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DO PRINCIPIALISMO AOS PRINCÍPIOS: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO BIOÉTICO DEL PRINCIPIALISMO A LOS PRINCIPIOS: LA DIGNIDAD DE LA PERSONA HUMANA COMO PRINCIPIO BIOÉTICO Maurício Requião RESUMO É crescente o interesse na discussão sobre temas do campo da bioética, principalmente por conta do cada vez maior e mais veloz avanço das tecnociências. Neste paradigma apresenta-se necessário um modelo teórico que seja capaz de dar uma resposta, ou ao menos possibilitar a reflexão, acerca dos dilemas que continuamente surgem. Acreditamos que a aplicação de uma teoria dos princípios constitui uma solução adequada para tal demanda, embora não deva tal teoria ser restrita aos clássicos princípios propagados pela doutrina do principialismo. Neste sentido, para uma aplicação dos princípios além do principialismo, é que oferecemos, a título de exemplo, a aplicação da dignidade da pessoa humana como um princípio bioético. PALAVRAS-CHAVES: PRINCÍPIOS PRINCIPIALISMO BIOÉTICA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA RESUMEN Es creciente el interés en los temas del campo de la bioética, principalmente por cuenta del cada vez mayor y más veloz avance de las tecnociencias. En este paradigma se hace necesario un modelo teórico que sea capaz de dar una respuesta, o al menos posibilitar la reflexión, con relación a los dilemas que continuamente surgen. Creemos que la aplicación de una teoria de los principios constuye una solución adecuada para tal demanda, aunque tal teoria no deva ser restricta a los clásicos princípios propagados por la doctrina del principialismo. En este sentido, para una aplicación de los principios además del principialismo, es que ofrecemos a título de ejemplo la aplicación de la dignidad de la persona humana como un principio bioético. PALAVRAS-CLAVE: PRINCIPIOS PRINCIPIALISMO BIOÉTICA DIGNIDAD DE LA PERSONA HUMANA 1209

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DO PRINCIPIALISMO AOS PRINCÍPIOS: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO BIOÉTICO

DEL PRINCIPIALISMO A LOS PRINCIPIOS: LA DIGNIDAD DE LA PERSONA HUMANA COMO PRINCIPIO BIOÉTICO

Maurício Requião

RESUMO

É crescente o interesse na discussão sobre temas do campo da bioética, principalmente por conta do cada vez maior e mais veloz avanço das tecnociências. Neste paradigma apresenta-se necessário um modelo teórico que seja capaz de dar uma resposta, ou ao menos possibilitar a reflexão, acerca dos dilemas que continuamente surgem. Acreditamos que a aplicação de uma teoria dos princípios constitui uma solução adequada para tal demanda, embora não deva tal teoria ser restrita aos clássicos princípios propagados pela doutrina do principialismo. Neste sentido, para uma aplicação dos princípios além do principialismo, é que oferecemos, a título de exemplo, a aplicação da dignidade da pessoa humana como um princípio bioético.

PALAVRAS-CHAVES: PRINCÍPIOS – PRINCIPIALISMO – BIOÉTICA – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

RESUMEN

Es creciente el interés en los temas del campo de la bioética, principalmente por cuenta del cada vez mayor y más veloz avance de las tecnociencias. En este paradigma se hace necesario un modelo teórico que sea capaz de dar una respuesta, o al menos posibilitar la reflexión, con relación a los dilemas que continuamente surgen. Creemos que la aplicación de una teoria de los principios constuye una solución adecuada para tal demanda, aunque tal teoria no deva ser restricta a los clásicos princípios propagados por la doctrina del principialismo. En este sentido, para una aplicación de los principios además del principialismo, es que ofrecemos a título de ejemplo la aplicación de la dignidad de la persona humana como un principio bioético.

PALAVRAS-CLAVE: PRINCIPIOS – PRINCIPIALISMO – BIOÉTICA – DIGNIDAD DE LA PERSONA HUMANA

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1. Introdução.

A criação de sistemas baseados em princípios, embora não seja a única fórmula possível, é das mais difundidas e utilizadas na atualidade. Por conta das características peculiares aos princípios, como uma grande capacidade de adequação ao caso concreto, o seu uso mostra utilidade não apenas na construção de sistemas legal-normativos, como também de sistemas ético-normativos.

Na bioética o primeiro sistema com uma teoria baseada no uso dos princípios foi o principialismo, de origem norte-americana. Tal sistema, conforme iremos expor ao longo deste trabalho monográfico, fixa alguns princípios como sendo aqueles aplicáveis à bioética.

No que pese ser verdade que tais princípios sejam da bioética, não nos parece que sejam os únicos a ela aplicáveis. Com alguma investigação é possível notar a existência de outros princípios que, para além daqueles que formam a teoria do principialismo, são igualmente aplicáveis neste campo do conhecimento.

Por questões metodológicas, começaremos este texto oferecendo um conceito de princípios, já que não acreditamos ser possível trabalhar com um termo tão multi-significativo como este sem fixar qual o sentido em que será aqui abordado. Em seguida, realizaremos uma exposição da corrente teórica do principialismo para, por fim, apresentarmos críticas à pretensão de completude deste sistema, com a apresentação de outros princípios igualmente aplicáveis à bioética.

2. Conceituando os princípios.

Qualquer rápida pesquisa que realizemos nos permite identificar na doutrina uma série de diferentes conceitos sobre o que são os princípios. A busca por este conceito passa necessariamente por uma análise que coloque em comparação aqueles e as regras. Assim é que preliminarmente à discussão acerca dos princípios no campo da bioética, realizaremos uma abordagem das diferentes teorias sobre distinção forte e distinção fraca entre regras e princípios. Em seguida, apresentaremos uma análise das distinções entre regras e princípios mais difundidas na doutrina para, finalmente, após formular um conceito de princípio, tratar do tema no campo da bioética.

2.1. Distinção forte e distinção fraca entre regras e princípios.

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O primeiro ponto de divergência doutrinária que nos parece adequado tratar diz respeito à questão sobre se haveria uma distinção fraca ou uma distinção forte entre regras e princípios. Entretanto, mesmo acerca do conceito do que seria uma distinção fraca e do que seria uma distinção forte, encontramos algumas divergências.

De acordo com Humberto Ávila, em sua análise sobre a doutrina do tema[1], teríamos a distinção fraca quando se considera que "os princípios e as regras têm as mesmas propriedades, embora em graus diferentes - enquanto os princípios são mais indeterminados, as regras são menos"[2]. Seriam, portanto, normas com as mesmas propriedades, diferindo unicamente acerca do grau de indeterminação de cada uma delas.

Ainda assim, de acordo com a distinção fraca como colocada por Humberto Ávila, haveria diferença entre as categorias normativas de regras e princípios na sua própria essência, ou seja, cada norma se encaixaria numa das categorias normativas de acordo com o seu grau de indeterminação[3]. Já na distinção fraca, como apresentada por Paolo Comanducci, não haveria qualquer grau absoluto de distinção. Para o autor, a diferença entre regras e princípios se daria somente a partir de uma comparação situacional entre duas normas em análise. Não haveria sequer uma ontologia das normas, que as predefina como regra ou princípio. A classificação aplicada a uma determinada norma conforme o caso concreto se daria de modo contingente, em comparação com outra norma. Poderia, portanto, uma mesma norma funcionar como princípio em uma determinada situação, e como regra numa outra[4].

De acordo com esta forma de distinção fraca, a diferença entre regras e princípios seria relativa e gradual. Relativa, porque a classificação de uma norma como princípio ou regra não dependeria de características intrínsecas daquela, mas sim de uma comparação desta norma com uma outra. Gradual, porque a classificação de uma norma como regra ou princípio dependeria, dentro da análise relativa, de verificar qual das normas teria de modo mais elevado as características comumente atribuídas aos princípios, como fundamentalidade, importância, generalidade e vagueza[5].

Já de acordo com a distinção forte, haveria uma diferença na própria essência das duas categorias normativas, tendo os princípios e as regras diferentes propriedades. Haveria uma distinção na ontologia das regras e dos princípios, gerando, principalmente, conseqüências acerca do seu modo de interpretação e aplicação, bem como das suas soluções de conflitos[6]. Assim é que as regras instituiriam deveres definitivos sendo aplicadas por meio de subsunção, enquanto que os princípios estabeleceriam deveres provisórios sendo aplicados por meio de ponderação.[7]

Como reflexo destas diferenças temos que enquanto o conflito entre regras seria abstrato, necessário e situado no plano da validade, o conflito entre princípios seria concreto, contingente e situado no plano da eficácia[8]. Dito de outra forma, não poderia existir em um ordenamento duas regras contraditórias; verificada tal situação, se torna necessária a decretação da invalidade de uma delas. No caso dos princípios, ao contrário, é possível que um mesmo ordenamento traga, em abstrato, princípios que subsidiam valores considerados antagônicos, como liberdade e segurança, por exemplo. O conflito entre os princípios se daria somente diante do caso concreto, de modo que não afastaria, em definitivo, um dos princípios do ordenamento, mas tão somente determinaria qual deles deveria produzir efeito naquela situação.

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Por uma questão de coerência metodológica com os autores que utilizaremos para formular um conceito de princípio, preferiremos aqui a adoção da tese da separação forte entre regras e princípios. Assim, partiremos do pressuposto metodológico de que toda norma é uma regra ou um princípio e de que esta diferenciação se dá num nível ontológico, de formação, de essência, intrínseco, sendo cada uma destas espécies normativas dotadas de diferentes características, que influenciam no seu modo de interpretação e aplicação.

2.2. Distinguindo regras e princípios.

Conforme apontado no tópico anterior, neste trabalho consideraremos que as normas se dividem em regras e princípios. Para alcançar o significado deste último, precisamos, anteriormente, distingui-los das regras. É que, como aponta Mônica Aguiar, muitas vezes encontramos, por parte de alguns doutrinadores, a qualificação de regras como princípios, justamente por conta da não observância dos elementos diferenciadores entre estes[9].

O primeiro problema encontrado para a definição diz respeito à própria desambiguação do que seja princípio, uma vez que o termo é utilizado com os mais diversos significados. Juan Ruiz Manero realiza uma enumeração - sem pretensão de exaustividade, como afirma o próprio autor - de diversos sentidos em que é utilizado o termo princípio. Um primeiro sentido seria aquele que define princípio como sendo uma norma muito geral. Esta definição, embora não dito desta forma pelo autor, nos parece que consideraria a existência de uma identidade entre os princípios e as cláusulas gerais. O exemplo por ele citado, se referindo à parte geral da teoria dos contratos, aplicáveis a qualquer espécie destes, reforça nosso entendimento[10].

Um segundo sentido seria aquele que se refere a principio como sendo a norma dotada de termos especialmente vagos, ou textura semántica aberta, sentido que por sua vez corresponde ao que chamamos de conceitos indeterminados.[11]

Outro significado possível seria aquele que toma o princípio como "norma que expresa los valores superiores de un ordenamiento jurídico, de un sector del mismo, de una instituición, etc."[12]. Neste sentido o que caracterizaria uma norma como sendo princípio seria o fato dela trazer em si um valor, um ideal, como é o caso do caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988, ao assegurar o valor da igualdade, quando diz que "todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza".

Num quarto sentido, o autor apresenta princípios em semelhança com a norma programática, definindo esta como "norma que estipula la obligación de perseguir determinados fines"[13]. Poderíamos apontar no nosso ordenamento, partindo do exemplo fornecido pelo autor, o art. 5º, XXXII, da Constituição Federal de 1988, em que se encontra determinado que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor".

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Como quinta possibilidade temos "principio en el sentido de norma dirigida a los órganos de aplicación del Derecho y que señala, con carácter general, cómo se debe seleccionar la norma aplicable, interpretala"[14]. Nesta concepção os princípios corresponderiam a normas que fixam critérios de aplicação e interpretação das outras normas.

Por fim, apresenta os princípios como "regula iuris, esto es, de enunciado o máxima de un considerable grado de generalidad y que permite la sistematización ( o la presentación sintética) del ordenamiento jurídico o de um sector del mismo)"[15], citando como exemplo o princípio do legislador racional.

Por esta breve enumeração já se faz claro em quantos sentidos diferentes pode ser tomado o termo princípio. O próprio autor, entretanto, considera que em diversas das situações acima apontadas o termo princípio é indevidamente utilizado. Para ele, apenas no terceiro e no quarto significados apresentados, temos, de fato, princípios.

Ainda assim, realiza o autor uma distinção entre o que ele chama de princípio em sentido estrito, que seria o do terceiro sentido apresentado, ou seja, como normas que expressam valores superiores e o que ele chama de princípios programáticos, correspondente ao quarto dos sentidos apresentados. De acordo com esta classificação, partindo de uma análise estrutural, a distinção entre regras, princípios em sentido estrito e normas programáticas se daria porque

[...] las reglas configuran de forma cerrada tanto el supuesto de hecho como la conducta calificada deónticamente en la solución; los principios en sentido estricto configuran de forma abierta su supuesto de hecho y, de forma cerrada, la conducta calificada deónticamente; las directrices o normas programáticas configuran de forma abierta tanto uno como otro elemento[16].

Esta distinção realizada pelo autor é criticada por Robert Alexy, para quem, de acordo com os critérios apresentados, apenas as normas programáticas corresponderiam aos mandados de otimização caracterizadores dos princípios - dos quais trataremos mais adiante - enquanto que "los principios en sentido estricto no deben cumplise en diferete grado, sino que sólo pueden seguirse o no seguirse y, por tanto, tienen carácter de reglas"[17]. Entretanto, continua Robert Alexy, mesmo quando tratam[18] de princípios em sentido estrito, como algo aplicável ou não aplicável, mais próximo do estilo tudo ou nada das regras, criam uma cláusula geral de reserva, que se assemelha ao mandado de otimização[19], através da qual tais princípios podem deixar de ser aplicados em virtude de um princípio contrário que tenha "maior peso". Isto, diz Alexy, termina retornando à questão da ponderação e, por conseguinte, de otimização, possibilitando o cumprimento destes princípios de uma maneira gradual[20], ou seja, não haveria a distinção de duas categorias de princípios, com estruturas diversas para cada uma delas, como apontada por Juan Ruiz Manero.

É que para Alexy os princípios "son normas que ordenan que algo se realice en la mayor medida posible, de acuerdo con las posibilidades fácticas y jurídicas"[21], ou seja, mandatos de otimização, "que se caracterizan por el hecho de que puden ser cumplidos en diferentes grados y de que la medida ordenada en que deben cumplirse, no solo depende de las posibilidades fácticas, sino tambien de las posibilidades jurídicas"[22].

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E é justamente esta característica, de serem mandados de otimização, que, para Alexy, diferencia os princípios das regras, já que estas "son normas que siempre puden ser cumplidas o incumplidas. [...] Ellas son, por lo tanto, mandatos definitivos. Esto significa que la distición entre reglas y principios es una distinción cualitativa y no solamente una distinción de grado."[23].

Neste exercício de distinção entre regras e princípios nos parece também interessante assinalar a opinião de Humberto Ávila para quem

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção[24].

Para o autor, portanto, os princípios possuem uma idéia de normas finalísticas, que buscam alcançar um determinado estado de coisas, enquanto que as regras são descritivas, regulando situações específicas às quais correspondem, sendo que para tal se justificam por uma finalidade que lhes dê suporte, ou pelos princípios que, axiologicamente, as sustentam[25].

Esta diferença no modo de aplicação e solução de conflitos entre regras e principios referidos acima se dá, de acordo com Dworkin, por conta de uma distinção de natureza lógica. Isto porque as regras são aplicadas no esquema de tudo-ou-nada, ou seja, são ou não são válidas[26]. Este modo de aplicação não implica que as regras não possam comportar exceções. Entretanto, estas exceções, que por sua vez são também regras, devem se dar de um modo limitado, sob pena de tornar a regra inútil ou de difícil e incerta utilização. As exceções, portanto, não implicam qualquer desvirtuação da regra enquanto tal.

Os princípios, por sua vez, "[...] não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas [...]; ao contrário, enuncia[m] uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita uma decisão particular"[27].

Derivada desta diferença lógica entre regras e princípios, é que afirma Dworkin surgir uma outra, que é a questão da dimensão de peso possuída pelos princípios, mas não pelas regras. Assim é que, quando há um conflito entre princípios, se levará em conta a força relativa de cada um, havendo, entretanto, a manutenção de ambos[28]. Como as regras não têm essa dimensão de peso, havendo conflitos entre elas, uma suplantará a outra, tornando-a inválida, devido à maior importância daquela[29].

É que, como afirma Willis Santiago Guerra Filho, o conflito entre regras se dá já no plano abstrato, caracterizando uma antinomia jurídica "que deve ser afastada com base

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em critérios que, em geral, são fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico, para que se mantenha sua unidade e coerência"[30].

Por sua vez, os princípios, considerados abstratamente, não entram em choque. Pode ocorrer, entretanto, que diante de um caso concreto encontremos princípios que se achem num estado de conflito.

A decisão tomada, em tais casos, sempre irá privilegiar um (ou alguns) dos princípios, em detrimento de outro(s), embora todos eles se mantenham íntegros em sua validade e apenas diminuídos, circunstancial e pontualmente, em sua eficácia[31].

Quanto aos motivos que levam à aplicação de um princípio num caso concreto, destaca Dworkin que o princípio é "um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou de alguma outra dimensão da moralidade"[32]. Assim é que podemos afirmar que para este autor os princípios estão diretamente vinculados à questão da moral.

Fica claro de acordo com os conceitos apresentados pelos autores que a definição do que seja princípio passa pela análise da sua diferença estrutural em relação às regras, que é, por sua vez, vinculada ao modo diverso de solução de colisões, de antinomias, entre regras e princípios.

Importante destacar que, para além de uma análise baseada numa ótica estrutural, podemos também categorizar determinadas normas como sendo princípios a partir de uma ótica funcional, considerando o papel que estes desempenham na sistematização do ordenamento[33].

Nem sempre, entretanto, como chama a atenção Dworkin, esta distinção entre regras e princípios, será facilmente realizável diante do caso concreto. É que, além de muitas vezes desempenharem funções semelhantes, diferenciando-se apenas quanto à forma, em outras tantas vezes temos uma regra que possui em si expressões que devem ser interpretadas do modo dos princípios. Tal situação se dá, por exemplo, nas regras em que encontramos palavras como "razoável", "negligente" e "injusto", que, embora não transformem uma regra num princípio, tornam mais longo o processo de avaliação destas mesmas regras no caso do surgimento de um suposto conflito[34].

Levando em conta as distinções acima traçadas entre regras e princípios que, acreditamos, nos permitiu oferecer um entendimento do funcionamento e estrutura destes últimos, passaremos agora à abordagem destes no campo da bioética, começando pela análise da corrente teórica do principialismo.

3. Principialismo.

O principialismo tem sua origem histórica vinculada ao Relatório Belmont, elaborado com base numa comissão instituída pelo governo dos EUA, no ano de 1974, através do

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National Research Act, com o objetivo de "estudar as questões éticas relativas à pesquisa científica nos campos da biomedicina e das ciências do comportamento"[35].

Esta comissão identificou três princípios gerais fundamentais, que foram o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça. Tomando como base as indicações presentes neste relatório é que foi formulado o modelo teórico do principialismo, por Tom L. Beauchamp e James F. Childress, inicialmente apresentado na obra Principles of Biomedical Ethics, de 1979[36].

Abordaremos aqui a teoria do principialismo, nos termos apresentados pelos referidos autores, tratando dos quatro princípios por eles enumerados, os quais aduzem serem os princípios da bioética. São eles o respeito à autonomia, a não-maleficência[37], a beneficência e a justiça.

3.1. O respeito à autonomia.

O respeito pela autonomia encontra-se vinculado à idéia de fornecer ao indivíduo o conhecimento e a liberdade necessários para tomar uma decisão de modo consciente e independente. Note-se, já por esta noção inicial, que dois elementos são essenciais para que possa um indivíduo agir autonomamente: liberdade e qualidade do agente[38]. Dito de outra forma, para que o indivíduo possa agir autonomamente é necessário não apenas que lhe seja dado conhecimento sobre a situação acerca da qual deve tomar uma decisão, como também o direito de ter sua decisão autônoma respeitada.

Há que se destacar que a capacidade para tomar uma decisão autônoma não encontra uma perfeita sincronia com a idéia de capacidade civil do agente, embora com esta possua alguma sincronia. Como trataremos ainda neste texto, é possível que, por conta de uma situação de vulnerabilidade, um indivíduo civilmente capaz não se encontre em condições de tomar uma decisão autônoma.

O paradigma básico do respeito à autonomia é o consentimento informado e expresso[39]. Assim é que "o respeito à autonomia obriga os profissionais a revelar as informações, verificar e assegurar o esclarecimento e a voluntariedade, e encorajar a tomada de decisão adequada"[40].

A idéia do consentimento informado encontra dois principais sentidos na doutrina. Num primeiro pode ser entendido como "uma autorização autônoma dada por indivíduos para uma intervenção médica ou um envolvimento numa pesquisa"[41]. Noutro sentido "é analisável em termos das regras sociais de consentimento nas instituições que têm de obter consentimento legalmente válido para pacientes ou sujeitos de pesquisa antes de proceder aos procedimentos terapêuticos ou à própria pesquisa"[42].

Como elementos do consentimento informado podemos apontar a competência, a revelação da informação, o entendimento, a voluntariedade e o consentimento.

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É necessário portanto, para que um indivíduo possa tomar uma decisão autônoma, não somente que ele tenha capacidade para tomar decisões. Para a decisão ser considerada realmente autônoma é necessário também que lhe sejam reveladas todas as informações relevantes para a sua tomada de decisão. Não poderíamos falar que houve decisão autônoma numa situação em que um indivíduo, por exemplo, aceite se submeter a um tratamento sem que tenha sido informado acerca da existência de um outro tratamento também possível. Faltou-lhe, para realizar uma decisão autônoma, a completude da informação[43]

Não basta que a informação lhe seja fornecida, é preciso também que seja o sujeito capaz de compreendê-la. Uma informação prestada com o uso de um jargão médico, que dificulte ou impeça o entendimento do que foi dito, não se constitui como informação suficiente para o consentimento informado. Entendemos que, em verdade, o entendimento se encontra estreitamente vinculado com a informação, de modo que não vemos como possível dizer que houve revelação da informação se esta se deu de modo ininteligível para o informado.

Além destes aspectos relativos à revelação e entendimento da informação, há que se considerar também a voluntariedade. A voluntariedade está vinculada à idéia da capacidade de tomar decisões, agregado a isto o fato de que estas decisões sejam tomadas livres de influências manipuladoras e coercitivas de terceiros[44].

As influências podem ser de três categorias: coerção, persuasão e manipulação. Ocorre a coerção quando o terceiro usa, intencionalmente, de uma ameaça grave e possível de provocar dano ou controlar a pessoa através do uso da força. Na persuasão não há uma ameaça, mas sim um convencimento através da argumentação realizada pelo terceiro. Já a manipulação seria definida por exclusão, ocorrendo sempre que o terceiro inclinasse a pessoa a fazer algo por meios que não a coerção ou a persuasão[45].

Nem sempre a influência externa pode ser caracterizada como obstruindo a voluntariedade. Em algumas situações o terceiro deve até mesmo tentar convencer o paciente em adotar uma determinada linha de conduta, por ser preferível a outra. A dificuldade reside exatamente em determinar a partir de quando esta influência deixa de ser adequada e passa a criar entraves à voluntariedade do paciente.

Apenas presentes todos estes requisitos é que, por fim, podemos chegar a um consentimento que possa ser classificado como consentimento informado, caracterizando, por conseguinte, uma decisão autônoma.

3.2. A não-maleficência.

No dizer dos seus autores, "o princípio de não-maleficência determina a obrigação de não infligir dano intencionalmente"[46]. Este princípios, muitas vezes, é tratado de modo conjunto com a beneficência, o que Beauchamp e Childress consideram incorreto, uma vez que uma obrigação de não prejudicar seria distinta de uma obrigação de ajudar.

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Haveria, inclusive, em linhas gerais, uma maior obrigação de obediência, um maior rigor, na necessidade do cumprimento da não-maleficência. Isto porque o não causar dano, em regra, exige menos do sujeito, constituindo em regra uma abstenção, ao passo que o ato de ajudar é mais custoso e, portanto, moralmente menos exigível.

A não-maleficência ganha especial relevo nas situações que envolvem indivíduos que se encontram numa situação terminal, sendo utilizada para diferenciar as condutas de deixar morrer e de ajudar a morrer. É que muitas vezes o deixar morrer, ou seja, o não realizar determinados procedimentos que seriam necessários para que o paciente continuasse a viver, é enquadrado pelos médicos como sendo um ato de não-maleficência, distinto, portanto, do ato de matar[47].

Apesar das diversas objeções possíveis, para os autores o ato de deixar morrer seria eticamente justificável, desde que atendendo a alguns requisitos, como a vontade autônoma do sujeito que estar por vir a morrer manifestada favoravelmente nesse sentido[48].

3.3. A beneficência.

Enquanto a não-maleficência envolve o dever de não causar danos, uma obrigação negativa, o princípio da beneficência, ao contrário, se basearia numa obrigação positiva de ajudar às outras pessoas, contribuindo para o seu bem-estar.

Este princípio se baseia em dois elementos que são a beneficência positiva, constituída pela idéia da necessidade de propiciação de benefícios, e a utilidade, que requer que os benefícios e desvantagens de uma ação sejam ponderados[49].

Cumpre ainda distinguir, na formulação apresentada por Beauchamp e Childress, a beneficência ideal e a obrigatória. As últimas seriam aquelas que envolvem ações como proteger e defender os interesses de terceiros; evitar que os terceiros sofram danos; eliminar as condições ou situações que pudessem causar danos a outros; ajudar as pessoas com inaptas; e socorrer as pessoas que estão em perigo[50]. Já a beneficência ideal seria constituída pelas ações de beneficência que se encontrem além do obrigatório, dotadas de uma generosidade não exigível.

O rigor da obrigatoriedade das ações de beneficência se guiariam também por outro parâmetro, que seria o grau de proximidade do relacionamento entre os sujeitos envolvidos. Neste sentido é que falam os autores na beneficência específica, que seriam ações de beneficência moralmente mais exigíveis por conta de uma relação especial, como parentesco ou amizade, entre os sujeitos envolvidos[51].

O grande cuidado que devemos tomar quando tratamos da beneficência é em não deixar que ela descambe para o paternalismo. Dito de modo resumido, o cuidar de alguém não pode se dar de um modo tal que prejudique a autonomia da pessoa cuidada[52]. Decerto não é uma linha fácil de ser traçada, mas é uma à qual devemos estar sempre atentos. Acreditamos que, em se tratando de sujeitos capazes, quando a tentativa de realizar uma

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ação beneficente ultrapassa os limites do respeito à autonomia alheia, isto por si já causou mais dano do que os benefícios que possa trazer.

Como já vimos, é também essencial para a análise da obrigatoriedade de uma ação beneficente a ponderação dos seus benefícios em relação aos custos e riscos que traga àquele que a deveria praticar; essa é a idéia da análise da utilidade da ação. Para determinar a obrigatoriedade de uma ação de beneficência, devemos ponderar os recursos utilizados, bem como a possibilidade de efeitos negativos para quem pratica a ação, em relação aos benefícios que sua prática trará para a pessoa a quem se dirige. Somente se os últimos superarem os primeiros é que surge o dever de beneficência[53].

Evidente que, embora na teoria esta situação possa ser colocada sem maiores dificuldades, há um grande hiato entre esta certeza presente na teoria e a sua aplicação na prática diante do caso concreto. A própria análise do valor de cada bem envolvido, quando se tratarem de bens diferentes em questão, pode tornar tormentosa a ponderação no caso concreto. Vale mais a perna de uma pessoa do que a vida de outra? Talvez, sob uma análise puramente racional e utilitarista, a resposta seja não. Entretanto, não vemos a beneficência como instrumento para obrigar as pessoas à prática de atos com custos assim tão elevados, ainda que o outro bem protegido possa ser considerado de maior valor.

3.4. A justiça.

O princípio da justiça, na obra de Beauchamp e Childress, está diretamente relacionado com a idéia de uma justa alocação dos recursos. É uma máxima conhecida nas teorias econômicas que os homens têm recursos escassos e necessidades ilimitadas, não sendo diferente no campo abrangido pela análise bioética.

Para os autores um modelo teórico de justiça que se baseie unicamente nos méritos obtidos por cada indivíduo para a realização de uma distribuição equitativa seria, ainda assim, um método arbitrário.

Como sustentam os autores, as pessoas não partem do mesmo ponto, não é dado a todos igualdade de oportunidades. A justiça deveria se basear portanto na regra da oportunidade eqüitativa, que

afirma que não se deve conceder benefícios sociais com base em propriedades favoráveis imerecidas (porque ninguém é responsável pela posse dessas propriedades) e afirma também que não se deve negar benefícios sociais com base em propriedades desfavoráveis imerecidas (porque as pessoas também não são responsáveis por essas propriedades. Se não existir uma chance justa de que as pessoas possam adquiri-las ou superá-las, as propriedades distribuídas pelas loterias da vida social e da vida biológica não são motivos para uma discriminação moralmente aceitável entre as pessoas[54].

Assim é que para que se possa alcançar a justiça é necessário antes que se busque mitigar, tanto quanto possível, as diferenças entre os indivíduos que lhes foram

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distribuídas ao acaso, não podendo haver uma condenação ou premiação por elas, já que não foram alvo de qualquer esforço ou demérito daquele sujeito. Como exemplos de situações que necessitariam da aplicação da regra da oportunidade eqüitativa, podemos apontar aquelas envolvendo os injustos prejuízos sofridos por conta de a pessoa pertencer a uma determinada raça, sexo ou condição sócio-econômica.

Também aqui a aplicação diante do caso concreto guarda dificuldades que não podem ser resolvidas no campo teórico, como, por exemplo, na questão da escolha de pacientes que terão direito a se submeter a um tratamento escasso.

4. Princípios: para além do principialismo.

Nosso objetivo aqui não é propriamente traçar críticas ao paradigma principialista. Acreditamos que os princípios são um instrumento útil para a regulação e aplicabilidade eficazes de um sistema normativo. Entretanto, nos parece que o principialismo, ao enumerar como princípios da bioética o respeito à autonomia, a beneficência, a não-maleficência e a justiça, cria uma restrição inadequada.

Não discordamos que sejam estes princípios atinentes à bioética, apenas não acreditamos que constituam a totalidade do universo de princípios aplicáveis a este campo. Em verdade, nos parece que não é jamais possível considerar como acabado e completo o conjunto de princípios aplicáveis a um determinado campo do conhecimento, uma vez que as mudanças sociais e a evolução do pensamento filosófico podem sempre trazer novos matizes até então inimagináveis. Esta nossa última afirmação nos parece especialmente verdadeira quando estamos a tratar da bioética, que tem lidado com o constante e cada vez mais célere avanço das ciências e tecnologias na área em que regula.

Com base nestas afirmações é que procederemos à análise de alguns outros princípios que nos parecem também aplicáveis ao campo da bioética. Destacamos uma vez mais que nossa enumeração não pretende ser exaustiva, antes enumerativa, com o intuito apenas de demonstrar que o paradigma dos princípios da bioética não se esgota com a doutrina do principialismo.

Esclarecidos estes pontos, passaremos agora a analisar, a título exemplificativo do que ora argumentamos, a aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana ao campo da bioética.

4.1. Dignidade da pessoa humana como princípio bioético.

Gostaríamos de começar este tópico confessando nossa cautela toda vez que vamos falar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. É que nos últimos tempos,

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juntamente com a boa-fé objetiva, estes princípio parece ter se convertido na panacéia de todos os males. Acreditamos que esta é uma conduta inadequada, já que o exagero no campo de aplicação de um princípio termina conduzindo a uma excessiva e desnecessária pulverização do seu conceito com a conseqüente perda da sua força.

Queremos também destacar que a análise deste princípio no campo da bioética não significa que concordemos com os fundamentos normalmente apresentados acerca da dignidade como característica intrínseca da pessoa humana. Este valor inerente do ser humano, unicamente por participar da experiência humana, é algo que acreditamos necessitar uma discussão mais aprofundada que, entretanto, não é o nosso objetivo neste texto. Assim é que abordaremos a idéia de dignidade da pessoa humana nos termos como é comumente tratada na doutrina, intencionalmente não ingressando neste aspecto da discussão.

Ressalvas à parte, do ponto de vista positivista, a proteção da dignidade da pessoa humana se encontra garantida nos mais diversos ordenamentos, tanto nacionais quanto internacionais. Assim é que se encontra prevista no art. 1º, III, da nossa Constituição Federal, como um dos seus princípios fundamentais.

De igual modo, está expressa no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, bem como na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, da UNESCO.

Entretanto, muito para além da sua previsão positiva, que nos parece instrumentalizadora e não criadora do referido princípio e direito, nos interessa muito mais analisar os seus fundamentos formadores e aplicabilidade, especialmente no campo da bioética.

Para tratar da dignidade da pessoa humana na bioética, necessitamos especificar o contexto em que é aqui tratada. Neste sentido, cumpre destacar que a própria aplicação do princípio estará dependente da postura ética adotada.

É que de acordo com uma ética relativista, como são as utilitaristas, seria mais adequado falar num princípio relacionado com a qualidade da vida do que com a dignidade da vida em si. O que caberia aqui seria não uma proteção da vida por possuir um valor intrínseco, mas sim a proteção da vida enquanto esta seja capaz de gerar, ainda que sob a ótica do próprio indivíduo, mais benefícios que malefícios, mais prazer do que dor. A vida digna seria, por conseguinte, a vida com qualidade[55].

Se, ao contrário, realizamos uma abordagem sob uma ótica universalista, a dignidade da pessoa humana passa a ser tratada como uma característica intrínseca à própria condição de ser humano, nada mais lhe sendo exigido[56].

O simples fato de ser humano já carregaria um valor em si, que o faria ser digno de proteção. Esta afirmação nos faz remeter à antiga classificação do ser humano enquanto sujeito de direitos, em contraponto à condição de objeto de direitos. Aqui o princípio da dignidade da pessoa humana atua num dos grandes desafios da Bioética que é justamente impedir a coisificação do homem, que passa cada vez mais a figurar em situação similar à de objeto nos estudos das tecnociências.

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Na Bioética o conceito de dignidade da pessoa humana costuma ser vinculado à idéia de não coisificação do homem. Para Ciccone, isto implicaria em reconhecer a pessoa humana como vértice da realidade em que vivemos[57].

Esta idéia de não permitir a coisificação do homem se estenderia até mesmo para barrar ações que, sob um manto de pseudo-solidariedade, pretendessem impor tratamentos e procedimentos não desejados livremente por um paciente[58].

O conceito de dignidade da pessoa humana passa ainda por diversos outros temas pertinentes à bioética. É verdade que, na maior parte deles, a indeterminação dos conceitos dignidade e pessoa, geram dificuldades a um consenso acerca do alcance de sua aplicação. Assim é que, por exemplo, em temas como aborto e fertilização in vitro, o debate sobre a dignidade da pessoa humana passa antes pelo debate acerca do próprio conceito de pessoa, enquanto que noutras situações, como da eutanásia, passa antes pela discussão sobre o conceito de dignidade e sua relação com a já referida autonomia.

Note-se que, como dito anteriormente, tratar o princípio da dignidade da pessoa humana como um princípio atinente à bioética, não implica em desvalorizar ou desprezar os princípios clássicos abordados pelo principialismo. Servirá ele, em verdade, como mais um elemento para a realização da ponderação entre os princípios diante do caso concreto. Assim é que, por exemplo, na já referida relação médico-paciente, em que muitas vezes encontramos conflito entre a idéia de autonomia e a de beneficência, o princípio da dignidade da pessoa humana pode atuar ajudando a realizar um melhor equacionamento entre aqueles[59].

Há, inclusive, quem afirme que, para além de mais um princípio a ser utilizado no campo da bioética, deveria o da dignidade humana servir como primeiro princípio, princípio norteador, a partir do qual todos os outros deveriam se guiar[60]. Da nossa parte preferimos o enxergar como mais um princípio, cuja aplicabilidade dependerá da análise do seu peso em contraponto a outro princípio diante do caso concreto, mediante ponderação especialmente em relação com o princípio da autonomia.

5. Conclusão.

Os princípios constituem um importante instrumento para a normatização, regulação e resolução de soluções práticas envolvendo as questões bioéticas.

Entretanto, os clássicos princípios abordados na teoria principialista não devem ser tomados como os únicos aplicáveis ao campo da bioética. Outros princípios, como o da dignidade da pessoa humana, aqui trabalhado a título de exemplo, podem e devem ser utilizados para a regulação e resolução dos conflitos bioéticos.

Assim é que não nos parece possível, nem desejável, limitar a aplicação dos princípios na bioética àqueles que se encontram especificados na teoria principialista, já que não são capazes de, sozinhos, resolverem todos os dilemas que podem surgir no campo da bioética. Mais importante do que defender uma teoria que enumere os princípios que lhe

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são aplicáveis, é defender uma prática que possa se instrumentalizar teoricamente para a busca de um mundo eticamente mais viável para as gerações de hoje e de amanhã.

Para que se alcance este objetivo, a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana se apresenta como um importante instrumento, embora se encontre, mais do que nunca, necessitado de um maior embasamento teórico para que possa servir como guia ao avanço das tecnociências.

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[1] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. Embora apresente critérios de distinção forte e fraca entre regras e princípios colhidos da doutrina, o faz para criticar ambos os critérios de distinção. Para o autor tanto a distinção fraca quanto a distinção forte sofrem inconsistências semânticas e sintáticas.

[2]Ibidem, p.84-85.

[3] Além de regras e princípios o autor sustenta a existência de mais uma categoria normativa, denominada postulados. Preferimos neste trabalho a classificação mais comumente utilizada que distingue as normas unicamente em regras e princípios.

[4] COMANDUCCI, Paolo. Princípios jurídicos e indeterminación del derecho. In: Doxa. Disponível em: . Acesso em 10 abr. 08, p.93-94.

[5] Ibidem, p.94.

[6] Ibidem, p.93.

[7] ÁVILA, op. cit., p.87-88.

[8] Ibidem. p.88.

[9] AGUIAR, Mônica. A colisão entre as normas do novo Código Civil e as leis especiais em vigor: aplicação de princípio jurídico. In: LOTUFO, Renan. Sistema e tópica na interpretação do ordenamento. São Paulo: Manole, 2006, p.150.

[10] RUIZ MANERO, Juan. Principios jurídicos. In: VALDÉZ, Ernesto Garzón; LAPORTA, Francisco J. (org). El derecho y la justicia. 2. ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 151.

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[11] Ibidem, p.151.

[12] Ibidem, p.151.

[13] Ibidem, p.151.

[14] Ibidem, p.151.

[15] Ibidem, p.151.

[16] Ibidem, p.153.

[17] ALEXY, Robert. Tres escritos sobre los derechos fundamentales y la teoría de los principios. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p.119.

[18] Ruiz Manero, acompanhado de Atienza, noutra obra.

[19] Mandados de otimização que, para Alexy, é um termo que, embora guarde diferenças, pode ser utilizado indistintamente em relação ao termo princípio (Ibidem, p.109).

[20] Ibidem, p.121-122.

[21] Ibidem, p. 95.

[22] Ibidem, p. 95.

[23] Ibidem, p. 95-96.

[24] Op. cit., p. 78-79.

[25] O autor ainda considera existir uma terceira categoria normativa, diversa das regras e princípios, à qual ele chama de postulados normativos, da qual não trataremos neste texto, por fugir ao objeto de trabalho proposto.

[26] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 39.

[27] Ibidem, p.40-41.

[28] Ibidem, p.42.

[29] Ibidem, p.43.

[30] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Notas em torno ao princípio da proporcionalidade. In: MIRANDA, Jorge (org.). Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976 - vol. I. Coimbra: Coimbra, 1996, p.251.

[31] Ibidem, p. 252.

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[32] Op. cit., p. 36.

[33] AGUIAR, op. cit., 2006, p. 142.

[34] Ibidem, p.44-45.

[35] FERRER; Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2005, p.122.

[36] Ibidem, p.122.

[37] Este princípio só foi incluído a partir da quarta edição da obra.

[38] BEAUCHAMP Tom L.; CHILDRESS James F. Princípios de ética médica. São Paulo: Loyola, 2002, p.138.

[39] Para uma explicação pormenorizada dos diversos modelos de respeito à autonomia, ver AGUIAR, Mônica. Respeito à autonomia: do direito civil à bioética. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Estudos em homenagem ao Prof. Marcos Bernardes de Mello. São Paulo: Saraiva. Trabalho não publicado.

[40] Ibidem, p. 144.

[41] Ibidem, p. 163.

[42] Ibidem, p.164.

[43] Embora a informação seja essencial para que possa o indivíduo realizar o consentimento informado, há situações em que acreditamos que seja mais prudente que o indivíduo não obtenha esta informação completa, como nos casos em que a informação possa gerar uma depressão que agrave o quadro do informado.

[44] BEAUCHAMP; CHILDRESS, op. cit., p.187.

[45] Ibidem, p. 188-189.

[46] Ibidem, p. 209.

[47] Em sentido diverso, SINGER, Peter. Ética prática. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.218-219. Baseado numa ética utilitarista e conseqüencialista enquadra o ato de matar ou deixar morrer como tendo a mesma natureza por conta de ao final alcançarem o mesmo resultado.

[48] BEAUCHAMP; CHILDRESS, op. cit., p.263.

[49] Ibidem, p.281.

[50] Ibidem, p.284.

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[51] Ibidem, p.291.

[52] Ibidem, p.295.

[53] Ibidem, p.318-319.

[54] Ibidem, p.368.

[55] ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998, p.33.

[56] Ibidem, p.57.

[57] CICCONE, Lino. Bioética. Historia. Principios. Cuestiones. Madrid: Palabra, 2005, p.51.

[58] SÉGUIN, Elida. Biodireito. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.51.

[59] MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção do biodireito. In: TEPEDINO, Gustavo (org.) Revista trimestral de direito civil - v. 03. Rio de Janeiro: Padma, 2000, p.70.

[60] ANDORNO, Roberto. La dignidad humana como fundamento de la bioetica y de los derechos humanos em la Declaracion Universal. In: ESPIELL, Héctor Gros; SÁNCHEZ, Yolanda Gómes (orgs.). La Declaración Universal sobre bioética y derechos humanos de la UNESCO. Granada: Comares, 2006, p.263-264.

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