a cor que invadiu o sertão

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A Cor Que Invadiu o Sertão.

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  • 80 n outubro DE 2010 n PESQUISA FAPESP 176

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    humanidades

  • Luxo mstico e riqueza marcam a esttica do cangao

    Ol, mulher rendeira/ ol, mulher rend/ tu me ensina a fazer renda/ que eu te ensino a namo-rar, diz a cano-smbolo do cangao. Sobre moda, Lampio e seus homens tinham pouco a aprender e muito a ensinar. Vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos de ouro e, como bons sertanejos, sabiam confeccionar toda a sorte

    de objetos e vestimentas sem que por isso se questionasse sua virilidade: o rei do cangao costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava mquina com perfeio, orgulhando-se da sua habilidade. O bando de Lampio, sobretudo nos anos 1930, possua preocupaes estticas mais frequentes e profundas que as do homem urbano moderno, afirma o historiador Frederico Pernambucano de Mello, pesquisador da Fundao Joaquim Nabuco e autor do livro Estrela de couro: a esttica do cangao (Es-crituras, 258 pginas, R$ 150), com 300 fotos histricas e 160 reprodues de objetos de uso pessoal dos cangaceiros, muitos pertencentes ao prprio autor. Tamanho apuro visual, pleno de detalhes nas coisas mais cotidianas (ces com coleiras trabalhadas em prata!), servia como proteo ao mau-olhado, instrumento de hierarquia interna, tinha funcionalidade militar e era um poderoso instrumento de

    Corisco, um dos cangaceiros mais vaidosos

    [ HIStrIA ]

  • 82 n outubro DE 2010 n PESQUISA FAPESP 176

    propaganda junto s populaes pobres, que se admiravam diante de todo aquele luxo, cor e brilho. Era tambm uma for-ma de arte que o cangaceiro carregava no seu corpo.

    Havia orgulho em tudo aquilo, um esforo para que se pudesse chegar ao anseio de beleza de cada um dos ca-bras. Era notvel ainda um desprezo sistemtico pela ocultao da figura, atitude oposta de quem se considera criminoso, explica. Morando num meio cinzento e pobre, o cangaceiro vestiu-se de cor e riqueza, satisfazendo seu anseio de arte e conforto mstico. Era como se os mais esquivos habitan-tes do cinzento se levantassem contra o despotismo da ausncia de cor na caa-tinga e proclamassem a folia de tons e de contrastes. Em vez de procurar camuflagem, os cangaceiros desenvol-veram uma esttica brilhante e osten-siva com roupas adornadas de espe-lhos, moedas, metais, botes e recortes multicores que, paradoxalmente, os tornavam alvo fcil at no escuro. To-dos armados de mosquetes, usando trajes bizarramente adornados, entram cantando suas canes de guerra, como se estivessem em plena e diablica folia carnavalesca, escreveu o Dirio de No-tcias, de Salvador, em 1929. Ainda que o fascnio pelo cangao tenha existido sempre, fomentado pela literatura de cordel, Lampio soube jogar com todos os registros do visual para magnificar a sua vida e transmitir a imagem de um bandido rico e poderoso. Foi o primei-ro cangaceiro a cuidar de sua esttica, usando modos de comunicao moder-nos que no faziam parte da sua cultura

    original, como a imprensa e a fotogra-fia, explica a historiadora francesa lise Grunspan-Jasmin, autora de Lampio: senhor do serto (Edusp).

    Aps terem seu visual cantado pelo cordel, a fotografia, ao chegar ao serto na primeira dcada do sculo passado, fez a delcia do cangao. Essa existn-cia criminal parece ter sido criada pa-ra caber numa fotografia, tamanho o cuidado do cangaceiro com o visual, com a imponncia e a riqueza do traje guerreiro, avalia Pernambucano. As vestimentas dos bandidos foram sendo incrementadas at se tornarem quase fantasias. Esse era um dos aspectos da extrema vaidade daqueles bandoleiros, observa o historiador Luiz Bernardo Perics, autor de Os cangaceiros: ensaio de interpretao histrica (Boitempo, 320 pginas, R$ 54). O homem do can-gao era um orgulhoso que se esmerava no traje, at o final, como se pode ver na clebre foto das cabeas de Lampio e seus homens ao lado de seus chapus: Dentre os treze, no h dois iguais, to ricos em tema e valor material quanto o do chefe, prova da imponncia da est-tica, cuja afetao exagerada adjetivou o cangao em sua etapa final, quando se chegou a incrustar alianas de ouro na boca das armas, nota Pernambucano. Havia uma esttica rica que conferia uma blindagem mstica ao cangacei-ro, satisfeito com a sua beleza e ainda seguro em meio a uma suposta invio-labilidade. A ponto de contaminar as roupas dos policiais, que copiaram suas vestimentas, e mudar o foco da guerra. O contgio inelutvel d a fora dessa esttica e evidencia a existncia de ou-

    Faco curto com cabo de gavio,

    de lampio

    Jabiracas de tecido ingls, de lampio

  • PESQUISA FAPESP 176 n outubro DE 2010 n 83

    inteligentssimo, Lampio fez da costu-ra e do bordado um critrio a mais de promoo e status no seio do bando e ele mesmo costurava as vestimentas de seu bando. Saber prepar-los e conferi-los a seus homens era uma grande van-tagem, salienta Pernambucano. No se chama o boi batendo na perneira, dizia o rei, consciente da necessidade de uma poltica de afagos interna para amenizar a disciplina de que no abria mo. A esttica era uma ferramenta para infundir o orgulho do irredentis-mo cangaceiro nos recrutas de modo quase instantneo. Antes desse recurso esttico, imagino que essa inoculao devesse ser lenta.

    Patres Os bandos de cangaceiros eram estruturas hierarquizadas com claras distines entre as lideranas e a arraia-mida, sem voz de comando em posio claramente subordinada aos chefes. Muitos consideravam os lderes do cangao como patres. E esses co-mandantes se viam assim, quase como os coronis, com os quais mantinham boas relaes, colocando-se em posi-o igualitria aos potentados rurais, afirma Perics. Na contramo do senso comum, os comandantes cangaceiros eram de famlias tradicionais e rela-tivas posses. Lampio, por exemplo, pertencia classe dos proprietrios de terra e ele prprio foi um criador de gado. Por isso o cangao no foi, diz o pesquisador, uma luta para reconstruir ou modificar a ordem social sertaneja tradicional, como preconizado por boa parte da literatura sobre o fenmeno. Eles no lutavam para manter ou mudar nenhuma ordem poltica, mas para defender seus prprios interesses mediante o uso da violncia, indistinta e indiscriminada. Os bandidos procu-ravam, sim, manter vnculos com os protetores poderosos, o que podia re-sultar, inclusive, em agresses contra o seu prprio povo, diz Perics. Nesse sentido, a famosa justificativa da ade-so ao cangao por motivos de disputas sociais ou vinganas familiares deve ser vista com desconfiana. Os cangacei-ros diziam-se vtimas, obrigados a en-trar na luta por honra, mas isso era, na maior parte dos casos, um escudo tico, um argumento para convencer as po-pulaes pobres de que eram movidos por questes elevadas, se diferenciando

    tra luta, travada em paralelo, no plano da representao simblica. A vingana esttica do cangao contra a eliminao militar se d quando o cone principal de sua simbologia se transforma na marca do Nordeste: a meia-lua com estrela do chapu de Lampio.

    Bandidos Estimulando essa gana de ostentao estava a prpria essncia poltica do cangao. Os cangaceiros no admitiam ser comparados ou con-fundidos com bandidos comuns, uma ofensa imperdovel. Viam-se como ato-res sociais distintos, na mesma estatura dos coronis, explica Perics. O que lhes permitia usar e abusar dos figuri-nos: orgulhosos de si mesmos, tinham ainda um gosto pelas patentes militares, promovendo cabras a postos de hie-rarquia militar e considerando mem-bros de seus efetivos como soldados. Observe que todo grupo militar preza os smbolos, as insgnias, as represen-taes de poder. Lembra-se do Brejnev com medalhas que no cabiam no peito no tempo da Rssia sovitica? Sujeito

    Eles no

    lutavam para

    manter ou

    mudar nenhuma

    ordem poltica,

    mas para

    defender

    seus prprios

    interesses,

    diz Perics

    Cantil decorado e, ao lado, bornal florido

  • 84 n outubro DE 2010 n PESQUISA FAPESP 176

    criminalidade por bons motivos. Mas, se eram violentos, o mesmo pode ser dito dos soldados que os perseguiam. A po-pulao que sofria violncias das volantes se voltava para os bandoleiros como uma resposta ou por v-los em contraposio aos agentes da lei, analisa Perics.

    Com seus trajes inconfundveis e nada tendentes ocultao, se sen-tiam investidos de um mandato mais antigo, havido por mais legtimo que a prpria lei, esta, a seus olhos, uma intruso litornea sobre os domnios rurais, completa Pernambucano. Os cangaceiros supriram a falta de poder institucionalizado no serto. Eles seriam os fiis da balana em muitos casos, sendo um poder paralelo, mais fluido e inconsistente, mas que tinha apelo para as massas rurais, diz Peri-cs. Com o tempo, porm, o cangao se revelou um negcio, o Cangao S/A, como o descreve Pernambuca-no. Era uma profisso, um meio de vida. Os bandidos estavam equidis-tantes do povo e dos mandes, ainda que com maior proximidade das elites rurais, concorda Perics. Como eram independentes, tinham sua imagem dissociada diretamente dos coronis. No sendo empregados de ningum, eram de certo modo autnomos, ti-rando das camadas mais ricas e dos governos o monoplio da violncia. Mas sempre bom lembrar que a maioria da populao sertaneja, ape-sar da misria, da explorao, da falta de emprego e das secas, no ingressou no cangao. Segundo o pesquisador, um dos motivos para a longevidade da boa recordao dos cangaceiros seria sua contraposio ordem instituda.

    Chapu de couro do rei do cangao

    Os policiais representavam o governo, mas usavam a farda para transgredir. Assim, parte dessa sociedade se voltou para os cangaceiros e viu neles o opos-to, ou seja, aqueles que lutavam contra a ordem. Suas atividades crimi nosas, ento, eram justificadas no quadro maior da luta entre os dois partidos: cangao e polcia.

    Politicamente reabilitados e bem vistos, permitiam-se o luxo da ostenta-o, que se iniciava pelos chapus, cujas abas levantadas podiam chegar aos 20 cm de raio anular, uma hiprbole em relao ao modelo original dos vaquei-ros, de abas viradas, mas curtas. Expe-rimentei o chapu de Lampio no Insti-tuto Histrico e Geogrfico de Alagoas: o pescoo bambeou. Tanto peso orna-mental no teria nada a ver com fun-cionalidade militar, mas com valores bem mais sutis, conta Pernambucano. O objeto tem cerca de 70 peas de ouro, entre moedas, medalhas e outros adere-os, o que levou um reprter da poca a defini-lo como verdadeira exposio numismtica. O chapu era o ponto de concentrao dos adendos simblicos que caracterizam o traje do cangaceiro.

    Amuletos - Coisas comuns eram trans-formadas em amuletos que, alm de reforar a hierarquia, viravam smbolos de uma crena mstica. A blindagem mstica se traduziu nos muitos signos (estrela de davi, flor de lis, signo de salomo e outros) e na profuso do seu uso em todos os ngulos das vesti-mentas, o que dividia a ateno com o puro anseio esttico, a se mesclar a este, conferindo utilitarismo fuso, pela fora de dar vida crena tradicional numa suposta inviolabilidade em meio a riscos extremos. Mas no se iluda o espectador ao pensar que os bandos eram escolas mveis de superstio. O grosso da cabroeira, muito jovem, entre os 16 e os 23 anos, pautava-se pela lei da imitao, sem conscincia daquilo de que se servia. O chefe usava? Basta. As mulheres seguiam as modas de perto, mas de forma distinta. Com alguns traos de valquria e quase ne-nhum da amazona, a matuta que se engajou no cangao jamais adotou o chapu de couro, coisa de homem. A elas ficou reservado uma cobertura de feltro, de aba mdia, e a colocao, so-bre a cabea, de toalha ou leno, conta

    dos bandidos comuns, o que no era real. Lampio nunca viu como priori-dade ajudar os necessitados. Em geral, guardavam o dinheiro grande e davam alguns tostes aos pobres e s igrejas. E sempre faziam questo de que isso fosse divulgado para criar uma imagem positiva junto ao povo.

    Na prtica, o comportamento dos cangaceiros era parecido com o dos co-ronis, que agiam de forma paternalis-ta com aqueles que eram considerados seus pobres. Eles no eram bandidos sociais e se pode mesmo dizer que sua presena foi um obstculo a um pro-testo social mais significativo. Apesar disso, como um executor independente da raiva silenciosa da pobreza rural, o cangaceiro tinha o apelo popular de um agente superior. A sua violncia era um gesto admirado de afirmao psquica na ausncia de justia e mudana positiva, acredita a historiadora Linda Lewin, da Universidade da Califrnia, autora de The oligarchical limitations of social ban-ditry in Brazil. Cmara Cascudo j notara que o sertanejo no admira o crimino-so, mas o homem valente. O cangao pode ser visto como uma continuidade do ambiente violento do serto, onde era comum que paisanos carregassem e usassem armas no cotidiano, pautando sua vida em questes morais, de honra e prestgio, diz Perics. Os cangaceiros construram a imagem de indivduos injustiados que haviam ingressado na

  • PESQUISA FAPESP 176 n outubro DE 2010 n 85

    sas. A seu lado, iam os cantis, decorados com esmero, um espao surpreendente de arte de projeo. Como as luvas a que, nota Pernambucano, o cangacei-ro, no fausto dos anos 1930, juntou um bordado colorido. O lugar privilegia-do das cores, porm, eram os bornais, cuja policromia levou um jornalista a descrever os cangaceiros como orna-mentados e ataviados de cores berrantes que mais pareciam fantasiados para um carnaval. Visveis por todos os ngulos, os bornais eram responsveis por mais de dois teros desse porre de cores, o resto ficando por conta do leno de pescoo, a jabiraca, com que tambm se coava o lquido extrado de plantas da caatinga. Nela, nada de ns, mas pu-xadas as duas pontas para a frente, em paralelo, o cangaceiro ia colecionando alianas de ouro, tomando-se como ri-co quando formava o cartucho. Houve quem tivesse mais de 30 alianas no pescoo, conta. Viajando por Sergipe, em 1929, Lampio teve os apetrechos pesados numa balana de armazm: 29 quilos sem as armas. No total, o peso carregado no calor trrido da caatinga podia chegar a quase 40 quilos.

    Mstico Com menos aprumo, a vesti-menta contagiou os policiais. A sedu-o da indumentria dos cangaceiros arrebatava pelo funcional, pelo esttico e pelo mstico. A volante se mimetizou a tal ponto que dela no restou ima-gem prpria, diz Pernambucano. Para desespero das autoridades, que se sen-tiam derrotadas tambm no simblico. Cumpre que se adote a proibio de fardamentos exticos, de berloques, estrelas, punhais alongados e outros exageros notoriamente conhecidos, porque a impresso se faz no crebro

    rude e, primeira oportunidade, o chapu de couro cobre a testa e o rifle pende a tiracolo, alertava um relatrio oficial. Curiosamente, nota o pesquisa-dor, pintores como Portinari ou Vicente do Rego Monteiro no souberam cap-tar o luxo e o colorido dessa esttica em suas reprodues do cangao, op-tando, ideologicamente, por uma viso monocromtica opaca, para ressaltar o aspecto social do fenmeno, custa da fidelidade ao real. No exagero dizer que ainda est por surgir, na pintura ou no cinema, quem consiga combinar o ethos e o ethnos dessas comunidades para retrat-las, avalia Pernambucano. O cangao foi o ltimo movimento a viver sem lei nem rei em nossos dias, aps varar cinco sculos de histria. E o ltimo a faz-lo com tanto orgulho, com tanta cor, com tanta festa e com uma herana visual to significativa. Como, alis, j diziam os versos de Mu-lher rendeira: O fuzil de Lampio/ tem cinco laos de fita/ No lugar em que ele habita/ no falta moa bonita. n

    No exagero

    dizer que ainda

    est por surgir,

    na pintura ou

    no cinema, quem

    consiga combinar

    o ethos e o

    ethnos dessas

    comunidades

    para retrat-las,

    diz Pernambucano

    Pernambucano. O mesmo se dava com os punhais que podiam chegar a 80 cm para os homens (o tamanho limite era o do punhal de Lampio, que no po-deria ser superado), mas no passavam dos 37 cm no caso das mulheres.

    As armas brancas, alis, so para-digmas na vestimenta do cangaceiro. Com funo militar quase morta aps o advento da espingarda de repetio, os punhais serviam no ritual letal do san-gramento nordestino ou como smbolo de status. Era usado orgulhosamente sobre o abdome, vista de todos, ao da melhor qualidade europeia com ca-bo decorado de prata. Desfrutvel ao primeiro olhar. Ou primeira fotogra-fia. O punhal de Z Baiano, presente de Lampio, foi avaliado em mais de 1 conto de ris, preo de uma casa. Outros smbolos de prestgio eram a bandolei-ra, correia para segurar a espingarda no ombro, e a cartucheira trespassada, essa uma necessidade nascida de se prover um adicional de munio: 150 cartu-chos de fuzil Mauser presos com enfei-tes de ouro. Era comum, porm, que as volantes, cientes do prestgio de seu uso, mirassem em quem portasse uma des-

    porre de cores:

    conjunto de bornais