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A crença na verdade Leandro Marshall Doutor em Comunicação Social/Tecnologias do Imaginário pela PUC/RS Mestre em Teorias da Comunicação pela UMESP/SP Especialista em Comunicação Social pela UPF/RS Prof. UNICEUB A religião, a filosofia e a ciência arrogam para si a propriedade da verdade. Não uma verdade qualquer, mas a verdade absoluta, única e universal. Em nome desta causa, os ardentes procuradores da palavra divina já venderam ingressos para uma vaga no céu, já profanaram livros e idéias e mandaram para a fogueira ou para o purgatório todos aqueles que duvidassem de suas certezas. Os filósofos foram humilhados, rechaçados, anatemizados e chamados de loucos, o que levou alguns a renunciar à verdade mundana da vida e abraçar a verdade confortável da morte. Os cientistas remexeram nas entranhas da terra, do céu, do átomo e da carne humana, para concluir que só existem probabilidades químicas e físicas, e que a verdade só pode ser realmente verdadeira se ela puder ser falsa 1 . Neste caldeirão de dúvidas verdadeiras e verdades duvidosas, muitos físicos decidiram passar para o lado do misticismo. Alguns dos filósofos pularam o muro da metafísica e foram procurar na ciência ou na religião as explicações que a razão humana parece não ter encontrado. Muitos religiosos, por sua vez, decidiram relaxar em suas convicções, preferindo gozar os prazeres da vida, ou resolveram abrir franquias empresariais para conciliar o útil ao sobrenatural. Muitos outros crentes levaram a sério a possibilidade da fé se tornar uma bandeira na defesa moral da verdade e preferiram virar juízes do comportamento 1 Sobre isto, ver a teoria do falsificacionismo de Karl Popper. Desenvolvida nos anos 1930, a teoria da falseabilidade diz que um enunciado singular não pode ser usado para comprovar que um enunciado universal é verdadeiro, mas que, ao contrário, ele pode sim para comprovar que a verdade pode ser falsa.

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A crença na verdade

Leandro MarshallDoutor em Comunicação Social/Tecnologias do Imaginário pela PUC/RS

Mestre em Teorias da Comunicação pela UMESP/SPEspecialista em Comunicação Social pela UPF/RS

Prof. UNICEUB

A religião, a filosofia e a ciência arrogam para si a propriedade da verdade. Não uma verdade qualquer, mas a verdade absoluta, única e universal.

Em nome desta causa, os ardentes procuradores da palavra divina já venderam ingressos para uma vaga no céu, já profanaram livros e idéias e mandaram para a fogueira ou para o purgatório todos aqueles que duvidassem de suas certezas. Os filósofos foram humilhados, rechaçados, anatemizados e chamados de loucos, o que levou alguns a renunciar à verdade mundana da vida e abraçar a verdade confortável da morte. Os cientistas remexeram nas entranhas da terra, do céu, do átomo e da carne humana, para concluir que só existem probabilidades químicas e físicas, e que a verdade só pode ser realmente verdadeira se ela puder ser falsa1.

Neste caldeirão de dúvidas verdadeiras e verdades duvidosas, muitos físicos decidiram passar para o lado do misticismo. Alguns dos filósofos pularam o muro da metafísica e foram procurar na ciência ou na religião as explicações que a razão humana parece não ter encontrado. Muitos religiosos, por sua vez, decidiram relaxar em suas convicções, preferindo gozar os prazeres da vida, ou resolveram abrir franquias empresariais para conciliar o útil ao sobrenatural. Muitos outros crentes levaram a sério a possibilidade da fé se tornar uma bandeira na defesa moral da verdade e preferiram virar juízes do comportamento dos outros, esquecendo do seu próprio.

É verdade que a corrida pela conquista do ouro da verdade não foi só um privilégio dos filósofos, dos cientistas ou dos religiosos. A verdade universal é, de certo modo, um bem que não pode ser patenteado, e, por este fato, pode ter sua exclusividade reivindicada por qualquer um. Ao longo da história, a posse da verdade esteve nas mãos de feiticeiros, de alquimistas, de sofistas, de magos ou de líderes messiânicos. Todos eram, em certo sentido, espécies de simulacros burlescos de religiosos, de filósofos ou de cientistas, que, se valeram de seus dotes intelectuais, de seus poderes místicos ou de seus generosos músculos para fazer valer sua palavra ou sua doutrina. Chegaram a formar seitas, confrarias ou coletivos, alargando através do tempo ou do espaço suas redes semânticas de verdade.

Neste aspecto, não se pode esquecer que qualquer sistema teórico, aparentemente verdadeiro ou aparentemente falso, sempre foi transmitido de indivíduo para indivíduo, de sociedade para sociedade ou de cultura para cultura. E o modo natural desta transmissão foi sempre a reprodução individual ou coletiva pelos diversos modos permitidos pela linguagem, sinteticamente resumidos nas várias formas de narrativa.

Narrar, como os mais doutos sabem, significa mythos, em grego. Logo, a

1 Sobre isto, ver a teoria do falsificacionismo de Karl Popper. Desenvolvida nos anos 1930, a teoria da falseabilidade diz que um enunciado singular não pode ser usado para comprovar que um enunciado universal é verdadeiro, mas que, ao contrário, ele pode sim para comprovar que a verdade pode ser falsa.

verdade sempre está marcada pela forma em que se fabrica ou se transmite a narrativa. Neste caso, o narrador pode determinar voluntária ou involuntariamente a narrativa, afetando o caráter ou o sentido da verdade.

Em outras palavras, é correto falar que a história da verdade pode ser apenas um passeio pelo pântano semântico e metafísico da mitologia (narrativa fabricada), da paralogia (narrativa fundada apenas no discurso), da tautologia (narrativa defeituosa) ou da autologia (narrativa sustentada pela autoridade do narrador).

A filosofia, a religião e a ciência desenvolveram ao longo da história suas estruturas próprias de verdade, porém todas estabeleceram seus modos de narrar suas verdades. Em outras palavras, as palavras deixam pistas sobre a genealogia, a organização e o modus operandi de cada verdade. O discurso nunca é um acontecimento perfeito, ele sempre deixa os rastros de sua enunciação e do seu enunciador no pensamento e no universo simbólico.

Dito ao modo de Michel Foucault, a verdade é sempre marcada pelo texto e pelo contexto das palavras e do pensamento. Ela é sempre discurso e acontecimento. Não há verdade que não seja marcada pelo tempero e pela fórmula da linguagem utilizada. Não há verdade que não contenha as cicatrizes da época histórica das palavras; não há verdade que nasça distante da árvore que a concebeu; não há verdade alijada da alma do mundo, como não há artista que não pinte a natureza como ele imagina ver; assim como não há verdade que não emane da alegria ou do sofrimento dos homens que dedicaram a vida à busca da verdade pura.

Além disso, se Derrida não estiver enganado, a verdade de um discurso pode não estar na evidência do discurso, mas sim nas suas entrelinhas, nos seus silêncios e nas suas sombras. Muitas vezes, não devemos procurar a verdade naquilo que é dito, mas sim no não-dito. As trapaças da consciência, da crença e do conhecimento podem esconder do homem aquilo que ele verdadeiramente crê ou sabe. Só um bom detetive epistemológico pode desvendar, nos subterrâneos das palavras e das idéias, os verdadeiros enigmas do sentido, mesmo que, no final desta busca, só exista o não-sentido.

A destilação da verdade nasce consequentemente do modo e da estrutura que o homem utiliza para narrar a verdade, e, numa dimensão ainda mais ampla, em estreita ligação com a perspectiva de mundo imantada nesta narrativa. Como falava Ortega y Gasset: o homem é ele e suas circunstâncias. Portanto, a verdade está sempre diretamente ligada às circunstâncias dos homens da fé, do método ou da especulação e serve para traduzir o mundo de acordo com o sentimento que os homens depositam ou recolhem desta verdade.

A religião sempre sustentou suas verdades a partir de uma narrativa imposta por um dogma (do grego dógma, doutrina estabelecida). Por isso, a religião só funciona nas mentes dos homens pelo processo de servidão voluntária ao pensamento mágico. O homem tem sede de dogma e a religião alimenta os necessitados. A ciência funda suas verdades no discurso dos fatos, das coisas e dos números, que, na verdade, só existem porque o ser humano tem a ‘vontade de verdade’ e decidiu concordar com sua existência. O homem precisa da doutrina da natureza e ela faz crer que pode fornecer os segredos humanos que estão além do homem. A filosofia fabrica seus sofismas e axiomas com a prova da lógica e da razão, sem a necessidade de provar a verdade da lógica e da razão. Neste caso, o homem necessita acreditar que é racional e só a filosofia pode conceder este álibi transcendental, o que faz com que a consciência humana nunca desconfie de que ela pode ser, talvez, mais um fetiche da imaginação.

A necessidade de verdade pelo ser humano deriva, portanto, mais na ‘vontade de verdade’ do que na sua própria evidência. Deus está morto, proclamou Nietzsche, mas

os adormecidos continuam a crer na verdade divina. A terra é apenas uma minúscula pedra celestial a girar dia após dia em torno do sol, em meio a um turbilhão de galáxias, anunciou Copérnico2. Os adormecidos, entretanto, continuam a acreditar que o planeta terra é o centro do universo e que tudo gira em torno do seu esplendor. O ser humano não governa seus atos de modo consciente, mas é flechado a todo momento por impulsos e pulsões de toda a ordem, diagnosticou Freud. Os adormecidos permanecem insistentemente adormecidos.

O fato é que não importa a verdade-em-si ou o dia em que finalmente algum gênio iluminado decifrar a pedra de roseta da coisa-em-si ou do ser-em-si. A verdade absoluta não é o sentido maior da busca humana. O que o homem quer é a ‘vontade de verdade’ e o prazeroso trabalho de Sísifo3 em rolar a pedra da dúvida metódica todos os dias montanha acima. O ser humano necessita da crença no conhecimento mais do que da própria verdade. A crença e a razão fazem o homem perseguir infinitamente um mapa do tesouro que só esconde a verdade da necessidade arquetípica da crença e da razão.

A crença humana na existência da verdade oblitera o fato de que o animal metafísico, de que falava Schopenhauer, é, antes de mais nada, um ser que crê no logos, no mito, na fé, na objetividade, na consciência, no idealismo, na metafísica e na própria verdade, ao mesmo tempo em que a razão descrê da crença no logos, no mito, na fé, na objetividade, na consciência, no idealismo, na metafísica e, novamente, na própria verdade.

Só a mente humana tem o poder supremo de separar o que já nasceu umbilicalmente unido e de acreditar que a razão é antagônica à crença e de que a ilusão é incompatível com a realidade. A mente é capaz de desmentir a própria mente ou crer que é racional aquilo que não passa de crença ou considerar como absolutamente racional o que acaba se revelando apenas como uma mera crença. De maneira prática, a mente parece ter razões que a própria mente desconhece.

Entretanto, por mais que se queira negar as evidências, não há dúvida quanto ao fato de que a razão e a crença convivem lado-a-lado no compartimento biológico que denominamos de cérebro, um à direita e outro à esquerda do trono da verdade. Curiosamente, ao invés de conciliar as duas perspectivas produzidas pela mente humana, o próprio cérebro parece sempre querer expulsar um dos dois inquilinos de seus aposentos. A ação do pensamento mágico ou do pensamento racional foi sempre o de desalojar seu antípoda do que é categoricamente o seu habitat natural, vislumbrando o outro como um alienígena perverso, uma bactéria ameaçadora ou um hóspede mal-cheiroso dentro da natureza humana.

A questão é que, ao longo da história, pensadores físicos, metafísicos ou mágicos decidiram apostar que a verdade estava no lado esquerdo (emoção, sentimento, pathos) ou que estava no lado direito (lógica, racionalidade, ratio). O sentimento, ou o mundo sensível, seria apenas fricção de ilusões, fantasias e perversões da mente humana. Do mesmo modo, a racionalidade, ou a busca dela pelo desejo de racionalidade, seria tão somente uma manifestação maquínica da própria evidência de um mundo previamente dominado pela maquinização do ser e da realidade.

Se a reductio ad absurdum fosse possível neste caso, poderíamos levantar a

2 Na verdade, o verdadeiro propositor do heliocentrismo foi o astrônomo grego Aristarco de Samos, que nasceu em 310 a.C e morreu em 230 a.C. 3 Na mitologia grega, Sísifo era filho do rei Éolo e da rainha Enarete. No fim de sua vida, Sísifo foi condenado a rolar uma grande pedra montanha acima todos os dias. Ao chegar ao topo, a pedra sempre acabava rolando montanha abaixo. Por isso, Sísifo tinha que diriamente fazer todo esforço novamente, sem nunca conseguir completar sua missão. O mito de Sísifo tem relação com o papel do trabalho no mundo humano.

hipótese sugerida pelo filósofo David Wiggins sobre o que aconteceria ao ‘eu’ humano se um dia ocorresse de fato a separação cirúrgica das duas metades do cérebro e o transplante destas metades em duas pessoas diferentes. Considerando a hipótese de ser tecnicamente possível a sobrevivência e a adaptação saudável das duas metades nos dois novos cérebros, Wiggins pergunta onde ficaria, enfim, instalado o ‘eu’ do sujeito doador. Na pessoa que recebeu o lado direito ou naquela que ganhou o lado esquerdo? Do mesmo modo, Wiggins pergunta se seria possível a divisão do ‘eu’ em duas novas pessoas, a ponto de o doador passar a viver uma vida dupla em dois outros corpos?

A resposta para essa questão só poderia ser obtida no dia em que algum cirurgião aventureiro resolver arriscar a experiência em algum caso concreto. Até lá teremos que conviver com esta dúvida, mas a questão sobre a fratura da personalidade, entretanto, não pára por aí. De acordo com a linha de pensamento de Wiggins, também seria possível propor-se a reflexão, no hipotético caso de um paciente sofrer danos graves em um dos hemisférios do cérebro, sobre se não seria também permitido afirmar que esta pessoa ficaria aleijada para sempre de suas emoções ou de sua racionalidade. Desconsiderando as evidências que mostram que o lado saudável do cérebro assume muitas das funções perdidas pelo lado danificado, poderia-se presumir que, neste caso, haveria por fim um ser humano na terra que acreditaria tão somente na crença ou tão somente na razão.

O fato é que, devido a este histórico processo de reducionismo cognitivo, muitos dos nossos pensadores entregaram suas vidas à crença racional ou irracional na certeza vitoriosa da razão ou da crença. Montaigne, Pascal, Santo Agostinho, Husserl, Simmel, Mauss, Bataille, Freud, Merleau-Ponty, Bachelard, Castoriadis e tantos outros ficaram ao lado do pensamento mágico, considerando-o um reservatório infinito e primordial de toda e qualquer imagem da realidade. Platão, Descartes, Hume, Bacon, Spencer, Hobbes, Comte, Durkheim, Parsons, Merton, Taylor, Fayol, e muitos dos seus epígonos, enveredaram pelo caminho da matéria, tomando-a como centro nervoso de um mundo funcional organizado apenas em torno de fatos e de coisas.

Não há dúvida que o embate antitético entre os dois times foi sempre um verdadeiro duelo de titãs. Iluminados pela genética ou pela boa formação, alguns dos maiores gênios da humanidade colocaram suas idéias a serviço do exército do conhecimento, combatendo ou refutando com ardor todas as teses postadas contra a força do vento dos seus argumentos. Os mais racionais lutaram apaixonadamente pelas suas idéias. Os mais irracionais se entregaram ao esforço da prova com esforço lógico invejável.

O resultado não poderia ser, portanto, diferente da natureza ambidestra do pensamento. A profusão de leituras e de enunciações inquebrantáveis sobre o universo humano, a favor ou contra o que não estivesse alinhado ao pensamento de cada teórico, favoreceu uma babel perceptiva, que, muitas vezes, valeu-se do repasto alheio ou condensou no mesmo tacho a variedade de rações à disposição do pensamento, para anunciar os esplendorosos segredos da natureza humana.

De forma geral, a evidência é que, à exceção dos céticos, que na verdade não acreditam em nenhum tipo de verdade, todos os demais pensadores decidiram acreditar na impossibilidade de uma verdade mista (crença e razão), admitindo apenas a possibilidade de uma verdade racional (razão sem crença) ou de uma verdade irracional (crença sem razão). Afinal, Deus não joga dados, afirmou Einstein, afirmando a impossibilidade de um verdade ambígua ou duvidosa, embora tenha reunido na mesma sentença duas evidências de incerteza, Deus e a sorte.

Portanto, mesmo que a metafísica pareça poder viver sem a física e a física pareça nascer de um outro lugar que não seja a metafísica, a verdade humana acaba

sendo obrigada a decidir de qual lado da verdade ela está. Não pode existir uma verdade com duas cabeças ou uma cabeça com duas verdades. A verdade tem que ser única, universal, imutável, e, principalmente, verdadeira.

A saga em busca da verdade humana alimenta e se alimenta, desta forma, das ilusões humanas em crer que devemos separar o sonho da realidade, a loucura da normalidade, a certeza da dúvida, a ignorância do conhecimento, o instinto da intenção e a idéia da sensação. Estas ilusões não conseguiriam sobreviver, entretanto, sem a crença de que não existe uma realidade sem ilusão, uma dúvida que não contenha certezas, uma pessoa normal sem um pouco de loucura, um conhecimento sem um lado de ignorância, uma intenção sem o motor do instinto e uma sensação sem o reflexo do pensamento.

Ao contrário da pretensão física e da arrogância metafísica, toda verdade, da mais banal à mais radical, demonstra sempre um natureza ambígua, pois só pode ser verdadeira se for múltipla, difusa, dialética e paradoxal. Dizer que existe uma verdade sem a não-verdade é negar o princípio dialético da própria existência. Como dizia Heráclito, o claro já contém a escuridão, o seco já contém a umidade, o belo já contém a feiúra, a unidade já contém o múltiplo. Os dois lados da verdade e da não-verdade constituem a mesma certeza de que o homem divide o mundo concreto e o mundo abstrato de modo binário para querer encontrar a coisa-em-si ou o ser-em-si em apenas um dos lados.

Neste sentido, é necessário compreender que o próprio lençol simbólico criado pelo homem esconde do ser humano aquilo que ele não quis revelar, mas esconder; que não existe razão para saber, mas para destruir o saber; que não existe a crença para que o homem invente a realidade, mas para que a invenção da realidade seja encoberta pela ilusão.

A verdade é uma construção social da realidade que persiste enquanto objeto a ser negado, a ser partido, a ser falseado. O homem só inventou a idéia de verdade para poder brincar de montar e desmontar um quebra-cabeças sempre incompleto; inventou a idéia da verdade para correr às cegas no labirinto metafísico da sua própria imaginação; inventou a verdade para despistar o pensamento do verdadeiro sentido da vida.

A criação da verdade só se sustenta porque o homem inventou a crença de que ela pode não existir. Logo, o pressuposto para a existência da verdade é a evidência socialmente construída de que existe algo que se opõem à verdade. Isto é. A verdade absoluta só poderia existir como negação total da inverdade. A certeza só poderia ser válida se houver algo que legitime a incerteza. O logos só poderia ser afirmado se houvesse algo que não fosse cabalmente racional. Toda a verdade só poderia, consequentemente, ser afirmada naquilo que Parmênides equivocadamente enxergou como a oposição entre o ser e o não-ser. Nas palavras do Eleata, o ser não pode ser aquilo que não é, afinal, o ser é e o não-ser é o nada. Mais do que isto, o nada não existe e, por não existir, não pode ser pensado. Logo, a verdade do ser reside naquilo que é uno e imutável, fechado e esférico em suas verdades internas. Parmênides, como sabemos, olhou os seres e as coisas com os olhos de um cego. Ele não viu que o ser e o não-ser são reciprocamente necessários para a existência da totalidade única de todas as coisas.

Parmênides não viu que não há verdade sem não houver a mentira. Não há verdade se não existir uma antítese natural para validar sua existência. Por isso, nunca existiria o claro se não houvesse a escuridão. Nunca haveria vida se não houvesse a morte. Nunca haveria calor se não soubéssemos ou experimentássemos o frio.

A mentira é o que legitima a verdade, mesmo que a verdade não seja verdadeira, mas apenas a síntese paradoxal de uma necessidade humana na existência da verdade.

Portanto, a possibilidade de existir a mentira é o que afiança a busca humana na verdade ou na verossimilhança. Além disso, se ainda não conhecemos a verdade, aceitamos a mentira como verdadeira até que uma crença em uma nova verdade ou em uma nova mentira, tida como verdade, venham a atualizar nossas crenças. Aristóteles já dizia: o atual é só um estágio do virtual e do potencial. O atual é a melhor possibilidade que nós temos do real, mas diante do devir do mundo, o atual é sempre instantâneo e provisório.

Nesta linha de pensamento, a religião não existiria sem a anti-religião, isto é, a descoberta de que deus ou os deuses não existem. A anti-religião é que torna possível a religião e sustenta seus dogmas. Mesmo que a religião fique cansada de seus deuses, duvide dos seus deuses, desaprove seus deuses, ela nunca se transformaria em uma anti-religião. Ela reveria seus evangelhos e recriaria novos deuses, novos dogmas e novas narrativas.

Do mesmo modo, a filosofia não existiria sem a crença na irracionalidade humana. A filosofia veio para expurgar o mito de que o ser humano é somente mais um animal no mundo dos animais e que, portanto, não somos migalhas perdidas neste cosmo infinito, mas que somos sim seres especiais convidados a sentar no trono majestoso da criação. Sem a filosofia, não haveria racionalidade, e, sem a crença na racionalidade, não haveria ser humano e filosofia. Portanto, o que sustenta a razão proposta pela filosofia é a desrazão ou a razão da anti-filosofia.

O mesmo sucede com a ciência. Só a anti-ciência permite a existência da ciência. Só a anti-matéria do conhecimento objetivo faz com que os homens acreditem tanto nas verdades professadas pelas pedras, pelos excrementos fósseis e pela tabela periódica. A objetividade é o único palco verdadeiro para o conhecimento, mas ela só existe mesmo por que as verdades da subjetividade humana operam como uma assombração mágica em seu inconsciente petrificado.

A operação de extração, refino e distribuição da verdade não se resume, portanto, a um jogo de dados entre forças sobrenaturais na mente dos iluminados. A anti-religião, a anti-filosofia e a anti-ciência são apenas o lado escuro da lua do conhecimento. Elas operam como uma espécie de lastro moral ou teleológico para o papel da religião, da filosofia ou da ciência. Sem a escuridão, perderíamos a noção do dia ou da noite, mas ainda poderia sobreviver a existência de uma crença numa verdade absoluta.

Por isso, a crença na verdade e na não-verdade legitimam a estrutura histórica do conhecimento humano, mas não são suficientes em si para manter acesa a chama prometeica na necessidade da revelação do conhecimento. Esta é apenas uma meia-verdade sobre a fé no safári humano em busca da verdade final. O que efetivamente sustenta o regime do poder na crença de um saber verdadeiro é o choque bizarro entre os discursos da filosofia, da religião e da ciência, bastante conhecido pelos livros acadêmicos, mas, sobretudo, pela guerrilha estabelecida entre a crença nos discursos das pseudo-religiões, das pseudo-filosofias e das pseudo-ciências.

Não satisfeita em arrogar para si a autoridade da verdade, a religião faz valer suas narrativas combatendo diuturnamente a filosofia, a ciência e as religiões rivais, que aqui denominamos de pseudo-religiões. O mesmo vale para a filosofia e para a ciência, ocupadas ou preocupadas permanentemente em fazer valer a força de sua verdade numa queda-de-braços com as narrativas vindas de todos os lados pelas pseudo-filosofias e pelas pseudo-ciências.

Afinal, a ciência não poderia nunca dizer que seus métodos são infalíveis sem que tivesse que admitir que uma outra vertente científica ou, em outra medida, uma outra religião, também pudesse sustentar as mesmas verdades. Por isso, a ciência não pode aceitar que o senso comum ou a sabedoria popular sejam portadoras de verdades

prontas. Para ela, só a prova científica pode legitimar o que o senso comum ou a sabedoria popular andam profetizando. E, se houver a prova, o conhecimento faz parte da ciência e nunca das duas outras formas de saber.

Desta forma, enquanto dizem se ocupar na busca das verdades últimas sobre as coisas e as idéias, a religião, a filosofia e a ciência acabam aplicando muito mais suas energias na desconstrução ou na destruição das potenciais verdades alheias. A história mostra, como sabemos, que a filosofia veio para superar os mitos administrados pelo mundo místico e que a ciência foi criada para superar as imperfeições das especulações metafísicas. Para desconsolo de Comte, nada disso aconteceu, apesar da intensa batalha histórica. A filosofia reafirma permanentemente sua autoridade e ataca a religião e a ciência, sejam elas modernas ou primitivas. O mesmo ocorre com a religião e a ciência. Ambas não descansam sem bombardear periodicamente uma à outra, ou torpedear a própria filosofia.

Vez ou outra, um sintoma de verdade ou a crença na verdade aparecem em meio a esta rinha de pensamentos. O problema é que se a verdade aparecesse aos homens em sua totalidade, em sua fortaleza, em sua majestade, esta verdade jamais poderia ser aceita por qualquer sistema de conhecimento, pois, diante das provocações entre a ciência, a religião e a filosofia, seria considerada apenas como mais uma provocação, uma artimanha ou uma armadilha teórica para ludibriar todo o processo de conhecimento desenvolvido ao longo dos tempos.

Nesta perspectiva, a pretensão da ciência, da filosofia e da religião não é nunca encontrar a verdade. Isto poderia ameaçar toda constelação de poderes e todo sistema de legitimações organizado dentro de cada um destes regimes de conhecimento. No fundo, a ciência, a filosofia e a religião já sabem que não existe a verdade única, universal e absoluta, mas não revelam este segredo abertamente para que a humanidade continue acreditando que o conhecimento está nos levando para um mundo melhor do que aquele em que vivemos.

Por isso, mais importante do que a doutrina, o discurso, a narrativa e a pesquisa é o simulacro da doutrina, do discurso, da narrativa e da pesquisa. O que legitima e dá credibilidade à religião são seus códigos, suas regras, seus rituais, suas imagens. Todo este universo de encenação e representação esconde o fato profundo de que, na verdade, não existe nada detrás da cortina, fato, aliás, que já havia sido bem observado por Baudrillard. A religião está nua. Só tem a oferecer promessas e indulgências. As pesquisas científicas se contradizem a todo momento, se negam e se martirizam, mas não podem nunca revelar que seus métodos são apenas métodos, que as suas descobertas não passam de probabilidades, e que o caminho jamais chegará ao seu fim. A filosofia precisa, ao mesmo tempo, dos seus intermináveis falatórios e das suas reflexões cabalísticas sobre a imperfeição das suas estruturas de falatórios e reflexões.

Sem o simulacro da verdade filosófica, religiosa e científica teríamos que viver em um mundo sem vontade ou pretensão e ficaríamos frente a frente com a cruel realidade humana. O simulacro é, portanto, o combustível que move o imaginário em direção ao seu arsenal de crenças, descrenças, mitologias, saberes, sensações e percepções.

Ao invés de esconder a verdade, a simulação serve para enfeitar a realidade com os olhos da ética e da estética. Por isso, o simulacro não representa uma espécie de esconderijo ou de falsificação da verdade, ou mesmo um sintoma de uma possível doença cognitiva humana em criar imagens artificiais para substituir as dolorosas imagens reais de um mundo sem sentido.

O exercício humano da simulação é tão saudável para o ser humano quanto os alimentos, a paixão ou os pequenos prazeres mundanos. Ao contrário da crença de que a

simulação não passa de uma ação de falsificação do mundo, ou de que ela conduz à virtualização do real, como proclama Baudrillard, o simulacro não substitui as imagens do mundo; ao contrário desta visão, a simulação cria as imagens que revestem o mundo.

Afinal, não se pode cometer, mais uma vez, o equívoco de Descartes. O mundo não é uma máquina a operar a partir de engrenagens objetivas e independentes da natureza humana. O relógio de Descartes é somente mais um sonho delirante do pensador francês, que parece ter esquecido o papel dos sonhos na vida humana.

Simular imagens e inventar imagens tem o mesmo sentido. É por isso que chamamos o núcleo da mente humana de imaginário, já que é neste lugar, e não em um planeta distante da Via Láctea, que o ser humano inventou e reinventa todos os dias tudo o que compõem a realidade. O imaginário é a realidade. A realidade é o imaginário.

Dito de outro modo: imagino, logo existo; ou, existo, logo imagino. A mente constrói a realidade a partir de sua natureza subjetiva. A subjetividade gera e gerencia as imagens que emolduram o universo da física e da metafísica e, apesar da objetividade tentar ossificar estas percepções como a realidade verdadeira, ela sabota e subverte permanentemente a ditadura da objetividade, reconstruindo e reinventando a todo momento, com sua própria semântica, as versões sobre a realidade e a verdade. As imagens são, portanto, a seiva da realidade e a própria casca dos acontecimentos e das idéias. Não existem imagens falsas ou verdadeiras. Só existem as imagens que representam a coisa-em-si de maneira sempre volátil e mutante.

Por mais que se queira dizer que as imagens são um embuste da imaginação, e a razão do homem se sinta traída pela filosofia, pela religião ou pela ciência, as imagens simulam a vida em um processo de acumulação de camadas de imagens. A primeira seriam as originais e as demais seriam falsas. Todas, entretanto, são imagens. Portanto, todas são, ao mesmo tempo, originais e falsas, já que tudo o que temos reside no território espectral do imaginário.

Uma montanha, uma lagarta, um feixe de luz, ou o próprio amor, a felicidade ou a angústia, são apenas epifanias da mente humana. A coisa-em-si e o ser-em-si estão, portanto, na mente humana e não no mundo da physis. A coisa-em-si é a própria ilusão da coisa-em-si, ou, em outras palavras, o objeto só existe como coisa material por ser imaginária. O ser-em-si, por sua vez, exterioriza no mundo o que não passa do ser-para-si e de suas estratégias para inventar a verdade e a realidade.

O reconhecimento na grandiosidade de Kant reside exatamente no fato de que, além dele ter demonstrado que a essência da realidade é incognoscível, a subjetividade humana contém os imperativos categóricos que determinam, na mente, ou no ser-para-si, as senhas do que o homem vem a compreender como o ser-em-si, isto, os fenômenos da natureza e dos seres. Segundo Kant, alguns dos elementos essenciais, constituintes de cada um e de todos os objetos, não são exatamente propriedades dos objetos, mas já existem aprioristicamente no mundo do sujeito que conhece. Coisas, sejam fatos ou fenômenos, como as formas, as cores, os sons, os cheiros, assim como os valores morais e os mitos, são qualidades subjetivas e não objetivas. De acordo com o filósofo de Königsberg, as próprias noções de tempo e de espaço são inatas ao mundo mental, pois vêm acopladas ao cérebro, como um brinde da criação.

De certo modo, para Kant, o universo da realidade não é apenas uma criação do imaginário, mas o universo real já existe, em parte, como forma ou modelo constituintes da própria estrutura do imaginário. Em sentido metafórico, podemos dizer que a mente humana possui, mesmo antes de nascer, uma maquete de algumas das formas e dos sentidos que compõem a realidade.

A própria linguagem humana, observou Chomsky, é uma destas construções

sociais que já existem antecipadamente na própria mente humana. Isto é, apesar da linguagem, como langue, ser uma instituição social, a aptidão para a expressão da linguagem, a fala ou a parole, de que falava Saussure, já é uma estrutura presente, de forma adormecida (mas pronta para ser despertada), no interior da subjetividade.

O que Kant nos revela, sobretudo, é que a dialética da criação e destruição da coisa-em-si e do ser-em-si existem como uma pré-existência na condição humana e condicionam pela anterioridade a alteridade entre o ser e a realidade e o ser e a verdade.

A filosofia da linguagem e a ciência cognitiva caminham nesta mesma direção, ao apregoar que a realidade não existe como fato-em-si, mas que ela só existe se for percebida pelo sujeito. Schopenhauer denominava esta dinâmica como a relação entre a representação e a percepção, o movimento entre os sentidos humanos e a coisa-percebida. Por isso, o objeto só existe porque o sujeito o inventa como objeto, embora o raciocínio inverso também seja válido: o sujeito só existe porque existe um objeto a ser observado. Se desaparecesse o sujeito, não existiria o objeto. Se desaparecesse o objeto, não existiria o sujeito.

Esta idéia faz lembrar a antiga fábula sobre a existência das coisas e dos seres. Segundo esta singela narrativa, um rei que sonhasse toda a noite que era uma borboleta, não poderia saber realmente se era um rei ou se era tão somente uma borboleta. Nietzsche contou a mesma fábula seguindo reflexão feita de outro modo por Pascal. Dizia ele: “Se um artesão estivesse certo de sonhar toda noite, durante doze horas plenas, que era um rei, creio, diz Pascal, que ele seria quase tão feliz quanto um rei que toda noite sonhasse durante doze horas que era um artesão”.

No fundo, a pergunta de Nietzsche e de Pascal é a mesma: existe verdadeiramente uma realidade ou tudo não passa de uma ilusão de nossas mentes? Em outras palavras: o mundo não seria apenas uma grande ilusão pronta para desaparecer a qualquer momento?

Não podemos esquecer, entretanto, que ao investir contra a metafísica, por esta ter inventado uma realidade fantasiosa, Nietzsche decidiu que a realidade metafísica era a única realidade possível. O erro de Nietzsche foi ter misturado seu ódio contra a vida com o ódio contra a realidade. Se a realidade é apenas ilusão ou se a ilusão é aquilo que o homem concebe como realidade, o fato é que o homem acredita que existe a realidade e a ilusão, e que uma pode ser apenas o disfarce da outra. O problema é que, como inteligentemente constatou Clement Rosset, a realidade é duplamente cruel com os homens. Primeiro, porque o ser humano sempre tentará decifrá-la e, segundo, porque a realidade jamais poderá ser decifrada. O raciocínio de Rosset, parafraseando Wittgenstein, quando este diz que jamais podemos pensar a linguagem por meio da própria linguagem, é que nunca poderemos compreender a realidade utilizando os mecanismos de compreensão oferecidos pela própria realidade.

A realidade deve ser vista, consequentemente, pela sua gramatura relativa, paradoxal, ambígua e virtual. A realidade é sempre e nunca o real-em-si e o não-real-em-si. Ela é a tensão das forças dionisíacas e apolíneas, o choque cósmico entre Eros e Thanatos e a náusea pelo conflito entre a concretude do nada e o exalar gasoso da existência.

Se a matéria pode desaparecer na frente dos nossos olhos e se travestir de energia e se os dois pilares da realidade, o espaço e o tempo, são curvos, incertos e relativos, porque não podemos pensar na possibilidade de que o tudo e o nada sejam partes de uma totalidade única? Porque, no final, não podemos conceber que o real-tudo e o real-nada não sejam, na verdade, apenas o real tudo-nada?

Afinal, o próprio átomo, considerado como o cimento de toda a criação, não é um ingrediente absolutamente oco? A luz de muitas estrelas não espelha, na verdade, o

cadáver de astros celestiais que se desintegraram há bilhões de anos? A mentira não seria simplesmente outra face da verdade, como demonstrou Epimênides? E Deus? Não é uma imagem de festim ou o ouro de tolo que os crentes teimam em provar que é o ser superior que criou tudo do nada?

Se a própria matéria indica uma existência formada por um amálgama de forças e tensões, porque a anti-matéria do real não poderia ser pensada também como manifestação de forças e tensões de uma ontologia multidimensional?

A energia dialética da vida demonstra, portanto, que só podemos compreender a coisa-em-si ou o ser-em-si enquanto sua contradição ou sua antítese ou, melhor dizendo, enquanto a não-coisa-em-si e o não-ser-em-si. Por este raciocínio, o princípio de todas as coisas deixaria de ser a sua existência para se revelar a não-existência. A dialética entre a coisa-em-si e a coisa-para-si e o ser-em-si e o ser-para-si deveria avançar para a possibilidade de manifestação da realidade enquanto não-coisa ou não-ser.

Como vimos, o raciocínio de Parmênides é o de que o ser não pode ser o não-ser, posto que este é o nada e o nada não existe. Todavia, de onde veio o ser? Para onde vai o ser? Se o ser existe, devemos também concluir que o nada também existe, e que ele estava lá antes e depois do ser ter existido. O nada surge do nada e caminha em direção ao nada. O nada é o início e o fim de tudo, concordam, ao menos, os filósofos, os cientistas e os religiosos, além dos próprios ignorantes. O nada é um fato da realidade tão onipotente quanto o não-nada, ou a coisa-em-si. Jamais haveria o que chamamos de tudo, e curiosamente tentamos entendê-lo, se não houvesse o nada para assombrá-lo.

Ironicamente, foi Górgias quem acabou provando este tese. Apesar de ser considerado um sofista, por suas hábeis qualidades retóricas, Górgias, foi muito mais profundo em suas reflexões ao tratar da relação entre o ser e o não-ser. Embora sua intenção fosse provar que tanto o ser quanto o não-ser efetivamente não existem, Górgias acabou dando munição para a tese oposta. Partindo do princípio de que o ser e o não-ser estão inextricavelmente interligados, o sofista apostou na crença de que o nada existe, embora, pela mesma medida, pudesse ter afirmado o contrário. Seu raciocínio era o seguinte: se aceitarmos que o não-ser não seja, também o ser não seria. Portanto, devemos obrigatoriamente admitir que do não-ser se afirma o ser, e que do ser se afirma o não-ser.

A ambigüidade de Górgias acaba reforçando, mais uma vez, o princípio de que só apreendemos a realidade da coisa-em-si enquanto paradoxo. A coisa-em-si e a não-coisa-em-si são complementares, apesar de antagônicas; são uma unidade, apesar da sua multiplicidade; são centrípetas, apesar de também serem centrífugas.

Portanto, a história do nada e a história do ser têm a mesma trajetória. O ser forma o nada e o nada forma o ser como um processo de alteridade necessária. Por isso, enquanto Parmênides se preocupou em pensar naquilo que ele via, o pensador deveria ter refletido sobre aquilo que ele não compreendia, visto que o não-ser é tão gigantesco e intenso quanto a evidência existencial do ser. Como dizia Sartre: “o homem é o ser porque quem o nada vem ao mundo!”.

Longe de ser um lapso do pensamento ou da criação, o nada é uma rocha gigantesca a olhar ironicamente para os seres humanos, enquanto estes procuram pistas sobre a verdade e a realidade nos lugares errados. A grande questão é que o ser humano não consegue conceber nem a idéia e nem a representação do nada, embora conviva e aceite serenamente a idéia e a representação do número zero. O que falta, portanto, é a perda do medo em aceitar a evidência do nada e de que o próprio nada é uma idéia e uma representação tão concreta e necessária na vida humana quanto qualquer outra de nossas representações.

Não deixamos de conhecer o mundo da vida só por que este é dominado por

representações, por imagens ou por suas assombrações, como o nada, mas, ao mesmo tempo, não deixamos de reconhecer que o conhecimento só pode ser a representação das representações, das imagens e das suas assombrações. A linguagem é a morada do ser, já dizia Heidegger, mas, em certo sentido, a linguagem expressa o que ela deseja inventar ou desinventar e o ser parece que não costuma ter endereço fixo. A frase de Heidegger ficaria melhor, portanto, se considerássemos que a imagem é a morada do ser, ou que a imagem é a morada da linguagem.

A imagem, ou a representação, sustentam o mundo nos ombros desde que Atlas se aposentou. A imagem cria toda a ossatura do mundo e irriga com suas crenças a nervatura do real. Sem imagens, o mundo desaparecia em um buraco negro cósmico profundo e irreversível e, sem as imagens, o ser não conseguiria imaginar um mundo que parece ser tão concreto, tão categórico, tão factível, de tal modo que as próprias imagens acabam parecendo ser anti-naturais e anti-humanas. O jorro fértil e infinito do imaginário tem o poder miraculoso de parir galáxias de imagens a cada instante em todos os quadrantes do universo e, paradoxalmente, disseminar a crença iconoclasta de que não há lugar para a presença das imagens na vida humana.

Ao contrário da mentalidade cartesiana em um mundo construído pela razão, foram as imagens que criaram a própria história da humanidade, do berço ao crepúsculo da civilização. As inscrições rupestres, os símbolos sagrados nas tumbas primitivas, as pinturas de guerra dos índios, os sinais místicos nos corpos dos primeiros homo sapiens representam, antes do advento das primeiras simbologias sociais e da babel lingüística, o nascimento do universo simbólico criado pelo ser humano para tatuar o mundo com palavras, símbolos e conceitos, e, ao mesmo tempo, promover a inauguração da realidade.

As primeiras palavras não passavam de meras imagens criadas pela mente humana para designar as coisas do mundo. A fertilidade do imaginário humano eclodiu por todo o planeta, cristalizando representações para coisas tão diversas como o fogo, a água, os peixes, os cântaros, as flechas, as mãos, as aves e os deuses. Estes pictogramas começaram a colonização do mundo, mas deixaram sua conquista para os ideogramas. Os rabiscos ganharam novas formas, mais simétricas e organizadas, adaptadas à necessidade de ordem na mente humana, promovendo simbologias não só para as coisas concretas, mas principalmente para as idéias abstratas.

As religiões levantaram seus castelos de crenças em cima de cruzes, ícones, efígies, alegorias, selos, círculos, além de gestos e encenações ritualísticas, necessários, todos, para fundamentar um imaginário ordenado para os crentes identificarem seus dirigentes celestiais. Os poderosos trataram logo de cunhar seus brasões, emblemas e insígnias, para impor pela representação do poder o exercício e o controle dos que aceitaram acreditar no poder. A ciência desenvolveu também sua própria simbologia, com seus números, fórmulas, diagramas, organogramas e toda sorte de triângulos, bissetrizes e algoritmos, para estabelecer, delimitar e consagrar seu próprio universo lógico.

Com o tempo, parece que todo o planeta acabou sendo pincelado pelas mãos dos artistas, cientistas, poetas, químicos, físicos, engenheiros, médicos, advogados e tecnocratas, para não só estabelecer suas constelações de crenças particulares, mas também para fincar estacas e fixar seus territórios semânticos dentro da grande oficina estética em que se transformou o mundo. Até mesmo os sem-sinais, os não-incluídos na ordem convencional do universo administrativo das imagens, trataram de gerar suas próprias simbologias, construindo um panteão paralelo para suas pichações, tatuagens e grafismos esotéricos. O mundo dos sinais oficiais passou a conviver com o universo dos sinais marginais, para infelicidade daqueles que achavam que poderiam impor, pela

força da imagem, a autoridade gasosa de suas crenças e narrativas. O resumo da ópera está no fato de que o homo sapiens sapiens inventou ao

longo do tempo todos os tipos de discursos da imagem para desenhar e redesenhar a realidade ao seu gosto ou para transformar os signos originários do livre-arbítrio do imaginário em armas, cadeados, muralhas ou masmorras, fazendo crer que as palavras e os símbolos da força ou do poder existiam como estruturais naturais no mundo da vida. O surrealismo, o irrealismo, o cubismo, a impressionismo ou a bauhaus conviveram lado-a-lado ou acabaram sendo usadas por dogmas ou pelas ideologias do cristianismo, do absolutismo, do feudalismo, do iluminismo, do positivismo e do liberalismo. As imagens escravizaram as imagens; as imagens gangrenaram as imagens; as imagens exilaram ou queimaram em praça pública as próprias imagens.

As imagens foram usadas, em toda a história da civilização, para criar e, ao mesmo tempo, determinar os discursos da verdade. Embora as ideologias consigam, durante um longo período, cristalizar as idéias como dogmas coletivos a serem seguidos por todos, o homem sempre esqueceu, contudo, que quem determina o sentido da imagem e da verdade não é o remetente, mas sempre o destinatário. Lemos, ouvimos, enxergamos e entendemos aquilo que queremos ler, ouvir, enxergar e entender. A ditadura do discurso sempre acaba a peça teatral da verdade como o bobo da corte. O sentido discricionário embutido no discurso da verdade nunca dura muito tempo sem assistir a sua própria derrocada.

A ‘vontade de verdade’ leva os homens a subverterem, sabotarem e escabelarem todos os discursos e todas as ideologias. Como já dissemos, o discurso e o sentido não têm dono ou patente. Os seres humanos estão sempre prontos para trair as palavras e os signos com outras palavras e outros signos. No final, todos sempre esperamos fidelidade monogâmica das nossas representações, mas elas sempre se comportam como beija-flores libertinos a degustar desbragadamente o pólem delicioso de todas as verdades.

Por isso, os cientistas nunca conseguiram derrubar as verdades da religião, assim como a filosofia nunca conseguiu erradicar as imagens da ciência. Os mitos da criação, presentes na literatura, nas fábulas, nas lendas e em tantas outras formas de narrativas, sempre deram uma espécie de ‘vantagem cultural’ à religião e ao seu universo de imagens e discursos. Ao homem comum, nascido antes para viver do que para pensar, é muito mais fácil e palatável aceitar a origem de tudo como a estória de que um ser criador gerou todo o universo em seis dias, fabricando a luz, a natureza, os animais e os seres humanos. Por terem cometido o pecado original, os homens foram expurgados do paraíso e, para retornar a ele, devem percorrer uma estrada de sofrimentos, angústias e privações. Durante o percurso, o único guia são os dez mandamentos e os treze pecados capitais.

Esta é uma fábula muito mais digerível do que a teoria dos cientistas sobre o Big-Bang, o nascimento da vida unicelular a partir de uma explosão de vapores e choques elétricos e do surgimento do animal humano através de uma escalada evolutiva de seres marinhos, anfíbios, répteis e mamíferos superiores. Não bastasse a complexidade destas explicações, as teorias científicas ainda estão cheias de hiatos e contradições, e, para piorar, vivem debaixo de ataques constantes contra a fragilidade e a inconsistência dos seus métodos e das suas provas.

A necessidade da existência da prova da prova, e, da mesma forma, da prova da prova da prova e assim por diante, faz com os cientistas sejam obrigados a viver com sua própria crise de consciência, ao admitir, ao mesmo tempo, a inconsistência metodológica e epistêmica da objetividade e a falta de sentido para tudo aquilo que eles acabam descobrindo. O drama da ciência só se torna suportável na medida em que a religião permanece sempre de braços abertos para receber os empiristas arrependidos.

A religião é o esconderijo seguro e macio para onde todos correm quando as certezas começam a abandonar o homem. Ela serve de abrigo, com muita freqüência, para os próprios filósofos, isto porque a angústia dos projetos da filosofia não são muito menores do que os da ciência. Em sua ambição de revelar os segredos mais profundos da coisa-em-si ou do ser-em-si, desmistificando os mitos primitivos e racionalizando os atos e os pensamentos humanos, num pêndulo que vai da escatologia à teleologia, os filósofos parecem somente ter aumentado o abismo de conhecimento entre a realidade e a verdade. Cada novo filósofo parece desmentir o anterior e, no mesmo compasso, desmascarar o princípio vazio ou falso de suas verdades. Neste tiroteio de idéias, premissas e axiomas, os pensadores acabaram construindo um extenso cemitério filosófico de verdades. Um após o outro, os filósofos proclamaram a morte de Deus, a falência das utopias, o fracasso da razão, a náusea da existência, o embuste da imaginação, o delírio da objetividade e a própria impossibilidade do conhecimento e da comunicação.

Neste ritual funerário, os metafísicos acabaram enterrando suas verdades na cova de suas próprias crenças. Os pré-socráticos não enxergam nada além da natureza; os epicuristas aceitam apenas aquilo que leva o homem ao prazer pela renúncia à dor; os estóicos só admitem as operações mentais da razão; os existencialistas descartam qualquer possibilidade de essência; os idealistas louvam apenas o que representa o absoluto; os cartesianos vêem tudo como fatos e coisas; os anti-cartesianos só aceitam aquilo que nasce do fenômeno; os analíticos renunciam a qualquer verdade que não emane da linguagem; os semioticistas negam tudo que não for signo; e os pragmáticos professam uma crença inabalável na existência mundana.

A verdade é que, apesar de todas as desventuras da filosofia, da religião e da ciência em sua odisséia antropológica em busca do arca do tesouro da verdade, a engenhosidade dos mitos metafísicos, empíricos ou místicos, acabou produzindo os mitos adequados para a manutenção do status quo da religião, da ciência e da filosofia. A crença tem o poder inoxidável de se auto-regenerar ou de auto-transformar em crenças sempre novas, com o poder supremo de apresentar cada nova verdade como uma verdade definitiva e inquebrantável. Parece que a crença é que acaba salvaguardando as mais estranhas e profanas verdades da espécie humana. Não fosse o fetiche sobrenatural na existência da verdade, o ser humano já teria, talvez, despertado para o poder da crença em sua vida.

Livre da condenação eterna à busca do conhecimento, o homem descobriria que o ser humano é movido pela crença, fabrica a crença e acredita na crença. A crença é o próprio oxigênio da alma e da mente e faz com que a verdade apareça como produto do que o ser humano acredita ser um elemento desprovido de qualquer crença.

Não há verdade sem crença na verdade. A ‘vontade de verdade’ só se sustenta porque está enraizada, em suas profundezas, na ‘vontade de crença’ do ser humano. A doxa é uma crença de que a opinião não revelará jamais a verdade das coisas. Os dogmas são crenças que não precisam ser explicadas ou justificadas, haja vista serem dogmas e, portanto, indiscutíveis. Os feitiços são crenças que emanam do ritual mágico em torno dos mistérios imaginários. Os axiomas são crenças no esquema lógico da razão, apesar da primazia da razão, tida como própria da espécie humana, não vir de uma assembléia do mundo animal, mas do único animal na terra que mata os animais e ele próprio apenas por prazer. A époche, por sua vez, também é uma crença na impossibilidade de um juízo sobre a verdade e, por este motivo, parece ser, ao menos, a mais sincera das crenças.

A verdade da ‘vontade de crença’ humana em uma verdade universal é o fato de que talvez a crença seja a verdadeira medida de todas as coisas, mesmo que esta

evidência venha da crença na crença ou na crença da razão. Esta crença só pode ser legítima se entendermos a ‘vontade de verdade’ e a ‘vontade de crença’ como naturais na espécie humana e que ambas acreditam que existe uma medida para todas as coisas e de que esta medida é a crença.

O azar da humanidade, ao longo da história, é que, quando o ser humano inventou a linguagem e nominou as coisas do mundo, ele acreditou que as coisas do mundo tinham uma lógica racional a ser revelada. Esqueceu, portanto, que ele inventou o mundo por meio da linguagem e que os objetos não existem sem que a subjetividade queira que eles existam. Em outras palavras: o mundo é produto do homem, assim como as coisas são produtos das palavras do homem. Elas, as coisas, só significam aquilo que o homem decidiu que elas devem significar.

O problema é que a criatura se libertou do criador, não no mundo, mas na própria mente do ser humano. O pensamento racional tentou inventar uma suposta diferença entre crença e razão, como se a crença fosse a fonte de todos os erros e auto-enganos do ser humano e a razão fosse o pedestal absoluto da sapiência. A crença, prima-irmã do imaginário, passou a ser chamada de ‘a louca da casa’ e foi despejada do mundo dos homens pela própria crença numa estrutura de pensamento binário, criado pela percepção humana de que as todas as coisas existem independentemente do ser humano. O homem, criador da crença, passou a considerar a crença como a ante-sala da perdição, o santo sepulcro dos tolos, a urna maldita de uma razão virginal e imaculada. A crença acabou expulsando a própria crença da mente humana.

Ao invés de libertar o homem para que ele viva sua vida com ardor e sofreguidão, o ser-em-si passou a assumir o lugar do ser-para-si, embora o ser-em-si tenha o poder mágico de se manifestar como a própria coisa-em-si. Como já dissemos, não é o fato ou o fenômeno que decidem sua identidade ou sua existência. Isto é um atributo específico apenas de sujeito humano. O fato ou fenômeno podem, inclusive, se apresentar aos sentidos, ao pensamento ou a ambos de diversas formas.

A verdade sobre a realidade, como ser-em-si ou como coisa-para-si, pode se revelar ao homem como crença nos sentidos do corpo (sensação), crença no pensamento (idéia), crença no tempo (experiência), crença na existência (hábito), crença na razão (civilização), crença na ação criativa (cultura), crença na história (liberdade), crença na imaginação (ilusão), crença na representação (signo), crença na natureza (física), crença na crença (alma), crença na descrença (dúvida), crença na moral (tradição e costumes), crença na percepção (estética) e crença na verdade (saber).

Todas estas crenças fazem parte da grande crença universal na evidência da verdade absoluta, única e universal. Nenhuma das crenças é excludente ou superior às demais. Todas as crenças humanas são verdadeiras por serem crenças, isto é, por fazerem parte do exercício humano em considerar a existência da verdade. Por isso, é necessário compreender que só existe verdade, gerada, original, paradoxal e dialeticamente, pela representação; pela linguagem; pela biologia; pela história; pela cultura; pela fé; pela moral; pela razão; pela sensação; e, até mesmo, pela crença na impossibilidade da verdade.

O homem faz a história e a história refaz os seres humanos (Hegel); o homem cria as ferramentas e as ferramentas recriam os homens (Mcluhan); o homem produz a cultura material e esta cultura determina a vida dos homens (Marx); o homem fabrica o mundo através da imaginação e a imaginação refabrica o mundo e o próprio homem (Castoriadis); o homem produz a sociedade e a sociedade produz o homem (Berger & Luckmann); o homem faz escolhas na vida e as escolhas feitas na vida tornam o que o homem é (Sartre); os deuses criam os homens e os homens criam os deuses (Feuerbach); o desejo é um sonho a ser realizado e o sonho já é a realização do desejo

(Freud); as idéias geram os dogmas e os dogmas geram as idéias (Fichte).A vontade de verdade é autêntica enquanto estrutura múltipla, difusa, fractal,

paradoxal, dialética. Ela nasce da vontade que projeta o ser humano em direção à realização das suas necessidades e dos seus desejos, inatos ou adquiridos. Como mostrou Schopenhauer, a ‘vontade’ é aquela pulsão vital, o desejo imperioso, a força elementar, que atua nos subterrâneos do mundo da consciência e da inconsciência a guiar o homem como o ‘cego robusto que carrega em seus ombros o coxo que vê’. Não há razão, não há lógica, não há intenções conscientes nos atos humanos. A vontade é que determina silenciosamente os desejos do homem.

A vontade trabalha com energia e em silêncio, enquanto a razão, a lógica e a consciência é que levam a fama pelos atos humanos. Dizia Schopenhauer: “Considerem a luta agitada dos homens pela comida, pelas companheiras, ou pelos filhos; será isso obra da reflexão? Claro que não; a causa é a vontade meio consciente de viver e de viver integralmente. Os homens são apenas aparentemente puxados pelo que está em frente; na realidade são empurrados por trás; imaginam que são conduzidos por aquilo que vêem, quando na verdade são impelidos pelo que sentem, - pelos instintos de cuja atuação não têm consciência, muitas vezes. O intelecto é meramente o Ministro das Relações Exteriores; a natureza o produziu para prestar serviço à vontade individual”.

O instinto natural do homem em saciar suas necessidades e desejos é a verdadeira natureza das ações humanas em sua trajetória civilizacional, a verdadeira história da sociedade que ainda precisa ser contada. Quantas guerras, traições, conquistas, invasões, disputas e debates não escondem, na verdade, as reais causas que motivaram os homens? Quantos genocídios, parricídios ou tiranias não foram perpretrados simplesmente pelo impulso vital da inveja, da ganância, da cobiça ou da luxúria? Ou, quem ainda acredita que todos os atos humanos são meramente racionais ou lógicos e que emanam da ação consciente em busca do bem comum para todos?

Portanto, aquilo que chamamos de ‘vontade de verdade’ e ‘vontade de crença’ não passam de emanações da grande energia biológica da vontade humana em querer-viver e ter domínio e controle sobre seus atos. Em outras palavras, a ‘vontade de verdade’ e a ‘vontade de crença’ são elétrons biológicos que se propagam por toda a natureza e por todas as sociedades humanas para realizar o que Nietzsche chamou de ‘vontade de potência’, o motor central que empurra o ser humano a viver desesperadamente a vida, a gozar intensamente a vida, a agarrar a vida pelo pescoço e berrar para o universo que o homem quer ter o controle da sua vida.

Crítico da moral, da religião, da metafísica, da verdade e da farsa da razão, Nietzsche quis livrar o homem do esgoto podre da ilusão. Para ele, o homem é ‘vontade de potência’, seu desejo de se libertar das algemas culturais e morais e viver a vida como um espírito livre, numa condição sobre-humana além do bem e do mal. O princípio da realidade tenta barrar este projeto, mas a ‘vontade de potência’ é a dinamite da alma que pode desacorrentar o homem da miséria do consenso da realidade e permitir ao homem cumprir seu destino dionisíaco e pragmático de transcender a existência. A ‘vontade de potência’ é, portanto, a arma secreta do homem para conduzi-lo a seu desejo de ser o senhor do seu próprio destino e de fazer valer sua vontade perante a irracionalidade da moral e da razão.

A vontade de potência é, consequentemente, o gérmen que ardila e executa o projeto humano de ser o deus da sua própria vontade, realizando com a força do martelo da liberdade a necessidade do homem assumir um papel de protagonista sobre as coisas e o mundo. Ao fabricar a realidade através de palavras e de conceitos em sua própria mente, o ser humano tem a missão, mais do que tudo, de se assenhorar do papel de agente primordial da vida no universo, destacando-se como um ser singular e afirmando

que, afinal, ele, o homem, tem o poder simbólico de construir e destruir, no momento e do jeito que ele quiser, a realidade e a verdade, pela palavra ou pela idéia.

A ‘vontade de potência’ torna-se, neste aspecto, a própria ‘vontade de linguagem’ e a ‘vontade de representação’. O mundo-do-sentido é uma histeria coletiva que todos decidimos acreditar, mas só existe porque o homem decidiu revesti-la com signos, símbolos e mitologias. As palavras dão sentido para a falta de sentido da natureza, inventando uma fábula encantada para um universo que, por sua própria consistência, não representa senão a expressão da capacidade humana de inventar o mundo que ele quis inventar. As palavras, as idéias, as imagens, são, consequentemente, o próprio esconderijo da realidade, a caverna onde Sócrates decidiu morar.

Não há realidade. O que há é tão somente a linguagem e a representação de um mundo que só existe como linguagem e representação. As palavras não dizem o que o mundo é; dizem o que o homem quer que o mundo seja. As palavras não denominam os seres e as coisas; denominam as denominações humanas para os seres e as coisas. As palavras não são extensões simbólicas da natureza, dos sentimentos e das idéias; são extensões das próprias palavras, que, na verdade, são a única realidade sobre a natureza, dos sentimentos e das idéias.

Todas as palavras são a único fio a ligar o homem ao mundo, mas, ao mesmo tempo, servem para negar ao homem a possibilidade de conhecer o mundo. Não há realidade sem palavras, mas também não há realidade com palavras. Talvez, por isso, nenhum outro animal na natureza tenha inventado palavras para comunicar o que lhes parece ser a realidade. Os animais podem vivenciar assim o que o homem possivelmente nunca poderá sentir e conhecer.

No final, as palavras só são reverenciadas e aceitas por que o homem tem necessidade de crer no sentido das palavras. Isto liberta, portanto, o mundo, como representação cognoscível e suportável, mas, automaticamente, enjaula o homem no próprio despotismo das palavras. Mesmo sendo tão macias e saborosas, as palavras tem a capacidade de se rebelar contra o discurso e levar ao abismo do significado, promovendo a ira do sentido e da vida.

O homem é, portanto, um ser condenado à liberdade das palavras e, por isso, acaba preso aos próprios sentidos criados pela linguagem. Como um ser que escreve, lê e fala com correntes presas às pernas, o ser humano vive enclausurado no mundo semântico que ele próprio criou. Mesmo que queira queimar ou revogar as palavras, elas estão sempre se regenerando e rejuvenescendo, saltando a qualquer momento da caixa de pandora para saciar-se no fígado doce da realidade.

Por isso, a ‘vontade de linguagem’ e a ‘vontade de representação’ são, ao mesmo tempo, exercícios de representação onírica de um mundo paramentado pelas cortinas da arte e da poesia e instrumentos do fascismo simbólico patrocinado pelo ser humano para batizar as coisas e os seres do modo como ele quer ver batizados, isto é, como o ser humano quer que existam e como irão servir aos seus instintos mais arquetípicos.

As palavras não são inocentes, como pensam os artistas ou os sonhadores. Emancipadas pela linguagem instrumental, elas têm suas próprias leis e regras e pensam pelo homem o que o homem nem sabia que pensava. Os homens inventaram as palavras, mas as palavras reinventaram os homens. Elas modificam os significados, comunicam suas próprias verdades e julgam o comportamento da realidade como se fossem os próprios juízes morais da criação.

Consciente ou inconscientemente, as palavras têm sempre um sentido extramoral, mesmo as mais belas e as mais doces. O discurso mais despretensioso sobre qualquer átomo de pensamento sempre carrega o sentido do bem e do mal. Representar a realidade é apresentar o real como o homem julga que ele seja. Neste jogo, a

representação sempre transporta nas palavras juízos de valor pragmáticos sobre o que são as coisas e os seres. Por isso, ao comunicar, os homens não estão apenas trocando crenças e sentidos, mas suplementarmente os valores incrustrados no próprio universo gramatical da verdade.

Desta forma, podemos dizer que a linguagem e a representação estão ligados umbilicalmente à ‘vontade de moral’, onde os homens, direta ou indiretamente, arbitram as regras, os costumes e os valores a serem seguidos por todos, para saciar a necessidade humana de provar sua superioridade no reino animal e afirmar sua crença numa existência singular em todo o universo.

A ‘vontade de moral’ talvez seja a mais misteriosa das vontades, mas é, sem dúvida, a mais engenhosa e astuta das operações da mente humana. Ela está em todos os lugares e em todos os momentos, embora seja sabiamente invisível. Ela encapsula os pensamentos e os sentimentos antes mesmo do homem saber que pensa ou sente. Ela opera no mundo como uma serpente líquida escorregando entre as palavras e as coisas sem que os olhos ou as mãos possam tocá-la. A moral é, portanto, uma criação humana nascida da ‘vontade de moral’ do ente enquanto ser, mesmo que o ente jamais compreenda ou vislumbre seus pendores morais.

O certo é que a ‘vontade de moral’, a ‘vontade de linguagem’ e a ‘vontade de representação’ atuam sobre o ser humano no andar térreo da consciência e nos porões do inconsciente. Elas surgem e desaparecem dos desejos e vontades do homem como num jogo entre o gato e o rato. Como dissemos, a vontade não opera por princípios de lógica ou de racionalidade, mas se manifesta sempre de forma inexata, agindo à revelia da razão humana. No fundo, todas as vontades humanas trabalham para preencher o abismo do sentido e trombetear as prodigiosas qualidades da espécie humana.

Muitos outros animais têm a faculdade da linguagem, da representação e da moral, mas somente os homens necessitam declarar a originalidade e a exclusividade de sua criação e afirmar o imperativo categórico da espécie humana ser um produto especial num mundo sem sentido original.

Deste vazio ontológico, é que decorre a mais obsessiva das vontades humanas: a ‘vontade de liberdade’, a vontade que impulsiona o homem a acreditar que, pelo seu próprio poder, pode realizar todas as escolhas e pode alcançar todas as possibilidades abertas pela vida. Mesmo que Sartre tenha verificado que, no fundo, o homem está tão somente acorrentado à liberdade por ser um deus falhado, que Freud tenha observado que muitos de nossas ações se originam nos porões do inconsciente e que Foucault tenha demonstrado a farsa histórica dos grandes projetos mundanos, o homem precisa crer sempre no princípio de que a liberdade é uma conditio sine qua non de sua existência e que ele governa seus atos e seus pensamentos de acordo com os princípios do livre-arbítrio.

Vivenciada como um verdadeiro luxo da existência, a liberdade esconde do homem as contigências da própria condição mundana. Não fizemos as escolhas que nos tornaram livres. Não escolhemos nosso nome, nossa religião, nossa infância, nossa educação, nossa língua e nossa pátria; não escolhemos nosso passado, mas temos que carregá-lo até o fim da vida como um presente maldito da criação; não escolhemos nem mesmo nossas dúvidas e nossos saberes, que acabaram se oferecendo à nossa identidade pela cultura e pelo universo simbólico que nos escolheram. Mesmo assim somos auto-intitulados livres para fazer as escolhas que o destino apresenta, vivendo um presente ausente expremido a cada segundo pelo passado e pelo futuro.

Além disso, como lembrou Heidegger, somos um ser-no-mundo que veio do nada e caminha em direção ao nada. Nossa condição de homens livres para viver a ilusão do presente é obrigada a conviver com a nadificação da existência. O ser-para-a-

vida é, ao mesmo tempo, um ser-para-a-morte, posto que, apesar da certeza dupla da vida e da morte, não temos como administrá-las nem controlá-las. A vida mais exuberante e mais dionisíaca é sempre uma fatia de morte despedaçada a cada instante, uma sangria de vida que jamais pode ser estancada. O ser está inapelavelmente amordaçado pelo tempo e, por mais que ele queira ou tente esquecer ou revogar sua finitude, a entropia do corpo e da mente trata de sussurar a lei da vida no ouvido da consciência.

A ‘vontade de liberdade’ empurra o homem a acreditar que suas mãos, suas palavras e suas paixões podem moldar a sua existência. Ela é sempre a lira encantada a espantar o inferno diário de Dante e a emudecer o zumbido ontológico do tempo. Hedonista, libertina e insaciável, a ‘vontade de liberdade’ faz o homem aparecer como um ser-para-a-liberdade, que deve gozar os pequenos prazeres mundanos como verdadeiras glórias da vida. Não há ilusão, angústia, desesperança ou muralha que não possa ser ultrapassada quando a ‘vontade de liberdade’ guia o homem a acreditar que pode alcançar tudo o que é possível de ser alcançado. Ela sabota todas as convenções, todas as regras morais e todas as instituições legais, em nome de uma aposta na vida que, mesmo sendo fugaz, pode ser vivida como uma breve infinitude.

Mágica e inebriante, a ‘vontade de liberdade’ faz, portanto, o homem devorar e saborear as vísceras da vida a cada momento, como se nada mais houvesse para viver. Tudo é permitido ao homem que decide acreditar que a liberdade permite ao homem ser livre. O que importa é o impulso orgânico e desordenado ao que os olhos e os sonhos decidem fazer e, mesmo que o roteiro da vontade não sai como o planejado, o homem tem sempre a liberdade de acreditar que fez e fará tudo o que os olhos e os sonhos permitam alcançar.

A ‘vontade de liberdade’ faz, enfim, o ser humano acreditar na possibilidade de realização plena da ‘vontade de verdade’ e da ‘vontade de crença’. A crença na liberdade humana em fazer qualquer coisa é que alimenta a liberdade de criar crenças e verdades, permitindo ao ser humano realizar tudo o que sua mente acredita ser possível de ser realizado e alcançado.

Não importa pensar que a liberdade, a verdade, a moral ou a linguagem sejam todas invenções humanas, mesmo que derivem de uma propensão biológica. A ‘vontade’ do homem em viver como um ser-aí e alcançar pelo instinto ou pela consciência tudo aquilo ele quer acreditar que compõe ou signifique viver são produtos do que o homem denomina de o sentido-da-vida.

Apesar de poder reconhecer que todo universo simbólico emana de sua própria mente e de que suas vontades o impelem a construir castelos superpostos de linguagem, representação, moral, liberdade, verdade e crença, o homem alimenta e realimenta permanentemente a crença de que existe um sentido maior para tudo o que existe no universo. Não há hipótese de não existir um sentido superior ou majestoso para a vida. O homem não conseguiria viver sem admitir que um super-sentido para tudo exista.

E é, por isso, que mesmo após a anti-metafísica de Nietzsche ter sido tão cruel com a humanidade, os homens ignoram a ciência e a filosofia, e se atiram de braços abertos ao universo maternal da religião. O sentido de tudo, o super-sentido que sustenta toda a ‘vontade de crença’, a ‘vontade de verdade’, a ‘vontade de liberdade’, a ‘vontade de moral’, a ‘vontade de linguagem’ e a ‘vontade de representação’, é o sentido-do-sentido, o chamado sentido-deus.

Somente a crença na existência do sentido-deus, seja da forma que for, com a expressão que tiver ou com o significado que transmitir, pode manter o fio da existência e toda a ‘vontade’ humana acesa e dirigida em direção à meta de viver a vida em sua plenitude, seja lá o que isto signifique. Sem o sentido-deus não poderia haver o sentido-

vida ou o sentido-homem; não poderia haver o sentido-crença, o sentido-verdade ou o sentido-moral.

Neste sentido, não se pode reduzir ou subestimar o processo de construção cultural do sentido pelos seres humanos. É fato que todo homem nasce sem conhecer o sentido das coisas e dos seres à sua volta. O homo sapiens é originalmente um homo ignarus, isto é, o ser humano que se diz um ser-do-conhecimento vem ao mundo como um ser-da-ignorância. Curiosamente, é graças a esta condição natural de ignorância, estado que acorrentou o homo sapiens ao medo do desconhecido, que o homem foi empurrado a perscrutar o universo em busca dos princípios elementares da vida. Esta combinação de ignorância e medo despertou a necessidade do ser humano compreender o universo, ou melhor, de inventar sentidos racionais ou irracionais para a factibilidade da vida.

O ser humano aprendeu desde cedo, portanto, a construir um mundo-de-sentido para que pudesse expurgar seus medos e angústias pelo vazio de sua própria existência. De fato, a mente humana não consegue viver sem estabelecer um processo lógico e um nexo causal para o universo, mesmo que precise, para isso, recorrer à transcendência para explicar a imanência e buscar no sobre-natural a razão para a incerteza do mundo natural.

Nesta aventura ontológica, o ser humano acabou institucionalizando, em um processo que passou da superstição à razão, a própria necessidade de ordem, harmonia, simetria, referência, causalidade e sentido na existência das coisas. O ser humano precisa acreditar que existe um fundamento original para a vida (causalidade); que os seres e as coisas presentes no mundo natural são evidências que sustentam este fundamento (referência); que tudo foi criado segundo uma lógica universal, válida para o tempo e para o espaço (simetria); que esta lógica obedece a esquemas operacionais e sistêmicos (ordem); que estes esquemas existem em todas as coisas e que eles funcionam como fatias múltiplas e incoerentes de uma totalidade única e coerente (harmonia); e que tudo converge e caminha em direção a uma razão maior para a existência da vida (sentido).

Somente esta fórmula mágica, construída pela própria ignorância, ajuda o ser humano a ‘racionalizar’ o mundo de maneira religiosa, filosófica ou científica. Na verdade, sabe-se que não existe um modelo de causalidade, ordem, simetria, referência, harmonia e sentido na realidade real, que ancorem a solidez de uma verdade verdadeira sobre todas as coisas e todos os seres. O princípio ativo do caos, da incerteza e da incoerência parecem presidir todas os fatos e fenômenos do mundo terreno, como já demonstraram tantos pensadores das mais diferentes áreas do conhecimento.

Gödel demonstrou, por exemplo, em seu teorema da incompleteza que nenhum campo do conhecimento consegue ser sustentado apenas com as proposições oriundas do seu próprio arsenal teórico. É necessário sempre buscar-se fora do paiol de axiomas de um dado universo teórico as explicações necessárias à sua consolidação. Da mesma forma, e ad infinitum, é necessário sempre buscar-se novas explicações para explicar cada nova camada de teorias ou proposições, até que não haja mais nenhuma teoria no fim do túnel do conhecimento.

Heisenberg procurou, em suas reflexões, comprovar o chamado ‘princípio da incerteza’ instalado na física clássica, revelando a relatividade das pretensas verdades científicas. A teoria de Heisenberg acabou sendo genialmente demonstrada pela teoria do gato vivo ou morto de Schrodinger. Fincando uma estaca mortal no ego da ciência, o físico alemão sugeriu uma experiência onde colocaríamos um gato dentro de uma caixa hermeticamente fechada, e junto com ele uma determinada substância radioativa. Como algumas das substâncias radioativas têm 50% de probabilidade de emitir radiação no

espaço de uma hora, nunca poderemos ter certeza, após um dado espaço de tempo, se o gato continuaria vivo ou se estaria morto. Logo, não pode haver certeza científica neste e em muitos outros casos concretos, apenas suposições ou julgamentos. Além disso, a condição do animal não pode ser nunca uma mônada absoluta, mas somente uma situação de ser-e-não-ser.

Booler, e mais tarde Zadeh, também demonstraram que na matemática e na linguagem não podemos mais aceitar a lógica aristotélica do verdadeiro e do falso. A chamada lógica difusa, ou lógica fuzzy, mostra que em muitas das assertivas e das proposições que utilizamos na atualidade não podem ser resumidas ao esquema binário clássico do sim-ou-não, do preto-ou-branco ou do certo-ou-errado. Em lugar da exatidão do cálculo ou da sentença ou mesmo da probabilidade do resultado, devemos considerar que uma verdade contém, ao mesmo tempo, uma parcela de verdade e uma parcela de mentira. Não podemos dizer somente que uma xícara de chá está fria ou que está quente. Em muitas situações, o chá não está frio ou quente, apenas morno. Do mesmo modo, não podemos considerar que existem apenas homens altos ou baixos, mas que há pessoas com altura média, meio altas ou meio baixas. Também não podemos determinar que, em uma certa hora do dia, o ambiente de uma sala está totalmente claro ou totalmente escuro, mas que naquele local há uma situação de baixa claridade ou de baixa escuridão.

Os opostos, os contrários, os intermediários ou os estados latentes têm que ser dimensionados numa determinada proposição. Por isso, a crença na lógica do verdadeiro e do falso deve ser substituída pela lógica difusa e nebulosa da imperfeição, da imprecisão ou da incerteza. Uma coisa pode ser simultaneamente 75% verdadeira e 25% falsa ou 29,3% exata e 70,7% inexata. Em síntese, a lógica booleana admite o que Baudrillard já tinha observado pela via da filosofia: não há verdade absoluta, mas valores intermediários entre a verdade e a inverdade ou estados simultâneos de precisão e imprecisão na mesma equação ou sentença.

Por mais paradoxal que seja, as revelações extraídas pelo ser-do-conhecimento para se afastar do estado de ser-da-ignorância conduziu o homem a se encastelar na torre do conhecimento dogmático e do sentido artificial para tornar a vida um pouco mais suportável. Apesar de todas as sentenças sobre a irracionalidade humana, feitas por Nietzsche, sobre a incerteza do conhecimento e sobre a inverdade dos desígnios enferrujados da metafísica, o ser humano continua abraçado, como uma criança assustada, aos seus contos de fada sobre o sentido da vida. A ‘vontade de sentido’ e a ‘necessidade de sentido’ passam por cima da ignorância e do conhecimento para arrancar de qualquer pedaço de carne de crença as migalhas da verdade necessárias para sua sobrevivência mundana.

O mundo-de-sentido despreza qualquer palavra ou equação matemática que não pertençam ao próprio mundo-de-sentido. Ele se basta e existe. O sentido é onipotente e auto-suficiente. Ele possui a lógica do sentido, que não precisa ser lógica muito menos racional ou convencional. O sentido é o grau zero da interrogação. O homem não pensa o sentido. O sentido foi feito para preencher exatamente a lacuna que o pensamento deixou e para ultrapassar a fronteira do conhecimento humano.

Sem o mundo-de-sentido no sentido-deus não haveria, afinal, como equilibrar a pirâmide majestosa de crenças fabricadas pelo homem para justificar as desconexas ações humanas nem para atribuir uma causa formal às mais diferentes e variadas expressões cotidianas da natureza.

Por isso, o sentido-deus tornou-se fundamental para o homem manter o amálgama da coesão social e espantar diuturnamente o canto da sereia da anomia e do niilismo. A inexistência de uma saída magistral para a monótona reedição diária da vida

mundana levaria o ser humano de volta ao seu estado puro de ignorância, produzindo um efeito dominó sobre as leis, a moral, as convenções e as crenças criadas por todas as culturas. A crença no sentido-deus representa, de certo modo, um imperativo categórico de todas as civilizações, condição sem a qual não poderia mais haver o sentido-homem e o sentido-vida. O perigo disto acontecer, de qualquer forma, é quase impossível.

O sentido-deus foi uma das mais belas e prodigiosas invenções da humanidade. Espinosa mostra que a necessidade humana na existência de um ser superior, que ordene e justifique a existência humana, deriva de uma alquimia subjetiva muito bem estruturada. Segundo ele, o ser humano acredita que existe uma lógica na natureza e que tudo foi criado com uma determinada finalidade, inclusive o próprio homem. A finalidade das coisas naturais existirem não está na natureza, mas é conduzida por um ser superior, neste caso deus, que também conduz suas ações com determinada finalidade. Como o homem sabe que deus o criou com um propósito e que tudo mais também têm uma razão de existir, o ser humano imagina que seu papel é obedecer e cultuar o criador, em uma espécie de contrapartida existencial pela honra da criação.

Nesta operação subjetiva, o homem deve seguir à risca os ensinamentos de deus e desviar de tudo aquilo que o afaste da graça divina. O problema, fala Espinosa, é que os homens nunca têm a segurança de estarem agindo corretamente para agradar deus e, deste temor, nasce novo temor de que deus possa não ser tão generoso e piedoso com os homens.

Por isso, depois de ter criado deus, os homens acabaram tendo que criar a religião, e uma vasta organização ritual, institucional e hierárquica, para guiar a conduta que os homens atribuíram como a mais adequada para cultuar deus. Foi criada uma ordem religiosa, comandada pelos representantes terrenos de deus, que comandam os cultos, anunciam suas vontades e humores, e interpretam as ordens ou desejos dele. A religião tornou-se assim a materialização da crença numa autoridade maior, e o sustentáculo mundano que tem o papel de lembrar permanentemente aos homens seu compromisso ético com o criador.

O medo original por uma existência sem-sentido criou deus, mas, no fim, nunca conseguiu ser totalmente saciado por causa da metástase do medo humano em nunca saber se estamos certos ou errados. Neste regime de incerteza, a religião fragmentou-se em milhares de seitas e organizou todos os tipos de cultos, rituais e simbologias para agradecer e agradar deus das mais diversas formas.

Neste sentido, somente a crença em um sentido maior numa coisa ininteligível, intangível e inominável, é que permite a eterna rivalidade entre a religião, a filosofia e a ciência em sua disputa pela propriedade da verdade absoluta e revela que, de maneira geral, a crença é a casa das máquinas da história humana em busca da arché existencial. A crença de que existe uma razão para tudo, mesmo que seja a crença de que a razão seja a falta-de-sentido, incandesce a alma humana a perseguir a busca pelo santo graal da vida. Toda a saga humana parece se resumir à evidência de que a ‘crença na verdade’ pode ter levado ao homem descobrir que tudo não passa de uma ‘verdade na crença’.

De nada adianta, portanto, os filósofos proclamarem a angústia e a dor da existência; os cientistas buscarem as causas e as explicações funcionais das coisas e dos seres a partir de uma lógica física ou matemática; e os religiosos ficarem eternamente fazendo orações para as imensas paredes das catedrais, já enfastiadas de ouvir tantas ladainhas transcendentais. O moinho da vida é movido pela crença. Não há nada por detrás do ser humano que não seja a humana e desesperada ‘vontade de crença’.

CRENÇA DESCRENÇA

NOVA CRENÇA

SABER NOVO SABER

DESABER

Mundo Primitivo

Mundo dos Sofistas

Mundo da Religião

Mundo Filosófico e Científico

Mundo Midiático

Mundo da Desconstrução

Domínio das

Mitologias

Domínio da Retórica

Domínio da Fé Domínio da Razão

Objetiva ou Subjetiva

Domínio do Senso

Comum

Domínio do Discurso

A verdade é

controlada pelos

feiticeiros

A verdade é controlada

pelosoradores

A verdade é controlada

pelos clérigos

A verdade é controlada

pelos filósofos e cientistas

A verdade é controlada pela mídia

A verdade é controlada

peloseruditos

Crença na Crença

Crença na descrença

Crença na providência

divina

Crença na razão

humana

Crença na mercadoria da cultura

Crença no niilismo e na

anomia

Sociedade dos

prazeres

Sociedadedos céticos

Sociedade de controle moral

Sociedade do Contrato

Sociedade do Espetáculo

Sociedade deControle

Zeus Apolo Deus Prometeu Televisão Panótipo