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MOVENDO Idéias - ARTIGOS A CULTURA EM TEMPOS DE 500 ANOS DO BRASIL: A mBRIDIZAÇÃO CULTURAL A cultura, na contemporaneidade, num mo- mento de economia globalizada, de culturas mundializadas - para Renato Ortiz, de "mundialidade"- e de rápidos avanços tecnológicos em que "o homem-sujeito se vê frente a complexas alterações em seu cotidiano, sendo forçado a buscar novas soluções para a sua existência, modificando hábitos e costumes, está sendo compreendida como a mediadora de todo o processo da comunicação. E, por que não uma comunicação pós-moderna? Nesse contexto, como pensá-Ia no Brasil ao comple- tar 500 anos de seu descobrimento? Buscando, primeiramente, um dos mais antigos conceitos de cultura, criado por Taylor (1871), que a define como um "complexo total de conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da soei- edade'" . Nessa direção, a cultura passa a ter inú- meros significados como por exemplo os que dizem ser parte do ambiente feita pelo homem, herança, tradição social, um modo particular como as pessoas se adaptam ao seu ambiente ... a resposta dos homens às suas necessidades básicas, o modo de vida de um povo, o ambien- te que os seres humanos, ao ocuparem um terri- tório comum, criam em forma de idéias, institui- CENIRA ALMEIDA SAMPAIO Bacharel em Comunicação Social - Habilitações em Jornalismo e Publicidade e Propaganda, pela UFPa., Mestre em Adminis- tração e Comunicação Rural, pela UFPe., Professora da Uni- versidade da Arnazônia-Unama, disciplina Teoria e Técnica de Comunicação Comunitária ções, linguagens, instrumentos, serviços e senti- mentos. Todo esse conjunto de conceitos trazi- dos pelos estudiosos da cultura nos ajudam a admitir como a cultura é complexa. Frente a essa complexidade, como pensar a cultura dos brasileiros nessas cinco centenas de anos? Con- siderando que o homem, ao nascer, traz consigo a cultura como herança e começa a receber uma série de influências, a maneira de se alimentar, de se vestir, de falar, de se integrar na sociedade e o papel que exerce nessa mesma sociedade. Como se configura o passado colonial em que se encontram os traços fundamentais que vêm caracterizar a cultura dos brasileiros? Como pensar a transplantação cultural, a alienação e, ao longo do tempo, a implantação de um violen- to processo de dependência cultural? Referin- do-se ao passado colonial do Brasil, diz Paulo Freire que "sem direitos cívicos, o povo foi mar- ginalizado,irremediavelmente impedido de qual- quer experiência de auto governo ou diálogo ... predominantemente marcado pela submissão. O povo se ajustou a uma estrutura de vida rigida- mente autoritária,a qual formou e fortaleceu uma mentalidade antidemocrática. Freire ressalta a Cultura do silêncio cujo marco de referência para a sua análise do conceito, passa a ser o da teo- ria da dependência que se encontrava em voga na América latina nos anos sessenta" . 2 I FERREIRA, Maria de Nazaré. Cultura Brasileira. In: MELO, José Maria Marques de; FADUL, Anamaria; SILVA, C.E.L.da. Ideologia I:; Poder do ensino da comunicação. Contex& Moares - São Paulo-SP, 1989. Intercom. P.258 1 O autor explica que desde a conquista, a América Latina é uma terra subjugada. Sua colonização consistiu numa transplantação promovida pelos invasores. Sua população foi esmagada; sua economia se baseava no trabalho escravo (sobretudo dos negros trazidos da África como objetos); era dependente dos mercados externos, estando geralmente sujeita a crises cíclicas. Suas estruturas econômicas, deformadas desde o começo para beneficiar os conquistadores, estavam baseadas em recursos naturais sistematicamente explorados e enviados para os mercados europeus. O controle econômico- social, político e cultural exercido pelas metrópoles- Espanha e Portugal- moldou o caráter agrário e exportador das sociedades latino-americanas, sujeitas a uma oligarquia rural, sempre dependentes de interesses externos. Tudo isso superposto ao povo, encarado como uma massa de nativos (termo dado, sempre no sentido pejorativo) que havia se originado das misturas raciais resultantes da miscigenação. O tipo predominante de dominação econômica determinou uma cultura de dominação que, uma vez, internalizada, condicionada o comportamento submisso. Movendo Idéias, Be lérn , v. 5, n. 7, p34- 38 ,jun. 2000

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MOVENDO Idéias -ARTIGOS

A CULTURA EM TEMPOS DE 500 ANOS DO BRASIL:A mBRIDIZAÇÃO CULTURAL

A cultura, na contemporaneidade, num mo-mento de economia globalizada, de culturasmundializadas - para Renato Ortiz, de"mundialidade"- e de rápidos avançostecnológicos em que "o homem-sujeito se vêfrente a complexas alterações em seu cotidiano,sendo forçado a buscar novas soluções para asua existência, modificando hábitos e costumes,está sendo compreendida como a mediadora detodo o processo da comunicação. E, por quenão uma comunicação pós-moderna? Nessecontexto, como pensá-Ia no Brasil ao comple-tar 500 anos de seu descobrimento?

Buscando, primeiramente, um dos maisantigos conceitos de cultura, criado por Taylor(1871), que a define como um "complexo totalde conhecimentos, crenças, artes, moral, leis,costumes e quaisquer outras aptidões e hábitosadquiridos pelo homem como membro da soei-edade'" .

Nessa direção, a cultura passa a ter inú-meros significados como por exemplo os quedizem ser parte do ambiente feita pelo homem,herança, tradição social, um modo particularcomo as pessoas se adaptam ao seu ambiente ...a resposta dos homens às suas necessidadesbásicas, o modo de vida de um povo, o ambien-te que os seres humanos, ao ocuparem um terri-tório comum, criam em forma de idéias, institui-

CENIRA ALMEIDA SAMPAIOBacharel em Comunicação Social - Habilitações em Jornalismoe Publicidade e Propaganda, pela UFPa., Mestre em Adminis-tração e Comunicação Rural, pela UFPe., Professora da Uni-versidade da Arnazônia-Unama, disciplina Teoria e Técnica deComunicação Comunitária

ções, linguagens, instrumentos, serviços e senti-mentos. Todo esse conjunto de conceitos trazi-dos pelos estudiosos da cultura nos ajudam aadmitir como a cultura é complexa. Frente aessa complexidade, como pensar a cultura dosbrasileiros nessas cinco centenas de anos? Con-siderando que o homem, ao nascer, traz consigoa cultura como herança e começa a receber umasérie de influências, a maneira de se alimentar,de se vestir, de falar, de se integrar na sociedadee o papel que exerce nessa mesma sociedade.Como se configura o passado colonial em quese encontram os traços fundamentais que vêmcaracterizar a cultura dos brasileiros? Comopensar a transplantação cultural, a alienação e,ao longo do tempo, a implantação de um violen-to processo de dependência cultural? Referin-do-se ao passado colonial do Brasil, diz PauloFreire que "sem direitos cívicos, o povo foi mar-ginalizado, irremediavelmente impedido de qual-quer experiência de auto governo ou diálogo ...predominantemente marcado pela submissão. Opovo se ajustou a uma estrutura de vida rigida-mente autoritária,a qual formou e fortaleceu umamentalidade antidemocrática. Freire ressalta aCultura do silêncio cujo marco de referência paraa sua análise do conceito, passa a ser o da teo-ria da dependência que se encontrava em vogana América latina nos anos sessenta" .2

I FERREIRA, Maria de Nazaré. Cultura Brasileira. In: MELO, José Maria Marques de; FADUL, Anamaria; SILVA, C.E.L.da.Ideologia I:; Poder do ensino da comunicação. Contex& Moares - São Paulo-SP, 1989. Intercom. P.2581 O autor explica que desde a conquista, a América Latina é uma terra subjugada. Sua colonização consistiu numa transplantaçãopromovida pelos invasores. Sua população foi esmagada; sua economia se baseava no trabalho escravo (sobretudo dos negrostrazidos da África como objetos); era dependente dos mercados externos, estando geralmente sujeita a crises cíclicas. Suasestruturas econômicas, deformadas desde o começo para beneficiar os conquistadores, estavam baseadas em recursos naturaissistematicamente explorados e enviados para os mercados europeus. O controle econômico- social, político e cultural exercidopelas metrópoles- Espanha e Portugal- moldou o caráter agrário e exportador das sociedades latino-americanas, sujeitas a umaoligarquia rural, sempre dependentes de interesses externos. Tudo isso superposto ao povo, encarado como uma massa de nativos(termo dado, sempre no sentido pejorativo) que havia se originado das misturas raciais resultantes da miscigenação. O tipopredominante de dominação econômica determinou uma cultura de dominação que, uma vez, internalizada, condicionada ocomportamento submisso.

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,MOVENDO Idéia~ -ARtIGOS

Particularmente, no Brasil, Freire enfatizaa ausência de uma vida comunitária na experi-ência colonial brasileira. Apoiando-se na obrade Oliveira Vianna, ele compara a situação doBrasil com as das comunidades agrárias euro-péias (espanholas), nas quais, por meio da par-ticipação no poder local, o povo adquiriu umavasta experiência política. Ele sustenta que oBrasil nunca experimentou aquele senso de co-munidade, de participação na solução de pro-blemas comuns, mas se instala na consciênciado povo e se transforma em sabedoria demo-crática.

No nosso tipo de colonização, segundoFreire, à base de grande domínio, de estruturasfeudais de nossa economia, no isolamento emque crescemos, no todo- poderosismo dos se-nhores de engenhos, das terras e das gentes, naforça do capitão-mor, dos governadores gerais,da fidelidade da coroa, no gosto excessivo daobediência, nos centros urbanos criados artifici-almente, nas proibições à nossa indústria e emtudo o que pudesse afetar os interesses das me-trópoles, na força das cidades fundadas no po-derio de uma burguesia enriquecida no comér-cio, enfim, tudo isso representa uma herançacolonial que impede, de certa forma, uma cultu-ra participativa dialógica, mesmo nos dias dehoje.

O homem, diferente dos demais animais éo único animal portador de uma cultura e, porisso, é capaz de criar, de inovar, possuir e trans-mitir.A cultura ,já definida como bastante com-plexa, é formada por um conjunto de elementosinter-relacionados e interdependentes que fun-cionam, harmonicamente, na sociedade. Os há-bitos, as idéias, as técnicas, formam um mistocultural em que se toma possível uma convivên-cia entre diferentes membros da sociedade. Estaé uma das características de muitas sociedadescontemporâneas centradas na grande diversifi-cação interna. Há muita diferença, muitas vezesbásicas, que decorrem do fato de que a popula-ção se posiciona de modos adversos no pro-cesso de produção. Há setores que são propri-etários de fábricas, fazendas, bancos, empresas

em geral. Por outro lado, há aqueles que consti-tuem os trabalhadores dessas organizações. Aofalarmos sobre classe social, é exatamente essadiferenciação a que nos referimos. Essas clas-ses têm formas de viver diferentes, com proble-mas heterogêneos na sua vida social. Os traba-lhadores rurais não vivem nem pensam comoos operários dos setores industriais tampoucodos comerciantes e dos funcionários públicos.Os seus estilos de vida, suas rendas familiares, oseu cotidiano, acesso à escola, aos hospitais,centros de lazer têm caminhos e percursos quepodem ser considerados fáceis ou não.

Essas questões levantadas podem construiruma reflexão sobre como tratar a dimensão cul-tural em nossa própria sociedade brasileira, aolongo dos cinco centenários passados. Fazen-do-se um recorte no tempo, do descobrimentodo Brasil até a virada do milênio, notamos aspluralidades de valores: o que era e o que é, porexemplo, o casamento, o beijo, o namoro, oamor, as práticas religiosas, o sentido de família,o ser pai e o ser mãe, o respeito à vida e aopróximo, o folclore, o museu, o artesanato, aliteratura de cordel, o lugar dos mortos e o pró-prio sentido de morte - tudo se mistura em bus-ca de uma explicação para todo esse emara-nhado de coisas certas e/ou erradas. O valor doontem, do antigamente, do outrora, do tradici-onal, não, necessariamente, o é hoje, no agora,no imediato e nem no amanhã, no futuro ... quemsabe?

Já dizia Freire, a cultura criada pelos ho-mens através de sua praxis e de seu trabalho é ouniverso simbólico e abrangente em que eles atu-am como seres conscientes. Entretanto, na me-dida em que os homens em sua relação dialéticacom o mundo, o transformam, por meio de seutrabalho, são condicionados pelos produtos desua ação. Assim, ao objetivar o mundo dos ho-mens se objetivam a simesmos e a cultura surgecomo uma alienação ou estranhamento do pró-prio ser que a cria. Essa compreensão prosse-gue no contexto da comunicação, em que o con-ceito freireano aponta para a "co-participaçãodos sujeitos no ato de pensar o que implica numa

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reciprocidade, no diálogo, na educação nãocomo transferência de saber, mas um encontrodos sujeitos interlocutores que buscam a signifi-cação dos significados'? . Daí, os estudos atuaisapontarem para a comunicação ~omo um fenô-meno indissociado da Cultura a qual deve servista como a maior mediadora do processo daComunicação, pois o desenvolvimento da co-municação numa sociedade é conseqüência doprocesso permanente de criação de personali-dade e de cultura.

Utilizando-se os conceitos de AntônioGramsci sobre cultura, a qual está sendo conti-nuada pelos novos teóricos da comunicação osquais erguem suas análises para entender a so-ciedade atual a partir da cultura, podemos fazeruma nova leitura do povo brasileiro que se reve-la massivo, heterogêneo, tecnológico, global econsumidor, haja vista a cultura, a identidade, ocotidiano, a ação e a experiência humana apre-sentarem-se comandadas pela velocidade dascomunicações via satélite, pelas redescomunicacionais, pelas descobertas da técnica,por um processo de globalização dos mercadose de mundialização das culturas - questões quese impõem graças à nova "ordem mundial".

Um dos elementos propulsores de todo oprocesso cultural, na contemporaneidade, e aquestão do popular, trazida por Martin-Barbero;da relação entre as culturas populares e atransnacional- foco de Canclini; ou numa leitu-ra mais diretiva em que os elementos do cotidi-ano compõem formas mediadoras da recepçãodos meios massivos - espaço predominante deGuillermo Orozco. Esses autores têm se preo-cupado em produzir modelos teórico-metodológicos de compreensão do mundo e,.também, em desenvolver formas de atuaçãonesta nova ordem neoliberal, transnacional einformacional. Canclini, em particular, remete-se, constantemente, à necessidade de se desen-volver políticas culturais que permitam uma rea-lização do exercício da cultura e da cidadanianas distintas classes sociais que formam uma

3 LIMA, Vinícius Artur de. Comunicação e Cultura. As idéias de Paulo Freire. Paz e Terra. São Paulo. 1984.l66p.

mesma sociedade, como e caso da cidade deSão Paulo onde há comunidades japonesas, ita-lianas,judias, inglesas além dos migrantes deoutros lugares do país e dos próprios paulistanos.O Estado do Pará, em nada difere de São Pauloe outros Estados. Temos, como exemplo, a imi-gração japonesa na Amazônia que se misturacom os índios, os franceses, holandeses, italia-nos, entre outros povos, cada um com seus há-bitos, costumes, modo de pensar, de se expres-sar na sua linguagem. Da mesma forma os ho-landeses e os negros no Nordeste e assim pordiante.

Nessa direção, começa-se a entender aquestão cultural brasileira, a partir dos nativos,da sua medicina caseira, dos seus cosméticos,da sua arte, da sua dança, da sua sabedoriaempírica. Por outro lado, hoje, o que se vê, sãoas formas de consumo, a cotidianidade, o ima-ginário e a memória popular, a mestiçagem ouhibridez cultural, a pluralidade cultural, a culturamassiva, a relação popular/ massivo, as identi-dades, as práticas comunicativas e nesta, espe-cialmente, o processo de recepção/decodificação dos meios massivos pelos brasi-leiros.

Num mundo tecnificado e informatizadopelos participantes da cultura hegemônica, comoo homem e a mulher brasileira, particularmente,os nativos produzem e reproduzem a sua cultu-ra? Com que elementos, ou de que maneirasaceitam e incorporam ou contestam e rejeitamos objetos tecnológicos? De que forma conso-mem as mercadorias e os hábitos criados paraserem consumidos em massa? Como esse novosujeito histórico, nesses 500 anos de descobri-mento do Brasil- aquele indivíduo moderno epós-moderno em seus hábitos condicionadospela técnica, pelos meios de comunicação demassa, pela velocidade e superposição de acon-tecimentos- permanece manifestando-se social-mente, em seus ritos, crenças, magias e formasde linguagem? No relacionamento em si, com anatureza, com o cosmo?

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Todas essas questões vêm tomando espa-ço no mundo, na América Latina e, particular-mente, no Brasil, a partir do movimento da cul-tura popular nas décadas de 1950/60 para ascamadas sócio- econômicas desfavorecidas ga-nhando aspectos práticos com Paulo Freire. Esseeducador desenvolveu metodologia de alfabeti-zação de adultos, aplicada ainda hoje, princi-palmente no interior do país, além de trabalharcom valores inerentes às camadas populares. OMovimento no Brasil tinha como premissa des-tacar a condição de sujeito nos homens e mu-lheres e, para tanto, procurava não fornecer pro-dutos acabados a sua clientela, mas criar meiospara que os indivíduos assumissem valores e nãosimplesmente os consumissem.

O movimento de Educação Popular foi umadas numerosas formas de mobilização de mas-sas adotadas no Brasil. É possível registrar di-versos procedimentos de natureza política, so-ciale culturaldemobilização e de conscientizaçãode massas, a partir da crescente participaçãopopular por meio do voto (participação geral-mente dirigida pelos líderes populistas) até omovimento de cultura popular organizado pelosestudantes. É conveniente mencionar a este pro-pósito, o esforço de crescimento do sindicalismorural e urbano: em doze meses foram criadosmais de 1300 Sindicatos Rurais; as greves detrabalhadores em 1951, reuniram cerca de85.000 grevistas, chegando a 230.0004 - parater a real dimensão dada ao tema.

Porém, o Movimento Popular foi sufoca-do pelos governos ditatoriais e pelo sistema ca-pitalista, cujos objetivos entravam em choquecom os ideais de cidadania, política e cultura dosdefensores da cultura popular. Muitos dos es-tudiosos, participantes e simpatizantes do Mo-vimento foram exilados ou presos, e o trabalhode conscientização e auto-valorização que sepretendiacom osgrupospopularesse inviabilizou.Um exemplo do combate governamental aoMovimento foi a implantação do projeto SACII

ENERN5 no Rio Grande do Norte - Estado emque o método de Paulo Freire obteve maior su-cesso na década de 60. Jamais se chegou a al-cançar a tão sonhada participação real e demo-crática do povo na elaboração de uma CulturaPlanejada e, ao mesmo tempo, baseada na vidacotidiana e concreta dos brasileiros.

Retomando a questão conceitual, Freireconsiderava Cultura como um resultado da açãohumana, do esforço humano de criar e recriar,de transformar e de se relacionar,dialogicamente.

Na contemporaneidade, a cultura se iden-tifica como desvinculada da idéia de nacional,de tradicional, de autêntico, interno, completa-mente endógeno. Essa identificação nos remeteaos fatores que aparecem como novas variáveisda realidade, como a produção e o consumoem massa e, também, dos bens culturais; o for-talecimento e a expansão dos meios de comuni-cação de massa, a propagação do modelo ur-bano de vida; a massificação e popularizaçãodos produtos culturais" das elites"; aglobalização econômica e a mundialização dacultura; a aceleração do ritmo de vida provocadapela eletrônica e pela informática, adesterritorialização dos indivíduos, dos grupose das nações.

Já na década de 30, Walter Benjamim per-guntava "qual o valor de todo o nosso patrimôniocultural, se a experiência não mais o vincula anós'" ? Apesar de esbarrarmos em tantos fato-res potencialmente destrutivos da constituiçãohumana, em particular do indivíduo brasileiro,em se tratando da cultura, precisamos tentaranalisá-Ios numa perspectiva não meramentepós-moderna, mas sobretudo de transição. Des-sa forma, se o homem brasileiro, por exemplo,imprime à vida um ritmo cada vez mais rápido eintenso, assumindo um compromisso com o ime-diato, ele poderá estar se apoderando de seupotencial de existência, libertando-se de certaslimitações fabricadas também, historicamente,

, FREIRE, Paulo. Conscientização São Paulo: Moraes, 1980, p. 16-17 In: Spenillo, G.M.D. 1998, p.155 SACIIENERN - Satélite Avançado de Comunicações Interdisciplinaresl Experimento no Estado do Rio Grande do Norte. Paramais informações, ver CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1984." BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.115

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procurando enfrentar os desafios da vida, comoser animado que é. Isso, porém, requer do serbrasileiro uma adaptação equilibrada com seussímbolos milenares, seus arquétipos? , seus có-digos e formas de decodificação, suas lingua-gens, seus mitos e crenças, suas manifestaçõesartísticas que até hoje vêm fazendo dele um sersociocultural com uma nova simbologia e formade linguagem exigidas pela tecnologia e pelainformática.

Em síntese, acreditamos que os efeitos emudanças, bem como as profundas transforma-ções sociais, Econômicas e políticas ocorridasno Brasil, nesses 500 anos de seu descobrimen-to, provocadas pela ordem pós-moderna, pelatecnocracia, trazem igualmente conseqüênciasnegativas e positivas nos mais diversos segmen-tos da sociedade.

Se vivenciamos, hoje, a perda do sentido,a desconstrução da História, o fim das narrati-vas, a fragmentação social e o isolamento doindivíduo brasileiro, podemos, também, vir aexperimentar uma verdadeira transformação denossos conceitos de modos de vida, passandopela revolução tecnológica da informática e umaconcepção profundamente ecológica e humanada vida dos brasileiros; uma nova fase da histó-ria da cultura latinoamerica na qual está implícitaa do Brasil, denominada por Canclini deHibridização Cultural" . Esta é a forma comoestamos tentando compreender a cultura dosbrasileiros nos seus 500 anos.

BIBLIOGRAFIACANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas:

estratégias para entrar y sal ir de Iamodernidad Buenos Aires:EditorialSudamericana - História e Cultura, 1995,362p.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência.São Paulo:Brasiliense, 1984.

FERREIRA, Maria de Nazaré. Cultura Brasi-leira. In: MELO, José Maria Marques de;FADUL, Anamaria; SILVA,C.E.L. da. Ide-ologia do ensino da comunicação. São Pau-lo-SP: Contex &Moraes, Intercom, 1989,p.258.

FREIRE, Paulo .Conscientização. São Paulo:Moraes, 1980, p. 16-17 Apud:SPENILLO, Giuseppa Maria Daniella.Lazer e Comunicação na Era daInformática: Interpessoalidade ouautomatismo? Um estudo de caso entre osassentados do projeto Brígida. Dissertação(Mestrado em Administração e Comunica-ção Rural) Universidade Federal Rural dePernambuco, Recife-Pe.1998, 166p.

LIMA, Vinícius Artur de. Comunicação e Cul-tura .As idéias de Paulo Freire. São Paulo-SP: Paz e Terra, 1984, 166p.

SAMPAIO, Almeida Cenira. Comunicação eReconversão Cultural- estudo de recepçãoda proposta de parceria da Embrapa pelospequenos produtores rurais da Comunida-de de São Tomé do panela, Irituia-Pará.Dissertação (Mestrado em Administraçãoe Comunicação Rural) Universidade Fede-ral Rural de Pernambuco- Recife-Pe, 1998,203p.

SPENILLO, Giuseppa Maria Daniella. Lazer eComunicação na Era da Informática:Interpessoalidade ou automatismo? Um es-tudo de caso entre os assentados do proje-to Brígida. Dissertação (Mestrado em Ad-ministração e Comunicação Rural) Univer-sidade Federal Rural de Pernambuco, Re-cife-Pe.1998, 166p.

7 Modelos de seres criados; padrão; exemplar.8 CANCUNI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar y salir de Ia modemidad Editorial Sudamericana - História e Cultura. BuenosAires, I995.362p. - O autor explica o hibridismo cultural no sentido de que a cultura deve ser vista como um tipo particular de atividade produtiva,cuja finalidade é compreender, reproduzir e transformar a estrutura social e brigar pela hegemonia ou seja, a produção de fenômenos que contribuemmediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ouainda, a cultura diz respeito a todas as manifestações e práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação de sentido.Portanto, o estudo das bases culturais heterogêneas e híbridas permitem compreender os diversos sentidos da modemidade não só como simplesdivergências entre correntes mas também como manifestações de conflitos culturais.

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