a crise do materialismo histórico

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 6 A crise do materialismo histórico O estranho é quão radicais algumas dessas respostas deram a impressão de ser e quão difícil foi para a esquerda, e m oposição à direita, lidar com elas. Depois d e refletirmos, a estranheza desaparece com bastante facilidade. Um modo de pensa mento anti-autoritário e iconoclasta, que insiste n a autenticidade d outras vozes, que celebra a diferença, a descentralização e a democratização d o gosto, bem como o poder d a imaginação sobre a materialidade, tem de ser radical mesmo quando usado indiscriminadamente. as mãos dos seus praticantes mais responsáveis, toda a bagagem de idéias associadas com o pós-modernismo podia ser empregada para fins radicais, sendo vista, por conseguinte, como parte de um impulso funda mental para uma política mais liberatória, exatamente da mesma maneira como a passagem para processos de trabalho mais flexíveis podia ser considerada uma abertura para uma nova era d e relações de trabalho e empreendimentos coopera tivos democráticos e altamente descentralizados. Da perspectiva d a direita tradicionalista, os excessos dos anos 60 e a violência de 1968 pareciam subversivos ao extremo. Talvez por isso a descrição d e Daniel Bell em The cultural contradictions o capitalism embora partindo inteiramente de u m ponto de vista direitista que visava à restauração do respeito pela autoridade, tenha sido mais precisa que muitas tentativas esquerdistas de perceber o que es tava acontecendo. Outros autores, como Toffler e até McLuhan, viram a significa ção da compressão do tempo-espaço e das confusões por ela geradas de modo que a esq uerda não podia ver, justamente por estar tão profundamente envolvida e m criar a confusão. h á pouco a esquerda chegou a um a cordo com algumas dessas questões, e creio ser relevante o fato de o livro de Berman, publicado em 1982, só re cuperar alguns desses tem as tratando Marx como o primeiro grande escritor modernista, e não como u m marxista capaz de ver o que era o modernismo. A nova esquerda preocupava-se com uma luta para libertar-se das algemas duais da política d a velha esquerda, particularmente em sua representação por partidos comunistas tradicionais e pelo marxismo ortodoxo , e dos poderes re pressivos do capital corporativo e das instituições burocratizadas o Estado, as universidades, os sindicatos etc.). Ela via a si mesma, desde o começo, como uma força cultur a l e político-econômica, tendo ajudado a produzir a virada para a es tética que o pós-modernismo representava. Essa linha de ação, no entanto, teve conseqüências não pretendidas . A entrada na política cultural era mais compatível com o anarquismo e com o liber alism o d o que com o marxismo tradicional , levando a nova esquerda a se opor a atitu des e instituições tradicionais d a classe trabalhadora. E la abraçou novos movimentos socia is qu e eram eles mesmos agentes de fragmentação da política d a velha esquer da. a medida em que es ta última era, na melhor das h ipóteses , passiva, e, n a pior ,

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7/26/2019 A Crise do Materialismo Histórico

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  6

A crise do materialismo histórico

O estranho é quão radicais algumas dessas respostas deram a impressão de ser

e quão difícil foi para a esquerda, em oposição

à

direita,

lidar

com elas. Depois de

refletirmos, a estranheza desaparece com bastante facilidade.

Um modo

de pensa

mento anti-autoritário e iconoclasta, que insiste na autenticidade de outras vozes,

que celebra a diferença, a descentralização e a democratização

do

gosto, bem como

o

poder da

imaginação sobre a materialidade, tem de ser radical mesmo

quando

usado indiscriminadamente. as mãos dos seus praticantes mais responsáveis,

toda a bagagem de idéias associadas com o pós-modernismo podia ser

empregada

para fins radicais, sendo vista,

por

conseguinte, como parte de

um

impulso funda

mental para uma política mais liberatória, exatamente da mesma maneira como a

passagem para processos de trabalho mais flexíveis podia ser considerada uma

abertura

para uma

nova era de relações de trabalho e empreendimentos coopera

tivos democráticos e altamente descentralizados.

Da perspectivada direita tradicionalista, os excessos dos anos 60 e a violência

de 1968 pareciam subversivos ao extremo. Talvez

por

isso a descrição de Daniel

Bell em

The cultural contradictions

o

capitalism

embora partindo inteiramente de

um

ponto de vista direitista que visava à restauração do respeito pela autoridade,

tenha sido mais precisa que muitas tentativas esquerdistas de perceber o que es

tava acontecendo. Outros autores, como Toffler e até McLuhan, viram a significa

ção da compressão do tempo-espaço e das confusões

por

ela geradas de modo que

a esquerda não podia ver, justamente

por

estar tão profundamente envolvida em

criar a confusão. Só há pouco a esquerda chegou a um acordo com algumas dessas

questões, e creio ser relevante o fato de o livro de Berman, publicado em 1982, só

recuperar alguns desses temas tratando Marx como o primeiro grande escritor

modernista, e não como um marxista capaz de ver o que era o modernismo.

A nova esquerda preocupava-se com

uma

luta

para

libertar-se das algemas

duais da política da velha esquerda, particularmente em sua representação

por

partidos comunistas tradicionais e pelo marxismo ortodoxo , e dos poderes re

pressivos do capital corporativo e das instituições burocratizadas

o

Estado, as

universidades, os sindicatos etc.). Ela via a si mesma, desde o começo, como uma

força cultural e político-econômica, tendo ajudado a produzir a virada para a es

tética que o pós-modernismo representava.

Essa linha de ação, no entanto, teve conseqüências não pretendidas. A

entrada

na política cultural era mais compatível com o anarquismo e com o liberalismo do

que com o marxismo tradicional, levando a nova esquerda a se opor a atitudes e

instituições tradicionais da classe trabalhadora. Ela abraçou novos movimentos

sociais que eram eles mesmos agentes de fragmentação da política da velha esquer

da. a medida em que esta última era, na melhor das hipóteses, passiva, e, na pior,

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7/26/2019 A Crise do Materialismo Histórico

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32

A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA

reacionária (no tratamento

das

questões

de

raça e

de

gênero,

da

diferença, e

de

problemas

dos

povos colonizados e das minorias reprimidas e

das

questões ecoló

gicas e estéticas), algum tipo

de

mudança política

da

espécie proposta pela nova

esquerda

por

certo se justificava. Mas, ao fazer esse movimento, a nova esquerda

tendia a abandonar a sua

tanto no proletariado como instrumento de

mudança

progTessista como no materialismo histórico enquanto modo de análise. André Gorz

deu adeus

à

classe operária e Aronowitz anunciou a crise do materialismo histórico.

Assim, a

nova esquerda

perdeu

sua capacidade de ter uma perspectiva crítica

sobre si mesma e sobre os processos sociais de transformação

que

estiveram

na

base

da

emergência de modos pós-modernos de pensamento. Insistindo que

eram

a cultura e a política que importavam, e que não era razoável

nem adequado

invocar a determinação econômica mesmo em última instância (para não falar

de

invocar teorias

da

circulação e

da

acumulação do capital

ou

de relações de classe

necessárias

na

produção), ela foi incapaz

de

conter

sua própria queda em

posições

ideológicas que eram fracas no confronto com a força recém-encontrada dos neo

conservadores, e que a forçavam a competir no mesmo terreno

da

produção

de

imagens,

da

estética e do poder ideológico quando os meios de comunicação esta- ·

vam

nas mãos dos seus oponentes. Por exemplo,

num

simpósito

de

1983,

Marxismo

e Interpret ção d Cultura a maioria dos autores

deu

muito mais atenção a Foucault

e Derrida do que a Marx (Nelson e Grossberg, 1988). Ironicamente, foi

uma

figura

da

velha esquerda (perceptivelmente ausente daquele simpósio), Raymond Williams,

um

estudioso

de

longa

data das

formas e valores culturais

da

classe operária,

que

cruzou as trilhas

da

nova

esquerda

e tentou restabelecer

as

bases materiais daquilo

que as práticas culturais poderiam ser. Williams não somente rejeitou o modernis

mo

como categoria válida, mas,

por

extensão,

viu

o pós-modernismo como

uma

máscara

das

transformações mais profundas

da

cultura do capitalismo que ele

procurava identificar.

A interrogação das formulações marxianas ortodoxas (por escritores

da

tra

dição de Fanon

ou

Simone de Beauvoir,

bem

como pelos desconstrucionistas) foi

tanto necessária como positiva

em

suas implicações. Com efeito, importantes tran

sições já vinham ocorrendo

na

economia política,

na

natureza das funções do Es

tado, nas práticas culturais e

na

dimensão

do

tempo-espaço

em que

as relações

sociais tinham

de

ser avaliadas (a relação entre, digamos, o apartheid na África do

Sul e os movimentos operários

na

Europa

ou

América

do

orte tornou-se

ainda

mais significativa como questão política

do que

fora no ponto alto

do

imperialismo

direto). Foi necessária

uma

concepção propriamente dinâmica,

em vez

de estática,

da

teoria e

do

materialismo histórico para apreender a significação dessas

mudan-

ças. Dentre as áreas

de

maior desenvolvimento,

eu

relacionaria quatro:

1 O tratamento

da

diferença e

da

alteridade não como uma coisa a ser

acrescentada a categorias marxistas mais fundamentais (como classe e forças pro-

dutivas), mas como algo que deveria estar onipresente desde o início em toda

tentativa

de

apreensão

da

dialética

da

mudança

social. A importância

da

recupe

ração de aspectos

da

organização social como raça, gênero, religião,

no

âmbito

do

quadro geral

da

investigação materialista histórica (com a

sua

ênfase no poder

do

dinheiro e

na

circulação do capital) e

da

política

de

classe (com

sua

ênfase

na

unidade

da

luta emancipatória) não pode

ser

superestimada.

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7/26/2019 A Crise do Materialismo Histórico

http://slidepdf.com/reader/full/a-crise-do-materialismo-historico 3/3

A CRISE O MATERIALISMO HISTÓRICO

32

2 Um reconhecimento de que a produção de imagens e de discursos é

uma

faceta importante de atividade que tem de ser analisada como parte integrante

da

reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e cul

turais devem ser levadas em conta merecendo as condições de sua

produção

cui

dadosa

atenção.

3 Um reconhecimento de que as dimensões do espaço e do tempo são rele

vantes e

de

que

geografias reais

de

ação social territórios e espaços

de poder

reais e metafóricos que se tornam vitais como forças organizadoras

na

geopolítica

do

capitalismo ao mesmo tempo em

que

são sede de inúmeras diferenças e

alteridades que têm de ser compreendidas tanto por si mesmas como no âmbito da

lógica global do desenvolvimento capitalista. O materialismo histórico finalmente

começa a levar a sério a sua geografia.

4 O materialismo histórico-geográfico é

um

modo de pesquisa aberto e dia

lético

em vez

de um

corpo fixo e fechado

de

compreensões. A metateoria não é

uma

afirmação

de

verdade total e sim

uma

tentativa de chegar a

um

acordo com

as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo tanto em geral

como em sua fase presente.