a corrupção na política: perspectivas teóricas e metodológicas

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A CORRUPÇÃO NA P OLÍTICA Perspectivas Teóricas e Metodológicas Fernando Filgueiras Doutorando em Ciência Política no IUPERJ Mestre em Ciência Política pela UFMG Resumo Este artigo constrói uma crítica metodológica aos modelos formais e comparativos de estudo da corrupção na política. Em primeiro lugar, apresento a agenda de pesquisas, iniciada na década de 1950, da teoria da modernização e o modo como ela construiu um conceito e uma perspectivada corrupção. Em segundo lugar, apresento as pesquisas conduzidas a partir da década de 1990, de viés econômico e institucionalista. Argumento que estas abordagens do problema da corrupção naturalizam seu conceito e sua prática. Isso ocorre porque o conceito e a prática da corrupção têm parâmetros culturais e hegemônicos construídos pela teoria política, nos países do capitalismo central. Especulo, neste artigo, que o tema da corrupção deve partir de uma teoria política que seja capaz e aberta o suficiente para absorver os elementos semânticos que atravessam o conceito de corrupção. Desse modo, evita-se os vieses comparativos e as correlações espúrias construídas ao longo de cinqüenta anos de pesquisa sobre o tema da corrupção. Palavras-chave: corrupção, metodologias comparativas, modelos formais, moralidade. Juiz de Fora, maio de 2006.

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Page 1: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

A CORRUPÇÃO NA POLÍTICA

Perspectivas Teóricas e Metodológicas

Fernando Filgueiras Doutorando em Ciência Política no IUPERJ

Mestre em Ciência Política pela UFMG

Resumo

Este artigo constrói uma crítica metodológica aos modelos formais e comparativos de estudo da corrupção na política. Em primeiro lugar, apresento a agenda de pesquisas, iniciada na década de 1950, da teoria da modernização e o modo como ela construiu um conceito e uma perspectivada corrupção. Em segundo lugar, apresento as pesquisas conduzidas a partir da década de 1990, de viés econômico e institucionalista. Argumento que estas abordagens do problema da corrupção naturalizam seu conceito e sua prática. Isso ocorre porque o conceito e a prática da corrupção têm parâmetros culturais e hegemônicos construídos pela teoria política, nos países do capitalismo central. Especulo, neste artigo, que o tema da corrupção deve partir de uma teoria política que seja capaz e aberta o suficiente para absorver os elementos semânticos que atravessam o conceito de corrupção. Desse modo, evita-se os vieses comparativos e as correlações espúrias construídas ao longo de cinqüenta anos de pesquisa sobre o tema da corrupção.

Palavras-chave: corrupção, metodologias comparativas, modelos formais, moralidade.

Juiz de Fora, maio de 2006.

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1. INTRODUÇÃO

O tema da corrupção, nas ciências sociais, está relacionado a duas grandes

agendas de pesquisas no século XX. Em primeiro lugar, datando da década de 1950, a

corrupção é tratada no conjunto de uma perspectiva estrutural-funcionalista,

relacionando-a ao problema da modernização. Entre meados da década de 1970 e

meados da década de 1980, o tema da corrupção é deixado de lado, retornando no início

da década de 1990, em vista do problema da liberalização econômica e política, com as

reformas de cunho liberal. O tema da liberalização modificou a abordagem teórica e

metodológica da corrupção, focando o problema em uma perspectiva essencialmente

econômica. Enquanto os membros da agenda estrutural-funcionalista estavam

preocupados em relacionar o tema da corrupção aos macroprocessos sociais da

modernização, na década de 1990 surgem pesquisas que estudam o tema da corrupção

por uma abordagem essencialmente econômica, preocupada com os custos e com as

externalidades geradas em contextos de corrupção alargada.

Este artigo trata das agendas de pesquisa construídas pela teoria da modernização

e pelo institucionalismo de viés econômico. Este artigo tece uma crítica metodológica a

estas duas abordagens, em vista dos problemas comparativos e conceituais construídos

acerca do tema da corrupção. Inicialmente, reconstruo o argumento da teoria da

modernização e do institucionalismo econômico, apontando o modo de acordo com o

qual estas duas abordagens naturalizam o conceito de corrupção. Essa naturalização do

conceito de corrupção estreita seu horizonte de aplicabilidade, na medida em que

permite a atribuição de um sentido universal dado ao termo pelos países centrais do

capitalismo. Com relação ao problema da metodologia comparativa, os desenhos de

pesquisa terminam por ressaltar vieses epistemológicos do conceito de corrupção, os

quais resultam na inefetividade do combate à corrupção e na incompreensão de sua

prática, fora dos paradigmas da modernidade capitalista. Ou seja, as agendas de

pesquisa sobre a corrupção seguem modelos hegemônicos de ciência social, ditados

pelos países do capitalismo central.

Após a reconstrução metodológica do problema da corrupção, elaboro um

exercício normativo segundo o qual a corrupção deve ser analisada, tanto em pesquisas

comparativas, quanto em pesquisas formais. Argumento que o universo do conceito de

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corrupção deve ser alargado em direção aos diferentes sentidos semânticos atribuídos ao

conceito e à prática da corrupção nas ordens políticas contemporâneas. Isso permite a

construção de metodologias comparativas que ressaltem as diferenças nos processos

sociais da corrupção sem cair na armadilha de certo relativismo, o qual pode envolver o

conceito de corrupção, além de evitar os vieses epistemológicos pela universalização

hegemônica do conceito.

Penso que a abertura do conceito de corrupção a outros sentidos semânticos, que

não apenas o do comportamento maximizador utilitarista, possibilita a formatação de

outros significados e de outras práticas que estão envolvidas no universo da corrupção.

Sem embargo, este artigo é um manifesto contra a teoria política que instrumentalizou o

conceito de corrupção defronte às agendas de políticas determinadas por atores

internacionais. Argumento que, para a devida compreensão do conceito e da prática da

corrupção, é essencial a construção de uma outra teoria política, ou seja, uma teoria

política da corrupção. Isto porque o conceito de corrupção, da maneira como tratado

pelas pesquisas comparativas e formais, tem uma constante cultural dos países de

capitalismo avançado, o que não dá conta dos processos de corrupção no âmbito dos

países periféricos.

2. AS PESQUISAS ENTRE AS DÉCADAS DE 1950 E 1970

Pela agenda estrutural-funcionalista, o problema da corrupção foi absorvido por

uma sociologia política de matiz americano. A construção do problema ocorreu no

contexto da teoria da modernização, a qual procurou averiguar as regularidades

funcionais do desenvolvimento econômico e político. A corrupção, nesta abordagem

teórica, foi analisada por uma perspectiva funcional, a qual procurou elaborar uma

relação de causa e efeito em relação ao tema do desenvolvimento. De um ponto de vista

geral, a corrupção foi pensada em torno do tema do desenvolvimento político e

econômico e de que maneira ela pôde contribuir ou emperrar sua consolidação.

Ou seja, a abordagem estrutural-funcionalista procurou absorver as eventuais

conseqüências da corrupção para o desenvolvimento político e econômico, em uma

perspectiva comparativa do fenômeno. Partindo da idéia de que a corrupção representa

uma disfunção no interior de sistemas sociais, a teoria da modernização a colocou,

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enquanto fenômeno, como uma realidade social objetiva, responsável por reproduzir um

tipo de estrutura predatória, a qual tende a configurar um conjunto de comportamentos

orientados por espólios e por vantagens obtidas de modo eminentemente ilegal. A

corrupção representa tanto uma função manifesta nos sistemas sociais, quanto uma

função latente, uma vez que, em sociedades cuja estrutura é tradicional, a corrupção é,

em essência, a própria norma, no sentido atribuído pelos modernos (Merton, 1970).

Como função manifesta, a corrupção tem por conseqüência fomentar ou impedir a

modernização, representando, em muitos casos, eventuais benefícios para a constituição

de uma ordem moderna, balizada, principalmente, nas iniciativas do espírito capitalista.

Para a sociologia da modernização há uma relação necessária entre corrupção e

modernização, uma vez que cenários de larga corrupção definem uma baixa

institucionalização política e, por sua vez, uma ordem fraca para a mediação e a

adjudicação de conflitos (Huntington, 1975).

A corrupção, fundamentalmente, pela tese da modernização, é mais evidente em

sociedades pouco desenvolvidas em relação aos critérios do moderno capitalismo, tendo

em vista o fato de que estas sociedades estão no centro dos processos de mudança

social. Ou seja, a mudança social produz um contexto favorável às práticas de corrupção

uma vez que as normas advindas com a modernização podem representar a corrupção,

de um ponto de vista tradicional, ao mesmo tempo em que são fracas para conter sua

prática. Em cenários de baixa institucionalização, portanto, a corrupção tende a ser uma

prática mais acentuada, já que os processos de modernização implicam a consecução de

novos atores na arena política, ensejando as clivagens sociais e um comportamento não

conducente à norma.

Seu conceito parte da idéia de que a prática da corrupção representa uma ação

intencional por parte de uma autoridade, no interior de um sistema social, que tende a

sobrepor seus interesses privados ao interesse comum, tendo em vista uma estrutura

normativa institucionalizada, a qual determina as fronteiras de uma ação aceita ou não

aceita no interior do sistema (Brooks, 1979).

O sistema normativo tanto pode motivar quanto inibir a prática de corrupção. Seu

sucesso em coibi-la, na vertente da modernização, depende da institucionalização

política, entendida como a aceitação de normas por parte de uma comunidade. Os

critérios de institucionalização são determinados funcionalmente, visando a assegurar a

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estabilidade e a previsibilidade dos sistemas sociais face aos dilemas da modernização.

Desse modo, sociedades imbuídas da modernização, mas que tenham baixa

institucionalização política, estão mais sujeitas às práticas de corrupção. Isto porque,

entre modernização e institucionalização, há um hiato político, no qual a corrupção

ocorre, possibilitando um agir orientado para a obtenção de bens e de vantagens ilegais

(Huntington, 1975).

Tendo em vista a dimensão estrutural e funcional dos sistemas sociais, a análise

da sociologia, ligada à teoria da modernização, conceitua a corrupção como um tipo de

ação praticada por autoridades políticas que se desviam das normas e regras vigentes no

sistema. Por outro lado, este tipo de conceituação, no contexto de análises funcionais,

termina por colocar a corrupção no interlúdio da dicotomia custos e benefícios. A

análise de custos e benefícios da corrupção, em vista do processo de modernização,

lança a hipótese de que ela pode resultar em ganhos agregados ao sistema, tais como o

desenvolvimento econômico, a integração nacional e o aumento da capacidade do

governo (Nye, 1967).

Se mantida sob controle, a corrupção pode ser uma forma alternativa, encontrada

pelos agentes políticos, de articular seus interesses junto à esfera pública. Por exemplo,

a construção de máquinas políticas1 visa a influenciar o conteúdo das decisões tomadas

na arena legislativa, por meio da persuasão das elites partidárias. A constituição destas

máquinas políticas, nas quais a corrupção é o elemento chave, colabora para o

arrefecimento da disputa entre clivagens sociais que surgem com a modernização,

servindo, desta forma, para o desenvolvimento político, econômico e social (Scott,

1969). A corrupção é explicada, portanto, como desfuncionalidade inerente de uma

estrutura social de tipo tradicional, que, no contexto da modernidade, gera instabilidade

no plano político e econômico. A corrupção, dessa forma, pode cumprir uma função de

desenvolvimento, uma vez que ela força a modernização. Porém, sua função de

desenvolvimento é cumprida desde que ela esteja sob o controle das instituições

políticas, de tipo moderno.

No que concerne ao desenvolvimento econômico, a abordagem estrutural-

funcionalista afirmou que a corrupção cumpre uma importante função de

desenvolvimento, ao reduzir as incertezas e incrementar o investimento privado. A 1 As máquinas políticas são uma estratégia destinada a aparelhar o Estado de modo que um determinado grupo social se perpetue no poder.

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lógica é que o investidor, ao corromper políticos e burocratas, assegura condições

institucionais fortes para o investimento, na medida em que diminui seus custos e seus

riscos. Em relação aos custos, a corrupção agiliza a burocracia e reduz o número de

documentos e autorizações formais por parte da ordem estatal. Em relação aos riscos,

por outro lado, a corrupção favorece a penetração dos agentes privados junto à

administração pública, assegurando a construção de regras fixas e estáveis para o

investimento econômico. Em outras palavras, a corrupção azeita o desenvolvimento

econômico ao estabelecer um laço informal mas sustentável entre burocratas e

investidores privados (Leff, 1964).

De um ponto de vista geral, a teoria da modernização elaborou um quadro teórico

e metodológico para o tema da corrupção conforme a agenda do desenvolvimento,

típica das décadas de 1950 a 1970. Em relação ao quadro teórico, especulou-se de que

maneira a corrupção pode resultar em desenvolvimento, já que sua prática tem uma

conotação sistêmica que atravessa as instituições políticas e econômicas. Como

abordagem teórica, o desafio da teoria da modernização é fazer com que esta corrupção

sistêmica produza resultados agregados para o desenvolvimento (Nye, 1967;

Huntington, 1975). Esta abordagem, desse modo, especula quais os critérios

institucionais e formais que permitirão o desenvolvimento, mesmo em contextos de

corrupção alargada. Ademais, parte-se da premissa que a corrupção “força” a mudança

social, uma vez que possibilita uma transformação de atitudes e de instituições.

Dentro do processo de modernização, indagou-se como criar instituições estáveis

para fazer com que a corrupção implique em desenvolvimento nas esferas política,

econômica e social. A corrupção tem uma conotação sistêmica, a qual implica num

complexo de ações que tendem a elevar os interesses privados aos interesses públicos. O

dilema da teoria da modernização, no entanto, é fazer com que a corrupção promova

resultados agregados para o desenvolvimento, na medida em que não é possível

erradicá-la como prática por parte dos atores sociais. Neste sentido, já que a corrupção

não pode ser erradicada enquanto prática, teoriza-se o modo como as instituições podem

fazer com que suas conseqüências sejam positivas para a construção da ordem política.

Todavia, além da relação entre custos e benefícios da corrupção, existe outra vertente do

estrutural-funcionalismo ligada ao problema da cultura. Ao invés de afirmar o primado

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do político e do econômico, os autores ligados à chave da cultura política afirmam o

primado da cultura como fator de desenvolvimento (Almond e Verba, 1963).

A premissa desta vertente é que a cultura política tem o primado sobre o político e

o econômico, uma vez que determina a formação da estrutura social conforme valores

concebidos historicamente em dada civilização. O interessante é que a questão dos

valores não representa nenhum tipo de justificação racional, mas a constatação empírica

de regularidades funcionais dos mesmos com o tema do desenvolvimento e da

democracia. O essencial é que a vertente da cultura política reduziu a narrativa da

modernidade a uma história da religião protestante, produzindo a criação de áreas de

modernidade dominadas, formalmente, pelo espírito do capitalismo e da religião

protestante. Desse modo, os Estados Unidos e os países anglo-saxões representam as

ilhas de modernidade, enquanto as demais nações são descritas por uma cultura

predatória, ligada substancialmente à tradição, a qual utiliza a corrupção como forma

convencional de relação social (Almond e Coleman, 1969).

Os trabalhos ligados à conotação da cultura política ligam a corrupção às

interações construídas pelos atores sociais, refletindo experiências e valores que

permitem ao indivíduo aceitar ou rejeitar entrar em um esquema de corrupção. Ao lado

do sistema institucional e legal, o sistema de valores é fundamental para motivar ou

coibir as práticas de corrupção, no interior de uma sociedade. A modernização implica

a mudança dos padrões de valores e de ação por parte dos atores sociais. A corrupção,

nesta lógica, representa, antes de tudo, a permanência de elementos tradicionais que

utilizam, especialmente, o nepotismo, a patronagem, o clientelismo e a penetração junto

à autoridade política para obter vantagens e privilégios (Putnam, 1998). Portanto, além

do desafio da mudança e da criação de instituições, a modernização, para conter a

corrupção, deve fomentar uma mudança nos padrões culturais, de modo a incutir, nos

países tradicionais, o espírito capitalista.

Por esta asserção, a análise da corrupção não deve estar revestida de um

tratamento que leve em consideração apenas a disfunção da ação humana intencional,

mas pela forma como os valores orientam a ação mediante a estrutura social, cuja

onipresença determina os valores culturais que envolvem determinadas ações por parte

dos atores (Lipset e Lenz, 2002). Os valores estão determinados empiricamente na

cultura política, os quais são responsáveis por ensejar o desenvolvimento ou a

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desfuncionalidade da organização política e econômica. Como premissa geral, a

corrupção é menos evidente em sociedades modernas, enquanto que em sociedades

tradicionais é um padrão recorrente de comportamento político. Desse modo, Lipset e

Lenz afirmam que países de tradição protestante são menos corrompidos do que os

demais países de tradição católica, principalmente. De acordo com este argumento, o

comportamento de protestantes é mais conducente ao respeito às normas, enquanto as

demais religiões tendem a ser mais tolerantes com relação às fraquezas humanas,

especialmente com a corrupção.

A abordagem culturalista tomou os valores como regularidades funcionais,

carecidas de justificação racional. Dizer que a política de determinada nação é mais

corrompida do que a política de outra nação carece de relativizar o próprio conceito de

corrupção a partir do que vem a ser a honestidade e a integridade por parte dos atores

sociais. Por outras palavras, a correlação entre religião protestante e probidade da

administração pública, ou a correlação entre religião católica e corrupção apresenta-se

de modo espúrio, uma vez que não leva em consideração, na análise, as diferenças

semânticas do termo corrupção nas diferentes culturas.

A tônica metodológica da teoria da modernização, de frente ao fenômeno da

corrupção, é a construção de desenhos comparativos, os quais ressaltem as diferenças

nos processos sociais, políticos e culturais, tendo em vista um apelo normativo para a

construção de instituições políticas estáveis, tal como as instituições do capitalismo

anglo-saxão, de matriz protestante. Esta abordagem careceu de compreender os

elementos semânticos que atravessam o conceito de corrupção na política, fazendo com

que, ao ressaltar as diferenças em relação aos critérios da modernização, acabe por criar

correlações espúrias em relação ao fenômeno (Filgueiras, 2004).

O tratamento comparativo dado ao problema da corrupção na política, pela

vertente da modernização, fez com que sua abordagem ressalte as diferenças no vazio

semântico das conseqüências da corrupção. Ao afirmar esse modelo de comparação, a

pesquisa sobre a corrupção não considerou, em seu escopo, os elementos fundacionais,

culturais, sociais e econômicos, mediante os quais se devem construir o significado da

corrupção por parte dos atores políticos. Ao ressaltar as diferenças e propor o modelo

ocidental e protestante de instituições, para o controle da corrupção, a abordagem da

modernização passou por cima das singularidades sociais e políticas que atravessam a

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construção do conceito. Ao ressaltar as diferenças, atribuindo à corrupção a ausência de

desenvolvimento, conforme o modelo do capitalismo ocidental, a teoria da

modernização impôs uma agenda de reformas institucionais, que tenderam a afirmar o

modelo especialmente americano para o controle da corrupção. Dizendo em outras

palavras, as primeiras rodadas de pesquisas sobre a corrupção, entre as décadas de 1950

e 1970, são informadas por uma agenda política imposta pelo capitalismo ocidental. A

carência dos modelos comparativos da corrupção, pela abordagem estrutural-

funcionalista, está em não absorver os diferentes significados e conotações nos quais o

conceito e a prática da corrupção são construídos. Problema esse que se reproduz nas

pesquisas criadas a partir da década de 1990.

3. AS PESQUISAS DA DÉCADA DE 1990

Se a primeira agenda de pesquisas sobre a corrupção tinha um forte cunho

hegemônico da ciência social norte-americana, as pesquisas que surgem a partir do

início da década de 1990 vão aprofundar esse caráter hegemônico, tendo em vista as

reformas liberalizantes nos planos da política e da economia. Contudo, ocorreu uma

virada metodológica das pesquisas sobre a corrupção, ao incorporar uma abordagem

econômica para um problema político, a qual está centrada, principalmente, na análise

dos custos da corrupção para a economia de mercado em ascensão. Isso se deve ao fato

de, a partir da década de 1980, o tema da corrupção florescer junto com os processos de

liberalização econômica e política, especialmente nos países periféricos, como a

América Latina e a Ásia, e nos países do Leste-Europeu e na Rússia (Johnston, 2005).

A natureza da política passou a ser percebida como todas aquelas decisões

tomadas em contextos institucionais que afetam a todos, indistintamente. Ou seja, em

um contexto de decisões, cujo resultado seja a corrupção, os custos superam os

benefícios das práticas ilegais. Se a natureza da política está centrada na busca dos

resultados do processo político especialmente dos resultados econômicos , seu

objeto de estudo passa a ser os fatores que incidem sobre estes mesmos resultados,

derivando, a partir dessa premissa fundamental, as premissas auxiliares de que: (1) os

atores políticos são eminentemente racionais, ou seja, buscam maximizar a utilidade

esperada em contextos de decisão, conforme uma estrutura de preferências (Downs,

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1957); e, (2) de que os contextos de decisão influenciam as preferências e são

determinados pela estrutura organizacional da política, que requer uma

institucionalização dada à representação dos atores (March e Olsen, 1989).

É fundamental, desse modo, coibir os incentivos institucionais para as práticas de

corrupção. O mundo político, pela lógica dos economistas, assenta-se em arranjos

institucionais que criam motivações e constrangimentos para a ação dos agentes,

determinando, respectivamente, horizontes e limites conforme regras impessoais que

neutralizam a pressão por parte de grupos de interesse e dos lobbies, no contorno das

arenas políticas. Instituições determinam as diferentes estratégias empregadas pelos

atores, processando seus interesses e estabilizando o conflito inerente ao seu

comportamento político racional (Hall e Taylor, 1996).

A estabilidade é desejada, mas a prática de corrupção é o mecanismo através do

qual alguns atores políticos aumentam seu poder discricionário, favorecendo a

conversão dos resultados do jogo político para a satisfação de seus interesses privados.

A corrupção é compreendida como uma espécie de resultado espúrio da configuração

institucional, que favorece a constituição de esquemas destinados a pilhar os recursos

públicos a favor de interesses privados.

A corrupção na política, de acordo com Susan Rose-Ackerman, ocorre justamente

na interface dos setores público e privado. Os esquemas de corrupção dependem do

modo como a organização institucional permite o uso de recursos públicos para a

satisfação de interesses privados, tendo em vista o modo como o arranjo institucional

produz ação discricionária por parte das autoridades políticas. Esta discricionariedade

ensejada pelo arranjo institucional incentiva o uso de pagamento de propinas e de

suborno e reforça, dessa forma, a prática de corrupção no âmbito do setor público e do

setor privado (Rose-Ackerman, 1999).

O arranjo institucional deve coibir as práticas de corrupção, porque sua

conseqüência é a criação de monopólios no interior da burocracia, que as motivam pelo

lado dos resultados do jogo político, ou seja, a corrupção resulta em decadência da

legitimidade, tornando o resultado político sujeito ao aumento da ineficácia da ordem.

Desse modo, a corrupção é típica em situações de desordem, como o caso da

fragmentação da União Soviética e as transições para a democracia na Europa

(Koutsoukis, 2003). Na América Latina, durante a década de 1980, esse processo se

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aprofunda, uma vez que as decisões coletivizadas são inefetivas como mecanismo de

canalização do comportamento tipicamente maximizador dos atores políticos

(O’Donnell, 1998). Situações de desordem propiciam práticas de corrupção, porque não

há institucionalização suficiente ou condizente com determinado contexto social.

A abordagem institucional da corrupção chama a atenção, por conseguinte, para a

necessidade de reformas institucionais, no plano político e econômico, visando a criar

regras fixas para a interação entre os interesses privados e o interesse público,

comungando com mecanismos institucionais que impeçam a existência de monopólios e

a captura da burocracia estatal por parte de funcionários públicos e de agentes privados.

Um excesso de controle para coibir a prática de corrupção, no entanto, pode implicar a

ineficiência da administração pública, fazendo com que a busca de integridade mediante

a maquinaria anticorrupção e as reformas institucionais caminhem, necessariamente, no

aumento gradativo e sistemático dos custos para o controle da corrupção (Anechiarico e

Jacobs, 1996).

Por outras palavras, não cabe às reformas institucionais reforçar o poder da

burocracia, uma vez que estas reformas resultariam em maior discricionariedade e em

maior incentivo para o pagamento de propina e de suborno, ou seja, em ampliação das

práticas de corrupção. Por outro lado, é necessário um mecanismo de agregação de

vontades particulares em decisões coletivizadas, visando a assegurar a consecução de

uma ordem estável e produtora de cooperação entre os indivíduos. No aspecto formal,

que representa um consenso entre analistas ligados a teorias neo-institucionalistas, a

prática de corrupção não é coibida mediante reforço do poder burocrático, mas pelo

fomento do mercado (North, 1990).

Paralelo às reformas das instituições políticas, cabe ao arranjo institucional

fomentar a existência de um mercado enquanto arena constante de negociação e de

catalisação dos interesses por parte de agentes econômicos e políticos. Os esquemas de

corrupção dependem dos recursos disponíveis políticos ou materiais para que as

autoridades ajam discricionariamente, redundando na criação de incentivos para o uso

de pagamentos de propinas e de suborno. Todavia, além disso, a corrupção, de acordo

com Rose-Ackerman, é uma prática que encontra motivação na proporção em que as

falhas de mercado estão presentes na cena política, fazendo com que os agentes públicos

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se comportem de maneira rent seeking, ou seja, maximizando seu bem-estar econômico,

seja seguindo as regras do sistema, seja não as seguindo (Rose-Ackerman, 1999).

É neste sentido, portanto, que a corrupção ocorre, pela lógica econômica, quando

o mercado é coibido enquanto arena de criação de decisões coletivizadas, especialmente

o mercado político, que é o locus da democracia em contextos institucionais. Os agentes

públicos visam a maximizar os recursos do Estado para seus fins particulares, com o

intuito de ampliar sua renda, sendo que, no caso de corrupção, esta caça a rendas é

estritamente ilegal. Porém, como observa Rose-Ackerman, antecede à ação dos agentes

públicos de caça a rendas, sua ação de monopolizar a burocracia, possibilitando o

controle do fluxo das decisões políticas e o controle sobre a dependência dos agentes

privados ao Estado. Portanto, a corrupção é diretamente proporcional ao tamanho da

máquina burocrática, ou seja, ao tamanho do controle do Estado sobre os agentes

privados, através da emissão de documentos, da cobrança de impostos e de taxas e da

consecução de programas e de obras públicas.

A monopolização da burocracia, por conseguinte, cria incentivos para que os

burocratas profissionais cobrem propinas dos agentes privados para a liberação de

documentos e recursos públicos, tornando o combate à corrupção oneroso do ponto de

vista administrativo (Colombatto, 2003). Isto porque o governo se encontra na posição

de comprador ou de fornecedor de recursos públicos, criando incentivos para que a

propina se torne um mecanismo recorrente de ação política. Os custos da corrupção,

dessa maneira, incidem em duas dimensões: de um lado, pela evasão de dinheiro em

obras públicas, programas sociais e na burocracia estatal, o qual poderia ser utilizado

para outras atividades; e, por outro lado, com a maquinaria anti-corrupção, que exige o

dispêndio de dinheiro com os órgãos e agentes responsáveis pelo controle das obras,

programas e da burocracia (Mauro, 2002).

A causa estável da corrupção, nesta assertiva, é a existência de monopólios e de

privilégios no setor público, os quais criam incentivos para que os agentes busquem

maximizar sua renda privada através do suborno e da propina, para auferir recursos

públicos. Contudo, como mostram Rasmusen e Ramseyer, a corrupção sofre do

problema de coordenação da ação coletiva, caso os recursos e o poder de negociação

dos agentes públicos estejam fragmentados. A fragmentação de monopólios e a criação

de estruturas competitivas simétricas de um mercado político inibem a cobrança de

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propinas por parte de legisladores racionais, que têm os custos da ação corrupta ou

corruptora ampliados (Rasmusen e Ramseyer, 1994).

Em essência, a abordagem econômica da corrupção, tendo em vista a perspectiva

neo-institucionalista, trabalha com a idéia de que os esquemas de corrupção representam

modelos de múltiplos equilíbrios. Ou seja, a corrupção assume dimensões sistêmicas

quando as estratégias adotadas pelos atores resultam em eventual sucesso das práticas

corruptoras. A corrupção é permanente, mesmo em contextos de liberalização do

mercado, na medida em que ela representa um custo menor do que os custos impostos

pela burocracia e pela ordem social. As estratégias bem sucedidas de corrupção tendem

a ser adotadas pelos atores, caso não haja elementos competitivos que inibam sua

prática (Mishra, 2006).

Deste modo, o único modelo de equilíbrio possível para o controle da corrupção é

a construção de instituições competitivas através de reformas que mantenham a

liberalização do mercado intacta. Apesar de a corrupção representar custos para o

próprio mercado, a adoção de uma estratégia corruptora por parte dos atores é preferida

em relação a estratégias conducentes à obediência das normas. Neste sentido, as

reformas devem optar pela construção de instituições competitivas, que trabalhem com

a idéia de controle externo, sobreposição de jurisdições, ombudsman e múltiplos “veto

powers” (Bardhan, 2006).

A perspectiva institucionalista e econômica defende reformas do Estado no

sentido da erosão dos monopólios estatais, da fragmentação das burocracias

profissionais e da privatização de empresas controladas pelo governo. O combate à

corrupção se dá através da criação de uma estrutura constitucional que limite o nível dos

benefícios dos monopólios sob controle do Estado, que, por natureza, é um expropriador

de riquezas dos agentes privados. Por outras palavras, para que ocorra um devido

combate à corrupção mediante os fatores institucionais exógenos à racionalidade dos

atores políticos, é necessária a transferência das atividades controladas pelo Estado

que é uma estrutura personalista por natureza para o mercado, tanto em sua dimensão

política, quanto em sua dimensão econômica.

O ponto central para o estudo da corrupção na política, de acordo com esta

abordagem institucionalista, é a consideração dos sistemas de incentivos criados pela

burocracia, para que os agentes tenham um comportamento “rent seeking”. As

Page 14: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

13

democracias competitivas e os mercados são condições necessárias para um governo

honesto, já que estabilizam os interesses egoístas dos agentes em torno de regras

mínimas de pacificação social, criando a estabilidade e o contexto de cooperação

necessário à prosperidade (Montinola e Jackman, 2002). Ademais, estruturas

competitivas, no âmbito da ordem política e no âmbito da ordem econômica, é que

criam os benefícios públicos que atendam às necessidades dos agentes, já que o arranjo

institucional tem o poder de modificar o comportamento das pessoas.

A abordagem das pesquisas da década de 1990 aponta a construção dos

mecanismos de liberalização, via reformas, pelo fomento do mercado e pela contenção

do poder burocrático do Estado como instrumentos centrais para o combate à corrupção

na política (Johnston, 2005). As pesquisas são construídas de duas formas: ou por

metodologias formais, mediante a construção de modelos de equilíbrio, ou por

pesquisas comparativas, que, tal como a abordagem da teoria da modernização,

ressaltam as diferenças dos casos, visando a afirmar o modelo do capitalismo ocidental

como o mais eficiente no controle da corrupção. Associa-se a isso, o fato de a agenda da

globalização e das reformas liberais tomarem as instituições das economias avançadas

como paradigma ou conceitos para a construção dos desenhos de pesquisa.

De um ponto de vista geral, as pesquisas sobre o tema da corrupção, produzidas

ao longo da década de 1990, trouxeram ao centro do debate a agenda de reformas

liberalizantes, no plano econômico e político, imposta pelas instituições internacionais,

preocupadas com os elementos de estabilidade e de investimento. Do mesmo modo que

a teoria da modernização, as pesquisas sobre o tema da corrupção passaram por cima

dos elementos semânticos, os quais implicam construções distintas para o conceito de

corrupção. Ao passar por cima dos elementos fundacionais, culturais, sociais e

econômicos de cada ordem política, as pesquisas conduzidas pelos economistas, ao

longo da década de 1990, terminaram por reproduzir uma agenda de reformas

liberalizantes de cunho global. Entretanto, quando a agenda de reformas liberalizantes

foi aplicada, singularmente mediante a importação por parte dos países periféricos das

instituições dos países do capitalismo central, a corrupção se tornou desenfreada, uma

vez que esta agenda não atenta para os elementos fundacionais das diferentes ordens

que compõem a cena internacional.

Page 15: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

14

Do ponto de vista metodológico é necessária a criação de um outro tipo de

abordagem para o problema da corrupção, que esteja atenta aos elementos singulares

das ordens políticas, sem cair na armadilha do relativismo. Para isso, é fundamental a

construção de uma teoria política que dê conta de ampliar o foco sobre o tema da

corrupção. Esta teoria política da corrupção deve incorporar em seu conceito

determinados processos sociais, os quais informem conteúdos semânticos e significados

gerais que incidem sobre sua prática. A idéia da próxima seção deste artigo é fazer

algumas aproximações teóricas, tendo em vista o objetivo de elencar ao escopo de um

projeto maior de pesquisa, uma abordagem expandida do conceito de corrupção, a qual,

quando levada para estudos comparativos, dê conta dos elementos singulares e das

diferenças processuais que estão embutidas na prática da corrupção na política.

4. A ABRANGÊNCIA DA CORRUPÇÃO – UMA PERSPECTIVA TEÓRICA

Na seção anterior deste artigo apresentei os elementos gerais que estão contidos

nas agendas de pesquisa sobre o tema da corrupção. Da mesma maneira, apresentei o

modo de acordo com o qual o controle da corrupção, derivado do conhecimento

acumulado em aproximadamente cinqüenta anos de pesquisa sobre o tema, está

relacionado à naturalização de seu conceito, em torno do comportamento maximizador,

e das instituições dos países do capitalismo avançado.

No que diz respeito à naturalização do conceito de corrupção, ele é pensado

sempre na fronteira dos interesses, passando por cima de elementos culturais

diferentes da abordagem culturalista da modernização , sociais e políticos (Filgueiras,

2004). Por outro lado, naturalizou-se, também, as instituições do capitalismo avançado

através da proposição normativa do desenvolvimento e da modernização, implicando,

por parte dos países periféricos, na importação de modelos e organizações políticas e

judiciárias. Além disso, o que diferencia as agendas de pesquisa sobre a corrupção é o

fato de que a abordagem da modernização fez um tratamento consequencialista da

corrupção, tendo em vista a metodologia funcionalista, enquanto a abordagem

institucionalista e econômica assentou-se na questão dos custos da corrupção para o

Estado e para o mercado.

Page 16: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

15

O lugar comum das pesquisas sobre o tema da corrupção, tanto as formais, quanto

as comparativas, é escamotear os processos sociais e os aspectos semânticos que estão

envolvidos no conceito e na prática da corrupção. Argumento que o tema da corrupção é

árido para as metodologias e as técnicas de pesquisa das ciências sociais. No entanto, é

fundamental a construção de uma teoria política da corrupção, a qual seja capaz de

alargar o horizonte de expectativas do conceito, por meio do mapeamento dos

elementos semânticos que estão contidos em sua prática.

De antemão, argumento que o tema da corrupção tem uma forte ligação com o

tema da moralidade. Por mais que as pesquisas formais tentem passar por cima disso, ao

assumir a naturalização do comportamento maximizador dos agentes políticos, existe

uma ligação com o tema da moralidade, pelo fato de haver uma orientação normativa

relacionada ao tema da ordem política. Ou seja, a corrupção é aquilo que a sociedade

constrói como o rompimento de uma orientação normativa, a qual é estabelecida pela

construção de juízos morais acerca do comportamento dos atores e das instituições.

Como observou Habermas, a linguagem da moralidade envolve, necessariamente,

a emissão de juízos justificados no plano da razão prática, os quais permitem a postura

de assentimento ou de rejeição por parte do sujeito. O jogo da linguagem moral envolve,

necessariamente, uma analogia da moral com o conhecimento, vinculando o sentido

prescritivo, tais como as asserções “correto” ou “proibido”, ao sentido epistêmico, tais

como as asserções “justificado” ou “injustificado” (Habermas, 2004). Não cabe,

portanto, um distanciamento metodológico entre ética e direito, ou entre ética e política,

para a análise do fenômeno da corrupção, porque, pelo fato de se tratar de juízos

emitidos pelos atores, que consideram a corrupção ou a integridade, necessariamente,

eles devem estar vinculados a uma norma.

No plano da linguagem, dizer que uma ordem política é íntegra ou corrompida,

significa mobilizar, no ato de fala, determinados valores justificados racionalmente,

fazendo parte de consensos normativos2 que orientam a ação dos atores em contextos de

interação. Para dizermos que uma ordem política é corrompida, ou não, depende do

modo como os agentes criam o significado de sua interlocução no plano da moral,

agregando à ordem o qualificativo de sua corrupção ou de sua integridade. O significado

da corrupção, dessa forma, prende-se a enunciados contingentes, conforme orientações

2 A respeito do conceito de consensos normativos, conferir Eisenberg (2003).

Page 17: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

16

normativas que não escapam ao plano da moral. Porém, o plano moral da política

funciona, no caso da corrupção, em contextos de aplicação de valores. Por outras

palavras, a corrupção só pode ser apreendida em seu alcance na esfera pública através

das questões hermenêuticas que atravessam os juízos estabelecidos pelos atores em

contextos de interação.

No plano da linguagem, portanto, estabelecer se uma ordem é corrompida ou

íntegra, significa estabelecer juízos morais, os quais integram ao plano de aplicação de

conceitos os valores consensualmente formulados no plano moral. Desta maneira,

proponho que o tema da corrupção deve ser analisado conforme sua abrangência na

ordem política, social, cultural e econômica. Em primeiro lugar, porque o instrumental

empírico não permite averiguar, de modo exato, qual o custo da corrupção dentro da

sociedade. Em segundo lugar, porque, pela idéia de abrangência, especula-se de que

forma a corrupção se espalha na sociedade. E em terceiro lugar, porque uma abordagem

em torno da abrangência da corrupção procura justamente os elementos semânticos que

estão contidos no conceito e na prática da corrupção, ao contrário da abordagem

funcionalista, como a da teoria da modernização, que encobriu estes elementos

semânticos e agregou, na mesma ordem natural, as diferenças sistêmicas e singulares no

plano comparativo.

Apreender a abrangência da corrupção, desse modo, só é possível levando-se em

consideração os juízos empregados pelos atores ao estabelecer que determinada ordem é

corrompida ou não. O plano moral, portanto, é inescapável para a análise da corrupção,

tendo em vista o fato de ela ser compreendida, na esfera pública, não por orientações

subjetivas ou naturalizadas no plano do sistema, mas por orientações oferecidas pelos

valores dados à socialização. Não se trata, portanto, de mobilizar a moral para uma

reforma totalitária da ordem, mas de compreender os substratos políticos que dão

sustentação à norma, sem os quais não é possível compreender a corrupção na política.

Estes substratos políticos estão relacionados aos elementos fundacionais, sociais,

culturais e econômicos da corrupção, os quais integram quatro tipos ideais de corrupção,

de acordo com os tipos de juízos morais emitidos pelos atores.

Os juízos morais podem ser de valor ou de necessidade. No caso dos juízos

morais de valores, é necessária uma adesão interna dos indivíduos ao plano dos valores,

criados como uma forma consensual de vida que orienta o agir na realidade social

Page 18: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

17

contingente. Pensando a respeito da corrupção, o juízo moral de valor sobre a ordem

mobiliza um conjunto de virtudes ou o espírito público do corpo político. A adesão,

dessa forma, ocorre em vista de determinados princípios éticos que orientam o agir,

conforme a empatia determinada no âmbito da comunidade. Não respeitadas as virtudes

ou o espírito público do corpo político, atribui-se a uma ordem o adjetivo da corrupção.

Por outro lado, os juízos morais de necessidade dependem apenas de uma

simpatia em relação a artifícios nomológicos atrelados à idéia de interesses. Ao

qualificar uma ordem como que sob efeito da corrupção, o juízo moral de necessidade

mobiliza as necessidades dos atores em contextos contingentes de interação,

especialmente ligados ao modo de produção e aos riscos de sua reprodução no tempo. A

adesão do sujeito, por conseguinte, ocorre em vista de necessidades fluidas presentes na

esfera pública, conforme a inclinação recíproca determinada pelos interesses.

Pela lógica dos juízos morais, a corrupção pode assumir quatro formas, de acordo

com as quais se estipula um enunciado normativo que delimita o conteúdo semântico da

corrupção. Em primeiro lugar, a corrupção pode assumir uma forma exclusivamente

política, a qual leva em consideração as virtudes do corpo político. A justificação

racional de normas leva em consideração os termos da fundação da ordem política, a

qual especifica os critérios de cidadania em torno da excelência do agir em contextos

contingentes. A emissão do juízo ocorre em função de uma justificação racional de

valores, que tem na fundação o momento original de ordenação da política, uma vez que

ela especifica os termos da boa vida e de bom governo, em face da contingência e do

conflito. A corrupção, nesta chave, em termos semânticos, está ligada à avaliação do

decoro do corpo político face aos princípios da ordem.

A corrupção também pode assumir uma forma cultural na medida em que leve em

consideração, no juízo moral de valor, os costumes. Se o conteúdo do juízo moral é o

costume, exige-se do agente moral sua honestidade frente ao potencial corruptor dos

bens externos3, formatando o bem viver em torno da honra pessoal, a qual torna o

agente passível de julgamento por parte da comunidade. A obrigação ou o

3 Alasdair MacIntyre define dois tipos de bens, no plano ético. Os bens internos promovem a vinculação empática dos agentes, de modo a fundamentar uma racionalidade orientada a valores e motivada por uma identidade fundamental. Por outro lado, os bens externos estão relacionados ao dinheiro e poder, que demandam um controle institucional da ação. Os bens externos, desse modo, definem uma racionalidade tipicamente instrumental, formando um potencial corruptor de primeira ordem. A esse respeito, conferir MacIntyre (2001).

Page 19: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

18

comportamento orientado por normas, nesse contexto, ocorre uma vez que o agente

moral se sinta obrigado consigo mesmo, ou seja, vincule a seu agir a conquista dos bens

internos, frente ao potencial corruptor dos bens externos, tornando-se honrado frente a

seus co-partícipes na comunidade. A corrupção é, necessariamente, um perigo para a

reprodução da tradição, porque o potencial corruptor dos bens externos torna a

excelência do agir vulnerável pela via de um viver cotidiano. A corrupção depende dos

campos simbólicos que designam as práticas dos agentes como honestas ou como

corruptoras, tendo em vista a honra pessoal em face do juízo emitido em torno dos

valores fundamentais da comunidade.

Em terceiro lugar, a corrupção pode assumir uma forma social, na medida em que

os juízos morais vinculam ao agir necessidades materiais. A semântica da corrupção é

estabelecida como a usurpação dos bens por parte dos agentes ou das instituições. Em

essência, configura-se o juízo moral em torno da semântica da segurança e da proteção

da propriedade e do bem comum. O descontrole das armas leva a uma restrição do

Estado como elemento garantidor da ordem. Substantivamente, a corrupção do Estado

está ligada a qualquer tipo de prática ilegal que vise a ampliar a riqueza em

contraposição aos procedimentos da justiça. A corrupção é um ato de violência que

implica na restrição do Estado, entendida por Rousseau (1998) como o fato de o

governo não administrar mais conforme o império da lei.

Finalmente, a corrupção pode estar associada a uma forma econômica, cuja

semântica representa qualquer tipo de apropriação indébita de um domínio público,

tendo em vista sua ilegalidade. Ao contrário da usurpação, entretanto, a corrupção,

compreendida em sua forma econômica, não ocorre por meio da violência, mas das

fraudes que envolvam o domínio público, rompendo a confiança depositada nos atores

políticos que representam as partes envolvidas na moral contratual4. Uma vez que a

moral contratual não é respeitada em função de uma fraude, a qual se generaliza no

âmbito da sociedade, temos um contexto de desestabilização do modo de produção pela

via da corrupção, em sua forma econômica. O quadro abaixo mapeia as semânticas da

corrupção, conforme seus tipos ideais.

4 A respeito da moral contratual, conferir Durkheim (2002).

Page 20: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

19

QUADRO 1. OS TIPOS DE CORRUPÇÃO

Tipos de juízos morais

Juízos de valor Juízos de necessidade

Formas da corrupção Política Cultural Social Econômica

Conteúdo do juízo moral

Decoro Costumes Respeito Confiança

Consideração do juízo em contextos

de corrupção

Prevaricação

Desonestidade

Usurpação

Fraude

Substâncias da corrupção

Mudança ou suspensão dos valores morais

fundamentais (de boa vida e de bom

governo)

Campos simbólicos que ordenam as

práticas designadas como honestas ou

corruptas e/ou corruptoras.

Práticas ilegais, que visam a ampliar

prestígio e renda, mediante ato

violento.

Apropriação indébita de uma coisa de domínio comum,

mediante ação ilegal.

Conseqüências da corrupção

Deslegitimação da

ordem política.

Reprodução de práticas que colocam

em risco a integridade da comunidade.

Restrição do Estado como mecanismo

garantidor da segurança, minando

sua autoridade.

Transferência de renda entre grupos

sociais e monopolização de

atividades econômicas.

Normatização contra a corrupção

Institucionalização de determinados

princípios constitucionais que orientem e motivem os agentes políticos, para a manutenção

da ordem.

Proibição de determinadas

práticas por parte dos agentes morais, visando à integração

da comunidade (reprodução,

mediante entronização)

Proibição de determinadas

práticas por parte dos agentes privados e do Estado, visando

à integração da sociedade

(reprodução social, mediante regulação externa ao agente)

Proibição de práticas por parte dos agentes econômicos, visando

à manutenção do modo de produção

(reprodução econômica)

Afirmo que os tipos ideais acima distinguem diferentes formas mediante as quais

podemos compreender a abrangência da corrupção nas ordens políticas contemporâneas.

Substancialmente, os tipos ideais acima apresentados estão relacionados com os

elementos semânticos que atravessam os enunciados lingüísticos, os quais atribuem a

probidade ou a corrupção de um ato praticado por um ator político. A abrangência da

corrupção, entretanto, deve somar ao ato praticado pelos atores o aspecto potencial que

atravessa seu conceito. Argumento que além do ato, a corrupção deve ser analisada em

sua potência sobre a ordem política.

Page 21: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

20

Essa perspectiva para a abordagem do fenômeno da corrupção na política leva em

consideração as conotações sistêmicas que estão relacionadas à sua abrangência sobre a

ordem política. Mesmo tomando a premissa de que a corrupção faz parte da ordem

política, a abordagem do fenômeno da corrupção deve estar atenta aos elementos

fundacionais, aos elementos culturais, aos elementos sociais e aos elementos

econômicos. Do ponto de vista semântico, desse modo, a corrupção deve ser analisada

no tempo, tendo em vista sua abrangência sobre a ordem, conforme os tipos ideais

definidos em torno do tema da moralidade. Isto permite uma configuração sociológica

de sua abrangência conforme suas características históricas, jurídicas, societais e

culturais.

O alcance da corrupção, no contorno das ordens políticas, pode ocorrer de formas

variadas, conforme perspectivas de sua classificação como fato social. Além dos termos

semânticos, por conseguinte, a abrangência da corrupção deve dar conta de uma

taxonomia de seu processo nos contextos da sociedade. A idéia de criar uma taxonomia

da corrupção nas ordens políticas tem o objetivo de explicar a corrupção por sua

abrangência na ordem, como um fato social. Do ponto de vista da teoria sociológica, as

taxonomias pretendem fazer uma reflexão classificatória dos fatos, de modo a

compreender o alcance de suas conseqüências sobre a sociedade (Stinchcombe, 1968).

Do mesmo modo, cogito que a classificação da corrupção deve dar conta de seu

processo social, conforme os conteúdos semânticos definidos acima.

Argumento, portanto, que se analisada em uma perspectiva diacrônica, a

corrupção tem um sentido no tempo. Tempo esse que pode ser acelerado ou adiado, de

forma que o sentido da ruptura da ordem política é primordial para a compreensão dos

efeitos desencadeados pelo seu processo. A corrupção caminha, necessariamente, para

uma rota catastrófica no interior da ordem, na medida em que ela a vai esvaziando de

sentido ontológico. O processo social da corrupção se inicia pelo esvaziamento da vida

republicana, ou seja, pelo gradativo afastamento da fundação. O esquema proposto pode

ser representado, graficamente, do seguinte modo:

Page 22: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

21

GRÁFICO 1. A RELAÇÃO ENTRE CORRUPÇÃO, VALORES E NECESSIDADES

Tendo em vista as fronteiras estabelecidas pelos valores e pelas necessidades,

conforme os juízos emitidos pelos atores políticos no âmbito da ordem, podemos

derivar três tipos ou configurações de poder que especificam a abrangência da

corrupção na política. A curva representada é ultrapassada por esses limites, de modo a

configurar três espaços sociais, os quais possibilitam classificar a corrupção por seu

alcance. Esta asserção permite identificar o fato de que a corrupção não está fora dos

limites da ordem. Ao contrário disso, a corrupção permanece na ordem, na medida em

que ela faz parte de sua constituição. Seu significado é o fato de ela ser a negação da

fundação da ordem, corroendo permanentemente seus alicerces institucionais e

valorativos. Isso não significa, por sua vez, que a corrupção seja benéfica, como

apontou Nye (1967), mas necessária para ordenar a própria sociedade e a política.

No espaço social A, a corrupção é mantida sob o invólucro dos valores e das

instituições, já que um contexto de controle institucional, associado a virtudes do corpo

político, a tornam controlada com base em uma fundação ontológica que justifica os

termos da ordem. A corrupção, no espaço social A, é controlada porque mesmo que ela

exista como prática, ela é coibida institucionalmente, de acordo com princípios e

C B A

Variação no tempo

tempo

corrupção

Limite dos valores

Limite das necessidades

Ruptura da ordem institucional

Page 23: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

22

normas bem determinados. A corrupção controlada é um tipo ideal do alcance da

corrupção sobre a ordem, na medida em que é uma configuração social e política difícil

de ser atingida ou, quando isso ocorre, de ser mantida no tempo. Pode funcionar como

um modelo normativo para as instituições políticas. Entretanto, foge à realidade, já que

a corrupção faz parte da natureza política, tendo em vista o fato de ela estar assentada,

basicamente, em relações de poder.

No espaço social B, por sua vez, a corrupção ultrapassa os limites dos valores,

fomentando uma tolerância que é explicada pelo fato de ser uma prática aceita, desde

que não rompa com os limites das necessidades materiais humanas. Ou seja, a

corrupção tolerada implica na existência de impunidade e iniqüidade de agentes

públicos sem romper, contudo, a reprodução das práticas vigentes e aceitas na sociedade

e na economia. A tolerância em relação à corrupção está configurada numa teia de

interdependências acerca das necessidades e de controles sobre os recursos,

expressando, em última instância, relações de poder. Desde que mantida sob vigília do

próprio Estado, sua corrupção é típica em sociedades complexas, uma vez que elas se

afastam dos princípios republicanos e das virtudes do corpo político, mantendo seu

controle sob responsabilidade de uma administração pública que liga, aos segredos da

razão de Estado, as necessidades de um homem auto-interessado e desprendido em

relação aos valores5.

Finalmente, no espaço social C, a corrupção rompe o limite das necessidades e,

por redundância, a ordem institucional, de forma que a endemia torna a corrupção a

própria norma da sociedade6. A corrupção endêmica implica na ruptura institucional do

ordenamento jurídico-político, desintegrando as práticas sociais e econômicas numa

situação de total anomia. A corrupção endêmica, por sua vez, é pouco típica, porque

representa cenários de ruptura institucional, ou mesmo um fato criador da ordem. Em

sua endemia, a corrupção representa a perfeita desordem, cuja resultante é convocar as

forças constituintes da política e da sociedade para gerar uma nova ordem. A geração

arrosta a crise, de forma a redefinir, no âmbito da esfera pública, a ordem, na medida em

5 Do ponto de vista de uma axiologia do Estado, Weber destaca que, na modernidade, há um esvaziamento de valores, de forma que a racionalidade se sobreponha às formas de encantamento típicas dos antigos. Conferir, Weber (2002). 6 Parto do princípio que as instituições são destinadas a controlar o poder, o dinheiro e as armas. São organizações que absorvem e aplicam regras ao comportamento humano, de modo a estabilizar a vida cotidiana.

Page 24: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

23

que as forças constituintes operam de modo a institucionalizar suas essências singulares

no campo do movimento coletivo.

A abrangência da corrupção pode ser classificada em três modelos gerais,

conforme os tipos ideais, em vista dos enunciados semânticos da corrupção. Argumento

que a análise da corrupção nas ordens políticas contemporâneas deve pensa-la pela

perspectiva de sua abrangência junto à sociedade. Essencialmente, considero que a

ligação entre o fato da corrupção e a moralidade permite abordar o fenômeno, mesmo

em vieses comparativos, sem a naturalização de conceitos e de instituições, como o

fazem a abordagem da teoria da modernização e a abordagem do institucionalismo.

Argumento, antes de tudo, que o controle da corrupção está relacionado a fatores

histórico-sociais que atravessam os elementos de fundação e a própria socialidade7 em

que ela opera.

Uma perspectiva classificatória da corrupção deve dar conta dos processos

macrossociais que informam as rotas institucionais, os arranjos de poder e o controle

sobre os meios econômicos. Ademais, cada sociedade apresenta a corrupção como um

problema sistêmico específico. Mesmo iniciativas internacionais para o combate à

corrupção devem dar conta destas singularidades, as quais permitem compreender seu

problema. Dessa forma, para problemas sistêmicos, cabe, antes de qualquer coisa,

respostas sistêmicas. No entanto, não se acessa estas respostas sistêmicas sem a

compreensão dos termos semânticos envolvidos no conceito e na prática da corrupção.

Em vista dos tipos ideais de corrupção, penso que a abrangência da corrupção se

dá em vários campos que não apenas o da economia ou o do desenvolvimento. A

corrupção tem uma forma política, cultural, social e econômica que devem ser

organizadas teoricamente, visando a ampliar o horizonte de aplicabilidade do conceito

de corrupção. Ademais, pela abrangência, permite-se compreender as configurações de

poder envolvidas nos processos da corrupção na política. O quadro abaixo procura

organizar o modo como, normativamente, a corrupção se espraia no espaço social, de

forma a compreender os alcances, práticas e significados sistêmicos que atravessam

seus diferentes enunciados semânticos.

7 A respeito do conceito de socialidade, ver Baechler (1995).

Page 25: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

24

QUADRO 2. A TAXONOMIA DA CORRUPÇÃO E SUA ABRANGÊNCIA NAS ORDENS POLÍTICAS

TIPOS DE CORRUPÇÃO ABRANGÊNCIA DA CORRUPÇÃO

Política

Cultural

Social

Econômica

Controlada

Círculo institucional

virtuoso, no qual as instituições são envolvidas por

virtudes do corpo político.

Os campos simbólicos designam a

corrupção como um mal que deve

ser combatido com a força repressora

da própria comunidade.

Mecanismos legais que impeçam a

usurpação do poder e do dinheiro

através do largo controle dos meios

de violência.

Mecanismos legais que impeçam a

fraude e a apropriação

indébita de coisas do domínio

comum, tendo em vista certa

igualdade de classes.

Tolerada

Extensão do clientelismo, do nepotismo e da

patronagem, visando à

reprodução de um grupo estamental,

no conjunto da tradição política da

comunidade.

Os campos simbólicos toleram a corrupção por ser

ela um meio para auferir vantagens materiais, em vista

do fato de ser incorporada à

tradição.

Um descontrole parcial das armas, acompanhado de

baixo grau de obediência em

relação aos comandos do

Estado.

A burocracia do Estado fomenta um contexto em que é

mais vantajoso para os agentes econômicos

pagarem propinas e subornos para

continuarem suas atividades, em vista

de certa desigualdade de

classes.

Endêmica

Declínio das virtudes cívicas pela total apatia dos corpos da república e o declínio da

liberdade positiva pelo esvaziamento

da fundação da ordem.

Os campos simbólicos designam a

corrupção como uma prática aceita

em vista da desintegração dos laços comunitários, em face da ruptura

com a tradição.

Descontrole dos meios de violência que fazem com que

os agentes do Estado usurpem a propriedade alheia e o domínio estatal

para auferir vantagens privadas

e prestígio.

Monopolização de certas atividades econômicas por

parte dos agentes, fomentando maior

desigualdade social.

A taxonomia proposta para a corrupção associa os elementos semânticos com sua

abrangência sobre a ordem política. A vantagem de adotar essa perspectiva, ligando o

conceito de corrupção aos termos lingüísticos envolvidos na moralidade, é permitir a

construção de desenhos comparativos de pesquisa, mediante os quais se ressalte o

alcance da corrupção, sem a naturalização de seu conceito e de sua prática. Pretende-se,

Page 26: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

25

exatamente, enquadrar os casos conforme os sentidos atribuídos pelos atores em

interação. Alargando-se o horizonte de aplicabilidade do conceito de corrupção, tendo

em vista os processos lingüísticos, espera-se um refinamento metodológico que não

implique a importação e a reprodução de instituições dos países centrais do capitalismo.

Com isso, ressalto, antes de qualquer coisa, a singularidade envolvida nos processos

sociais da corrupção, bem como o modo como ela persiste, mesmo em contextos

institucionais que implique seu controle.

A taxonomia da corrupção, contudo, não quer ser a aplicação de uma abordagem

universal para os casos singulares, nem mesmo construir paradigmas que sirvam como

modelo para a explicação da corrupção. Ela quer enquadrar os casos pela absorção dos

elementos semânticos da moralidade e compreender o modo de acordo com o qual

certas configurações de poder possibilitam ou restringem sua prática nos contornos da

ordem.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Posso dizer que esse é um artigo de protesto. O estudo da corrupção está associado

a agendas de pesquisa que reproduzem certos interesses e perspectivas de políticas que

são definidas, normalmente, no plano internacional. Por esta assertiva, mostrei que o

conceito de corrupção tem um parâmetro cultural e hegemônico. Argumentei que o

estudo da corrupção deve partir de uma premissa normativa, sem a qual não se

compreende o comportamento transgressor, nem mesmo seus processos dentro das

ordens políticas e sociais. A construção de uma teoria política da corrupção, portanto, é

essencial enquanto abordagem sistêmica do conceito e da prática da corrupção,

refinando o conceito pelo modo de acordo com o qual ocorre sua absorção e sua

tradução, visando a uma aplicabilidade que seja capaz de incluir o mundo periférico.

Por se tratar de um artigo de protesto, especulo que a devida análise da corrupção

deve se ater aos elementos normativos que estão envolvidos no plano lingüístico do

conceito de corrupção. Apenas dessa forma podemos ter uma noção da abrangência da

corrupção, tendo em vista uma taxonomia de seus processos, ou seja, das configurações

de poder envolvidas nos planos da ação e da potência da corrupção sobre a ordem.

Page 27: A Corrupção na Política: perspectivas teóricas e metodológicas

26

O objetivo desse artigo é pensar a corrupção em um universo mais alargado de

aplicabilidade de seu conceito e abrir novos flancos de pesquisa. Em primeiro lugar,

especulo que a corrupção deve ser analisada dentro dos processos históricos-sociais que

permitam a compreensão dos elementos fundantes da ordem. Desta perspectiva,

compreende-se os macroprocessos de configuração das relações de poder e dinheiro, os

quais permitem apreender a prática da corrupção no contexto global da ordem política,

em função de sua conotação potencial. Em segundo lugar, é necessário o mapeamento

das práticas potenciais nos marcos jurídicos. Ou seja, pensar, nos termos da legalidade,

o modo como os marcos jurídicos abordam e processam o tema da corrupção, quais seus

desafios, suas contradições internas e seus princípios fundamentais. Em terceiro lugar,

proponho que a corrupção deve ser analisada em relação à forma como o mundo

econômico percebe e absorve o alcance da corrupção em função dos processos sociais.

Finalmente, proponho que a corrupção, dentro da burocracia do Estado, deve ser

analisada de acordo com a maneira como é percebida e rotinizada no interior dos órgãos

burocráticos. É diferente de se atribuir um comportamento naturalmente maximizador

de renda por parte do burocrata. Essencialmente, deve-se pensar o modo como a

corrupção se alastra, e em que medida, pela burocracia estatal.

Com estas asserções, espero não naturalizar o conceito de corrupção, nem cair na

armadilha do relativismo cultural, o qual pode justificar a corrupção em relação aos

valores de certa sociedade. Fundamentalmente, as pesquisas comparativas e os estudos

de caso devem se pautar por estas perspectivas teóricas e metodológicas, de modo a

evitar que o tema da corrupção represente uma agenda política, antes mesmo do

conhecimento, nem que as matrizes culturais hegemônicas atuem sobre o fenômeno.

Com estas perspectivas, especulo que o conceito de corrupção não deve ser

instrumentalizado, mas alargado no plano da moralidade e de seus processos sociais,

sem os quais não podemos compreender a abrangência, o sentido e suas práticas.

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