a criminologia no brasil

Upload: ribaski77

Post on 10-Apr-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    1/28

    Nada h de mais profundamente desigual do que aigualdade de tratamento entre indivduos diferentes.

    Esmeraldino Bandeira

    INTRODUO

    O pensamento social no Brasil, a partir da segunda metade do s-culo XIX, constituiu-se, em grande medida, a partir da incorpo-raonodebateintelectuallocaldeumconjuntoextremamentevaria-do de idias cientificistas importadas sobretudo da Europa. O positi-vismo foi a doutrina que, at o momento, recebeu maior ateno porparte de historiadores e cientistas sociais que se voltaram para a his-triaintelectualbrasileiradoperodo1,masmuitasoutrasdoutrinas

    tais como diferentes verses do evolucionismo, do materialismo, dasteorias raciais etc. se fizeram igualmente presentes e marcaram demodosignificativoodebateintelectualacercadasociedadebrasileirapelo menos at meados da dcada de 1930, quando se iniciou o pro-cesso de institucionalizao e autonomizao das cincias sociais nopas2.

    677

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 45, n 4, 2002, pp. 677 a 704.

    A Criminolog ia no Brasi l ou Como TratarDesigualmente os Desiguais

    Marcos Csar Alvarez

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    2/28

    Dasidiasqueobtiveramgranderepercussointelectualentreaslti-mas dcadas do oitocentos e as primeiras do novecentos no Brasil, eque ainda merecem ser mais detalhadamente analisadas, pode-se

    destacar as da antropologia criminal ou da criminologia como serposteriormente amplamente denominada , elaboradas na Europasobretudo a partir dos trabalhos de Lombroso e de seus seguidores.As concepes da criminologia que comeava a se constituir comoum campo de conhecimento com pretenses de cientificidade volta-doparaacompreensodanaturezadocrimeedocriminoso,masque,em alguns momentos, tambm ambicionava ser um conhecimentomais amplo acerca da prpria vida social foram incorporadas comentusiasmo por grande parte da intelectualidade brasileira.

    Neste artigo, pretendo ressaltar a importncia das idias da crimino-logia no debate intelectual brasileiro entre 1880 e 1930, a partir deuma anlise de como as concepes de Lombroso e de seus seguido-res foram incorporadas pelos bacharis e juristas brasileiros que asutilizaram no apenas para pensar a sociedade nacional, mas tam-bm para propor e por vezes realizar reformas legais e institucionaisinspiradas nos conhecimentos criminolgicos3.

    A CRIMINOLOGIA NA EUROPA

    A maioria dos autores no campo da criminologia, mesmo muitos da-queles que assumemposio mais crtica no interior deste, atribui aostrabalhos de Cesare Lombroso (1835-1909) um lugar de destaque naconstituio do conhecimento criminolgico moderno.

    Juntamente com Rafaele Garofalo (1852-1934), Enrico Ferri (1856-

    1929)eoutros,Lombrosopretendeuconstruirumaabordagemcient-fica do crime, estabelecendo, desse modo, uma oposio no interiordasdoutrinaspenaisentrea Escola Clssica,desenvolvida,desdeos-culoXVIII,apartirdasidiasdeCesareBeccaria(1738-1794)eJeremyBentham(1748-1832),ea EscolaPositiva,defendidapeloprprioLom-brosoeseusseguidores.Estaciso,aindapresentenacriminologiadosculo XX4, indica duas formas de abordar o problema do crime: deum lado, a Escola Clssica define a ao criminal em termos legais aoenfatizar a liberdade individual e os efeitos dissuasrios da punio;

    de outro, a Escola Positiva rejeita uma definio estritamente legal, aodestacar o determinismo em vez da responsabilidade individual e ao

    Marcos Csar Alvarez

    678

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    3/28

    defender um tratamento cientfico do criminoso, tendo em vista aproteo da sociedade.

    Formado em medicina, e influenciado desde cedo por teorias materi-alistas, positivistas e evolucionistas, Lombroso5 tornou-se famosopor defender a teoria que ficou popularmente conhecida como a docriminoso nato, expresso que na realidade foi criada por Ferri. Aopartir do pressuposto de que os comportamentos so biologicamentedeterminados, e ao basear suas afirmaes em grande quantidade dedados antropomtricos, Lombroso construiu uma teoria evolucionis-ta na qual os criminosos aparecem como tipos atvicos, ou seja, como

    indivduos que reproduzem fsica e mentalmente caractersticas pri-mitivas do homem. Sendo o atavismo tanto fsico quanto mental, po-der-se-ia identificar, valendo-se de sinais anatmicos, aqueles indiv-duos que estariam hereditariamente destinados ao crime.

    Aolongodeseustrabalhos,Lombrosoincorporousuateoriadoata-vismo vrias outras categorias referentes s enfermidades e s dege-neraes congnitas, que ajudariam a explicar as origens do compor-tamento criminoso, acabando mesmo por considerar igualmente as

    causas sociais em suas explicaes. Mas ele nunca abandonou o pres-suposto de que as razes fundamentais do crime eram biolgicas eque poderiam ser identificadas a partir dos estigmas anatmicos dosindivduos. Em termos gerais, Lombroso reduziu o crime a um fen-meno natural ao considerar o criminoso, simultaneamente, como umprimitivo e um doente.

    O livro mais importante de Lombroso, L'Uomo Delinquente, foi publi-

    cadopelaprimeiravezem18766

    .Estetrabalho,noqualoautordesen-volve suas principais idias acerca das razes do crime, foi inmerasvezes reeditado na Itlia e traduzido em diversos pases europeus. Olivro ganhou notoriedade a partir da segunda edio italiana em1878, e com as tradues em francs e alemo, publicadas em 1887,passou a ser amplamente conhecido no exterior. Ao longo das cincoediesemitaliano,foisendoampliadoporLombrosoque,acadapu-blicao, adicionava novos dados antropomtricos para confirmarsuas teorias. Em 1899, publicou Le Crime, Causes et Remdes7, no qual

    deu ateno tambm aos fatores socioeconmicos que causariam ocrime.

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    679

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    4/28

    As teorias de Lombroso tiveram um grande impacto em sua poca,permanecendo por muitos anos como o tema por excelncia das dis-cussesjurdicasepenais.Talvezarepercussodesuasidiassedeva

    tantoaocarterreducionistaesimplistadosargumentospropostos,oque deve ter facilitado a divulgao para um pblico mais amplo,quanto ao empenho com que ele prprio se lanou na defesa e difusode suas teses.

    Lombroso tinha grandes ambies com relao aos novos conheci-mentos que estava elaborando. Embora para a posteridade a antropo-logia criminal seja lembrada apenas como uma doutrina penal, Lom-broso pretendia criar uma cincia ampla, cujas aplicaes no campo

    penal seriam apenas um desdobramento entre os muitos possveis. Aesse respeito, Lombroso explcito em um texto em que defende a an-tropologia criminal como uma cincia pura: Entretanto, no paraas aplicaes judicirias que estudamos; os sbios fazem a cinciapela cincia e no para aplicaes que poderiam fazer seu caminhoimediatamente (Lombroso, 1896:15)8.

    Mais que uma inovao no campo das doutrinas penais, portanto,Lombroso pretendia criar uma cincia da natureza humana, capaz de

    dar conta das desigualdades entre os homens9

    . O combate por umanova cincia requeria o esforo no apenas de um pesquisador, masde muitos, talvez de toda uma gerao, e quanto a isso, Lombrosotambm claro ao sublinhar que os novos conhecimentos eram resul-tadodeumamplomovimentocoletivodeidias.Aoargumentarcon-tra seus crticos, Lombroso assim se expressa:

    Essasoposiesprovm,emgrandeparte,dofatodequemuitosdosoponentes no conhecem as publicaes feitas em lngua estrangeira.Eles se atm, por exemplo, ao meu Homem Criminal, que apenas aprimeira parte de uma obra j antiga, enquanto muitos outros traba-lhos, e mais eruditos ainda, tm sido publicados desde ento sobre omesmo assunto. (idem:11)

    Logo, para Lombroso, a antropologia criminal era um grande empre-endimento intelectual, sendo seus prprios trabalhos apenas o incioda construo desse ambicioso edifcio cientfico.

    Entre os autores que compartilharam das ambies do pai da antro-

    pologia criminal, os nomes de Ferri e Garofalo so geralmente desta-cados. Desse modo, Lombroso, Garofalo e Ferri formam juntos os pi-

    Marcos Csar Alvarez

    680

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    5/28

    lares intelectuais do movimento que ficou conhecido como EscolaPositiva, Escola Determinista ou Escola Italiana de direito pe-nal10, e que consolidou a definio mais geral da criminologia11 como

    a cincia voltada para o estudo do homem delinqente.

    Rafaele Garofalo12 era magistrado e escreveu, sobretudo, a respeitodas reformas prticas da justia criminal e das instituies legais.InfluenciadopelodarwinismosocialeporHerbertSpencer,cunhouaexpresso crime natural para definir as condutas que ofendem ossentimentos morais bsicos de piedade e probidade em uma socieda-de. Do mesmo modo que Lombroso, relegava os fatores sociais a umaposio secundria na etiologia do crime. Defendeu vrias idias que

    se tornaram patrimnio comum da Escola Penal Positiva, entre elas ada rejeio da noo de responsabilidade moral, que seria incompat-vel com o ideal de defesa social, e a da nfase na individualizao dapunio, a qual deveria ter por referncia as caractersticas particula-res de cada criminoso.

    EnricoFerri,porsuavez,eraprofessordedireitopenale,aocontrriode Lombroso e Garofalo, enfatizava os fatores sociais na etiologia docrime, mas sem deixar de lado os fatores individuais e fsicos. Sua

    classificao dos criminosos foi bastante divulgada. Para ele, os cri-minosos poderiam ser divididos em cinco classes: natos, insanos,passionais, ocasionais e habituais13. Ferri visitou a Argentina e o Bra-sil em 1910 para divulgar os ensinamentos da Escola Positiva (cf.Moraes, 1910).

    So, porm, os diversos congressos de antropologia criminal, realiza-dosnofinaldosculoXIXeinciodoXXnaEuropa,quemostrambemo grande interesse que essa disciplina despertou no apenas entre os

    especialistas, mas tambm entre os leigos em sua poca. O primeirocongresso, realizado em Roma em 1885, representa o pice da carreirade Lombroso e da Escola Italiana de Criminologia14. Mas ao longodesses congressos que comeam a surgir algumas das principais re-sistncias s novas idias penais. J no congresso seguinte, realizadoem Paris em 1889, organiza-se a oposio s colocaes centrais acer-ca do criminoso nato, sobretudo por parte da assim chamada EscolaSociolgica de Lyon15, liderada por Lacassagne, que enfatiza o meiosocial como caldo de cultura do crime (apud Darmon, 1991:91).

    Apesar de as tentativas subseqentes de Lombroso e Ferri tambm in-corporarem os fatores sociais na etiologia do crime, nos congressos

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    681

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    6/28

    seguintes os conflitos exacerbam-se, permanecendo as divergnciasdas diferentes teorias criminolgicas at o ltimo congresso, realiza-do em Turim em 1906. A morte de Lombroso, em 1909, marca o fim

    desses congressos.

    Outra crtica importante aos trabalhos de Lombroso e s teorias daantropologia criminal partiu de um magistrado francs, GabrielTarde (1843-1904). Em seus principais textos, como, por exemplo, LaCriminalit Compare16, faz crticas devastadoras aos trabalhos deLombroso, ao indicar que a descrio do criminoso nato correspondemuito mais s caractersticas de um tipo profissional do que a deter-minaes biolgicas inatas. s idias da antropologia criminal, Tarde

    contrape suas leis da imitao para explicar os comportamentos so-ciais e as noes de identidade e similaridade social como critrios dedefinio da responsabilidade penal.

    Os procedimentos metodolgicos de Lombroso estavam igualmenteaqum dos padres de cientificidade da prpria poca e foram rapi-damente criticados pelos seus contemporneos. Ele manipulava seusdados sem grande rigor ao incorporar tudo que pudesse ilustrar seusduvidosos pressupostos de anlise. Em uma crtica nesse sentido,Gaston Richard, na seo da revista LAnne Sociologique, de 1896-1897, dedicada sociologia criminal, afirma categoricamente que ateoria lombrosiana puramente dedutiva sob uma aparncia de fi-delidade ao mtodo experimental, e desmonta em seguida os princi-pais pilares da teoria do criminoso nato (Richard, 1897:394)17.

    Assim,noinciodosculopassadonaEuropa,asidiasbsicasdaan-tropologia criminal j encontram amplo descrdito. E nesse mo-mento, paradoxalmente, que elas encontraro nos pases latino-ame-ricanosverdadeiroseldoradosdaNovaEscola(Darmon,1991:110),como veremos a seguir.

    A CRIMINOLOGIA NO BRASIL

    nas ltimas dcadas do sculo XIX que comea a recepo da crimi-nologia no pas. Diversos historiadores do direito penal18 consideramJoo Vieira de Arajo (1844-1922), professor da Faculdade de Direito

    do Recife, o primeiro autor a se mostrar informado a respeito das no-vas teorias criminais, ao comentar as idias de Lombroso em suas au-

    Marcos Csar Alvarez

    682

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    7/28

    las na Faculdade do Recife e tambm em textos sobre a legislao cri-minal do Imprio.

    E, de fato, em seu livro Ensaio de Direito Penal ou Repeties Escritas so-breoCdigoCriminaldoImpriodoBrasil ,publicadoem1884,JooViei-ra de Arajo j aponta para a necessidade de analisar a legislao na-cionaldeumpontodevistafilosficomaismoderno,quenocampodo direito criminal seria representado sobretudo pela obra de Lom-broso:

    O direito criminal dentre todos os outros direitos justamente o queest sujeito s mais constantes e rpidas mudanas em seu conceito.

    Basta ler a obra do grande professor italiano Cesare Lombroso LUomoDelinquente eterumaligeiranotciadaimportnciadosestu-dos realizados na antropologia em diversos pases adiantados da Eu-ropa para avaliar ou prever que progressos estupendos esto reserva-dos no futuro s instituies criminais. (Arajo, 1884:v)

    JooVieiradeArajosededicaradivulgarasidiasdaantropologiacriminal de Lombroso no apenas entre seus alunos do Recife, mastambm para um pblico especializado mais amplo, ao publicar arti-

    gosemrevistasjurdicasdoRiodeJaneiro.Muitosdosfuturospropa-gandistas da criminologia no Brasil, como o jurista Francisco Jos Vi-veiros de Castro, reconhecero Joo Vieira de Arajo como o legtimopioneiro da Escola Positiva de direito penal no pas (cf. Viveiros deCastro, 1894:14).

    Outrosautores,noentanto,comoSilvioRomero(1951:55),atribuemaTobias Barreto esse mrito. E, realmente, no mesmo ano de 1884,quando Joo Vieira de Arajo publica seus trabalhos acerca da legis-

    lao criminal do Imprio, Tobias Barreto, em seu livroMenores e Lou-cos, faz referncias ao LUomo Delinquente, ao discutir a necessidadede diferenciao das diversas categorias de irresponsveis no campopenal.AavaliaodeTobiasBarretosobreessaobrano,noentanto,totalmente elogiosa, pois, se, por um lado, admite que o trabalho deLombroso pertence ao pequenonmerodos livros revolucionrios,equeesteestavamuitofamiliarizadocomacinciagermnicaecomalnguaalem(Barreto,1926:67-68)oqueparaojuristasergipanoeracondio quase suficiente para garantir o interesse em relao a um

    autor , por outro, no deixa de censurar os exageros naturalistas daabordagem da questo criminal feita por Lombroso.

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    683

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    8/28

    De qualquer modo, aps essa recepo pioneira no Recife, inmerosoutros juristas, ao longo da Primeira Repblica, passam a divulgar asnovas abordagens cientficas acerca do crime e do criminoso: Cl-

    vis Bevilqua, Jos Higino, Paulo Egdio de Oliveira Carvalho, Rai-mundo Pontes de Miranda, Viveiros de Castro, Aurelino Leal, Cndi-do Mota, Moniz Sodr de Arago, Evaristo de Moraes, Jos TavaresBastos, Esmeraldino Bandeira, Lemos Brito, entre outros, publicamartigos e livros em que so discutidos os principais conceitos e auto-res da criminologia e da Escola Positiva de direito penal. Alguns setornam entusiastas das novas teorias penais, outros censuram o exa-gero de certas colocaes consideradas radicais, mas a grande maio-ria toma as novas discusses no campo da criminologia como temas

    obrigatrios de debate no interior do direito penal.

    Se no possvel apontar com absoluta preciso quem foi efetivamen-teopioneironosestudosdacriminologianoBrasil,interessanteres-saltarquetantoareivindicaodopioneirismononovocampoquan-to a busca de reconhecimento internacional cedo se colocaram comoimportantes elementos de legitimao e distino entre os pensado-resquecomeavamatrabalharcomasnovasteorias.ViveirosdeCas-tro, por exemplo, chama para si o mrito de ter apresentado o primei-

    ro livro de divulgao das novas idias no Brasil (Viveiros de Castro,1894:14),aopassoqueCndidoMota,naapresentaodareediodeseulivro ClassificaodosCriminosos (Mota,1925),cita,entreosmuitoselogiosfeitosaoseutrabalhonoBrasilenoexterior,asupostaaprova-o do prprio Lombroso maior glria possvel para os discpulosdas novas teorias criminolgicas.

    Provavelmente, o fato de a antropologia criminal ter ganho impulsona Amrica Latina no momento em que entrava em decadncia no

    continente europeu deve ter facilitado o reconhecimento internacio-nal dos autores que, no Brasil, se fizeram discpulos das novas teorias,pois, se Lombroso e seus seguidores j no encontravam a mesma re-ceptividade para suas idias no cenrio europeu, podiam encontrarna Amrica Latina e, especificamente, no Brasil grande nmero de en-tusiastas dispostos a divulgar as principais idias do pai da antropo-logia criminal e de seus correligionrios.

    Se essa disputa em torno do pioneirismo e do reconhecimento inter-

    nacional na incorporao dos conhecimentos da antropologia crimi-nal ao saber jurdico no Brasil compreensvel no mbito da constru-

    Marcos Csar Alvarez

    684

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    9/28

    o de uma nova tradio intelectual, certo tambm que os juristasbrasileiros se mostram efetivamente atualizados e sintonizados comasdiscussesqueentoocorriamnoexterior.Tantoassimqueosco-

    mentrios de Joo Vieira de Arajo e Tobias Barreto so publicadosantes do primeiro congresso de antropologia criminal em 1885, quefoi o marco a partir do qual as idias de Lombroso ganham efetiva-mente repercusso internacional. Os juristas nacionais, que posteri-ormente se destacam na discusso das teorias da antropologia crimi-nal, acompanham de perto o debate europeu em torno das novas teo-rias penais, conhecendo inclusive as principais crticas a Lombroso eseus discpulos. Portanto, se os juristas valorizam a Escola Antropo-lgicanoporfaltadeinformaoarespeitodoqueocorrianaEuro-

    pa, mas sim por acreditarem que se tratava do que de melhor se pro-duzia na poca no campo da compreenso cientfica do crime.

    Desse modo, mesmo conhecendo as crticas mais significativas apre-sentadas na Europa contra a antropologia criminal, os simpatizantesno Brasil no deixam de reafirmar a importncia fundamental dosconceitos dessa escola. Nesse sentido, por exemplo, o magistrado A.J. Macedo Soares, ao defender as novas idias penais em 1888, nas p-ginas da revista O Direito, editada no Rio de Janeiro, admite que mes-

    mo na Itlia as idias de Lombroso e seus correligionrios no conse-guiam sensibilizar a maioria dos profissionais do direito e nem mes-mo influenciar a proposta do novo Cdigo Penal italiano. Mas isso,ainda segundo esse autor, longe de desestimular a divulgao da an-tropologia criminal em terras nacionais, mostrava, pelo contrrio,queoBrasilestavanamesmasituaoqueosdemaispaseseuropeus,podendo assim se situar na vanguarda da realizao dessa autnticarevoluo que comeava a despontar no campo do direito:

    [...] o que notvel que, na prpria Itlia, a Escola de Lombroso eFerri no tenha recrutado proslitos entre os legisladores, professorese estadistas, isto , entre aqueles que mais podiam contribuir para aintroduo das idias novas na economia das leis ptrias.[...] No ve-mos, porm, que de nenhum desses fatos se possa concluir contra averdade dos ensinos da escola antropo-jurdica. A nica concluso atirar que os estadistas e professores italianos esto quase no mesmocaso dos professores e estadistas brasileiros. Para uns, como para ou-tros, esses estudos esto por fazer, so novos e como toda a novidade

    que abala desde os alicerces um sistema inteiro, incutem receio e pro-vocam resistncias. (Macedo Soares, 1888:499)

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    685

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    10/28

    Ou seja, no era por mera imitao que o Brasil deveria seguir as no-vas concepes da antropologia criminal, mas sim por se tratar doque havia de mais avanado no mundo em termos de doutrinas pe-

    nais, segundo os defensores da criminologia.

    Outrosautores,mesmodiantedascrticasespecficasfeitasaostraba-lhos de Lombroso na Europa, ou apenas as desconsideram ou, ento,se esforam por refut-las. Viveiros de Castro, por exemplo, cita emseutrabalhoacontestaodeTardeidiadotipocriminosoquaseque apenas a ttulo de ilustrao (Viveiros de Castro, 1894:97-115).Paulo Egdio de Oliveira Carvalho, por sua vez, discute extensiva-menteosconceitosdeDurkheimacercadocrime,masindicaaimpro-

    priedade de suas objees antropologia criminal (Carvalho,1900:111-139). J Arago defende enfaticamente Lombroso e a teoriado criminoso nato da tempestade que se desencadeou contra as afir-maes audaciosas das suas teorias, que vinham abalar to funda-mente os alicerces da cincia oficial (Arago, 1928:25). Logo, se essese outros juristas defendem as idias da antropologia criminal, fa-zem-no tendo conscincia das principais objees presentes no deba-te europeu.

    Parece difcil, desse modo, caracterizar a presena da antropologiacriminaledasociologiacriminalnoBrasilapenascomomaisumcasode importao equivocada de idias19. Longe de se apresentarem so-mente como idias fora do lugar, ou como simples modismo dapoca, as novas teorias criminolgicas parecem responder s urgn-cias histricas que se colocavam para certos setores da elite jurdicanacional. No se pode negar, entretanto, que o estilo dos autores bra-sileiros, ao incorporarem as novas teorias, bastante ecltico e, namaioria das vezes, pouco original em termos tericos.

    O ecletismo manifesta-se na tendncia a apagar as diferenas entre asdiversas correntes de pensamento voltadas para o problema crimi-nal, tal como se definiam na Europa, justapondo autores e teorias ri-vais. A prpria terminologia utilizada , na maioria das vezes, vaga:antropologia criminal, criminologia e sociologia criminal20 so ter-mos freqentemente usados como sinnimos que indicariam umanica disciplina. Mas mesmo esse ecletismo no totalmente estra-nho ao desenvolvimento da criminologia na Europa. Especialmente

    os intelectuais ligados antropologia criminal, Lombroso frente,no podem ser classificados como autores por demais rigorosos na

    Marcos Csar Alvarez

    686

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    11/28

    construodeseusconceitos.EseguindoasorientaesdeLombro-so que a maioria dos autores nacionais pensa a sociologia criminalquase que como um prolongamento da antropologia criminal, de

    tal maneira que os aspectos sociais aparecem como causas entre ou-tras capazes de explicar a fraqueza moral dos criminosos. Assim, aforte ciso presente no debate europeu entre a antropologia criminalde Lombroso, Ferri e Garofalo e a sociologia criminal de Tarde eDurkheim, no Brasil, dilui-se em benefcio das concepes da EscolaAntropolgica, com todos os autores aparentando pertencer ao cam-ponicodacriminologia.Paraexemplificaressafreqenteindiferen-ciao, basta mencionar como autores que, ainda no final do Imprio,defendemanecessidadedeincorporaoda antropologiacriminalpelo

    pensamento jurdico nacional sustentam que esta se d sobretudomediante a criao da cadeira de sociologia nas faculdades de direito(ver Macedo Soares, 1888; Arajo, 1889b).

    Os trabalhos desenvolvidos so, igualmente, pouco originais teorica-mente, constituindo-se em geral no recenseamento das principaisidias criminolgicas em voga. Mas nem por isso os autores perdemtotalmente de vista os problemas prticos que se apresentam em facedarealidadenacional.Pelocontrrio,comoseasquestesmaisime-

    diatasprecisassemservistaspelagradeconceitualfornecidapelaste-orias importadas. Assim, as questes jurdico-penais locais adquiri-am novos contornos e possibilidades, ao mesmo tempo que o debateintelectual nacional se equiparava ao que de mais avanadoexistia nomundo.

    Como resultado da recepo ecltica e conciliadora das teorias crimi-nolgicas europias pelos juristas brasileiros, o crime e o criminosopassam a ser pensados como problemas complexos demais para se-

    rem observados de um ponto de vista nico. Tanto os aspectos biol-gicos quanto o meio social devem ser assim estudados pelas discipli-nas criminolgicas. Nessa direo, Clvis Bevilqua argumenta que,mesmo sendo simpatizante da Escola Sociolgica, no deixa de admi-tir a presena de causas biolgicas na origem do crime:

    Estouconvencidodequehum pathos criminogneo,um morbus queimpele ao delito, qualquer que seja a sua natureza, e contra o qual apena se revelar impotente na maioria dos casos; mas essa anomalia

    menos comum do que se poderia supor; estou igualmente convenci-do. O que mais ordinariamente se depara na vida, a combinao de

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    687

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    12/28

    certas condies fisio-psquicas apropriadas perpetrao do malef-cio, com certas outras condies sociais que fecundam esse germe in-dividual, se que muitas vezes no o fazem produzir-se. (1896:17)

    O que Bevilqua censura na Escola Antropolgica o exagero daque-les que interpretam de maneira exclusivamente biolgica as causasdocrime,subestimandoosaspectospropriamentesociaisigualmentepresentes. Situado no extremo oposto da discusso, Antonio MonizSodr de Arago, em seu livro As Trs Escolas Penais, publicado origi-nalmente em 1907, no qual critica as abordagens sociolgicas do cri-me (inclusive a de Bevilqua), no deixa de admitir que as causas so-ciais esto igualmente presentes, embora sejam secundrias em rela-

    o s causas biolgicas individuais21

    .

    Os estudiosos do tema no Brasil distribuem-se, desse modo, entre asEscolas Antropolgica ou Sociolgica, especialmente pelo acentomaior ou menor que atribuem aos fatores biolgicos ou sociocultu-rais na etiologia do crime, mas no discordam que a compreenso docrime e do criminoso requer a presena simultnea das duas aborda-gens. Sob essa tnue linha divisria, do lado da antropologia criminalperfilam-se nomes como Joo Vieira de Arajo, Viveiros de Castro,

    Cndido Mota, Antonio Moniz Sodr de Arago. Mais propensos aatribuir importncia decisiva aos fatores sociais e culturais na etiolo-giadocrime,alinham-se,ClvisBevilquaePauloEgdiodeOliveiraCarvalho, entre outros.

    De todo modo, evidente a forte presena de Lombroso na maioriados trabalhos, indicando a subordinao, como j afirmei, no Brasil,das abordagens sociolgicas do crime quela da antropologia crimi-nal. Mesmo aqueles que no se empolgam com os exageros determi-

    nistas da Escola Antropolgica no deixam de render homenagem aLombroso e seus discpulos. Este o caso, j citado, de Tobias Barretoque, embora tenha lanado muitas crticas aos exageros de LUomoDelinquente, no deixa de consider-lo um livro revolucionrio. MaisdoqueaconcordnciaemtornodacontribuiodeLombroso,oprin-cipal ponto de convergncia do discurso da criminologia no Brasil, ouda NovaEscolaPenal comopassaaserchamadacommaispropriedadepelos autores nacionais, a idia de que o objeto das aes jurdica epenal deve ser no o crime, mas o criminoso, considerado como um

    indivduo anormal. Assim, com a emergncia do discurso da NovaEscola Penal no interior dos debates jurdicos nacionais, o que temos

    Marcos Csar Alvarez

    688

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    13/28

    apresenadeumdiscursonormalizadornointeriordosaberjurdi-co22. Por isso, diferentes expresses criminologia, Nova Escola Penal,antropologia criminal, Escola Antropolgica, sociologia criminal, Escola

    Positiva de Direito Penal so utilizadas pelos autores brasileiros pra-ticamente como sinnimos de uma nova concepo do direito penalque deve ser aplicada na reforma das instituies jurdico-penais na-cionais.

    No h, portanto, diferenas substanciais entre aqueles que passam adefender as novas teorias penais no Brasil, quer do ponto de vista an-tropolgico quer do sociolgico. A crtica s concepes jurdicas daEscolaClssica,adefesadosnovosfundamentosdodireitodepunire

    a necessidade de reforma das leis e instituies penais so pontos deconvergncia entre os diversos autores, a despeito das divergnciaspontuais que possam existir.

    No surpreende o fato de ter sido a Faculdade de Direito do Recife aporta de entrada das idias criminolgicas no Brasil, pois, como jtive oportunidade de mencionar, o ambiente intelectual nessa facul-dadeera,desdeadcadade1870,bastantepermevelintroduodeteoriascientificistas,importadassobretudodaEuropa.Oambientefi-

    losfico mais crtico que vai ento sendo formado acaba por apontarpara a necessidade de renovao dos estudos jurdicos e, na poca,sem dvida a antropologia criminal aparecia como o triunfo, por ex-celncia, das concepes cientificistas no campo do direito penal.Assim, a renovao dos estudos jurdicos, estimulada pelo ambienteintelectual do Recife, teria de passar inevitavelmente pela discussodessas teorias e, efetivamente, os trs professores que ento se desta-camnarenovaodacinciadodireitoJosHigino,TobiasBarretoeJoo Vieira de Arajo (cf. Barros, 1959:148) acabam por abordar, em

    diferentes momentos de seus trabalhos, os debates em torno da antro-pologia criminal. Essa recepo pioneira marcou significativamenteos estudos posteriores acerca do direito penal na faculdade. Nessesentido, Schwarcz (1993), por exemplo, ao analisar a Revista Acadmi-ca da Faculdade de Direito do Recife, a partir de 1891, mostra como a an-tropologia criminal ganha importncia nessa publicao, servindocomoinstrumentodeafirmaododireitoenquantoprticacientficae justificando a ao missionria dos legisladores em vista dos pro-blemas da nao ( idem:156-157). Alm disso, dissertaes e monogra-

    fiassobreotemaforamproduzidasporprofessoresealunosdafacul-dade23.

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    689

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    14/28

    Mas, se como afirma Schwarcz em relao produo jurdica nacio-nal, se do Recife vinham as teorias e os novos modelos de explicao,enquanto de So Paulo partiam as prticas polticas convertidas em

    leisemedidas(idem:184),asteoriasdacriminologiacorriamoriscodepermanecer isoladas nos debates tericos dos juristas do Recife, semsurtir efeitos concretos mais significativos. Mas isso no aconteceu, erapidamente as idias da antropologia chegaram aos debates jurdi-cos realizados no Rio de Janeiro e em So Paulo. Na ento capital doImprio,umdosprincipaisresponsveisporessadivulgaoopr-prio Joo Vieira de Arajo.

    A despeito das querelas anteriormente citadas acerca de quem foi o

    pioneiro na recepo da antropologia criminal no pas, certo que adivulgao dos novos conhecimentos, inclusive para alm do Recife,coube muito mais a Joo Vieira de Arajo, mesmo porque ele se mos-trou bem mais entusiasmado com a antropologia criminal, ao contr-rio de Tobias Barreto, que foi mais reticente na defesa das idias deLombroso. Clvis Bevilqua define o perfil de Joo Vieira de Arajocomo jurista da seguinte maneira:

    JooVieirapertenceuaogrupodeestudiosos,aquesedeuonomedeEscola do Recife, na sua fase jurdica, ou, antes, aos que lhe prepara-ram, a princpio, o advento, e, depois, se deixaram arrastar pelo movi-mento. Adotara os princpios da doutrina evolucionista de Spencer,Ardig e outros mestres italianos. Especializando-se no Direito crimi-nal, seguiu a orientao da Escola de Lombroso, Ferri e Garofalo; en-tretanto nem foi jamais um sectrio intransigente, nem se restringiu acultivar o Direito criminal. (1896:67)

    Pela citao de Bevilqua, j possvel perceber que a antropologiacriminal, tal como se apresenta na trajetria de Joo Vieira de Arajo,

    aparece no interior do movimento de especializao da onda cientifi-cista,prpriadaEscoladoRecife.Comodisse,oespritocrticoepo-lmicodomovimentocientificistaqueestimulaarenovaodosestu-dos jurdicos mediante a importao, entre outras teorias, da antro-pologiacriminal,queadquire,desdeoincio,umclarosignificadore-formador.

    Mesmonosendo,nodizerdeBevilqua,umdefensorradicaldasno-vas teorias penais, Vieira de Arajo fortaleceu ainda mais sua reputa-

    o como jurista ao divulgar as idias da antropologia criminal noBrasil. Ele se correspondia diretamente com o prprio Lombroso, o

    Marcos Csar Alvarez

    690

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    15/28

    que facilitou o reconhecimento de seus trabalhos na Itlia (cf.Castiglione, 1962:276). Provavelmente inspirado pelo esprito mili-tantedeLombrosoeseusseguidores,JooVieiradeArajoseprops

    a divulgar as noes da Nova Escola para alm do Recife. Assim, naspginas de O Direito, revista especializada em legislao, doutrina ejurisprudnciaepublicadanacidadedoRiodeJaneiro,JooVieiradeArajo apresentou vrios artigos, nos quais defendia as teorias daEscola Antropolgica. No primeiro deles, intitulado A Nova Escolade Direito Criminal, comenta os trabalhos de Lombroso, Ferri e Ga-rofalo, explicitando que a Nova Escola tem por objeto o homem cri-minoso e sua atividade anormal e como fim a diminuio dos crimesque assoberbam as sociedades atuais no esplendor de toda sua civili-

    zao (Arajo, 1888:487).

    No ano seguinte, ele divulga as idias da Escola Positiva em dois arti-gos, O Direito e o Processo Criminal Positivo e Antropologia Cri-minal. No primeiro, afirma que Lombroso e outros autores, comoSpencer, Darwin e Hackel, haviam mudado a face no apenas dasdoutrinas jurdicas, mas de todo o processo penal. Nesse sentido,Arajo defende idias que posteriormente sero bastante divulgadaspelos adeptos nacionais dos novos conhecimentos, tais como as de

    que o essencial combater os crimes ocasionados por uma constitui-oorgnicaepsquicadefeituosa,edequeojridevesertotalmenteabolido perante os crimes comuns:

    HumoutropontocardealemqueaNovaEscolanopodetransigir.O jri uma instituio mais poltica do que judiciria e pois ela podeser conservada para julgar crimes polticos. Mas entregar ao jri as-sassinos, ladres, estupradores, falsrios, enfim o julgamento dos cri-mes comuns sancionar a impunidade e a impossibilidade de prati-car qualquer sistema racional de represso social que se funde nos en-sinamentos da cincia e no conhecimento exato da natureza real dodelinqente. (Arajo, 1889b:330)

    O jri ser, sem dvida, o principal alvo de crticas da esmagadoramaioria dos juristas da Nova Escola24.

    No segundo artigo, Joo Vieira de Arajo esclarece que os estudosanatmicos que haviam celebrizado Lombroso eram, na verdade,apenas um apndice da nova cincia do crime, que consistiria muito

    mais em uma grande sntese de conhecimentos obtidos pelos pro-cessos cientficos da observao e da experincia no estudo do ho-

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    691

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    16/28

    mem criminoso considerado por todos os seus caracteres somticos epsquicos (1889a:178). Percebe-se, desse modo, que Joo Vieira deArajoentendeuclaramenteoambiciosoprojetodopaidaantropolo-

    gia criminal.

    Em outro texto publicado na mesma revista, j em 1894, intituladoSociologia, Filosofia, Cincia e Direito, Joo Vieira de Arajo vcom satisfao que o direito penal, mesmo no Brasil, passa a ser influ-enciado, cada vez mais, pelos estudos cientficos modernos sobre acriminalidade, consolidando-se, assim, a tendncia, aberta pela an-tropologia criminal e por ele pioneiramente divulgada no pas, paraaplicao dos mtodos positivos tambm aos estudos jurdicos.

    OotimismomanifestoporJooVieiradeArajonessesartigos,publi-cados sobretudo nos derradeiros anos do Imprio, no era descabido,uma vez que, nas mesmas pginas de O Direito, outros juristas oacompanham na defesa das novas teorias penais, como Macedo Soa-reseMeloFranco,mostrandoassimqueasidiasdaantropologiacri-minal j ganhavam importncia no centro poltico do pas. Vai fican-do claro nos artigos que a incorporao da Nova Escola Penal pelopensamentojurdiconacional,segundoseusdefensores,umaimpo-

    sio tanto da evoluo do pensamento moderno, quanto das condi-es polticas e sociais nacionais. O jurista Melo Franco (1889:337) la-mentava, no entanto, que no Brasil as reformas s se impunhamquando j se estava, como naquele momento, diante da iminncia deuma revoluo social. A revoluo social no ocorreu, mas veio a Pro-clamao da Repblica e, com ela, novas esperanas de reformas le-gais e institucionais, que animaram ainda mais os juristas adeptos dacriminologia, presentes, cada vez em maior nmero, nas duas princi-pais metrpoles do pas, Rio de Janeiro e So Paulo.

    Tratar Desigualmente os Desiguais

    No Brasil, a Proclamao da Repblica foi saudada com grande entu-siasmopormuitosjuristas,queviamnaconsolidaodonovoregimea possibilidade de reforma das instituies jurdico-penais, segundoos ideais da Escola Criminolgica Italiana que ainda dominava o de-bate no interior do direito penal na Europa. Embora o otimismo inici-al tenha dado lugar a uma certa decepo, uma vez que o Cdigo Pe-

    nal de 1890 ficou muito aqum do que se esperava, por se organizarcomoumcdigoaindaaliceradonosideaisdaEscolaClssica,aper-

    Marcos Csar Alvarez

    692

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    17/28

    cepodosjuristasreformadoresdequeastransformaessociaisepolticas pelas quais o Brasil passou da segunda metade do sculoXIX ao incio do XX colocavam a necessidade de novas formas de

    exerccio do poder de punir mantm-se ao longo de toda a PrimeiraRepblica. A substituio do trabalho escravo pelo trabalho livre, oacelerado processo de urbanizao no Rio de Janeiro e em So Paulo eos ideais de igualdade poltica e social associados constituio daRepblica estabeleceram novas urgncias histricas para as elites po-lticas e intelectuais no perodo, e para os juristas reformadores emparticular. Sobretudo, o ideal das elites republicanas de construirumasociedadeorganizadaemtornodomodelojurdico-polticocon-tratual defronta-se com uma populao que aparece aos olhos dessa

    mesma elite ou excessivamente insubmissa, como no Rio de Janeiroda poca da Revolta da Vacina (cf. Sevcenko, 1984), ou por demaismultifacetada e disforme, como em So Paulo (cf. Adorno, 1990).Assim, o antigo medo das elites diante dos escravos ser substitudopela grande inquietao em face da presena da pobreza urbana nasprincipais metrpoles do pas.

    A criminologia, como conhecimento voltado para a compreenso do

    homem criminoso e para o estabelecimento de uma poltica cientfi-ca de combate criminalidade, ser vista como um instrumento es-sencial para a viabilizao dos mecanismos de controle social neces-srios conteno da criminalidade local. Mas, com a ProclamaodaRepblica, os desafios colocados para as elites republicanas no irolimitar-seaoestabelecimentodenovasformasdecontrolesocial,masincluiro especialmente o problema ainda maior de como consolidaros ideais de igualdade poltica e social do novo regime ante as parti-cularidades histricas e sociais da situao nacional. com relao a

    esse problema que os desdobramentos das idias da criminologia pa-recem ter sido mais interessantes.

    Aselitesrepublicanas,desdeoprincpio,manifestamgrandedescon-fiana diante da possibilidade de a maior parte da populao contri-buirpositivamenteparaaconstruodanovaordempolticaesocial.O novo regime republicano, longe de permitir uma real expanso daparticipao poltica, ir se caracterizar pelo seu aspecto no demo-

    crtico, pela restrio da participao popular na vida poltica (cf.Carvalho, 1987; 1990).

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    693

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    18/28

    A mesma desconfiana em relao ao que chamaramos atualmentede expanso da cidadania estar presente entres os juristas refor-madores adeptos da criminologia. Para os criminologistas, a igualda-

    de jurdica no poderia ser aplicada aqui tendo em vista as particula-ridades histricas, raciais e sociais do pas. Os ideais de igualdadenopoderiamafirmar-seemfacedasdesigualdadespercebidascomoconstitutivas da sociedade brasileira. Essa desconfiana em relao igualdade jurdica transparece tanto nos muitos debates acerca daresponsabilidade penal como nas diversas propostas de reformula-o ou substituio do Cdigo de 1890 que atravessam toda a Primei-ra Repblica (cf. Brito, 1930).

    Contudo,quemdesenvolveudemodomaiscoerenteacrticaaoidealda igualdade jurdica, baseando-se igualmente nos ensinamentos daantropologia criminal, foi o mdico Nina Rodrigues. Um dos mais im-portantes adeptos de Lombroso no Brasil, Rodrigues em seu ensaioAs Raas Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil, publicado pelaprimeira vez em 1894 expe as principais conseqncias, no campojurdico-penal, que poderiam ser deduzidas da aplicao rigorosadas idias da antropologia criminal realidade nacional. Se as carac-tersticas raciais locais influam na gnese dos crimes e na evoluo

    especficadacriminalidadenopas,conseqentementetodaalegisla-o penal deveria adaptar-se s condies nacionais, sobretudo noque diz respeito diversidade racial da populao. Da sua crtica ine-quvocaaoCdigoLiberalde1890,quepretendeuaplicarummesmoconjunto de regras a uma populao amplamente diferenciada:

    Posso iludir-me, mas estou profundamente convencido de que aadoo de um cdigo nico para toda a repblica foi um erro gravequeatentougrandementecontraosprincpiosmaiselementaresdafi-

    siologia humana.Pela acentuada diferena da sua climatologia, pela conformao e as-pecto fsico do pas, pela diversidade tnica da sua populao, j topronunciada e que ameaa mais acentuar-se ainda, o Brasil deve serdividido,paraosefeitosdalegislaopenal,pelomenosnassuasqua-tro grandes divises regionais, que, como demonstrei no captuloquarto, so to natural e profundamente distintas. (Rodrigues,1938:225-226)

    Ou seja, se o pas apresentava uma grande diversidade climtica, fsi-ca e tnica, como seria possvel estabelecer uma legislao penal que

    Marcos Csar Alvarez

    694

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    19/28

    abstrasse toda essa diversidade? Assim, para o mdico maranhense,seasanlisescientficasdaantropologiacriminaldemonstravample-namente a desigualdade fsica, biolgica e social da nao, somente

    as iluses metafsicas da Escola Clssica poderiam ter levado, comoefetivamente ocorreu no Cdigo de 1890, o legislador a estabeleceruma igualdade jurdica genrica diante de uma realidade to desi-gual. Segundo Nina Rodrigues, o legislador ptrio simplesmenteabstraiu todas as desigualdades biolgicas e sociais que marcavamde maneira inconteste, aos olhos da cincia, a populao brasileira, aocometer o grande erro de tratar igualmente indivduos desiguais, oque, ainda segundo o autor, s poderia criar conflitos no interior doorganismo social.

    Os juristas adeptos da criminologia se, por um lado, concordavam nogeral com as idias acerca da responsabilidade penal expressas porNina Rodrigues, por outro, no podiam levar to longe os argumen-tos da Escola Positiva, pois isto poderia colocar em risco o prpriomonoplio dos profissionais da lei no campo da justia. O que parecesingularizar a atuao desses juristas reformadores que eles busca-ram conciliar terica e praticamente as doutrinas e os dispositivos le-gais propostos pelas Escolas Positiva e Clssica. Mesmo sem a to de-

    sejada substituio do Cdigo Penal de 1890, eles buscaram realizarreformas jurdicas e institucionais que forassem os limites aos quaiso liberalismo havia circunscrito o papel do Estado no pas, pois, nasdisputas entre os adeptos da Escola Clssica e da Escola Positiva dedireito penal, estavam fundamentalmente em jogo concepes dife-rentes acerca do papel do Estado ante a sociedade:

    Os clssicos, portadores de uma concepo liberal, viam o indivduocomo possuidor de uma vontade ou conscincia livre e soberana. Os

    positivistas de vrios matizes representavam o indivduo como pro-duto ou reflexo, de um meio gentico e social singulares. [...] Ligadasevidentemente a essas duas representaes sociais do indivduo,duas representaes modelares do Estado e seu papel na sociedade.Deumlado,umEstadoguardioderebanhos,mantenedor,liberal;deoutro, um Estado intervencionista e tutelar, para o qual no poderiahaver mais nenhuma barreira sagrada sua atuao em prol do bemcomum. (Fry e Carrara, 1986:50)

    OsjuristasadeptosdaEscolaPositiva,aolongodetodaaPrimeiraRe-pblica, iro propor, e por vezes realizar, reformas legais e institucio-

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    695

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    20/28

    nais que buscaro ampliar o papel da interveno estatal. Mulheres,menores e loucos, ou seja, aqueles que no se enquadravam plena-mente na nova ordem contratual e que necessitariam de um trata-

    mento jurdico diferenciado, sero alvos constantes das preocupa-es dos criminologistas25.Adiscussoemtornodalegislaodame-noridade, que culminar na elaborao do Cdigo de Menores de192726, e a criao de estabelecimentos como o Instituto Disciplinar27 ea Penitenciria do Estado28 em So Paulo sero algumas das reformaslegaiseinstitucionaisconcretizadasaolongodaPrimeiraRepblicaeque foram influenciadas, em grande medida, pelas idias original-mente desenvolvidas por Lombroso e seus seguidores. Tambm nostribunais, as concepes acerca do criminoso nato e seus desdobra-

    mentos se fizeram presentes durante muito tempo no Brasil29.Portan-to, a incorporao das idias da antropologia criminal ao debate jur-dico local no deixou de produzir efeitos concretos e duradouros,tanto no plano dos saberes como no das prticas penais.

    Emtodasessasdiscusseseaes,ograndedesafioconsistiaemtra-tardesigualmenteosdesiguaisenoemestenderaigualdadedetra-tamento jurdico-penal para o conjunto da populao. A introduoda criminologia no pas representava a possibilidade simultnea de

    compreender as transformaes pelas quais passava a sociedade, deimplementar estratgias especficas de controle social e de estabele-cer formas diferenciadas de tratamento jurdico-penal para determi-nadossegmentosdapopulao.Comoumsabernormalizador,capazde identificar, qualificar e hierarquizar os fatores naturais, sociais eindividuais envolvidos na gnese do crime e na evoluo da crimina-lidade,acriminologiapoderiatransporasdificuldadesqueasdoutri-nas clssicas de direito penal, baseadas na igualdade ao menos for-mal dos indivduos, no conseguiam enfrentar, ao estabelecer ainda

    os dispositivos jurdico-penais condizentes com as condies tipica-mente nacionais.

    Se, por um lado, os juristas adeptos da criminologia no puderam re-formar totalmente a justia criminal segundo os preceitos cientificis-tasdeLombrosoedeseusseguidores,poroutro,conseguiramaome-nos influenciar reformas legais e institucionais ao longo da PrimeiraRepblica. E, mesmo nas dcadas seguintes, as idias discriminat-riasdaantropologiacriminaldeLombrosoedeseusdiscpulosconti-

    nuaram a operar como um contraponto semiclandestino ao valorformal da igualdade perante a lei (Fry, 2000:213). Portanto, o estudo

    Marcos Csar Alvarez

    696

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    21/28

    dessa e de outras correntes cientificistas quetiveramgrande presen-a no debate intelectual brasileiro sobretudo na segunda metade dosculo XIX e na primeira metade do sculo XX , alm de esclarecer

    um momento importante de nossa histria intelectual, pode contri-buir igualmente para repensarmos as prticas discriminatrias aindapresentes no campo jurdico-penal em nosso pas30.

    (Recebido para publicao em novembro de 2002)

    NOTAS

    1. Para um balano bibliogrfico dos estudos sobre o positivismo no Brasil, consultarAlonso (1996).

    2. O livro de Barros (1959) aindapermaneceum dosprincipais estudos sobre a produ-o intelectual brasileira da segunda metade do sculo XIX. Alonso (2000), por suavez, faz uma instigante reinterpretao da atuao poltica da gerao de 1870. So-

    bre o tema que irei desenvolver neste artigo, consultar os trabalhos pioneiros deCarrara (1984; 1985; 1987) e Fry e Carrara (1986). As pesquisas de Correa (1982) so-

    bre Nina Rodrigues e de Schwarcz (1993), que estudou o discurso racial em diver-sas instituies cientficas e educacionais entre 1870 e 1930, so igualmente funda-mentais para a compreenso das questes que discutirei aqui.

    3. Apresento, neste artigo, com algumas alteraes e atualizaes, as idias que de-senvolvi no terceiro captulo de minha tese de doutorado (Alvarez, 1996).

    4. Para umabreve caracterizaohistrica da criminologia, consultar Jeffery(1972).

    5. Acerca da vida e da obra de Lombroso, ver Wolfgang (1972).

    6. A edio consultada foi a francesa LHomme Criminel (Lombroso, 1887).

    7. Consultei a segunda edio dessa obra (Lombroso, 1907).

    8. As tradues das citaes so de minha autoria.9. por isso que sua abordagem cientfica no ficou restrita apenas ao estudo do

    homem criminoso, mas voltou-se tambm para outros tipos de indivduos anor-mais, como os gnios.

    10. O ano de 1880, quando passam a ser publicados os Arquivos de Psiquiatria e deAntropologia Criminal, considerado o momento de constituio da Nova Escola(cf. Pradel, 1991:73).

    11. O termo criminologia, segundo Carrara (1987:131), teria sido criado originalmentepor Garofalo. Usado inicialmente como sinnimo de antropologia criminal, aca-

    boupopularizadoquandoasteoriasnaturalistasdeLombrosopassaramasermais

    criticadas, e os adeptos da EscolaPositiva se viramobrigados a considerar tambmos fatores sociais na etiologia do crime. Utilizo aqui o termo criminologia como de-

    A Criminologia no Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    697

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    22/28

    finio mais genrica desse saber normalizador voltado para o conhecimento dohomem criminoso, ao passo que a expresso antropologia criminal ser utilizadade maneira mais restritiva, identificando especificamente a obra de Lombroso.

    12. Acerca da obra de Garofalo, consultar Allen (1972).

    13. Sobre Ferri, ver Sellin (1972).

    14. Acerca dos congressos de antropologia criminal e das disputas que a ocorreram,ver o interessante livro de Darmon (1991).

    15. Aciso mais forte queparece constituir-seno debatesobre o crime na Europa no pe-rodo contrape, de um lado, os adeptos da antropologia criminal ou criminologia,inspirados sobretudo em Lombroso, e, de outro, os partidrios de uma viso efeti-vamente sociolgica do crime, tais como Tarde e Durkheim. O mdico francs Ale-xandreLacassagne,emboratenhasidoumcrticodeLombroso,defendiaumdeter-minismo biolgico que no se distanciava muito das idias da antropologia crimi-

    nal (cf. Mucchielli, 1998). De qualquer modo, essas divises perdero nitidez noBrasil, como ser visto posteriormente.

    16. Sobre Tarde, segui, em particular, o texto de Vine(1972). Consulteitambm uma re-edio de La Criminalit Compare (Tarde, 1924), e os tudes de Psychologie Sociale(Tarde, 1898).

    17. Durkheim era bastante crtico em relao s idias de Lombroso e seus discpulos.A propsito, ver, por exemplo, as crticas de Durkheim a Garofalo em Da Diviso doTrabalho Social (Durkheim, 1978).

    18. Ver Moraes (1939) e Castiglione (1962), entre outros.

    19. Como afirma Schwarcz, ao se referir s teorias raciais no Brasil, o desafio pensar

    na originalidade dessa cpia (Schwarcz, 1993:41, 243), o que, no caso da crimino-logia, implica pensar, sobretudo, nas razes de seu rpido sucesso e de sua granderepercussonofinaldosculoXIXenasprimeirasdcadasdoXXnoBrasil.Aspes-quisasmaisrecentessobreopensamentosocialnoBrasilnesseperodotmaponta-do que mais importante do que mostrar o descompasso entre as idias importadase a realidade brasileira mostrar como as idias importadas se inserem e ganhamnovos sentidos como instrumentos de interveno poltica e intelectual na realida-de local (cf. Alonso, 2000).

    20. Alguns autores, ainda, utilizam o termo psicologia criminal, mas tambm comum significado pouco especfico.

    21. Assim, mesmo autores que, como Arago, subdividem o debate no interior da cri-minologia entre trs Escolas a Clssica, a Antropolgica e a Crtica, Ecltica ou So-ciolgica enfatizam a possibilidade de convergncia das diversas abordagens cri-minolgicas.

    22. Sobreas noesde leie de norma como princpiosque organizam diferentes modosde exerccio do poder, consultar Foucault (1977; 1978; 1979).

    23. Como a dissertao de Raimundo Pontes de Miranda (1895) e o trabalho do acad-mico Luciano Pereira da Silva (1906).

    24. A crtica ao jri indica como os adeptos da criminologia viam comtotaldesconfian-a a participao popular no mbito da justia, ao mesmo tempo que pretendiam

    reduzir todo julgamento a uma apreciao puramente tcnica. Eles criticavam ainstituio do jri, sobretudo, porque esta lanavaa justia nasmos de indivduos

    Marcos Csar Alvarez

    698

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    23/28

    no especializados que seriam guiados por preconceitos e no pela verdade cient-fica. Paradoxalmente, foi o conservadorismo dos juzes e advogados que impediuque a antropologia criminal triunfasse totalmente no campo da justia na Europa enosEstados Unidos, uma vezque os profissionais do direito no podiam suportar

    aidiadequeacinciaquantitativaseintrometesseemumdomnioquehaviamui-to lhes pertencia (Gould, 1991:139).

    25. Tobias Barreto inaugura essa discusso com Menores e Loucos e Fundamentos doDireito de Punir (1926), publicado pela primeira vez em 1884. Sobre a questo dosloucos criminosos na poca, verCarrara (1987). Acerca da mulher no campo jur-dico penal, consultar Viveiros de Castro (1892; 1932).

    26. ParaumaanlisemaisaprofundadaacercadalegislaodamenoridadenaPrimei-ra Repblica, consultar Alvarez (1989; 1996).

    27. Com relao ao Instituto Disciplinar, ver Mota (1909).

    28. PauloEgdiodeOliveiraCarvalho,tambmadeptodasteoriascriminolgicas,terum papel pioneiro na construo do sistema penitencirio do Estado de So Paulo(cf.AlvarezeSalla,2000).Sobreacriaodapenitenciriadoestado,verodetalha-do estudo de Salla (1999).

    29. Ribeiro (1995), por exemplo, ao pesquisar dados sobre os crimes levados a julga-mento na cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930 mostra como as concepes daEscolaPositivaestavampresentesnosprocessos,contribuindoparaaconsolidaode esteretipos discriminatrios contra negros e mulatos.

    30. Trabalhos como os de Lima (1989), queestudouas prticas policiais no Rio de Janei-ro em sua relao com os dispositivos processuais penais, e os de Adorno (1995),que pesquisou a discriminao racial na justia criminal em So Paulo, entre ou-tros, tm indicado como a cultura jurdica nacional, apesar de formalmente iguali-tria, est efetivamente baseada na atribuio de graus diferenciados de cidadaniaa setores distintos da populao (cf. Lima, 1989:82).

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    699

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    24/28

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ADORNO, Srgio. (1990), A Gesto Filantrpica da Pobreza Urbana. So Paulo emPerspectiva, vol. 4, n 2, pp. 8-17.

    . (1995), Discriminao Racial e Justia Criminal em So Paulo. Novos EstudosCEBRAP, n 43, pp. 45-63.

    ALLEN,FrancisA.(1972),RaffaeleGarofalo,in H.Mannheim(ed.), PioneersinCrimi-nology (2 ed.). New Jersey, Patterson Smith, pp. 318-340.

    ALONSO, Angela. (1996), De Positivismo e de Positivistas: Interpretaes do Positi-vismo Brasileiro. Revista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias Sociais BIB, n 42, 2 sem., pp. 109-134.

    . (2000), Crtica e Contestao: O Movimento Reformista da Gerao de 1870. Re-

    vista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 15, n 44, pp. 35-55.ALVAREZ, Marcos Csar. (1989), A Emergncia do Cdigo de Menores de 1927: Uma

    AnlisedoDiscursoJurdicoeInstitucionaldaAssistnciaeProteoaosMenores.Dissertao de Mestrado em Sociologia, FFLCH/USP, So Paulo.

    . (1996), Bacharis, Criminologistas e Juristas: Saber Jurdico e Nova Escola Penalno Brasil (1889-1930). Tese de Doutorado em Sociologia, FFLCH/USP, So Paulo.

    e SALLA, Fernando. (2000), Paulo Egdio e a Sociologia Criminal em So Paulo.Tempo Social, vol. 12, n 1, pp. 101-122.

    ARAGO, Antonio Moniz Sodr de. (1928) [1907], As Trs Escolas Penais: Clssica,

    Antropolgica e Crtica (3 ed.). So Paulo, Saraiva.

    ARAJO,JooVieirade.(1884), Ensaiode DireitoPenalou Repeties Escritas sobre o Cdi-go Criminal do Imprio do Brasil. Recife, Tipografia do Jornal do Recife.

    . (1888), ANova Escolade Direito Criminal: Os Juristas Italianos E. Ferri, F. Pugliae R. Garofalo. O Direito: Revista Mensal de Legislao, Doutrina e Jurisprudncia, anoXVI, vol. 47, pp. 481-487.

    . (1889a), Antropologia Criminal. ODireito:RevistaMensaldeLegislao,Doutrinae Jurisprudncia, ano XVII, vol. 49, pp. 177-184.

    .(1889b),ODireitoeoProcessoCriminalPositivo. ODireito:RevistaMensaldeLe-gislao, Doutrina e Jurisprudncia, ano XVII, vol. 48, pp. 321-330.

    . (1894), Sociologia, Filosofia, Cincia e Direito. O Direito: Revista Mensal de Legis-lao, Doutrina e Jurisprudncia, ano XXII, vol. 65, pp. 5-17.

    BARRETO, Tobias. (1926) [1884],Menores e Loucos e Fundamentos do Direito de Punir. Riode Janeiro, Paulo, Pongetti & Cia.

    BARROS, Roque Spencer Maciel de. (1959),AIlustrao Brasileira e a Idia de Universida-de. So Paulo, EDUSP.

    BEVILQUA, Clvis. (1896), Criminologia e Direito. Salvador, Magalhes.

    BRITO, Lemos. (1930), Succincte Exposition sur lEvolution Pnale au Brsil. Rio de Janei-ro, Imprensa Nacional.

    Marcos Csar Alvarez

    700

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    25/28

    CARRARA, Srgio Luis. (1984), A Sciencia e Doutrina da Identificao no Brasil oudo Controle do Eu no Templo da Tcnica. Boletim do Museu Nacional, n 50, pp.1-28.

    .(1985),OsMistriosdeClarice:EtnografiadeumCrimenaAvenida. TextodeCo-municao, PPGAS/MN/UFRJ, Rio de Janeiro.

    . (1987), Crime e Loucura: O Aparecimento do Manicmio Judicirio na Passagemdo Sculo. Dissertao de Mestrado em Antropologia Social, PPGAS/MN/UFRJ,Rio de Janeiro.

    CARVALHO, Jos Murilo de. (1987), Os Bestializados. So Paulo, Companhia das Le-tras.

    . (1990), A Formao das Almas: Imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo, Compa-nhia das Letras.

    CARVALHO,PauloEgdiodeOliveira.(1900),EstudosdeSociologiaCriminal:DoConcei-to Geral do Crime segundo o Mtodo Contemporneo (A Propsito da Teoria de E. Durkhe-im). So Paulo, Tipografia e Edio da Casa Ecltica.

    CASTIGLIONE, Teodolindo. (1962), Lombroso perante a Criminologia Contempornea.So Paulo, Saraiva.

    CORREA,Mariza.(1982),AsIlusesdaLiberdade:AEscolaNinaRodrigueseaAntro-pologia no Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia, FFLCH/USP, So Paulo.

    DARMON, Pierre. (1991),Mdicos e Assassinos na Belle poque: A Medicalizao do Crime.Rio de Janeiro, Paz e Terra.

    DURKHEIM, mile. (1978), Da Diviso do Trabalho Social; As Regras do Mtodo Sociolgi-co; O Suicdio; As Formas Elementares da Vida Religiosa. So Paulo, Abril Cultural.

    FOUCAULT, Michel. (1977), Vigiar e Punir. Petrpolis, RJ, Vozes.

    . (1978), A Verdade e as Formas Jurdicas. Cadernos PUC, n 16, pp.1-102.

    . (1979), Soberania e Disciplina, in Microfsica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, pp.179-191.

    FRY, Peter. (2000), Cor e Estado de Direitono Brasil, inJ.E.Mndez,G.ODonnelleP.S. Pinheiro (eds.), Democracia, Violncia e Injustia: O No-Estado de Direito na Amri-ca Latina. So Paulo, Paz e Terra, pp. 207-231.

    eCARRARA,SrgioLuis.(1986),AsVicissitudesdoLiberalismonoDireitoPenalBrasileiro. Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 1, n 2, pp. 48-54.

    GOULD, Stephen Jay. (1991), A Falsa Medida do Homem. So Paulo, Martins Fontes.

    JEFFERY, Clarence Ray. (1972), The Historical Development of Criminology, in H.Mannheim (ed.), Pioneers in Criminology (2 ed.). New Jersey, Patterson Smith, pp.458-488.

    LIMA,RobertoKantde.(1989),CulturaJurdicaePrticasPoliciais:ATradioInqui-sitorial. Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 4, n 10, pp. 65-84.

    LOMBROSO, Cesare. (1887), LHomme Criminel. Paris, Flix Alcan..(1896), LAnthropologieCriminelleetsesRcentsProgrs(3 ed.).Paris,FlixAlcan.

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    701

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    26/28

    . (1907), Le Crime, Causes et Remdes (2 ed.). Paris, Flix Alcan.

    MACEDO SOARES, A. J. (1888), A Antropologia e o Direito Criminal. O Direito: Re-vista Mensal de Legislao, Doutrina e Jurisprudncia, ano XVI, vol. 47, pp. 498-502.

    MELO FRANCO, V. M. de. (1889), Consideraes sobre o Processo Penal Brasileiro.O Direito: Revista Mensal de Legislao, Doutrina e Jurisprudncia , ano XVII, vol. 48,pp. 330-337.

    MORAES, Antonio Evaristo de. (1910), Enrico Ferri: Algumas Notas Ligeiras acerca de suaVida e da sua Obra. Rio de Janeiro, Papelaria e Tipografia Vilas Boas.

    . (1939), Primeiros Adeptos e Simpatizantes, no Brasil, da Chamada Escola PenalPositiva. Archivo Judicirio, vol. LI, fasc. 2, pp. 19-20.

    MOTA,CndidoNazianzenoNogueirada.(1909),OsMenoresDelinqenteseoseuTrata-mento no Estado de So Paulo. So Paulo, Tipografia do Dirio Oficial.

    .(1925), ClassificaodosCriminosos:IntroduoaoEstudodoDireitoPenal (2 ed.).SoPaulo, J. Rossetti.

    MUCCHIELLI, Laurent. (1998), La Dcouverte du Social: Naissance de la Sociologie enFrance. Paris, ditions de la Dcouverte.

    PONTES DE MIRANDA, Raimundo. (1895), Qual das Escolas Criminais Merece Prefern-ciasoboPontodeVistadaCinciaedosInteressesdaRepresso?TeseseDissertaesapre-sentadas Faculdade de Direito do Recife para o concurso que deve ter lugar em junho de1895. Recife, A Provncia.

    PRADEL, Jean. (1991), Histoire des Doctrines Pnales. Paris, Presses Universitaires de

    France.

    RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. (1995), Cor e Criminalidade: Estudo e Anlise da Justiano Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.

    RICHARD, Gaston. (1897), Sociologie Criminelle. L'Anne Sociologique PremireAnne, 1896-1897, pp. 392-394.

    RODRIGUES, Nina. (1938) [1894], As Raas Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil(3 ed.). So Paulo, Companhia Editora Nacional.

    ROMERO,Silvio.(1951),AObrade Silvio Romeroem Criminologia e Direito Criminal (sele-o de Roberto Lira). Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito.

    SALLA, Fernando. (1999), As Prises em So Paulo (1822-1940). So Paulo, Annablu-me/FAPESP.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. (1993), O Espetculo das Raas: Cientistas, Instituies e Ques-to Racial no Brasil. So Paulo, Companhia das Letras.

    SELLIN, Thorsten. (1972), Enrico Ferri, in H.Mannheim(ed.), PioneersinCriminology(2 ed.). New Jersey, Patterson Smith, pp. 361-383.

    SEVCENKO,Nicolau.(1984),ARevoltadaVacina:MentesInsanasemCorposRebeldes .SoPaulo, Brasiliense.

    SILVA, Luciano Pereira da. (1906), Estudos de Sociologia Criminal. Recife, Ramiro M.Costa & Filhos.

    Marcos Csar Alvarez

    702

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    27/28

    TARDE, Gabriel. (1898), tudes de Psychologie Sociale. Paris, V. Giard & E. Brire.

    . (1924), La Criminalit Compare (8 ed.). Paris, Flix Alcan.

    VINE, Margareth S. Wilson. (1972), Gabriel Tarde, in H. Mannheim (ed.), Pioneers in

    Criminology (2 ed.). New Jersey, Patterson Smith, pp. 292-304.VIVEIROS DE CASTRO, Francisco Jos. (1892), Ensaios Jurdicos. Rio de Janeiro, Laem-

    mert.

    . (1894), A Nova Escola Penal. Rio de Janeiro, Domingos de Magalhes.

    .(1932), OsDelitoscontraaHonradaMulher (2 ed.).RiodeJaneiro,FreitasBastos.

    WOLFGANG, Marvin E. (1972), Cesare Lombroso, in H. Mannheim (ed.), Pioneers inCriminology (2 ed.). New Jersey, Patterson Smith, pp. 232-291.

    ABSTRACTCriminology in Brazil, or How to Treat the Unequal Unequally

    In this article we discuss how the ideas of Cesare Lombroso (1835-1909) and

    his followers were incorporated into the intellectual debate in Brazil in thelate 19th and early 20th centuries. By specifically analyzing the intellectualproduction of Brazilian legal scholars and jurists of the time who drew onideasfromcriminologytoconceiveBraziliansocietyandtoproposelegalandinstitutional reforms we attempt to demonstrate how these ideascontributed to the elaboration of differentiated forms of legal and penaltreatment for certain segments of the population.

    Key words: Cesare Lombroso; criminal anthropology; criminology;intellectuals; legal scholars; criminal justice; citizenship

    A Criminologiano Brasil ou ComoTratarDesigualmente os Desiguais

    703

  • 8/8/2019 A Criminologia No Brasil

    28/28

    RSUMLa Criminologie au Brsil ou Comment Traiter Ingalement ceux qui neSont pas gaux

    Dans ce travail, on examine comment les ides de Cesare Lombroso(1835-1909) et de ses disciples ont t incorpores au dbat d'ides au Brsilentre la fin du XIXe sicle et le dbut du XXe. partir d'une analyse de laproduction d'avocats et de juristes brsiliens de l'poque qui se sont servisdes conceptions de la criminologie pour rflchir sur la socit brsilienne etproposer des rformes juridiques et institutionnelles , on cherche dmontrer comment ces ides ont contribu l'laboration de formesdistinctes de traitement juridico-pnal l'intention de groupes de lapopulation donns.

    Mots-cl: Cesare Lombroso; anthropologie criminelle; criminologie;intellectuels; avocats; justice criminelle; citoyennet

    Marcos Csar Alvarez