a criança cidadã

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  • 7/26/2019 A Criana Cidad

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    Sarmento, Manuel Jacinto (2012), A criana cidad: vias e encruzilhadas, Imprpria. Polticae pensamento crtico. UNIPOP. N 2: 45-49

    A criana cidad: vias e encruzilhadas

    Manuel Jacinto Sarmento

    A invocao da cidadania da infncia tem vindo a entrar na linguagem corrente de todosquantos intervm nos mundos sociais das crianas, especialmente organizaes nogovernamentais, servios pblicos e tcnicos associados proteco e promoo dos direitosdas crianas. O momento inicial que despoletou a referncia cidadania da infncia ter sidoa proclamao, pela Assembleia Geral das Naes Unidas, a 20 de novembro de 1989, daConveno sobre os Direitos da Criana (CDC). Este documento tem vindo a ser tomadocomo a carta dos direitos da criana e do cidado infantil. No entanto, no tem sido semperplexidade que a referncia cidadania da infncia tem sido feita. Com efeito, os sereshumanos de menos de 18 anos so os nicos, na generalidade dos pases cujo regimepoltico uma democracia liberal, que no tm o direito de escolher e de ser escolhidos paraa participao na direo poltica do estado. Ora, a atribuio do direito de ser eleito e deeleger corresponde a uma das condies normalmente associadas construo dassociedades democrticas na modernidade e fundante da prpria noo ocidental decidadania.

    Uma conceo clssica de cidadania a que proposta por Marshall (1967) considera trsdimenses de cidadania, inerentes a distintas fases histricas de edificao das sociedadesmodernas: a cidadania civil, correspondente aos direitos civis, designadamente o direito identidade, ao pensamento e expresso prpria e ao livre acesso aos bens e serviospblicos; a cidadania poltica, correspondente ao direito de participao na vida poltica,nomeadamente atravs do uso do voto na escolha dos rgos de representao poltica; acidadania social, pelo acesso a condies de vida dignas, pelo usufruto de direitos sociais,nomeadamente educao, sade e proteo social. Esta concepo constitui motivo decontrovrsia (cf. Wexler, 1990). sobretudo porque exprime uma viso excessivamentecentrada no processo histrico de construo da cidadania, excluindo concomitantementeoutras realidades geogrficas e sociais, porque apresenta uma viso linear e evolutiva daconstruo da cidadania, estratificando-a em etapas que, no plano diacrnico, se tm antesrevelado como processos complexos, reversveis e, frequentemente, ambguos, e porque,finalmente, posiciona a cidadania predominantemente no quadro da relao do indviduo com

    o Estado, ignorando ou subestimando a anlise da condio cidad do indivduo enquantomembro da sociedade. Em todo o caso, esta conceo clssica da cidadania no permiteincluir plenamente a criana na condio cidad, no apenas porque no lhe soreconhecidos direitos polticos expressos, mas tambem porque, no domnio dos direitos civise sociais, a criana , sobretudo, tematizada no como titular direta, mas antes comobeneficiria de direitos tutelados pelos pais ou por quem junto dela exerce o poder paternal.

    Deste modo, a criana tida como um cidado sob tutela, ou um ser humano em vias desetornar cidado. Em todo o caso, nunca como um cidado de pleno direito. Esta situao dacriana como ser humano emvias de qualquer coisa , alis, inerente prpria condiosocial da infncia, conforme ela foi assumida nas sociedades ocidentais, na modernidade. Acriana tida, nas representaes sociais hegemnicas e na administrao simblica dainfncia expressa no senso-comum, nas regras formais e informais e no trabalhoinstitucional como um ser em transio, em estado de desenvolvimento (como se no

    fosse comum a todos os seres humanos estarem em transio e em desenvolvimentopermanente), um ainda-no, mas em vias de o ser. Como temos sustentado (Sarmento,2003), a infncia foi historicamente construda enquanto categoria geracional em torno de

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    um princpio de negatividade instituinte: criana o que no trabalha, no se casa, no votanem pode ser eleito, no conduz, no pode ser julgada em tribunal, no celebra contratosformais, no assume responsabilidades perante outros, no pode frequentar certos locais,etc. claro que muitas das interdies referenciadas so inerentes defesa da proteo dacriana, perante a vulnerabilidade estrutural que lhe inerente. Nesse sentido, a construoda normatividade moderna da infncia constitui um progresso civilizacional. A questo estem que a aquilo que a criana no ou no poder se afirmou como o elemento definitrio daprpria infncia e, enquanto tal, introduziu uma forma de invisibilidade social sobre o que acriana , o que pode, e do que capaz. A ideia da criana como menor exprime bemestanoo de inferioridade e de dependncia infantil. Em forte coerncia com isso, a criao daescola pblica e do princpio da obrigatoriedade escolar para as crianas, constitui,historicamente, o instrumento poltico e social para a preparao da entrada da criana naidade em que, finalmente, pode dizer sim: no trabalho, no casamento, no tribunal, etc.

    Neste quadro representacional e normativo, a ideia da criana como ser humano competenteconstitui, por isso mesmo, um non-sense perante a negatividade instituinte da infnciamoderna. E, todavia, as crianas so competentes, na positividadeinerente sua condiobiopsico-social.

    Como ento explicar esta emergente conceo de cidadania da infncia, no quadro de umasociedade que atirou a criana para o limbo da preparao para o futuro, do em vias deser

    cidado? Poderemos, idealmente, descrever trs possibilidades de apresentao desta ideia.Em primeiro lugar, como um artifcio retrico, legitimado pela CDC, mas redutor, nummesmo movimento, da noo de cidadania e da amplitude dos direitos das crianas: fala-seda cidadania da infncia sem se levar verdadeiramente a srio a ideia de que toda acidadania implica participao e esta a aco influente na sociedade e, no mesmomovimento, obscurecem-se as potencialidades das crianas como seres sociais plenos,perante quem se assumem obrigaes e se aceita a autonomia de pensamento e ao. Emsegundo lugar, como um palavra de ordem dos movimentos e organizaes que proclamamos direitos das crianas, e que sustentam a ideia da voz das crianas e do exerccio ativoda participao infantil como condio de renovao social; esta forma de proclamao dacidadania infantil corresponde no apenas sustentao de novas orientaes e polticas deproteo das crianas, mas tambm promoo da autonomia infantil, nomeadamente emreas de que as crianas, supostamente esto afastadas, como o trabalho produtivo (cf.Muoz e Liebel). Finalmente, em terceiro lugar, como uma ideia poltica e social, assentenuma viso renovada e alargada de cidadania, expressa na incluso e participao nasociedade de todos os seus membros, independentemente da condio social, do gnero, daetnia ou da gerao, com salvaguarda do triplo princpio: assuno coletiva de uma tica derespeito pela diferena individual e social; proteo adequada incluso social; participaosocial, entendida como direito ao exerccio de uma ao influente.

    S uma conceo renovada e alargada de cidadania pode atribuir um sentido pleno expresso cidadania da infncia. A criana cidad, -o, no apenas porque v reconhecidosdireitos formais, que regem as relaes do indivduo com o Estado o que a CDC possibilita,na dialtica permanente entre a lei prescrita e a lei praticada e no quadro de direitos que sso suscetveis de se estabelecerem na medida em que se renovam, incorporando novasdimenses, nomeadamente nos domnios ambiental, das tecnologias de informao e noconsumo, entre outros no contemplados no documento da ONU - mas tambm no domniodas relaes mais amplas no interior da sociedade. Nesse sentido, a cidadania da infncia sganha sentido, se ela se constituir como cidadania institucional, no interior das organizaese instituies onde as crianas agem, e, desde logo, na escola; cidadania cognitiva, enquantoreconhecimento da voz da criana como expresso de culturas infantis, atravs das quaisas crianas interpretam e exprimem o mundo e que so vlidas em si mesmas, nas suasmltiplas expresses, ldicas, plsticas, verbais, etc., cidadania ntima (Plummer, 2004),enquanto expresso de aceitao e respeito no espao familiar, que, sendo ntimo, no podenunca ser excludo das obrigaes e exigncias que se consagram condio mais geral,societria, da vida em comum.

    A criana cidad, -o, outrossim, nos domnios (clssicos) da cidadania civil, poltica e social.As crianas so seres sociais, ainda que alguns dos direitos civis sejam, em nome daproteo, diferidos no tempo; no obstante, a CDC e a legislao nacional ampliaram aosdireitos civis das crianas, nomeadamente no que respeita identidade, ao reconhecimentoda paternidade ou ao direito de audio, etc. Do mesmo modo, o facto das crianas noserem eleitores nem poderem ser eleitos no inibe a possibilidade da participao poltica:movimentos sociais infantis (especialmente na Amrica Latina, onde so conhecidos

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    movimentos com os Sem-Terrinha e o Movimento de Nios Trabajadores e a abertura depossibilidades de participao infantil na administrao da coisa pblica, sobretudo no espaolocal (nomeadamente no mbito do oramento participativo e em programas como CidadesAmigas das Crianas), alm de formas de participao poltica difusa podem contribuir parao reconhecimento das crianas como seres polticos, com formas prprias de expresso (cf.Sarmento, Fernandes e Toms, 2008). Finalmente, a cidadania social constitui, tambm paraas crianas, uma condio sine qua nonde cidadania: esta no existe sem direitos sociaisreconhecidos e praticados (Castel, 2008).

    sobretudo porque os direitos sociais das crianas so to decisivos, que, nas circunstnciasatuais da crise do capitalismo financeiro, a invocao da criana cidad se constitui menoscomo um tpico de reflexo acadmica sobre as perplexidades concetuais geradas, mas umprograma de resistncia e de afirmao propositiva. Vrios relatrios internacionaiscaraterizam a crise do capitalismo financeiro, nos efeitos que produzem na infncia, comouma sria ameaa a progressos histricos registados no bem-estar das crianas (e.g. Harperet. al. 2009). A crise est associada a indicadores como o aumento da pobreza infantil, oabandono escolar, o recrudescimento da explorao do trabalho infantil, sobretudos naschamadas piores formes, o incremento de situaes como a fome e a doena(especialmente, mas no apenas, os distrbios neuro-psicolgicos), a intensificao dotrfico de crianas e os fenmenos de excluso, decorrentes do incitamento ao dio racial exenfobo. Nestas circunstncias, a construo poltica de dispositivos de proteo dascrianas, que contem com a participao das crianas, uma prioridade absoluta.

    A criana-cidad, nas formas mltiplas, fragmentrias e difusas, em que se exprime acidadania infantil, no o poder ser sozinha. Depende do adulto para a construo douniverso de referncias, de direitos e de condies sociais em que pode ocorrer a cidadaniaplena. Este porventura, o pathosde uma condio social, que s h muito poucos anos,tem vindo a ser reconhecida e proclamada e que, ao mesmo tempo, est to ameaada ecomprometida.

    Referncias

    Castel, Robert (2008). La citoyennet sociale menace. Cits, 35 : 133-141

    Harper, C.; Jones, N.; McKay, A.; Espey, J. (2009), Children in times of economic crisis: Past lessons,future policies, Background Note, Overseas Development Institut.http://www.odi.org.uk/resources/download/2865.pdf(consultado em 22 de maio de 2012)

    Marshall, T. H. (1967). Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar (trad., ed. 0riginal,1965).

    Muoz,Lourdes Gaitn & Liebel,Manfred (2011). Ciudadana y derechos de participacin de los nios.Madrid, Editorial Sntesis.

    Plummer, Ken (2004) Intimate Citizenship: Private Decisions and Public Dialogues. Montereal, McGill-Queen's University Press, 2004

    Sarmento, Manuel Jacinto (2003). As Culturas da Infncia nas Encruzilhadas da 2 Modernidade, In M.J. Sarmento e A B. Cerisara (org), Crianas e Midos. Perspectivas Scio-Pedaggicas da Infncia e

    Educao. Porto: Asa.Sarmento, Manuel Jacinto; Fernandes, Natlia; e Toms, Catarina (2007), Polticas Pblicas eParticipao Infantil, Educao, Sociedade e Cultura, n 25: 183-206

    Wexler, Philip (1990). Citinzenship in the semiotic society, In B. Turner (ed.), Theories of Modernity andPostmodernity. London. Sage, pp. 164-175

    http://www.odi.org.uk/resources/download/2865.pdfhttp://www.odi.org.uk/resources/download/2865.pdfhttp://www.google.pt/search?hl=pt-PT&tbo=p&tbm=bks&q=inauthor:%22Lourdes+Gait%C3%A1n+Mu%C3%B1oz%22&source=gbs_metadata_r&cad=3http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&tbo=p&tbm=bks&q=inauthor:%22Manfred+Liebel%22&source=gbs_metadata_r&cad=3http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&tbo=p&tbm=bks&q=inauthor:%22Manfred+Liebel%22&source=gbs_metadata_r&cad=3http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&tbo=p&tbm=bks&q=inauthor:%22Lourdes+Gait%C3%A1n+Mu%C3%B1oz%22&source=gbs_metadata_r&cad=3http://www.odi.org.uk/resources/download/2865.pdf