, no escritório e na sala de aula),

mutilação genital (cliterodectomia, excisão, infibulações), operações

ginecológicas desnecessárias, heterossexualidade forçada, esterilização

forçada, maternidade forçada (ao criminalizar a contracepção e o aborto),

psicocirurgia, privação de comida para mulheres em algumas culturas,

cirurgias cosméticas e outras mutilações em nome do embelezamento. Onde

quer que estas formas de terrorismo resultem em mortes, elas se tornam

femicídios (Russel e Caputti, 1992:2).

Trata-se de expressão perversa de um tipo de dominação masculina

ainda fortemente cravada na cultura brasileira, um crime do patriarcado que

se sustenta no controle do corpo, da vontade e da capacidade punitiva sobre

as mulheres, pelos homens. É um crime bárbaro movido pelos sentimentos

de ódio e desprezo.

Conforme os ensinamentos de Reis (2015), o delito em estudo pode

ocorrer em diferentes modalidades. Entre as principais, destacam-se:

Feminicídio íntimo que são os crimes cometidos por homens com os quais

a vítima tem ou teve uma relação íntima, familiar, de convivência, tais

como maridos, companheiros, namorados, ex-namorados; Feminicídio não

íntimo são aqueles cometidos por homens com os quais a vítima não tinha

relações íntimas, mas onde havia uma relação de confiança, hierarquia ou

amizade, tais como amigos ou colegas de trabalho, trabalhadores da saúde e

empregadores; Feminicídio por conexão são aqueles em que as mulheres

foram assassinadas porque se encontravam na “linha de fogo” de um

homem que tentava matar outra mulher. Independe do tipo de vínculo entre

a vítima e o agressor.

Contudo, apesar de se buscar uma diferenciação entre os tipos de

feminicídio e suas motivações, é possível compreender ao fim, que

praticamente todas as mortes de mulheres sejam classificadas como

feminicídio, exceto aquelas que decorrem, por exemplo, de crimes contra o

patrimônio e acidentes, onde a mulher encontra-se em situação de vitima,

porém não, por questões de gênero.

Além do mais, é possível verificar que a maior parte dos crimes

analisados em diversos países corresponde ao feminicídio íntimo, ou seja,

quando o agressor é um homem intimamente ligado a vítima. O Instituto de

PesquisaEconômicaAplicada (IPEA), diz que umamulher é agredida e

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morta a cadauma hora e meia no Brasil e um terço dos crimes

acontecedentro de casa. Corroborando o exposto segue julgado do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul:

Ementa: HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. HOMICÍDIO

QUALIFICADO. FEMINICÍDIO. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE

HOMOLOGADO COM CONVERSÃO DA PRISÃO EM PREVENTIVA

PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. DECRETO

SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO. FUMUS COMISSI DELICTI

BEM EVIDENCIADO NO CASO CONCRETO.PERICULUM

LIBERTATIS DEMONSTRADO NA GRAVIDADE CONCRETA DO

FATO. PACIENTE ACUSADO DE MATAR SUA COMPANHEIRA

MEDIANTE GOLPES DE FACAS NO TÓRAX E NO PESCOÇO,

SENDO DETIDO EM FLAGRANTE COM MANCHAS DE SANGUE NO

CORPO, PRÓXIMO AO CADÁVER DA VÍTIMA. PRISÃO QUE SE

REVELA MEDIDA ADEQUADA, NECESSÁRIA E PROPORCIONAL

NO CASO CONCRETO, APESAR DAS CONDIÇÕES PESSOAIS

FAVORÁVEIS INVOCADAS. AUSÊNCIA DE COAÇÃO ILEGAL.

PRISÃO MANTIDA. Ordem denegada. (Habeas Corpus Nº 70065110116,

Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista

Marques Tovo, Julgado em 02/07/2015) (grifou-se).

A pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em

2013, também ratifica que o feminicídio íntimo é o que mais causa vítimas,

pois indicou que, a nível mundial, mais de 38% de todas as mortes

violentas de mulheres eram cometidas por um companheiro íntimo6.A lei

que tipificou o feminicídio entrou em vigor, no dia 10 de março de 2015, o

Brasil foi o 16º país da América Latina a prever tal figura.

A referida lei criou como modalidade de homicídio qualificado, o

feminicídio, aquele que ocorre quando uma mulher é morta por razões de

sua condição de sexo feminino. A nova lei acrescentou ao § 2ºuma

explicação do termo "razões da condição de sexo feminino", o qual

ocorrerá em duas hipóteses: a primeira no caso de violência doméstica e

familiar, e a segunda, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

A lei acrescentou ainda o § 7º ao art. 121 do Código Penal estabelecendo

causas de aumento de pena para o crime de feminicídio. A pena será

aumentada de 1/3 até a metade se for praticado durante a gravidez ou nos 3

meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60

anos ou com deficiência e na presença de ascendente ou descendente da

vítima.

Portanto, atribui-se ao feminicídio a expressão máxima da violência

contra a mulher, pois a mesma abrange uma ampla gama de atos, oriundos

6 OMS, Estimativas mundiais e regionais da violência contra mulheres: prevalência e efeitos

na saúde da violência doméstica e sexual, versão integral em inglês, p. 26.

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desde a agressão verbal e outras formas de abuso emocional, até a violência

física ou sexual. Nesse sentido, para cessar, ou ao menos diminuir, esta

infundada violência, Machado (2013), ensina:

Defender a igualdade entre os homens e as mulheres, ou os meninos e as

meninas, é tão importante como combater a violência doméstica, ou

capacitar populações de baixa renda. Ensinar que os direitos deverão ser

iguais, assim como as oportunidades e o desempenho, são temas

obrigatórios a par de muitos outros ensinamentos curriculares.

Enfim, o que falta é a consciência do papel da mulher, falta respeito e

consideração, pensamento de igualdade, evoluir no ritmo da sociedade e no

ritmo em que a mulher evoluiu. Há muito tempo ela deixou de ser aquela

que esperava seu marido com a casa limpa, filhos de banho tomado e

comida na mesa. A mulher de hoje, deseja muito mais, possui ambições. E

por essa coragem de mudar, de buscar o seu espaço, ela merece respeito,

consideração e conhecimento. A submissão, com toda a certeza, ficou no

passado. No mesmo lugar em que um dia, deverão ficar, o machismo,

discriminação e violencia doméstica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que, apesar da existência de uma legislação específica e da

crescente construção de políticas públicas em prol da proteção da

integridade da mulher, a igualdade de gênero não acontece. Isso é visível

em cada prática de violência contra a mulher, percebida das mais variadas

formas, seja agressão, intimidação, violência sexual, ou patrimonial, todas

elas em virtude do seu gênero. E para piorar, em muitos casos um diploma

legal que conscientiza e também pune não é suficiente para parar o agressor

já que, ainda se sobressai uma ideia de impunidade em relação a justiça

brasileira.

Uma solução para os casos de violência doméstica e discriminação de

gênero, em curto prazo, é inviável, já que necessita de todo um trabalho de

reconstrução da imagem e da condição da mulher. A lei, que também deve

ter o intuito de educar, de criar formas de prevenção, é mais eficiente em

punir. E os dados, hoje considerados alarmantes, ainda não podem ser

considerados reais, já que, na maioria dos casos, ainda há omissão. A

mulher tem vergonha de confessar que é agredida, ou tem medo, seja pela

própria vida ou pela vida dos filhos.

Desta forma, torna-se essencial a construção de uma nova definição da

imagem da mulher: forte, independente, dona de si, livre. A mulher

mostrou toda a sua determinação na conquista de seus direitos e na

ampliação do seu espaço na sociedade. Porém, quando é vítima da

violência ou mesmo da desigualdade de gênero, que a inferioriza a um

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patamar que não deve ser seu, pode ficar fragilizada ao sofrer uma

discriminação inadmissível nos dias de hoje.

Apesar de todas as conquistas, o gênero feminino ainda é

menosprezado. Não há igualdade, muito menos respeito. Por isso que é

importante a educação, a conscientização. Um trabalho a longo prazo, mas

essencial para que sejam diminuídas as vítimas de violência e seja dado o

devido valor que uma mulher merece. Outrossim, se a educação e a

conscientização ainda não forem suficientes, o ordenamento jurídico se fará

presente, punindo severamente quem denegrir a integridade física e

psicológica da mulher.

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