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Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun. 2011 | 9 | A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA O CONHECIMENTO JURÍDICO (PEQUENO GUIA RUMO A NOVOS ITINERÁRIOS). The Contribution of Anthropology to the Legal Knowledge (a litlle guide towards new itineraries) 1 Elisabetta Grande 2 RESUMO O presente artigo tem uma dupla finalidade. Em primeiro lugar, visa traçar as grandes linhas do pensamento jus-antropológico desenvolvido após o chamado realismo jurídico, com a finalidade de evidenciar os nexos que vinculam dois debates: aquele sobre a natureza do direito ocidental produzido pelo Estado e aquele acerca do direito diverso deste. O trabalho, em segundo lugar, objetiva dar um passo adiante na utilização da abordagem antropológica do direito ocidental. Pretendemos sublinhar exatamente qual tipo de investigação pode iluminar os aspects ocultos das dinâmicas que 1 Artigo traduzido do italiano pelos Professores Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Iensue. Artigo ori- ginalmente publicado na Rivista Critica del Diritto Privato, Napoli, Jovene Editore, ano XIV, n. 3, setem- bro/1993, pp. 465 a 501. Agradece-se à autora pela gentil cessão graciosa dos direitos autorais para a língua portuguesa para esta revista. 2 Professora da Universidade degli Studi de Piemonte Oriental Amedeo Avogadro, Alessandria, Itália. Autora de inúmeros livros e aritigos jurídicos.

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Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 9 |

A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA O CONHECIMENTO JURÍDICO

(PEQUENO GUIA RUMO A NOVOS ITINERÁRIOS).

The Contribution of Anthropology to the Legal Knowledge

(a litlle guide towards new itineraries)1

Elisabetta Grande2

RESUMO

O presente artigo tem uma dupla finalidade. Em primeiro lugar, visa

traçar as grandes linhas do pensamento jus-antropológico

desenvolvido após o chamado realismo jurídico, com a finalidade

de evidenciar os nexos que vinculam dois debates: aquele sobre a

natureza do direito ocidental produzido pelo Estado e aquele acerca

do direito diverso deste. O trabalho, em segundo lugar, objetiva dar

um passo adiante na utilização da abordagem antropológica do

direito ocidental. Pretendemos sublinhar exatamente qual tipo de

investigação pode iluminar os aspects ocultos das dinâmicas que

1 Artigo traduzido do italiano pelos Professores Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Iensue. Artigo ori-

ginalmente publicado na Rivista Critica del Diritto Privato, Napoli, Jovene Editore, ano XIV, n. 3, setem-bro/1993, pp. 465 a 501. Agradece-se à autora pela gentil cessão graciosa dos direitos autorais para a língua portuguesa para esta revista. 2 Professora da Universidade degli Studi de Piemonte Oriental Amedeo Avogadro, Alessandria, Itália.

Autora de inúmeros livros e aritigos jurídicos.

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estão no cerne da operação diária dos sistemas pertencentes à

denominada western legal tradition. A Antropologia jurídica, dessa

forma, colocaria seus instrumentos a serviço do conhecimento do

direito, sem limitar-se a nenhuma de suas epifanias territoriais.

ABSTRACT

This article is twofold. Firstly, it aims to outline the main lines of

thought jus-anthropological developed after the so-called legal real-

ism, with the aim of highlighting the links which bind two debates:

one about the nature of Western law and that the state produced

about the right of this diverse . The work, secondly, it aims to take a

step forward in the use of the anthropological approach of Western

law. We intend to emphasize exactly what kind of research can illu-

minate the hidden Aspects of the dynamics that are central to the

daily operation of the systems being in the western legal tradition.

Legal Anthropology thus put their instruments in the service of

knowledge of law, not limited to any of its territorial epiphanies.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Historia. Conhecimento

jurídico.

KEYWORDS: Anthropology. History. Legal knowledge.

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Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 11 |

1. Relações de parentesco e relações de poder e entre poderes, so-

lução dos conflitos: eis alguns temas caros ao jurista, mas simultaneamen-

te caros para o antropólogo; eis, portanto, os temas que constituem o obje-

to de estudo precípuo do antropólogo do direito.

Esta figura de estudioso, cuja disciplina ainda permanece quase

que completamente desconhecida na Itália3, concentra tradicionalmente

sua atenção sobre o conflito e sobre os variados modos de solução do

mesmo nas mais variadas sociedades e culturas. A Antropologia jurídica

nasce, realmente, como sub-disciplina da Antropologia social e cultural a

partir do momento no qual coloca a si mesma a estranha pergunta acerca

da existência de regras qualificáveis como jurídicas – e, portanto, da exis-

tência do direito – nas sociedades sem escrita e acéfalas, isto é, sem um

poder político centralizado. Definições sobre a regra jurídica – como as

elaboradas por A. R. Radcliffe-Brown4 – em termos de norma cuja obser-

vância é garantida pela aplicação de uma sanção por parte de um poder

politicamente organizado que dispõe da força, aliadas ao rígido positivismo

que imperava na Europa continental havia levado à identificação de todo o

direito com um código escrito e, no mundo do common law, à aplicação

3 As estatíticas fornecidas pela A.F.A.D., Associatin Française d‟Anthropologi du Droit evidenciam que o

ensino da Antropologia Jurídica na Itália conta com apenas um curso, e ainda assim não-permanente, em contraste com o notável número de cursos da disciplina na França e nos Estados Unidos. Veja-se o relatório de 10.10.1994, redigido pelo Presidente da A.F.A.D., Prof. Norbert Rouland. Entre as obras de síntese da Antropologia Jurídica em língua italiana indicam-se: F. Remotti, Temi di antropologia giuridi-ca, Turim, 1982; G. Mondarini Morelli, Norme e controllo sociale. Introduzione antropologica allo studio delle norme, Sassari, 1980; R. Motta, Vecchie e nuove teorie del diritto primitivo, Alexandria, 1991; N. Rouland, Antropologia Giuridica, em Juristas estrangeiros da atualidade, coleção organizada por C. Mazzoni e V. Varanno, tradução italiana de R. Aluffi Beck-Peccoz, com apresentação de P. G. Monate-ri, Milão, 1992. 4 A. R. Radcliffe-Brown, verbete Sanction, Social, in: Encyclopedia of Social Sciences, vol.. XIII, Lon-

dres, 1934, especialmente p. 533.

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férrea da regra da stare decisis em sua concepção clássica, estabelecem

nos juristas e antropólogos do início do Século XX a convicção de que, nas

sociedades de estrutura elementar, carentes uma autoridade central, de

códigos, de cortes oficiais e de polícia, não possa existir qualquer forma de

direito.

Já a partir de 19625 Bronislaw Malinowski havia “indicado uma rup-

tura com os velhos métodos especulativos utilizando a observação etno-

gráfica de campo para derrubar os mitos amplamente difundidos sobre o

direito e sobre a ordem social nas sociedades ágrafas”6. Isso nada menos

do que no período em que, quando no final dos anos trinta, o jovem Hoebel

comunicou aos reconhecidos mestres da Antropologia, Ruth Benedict e

Franz Boas, sua intenção de analisar o direito junto aos Cheyenne de Mon-

tana, ouvira questões sobre que tipo de direito se teria podido estudar junto

a um povo carente não somente de uma estrutura política organizada de

maneira centralizada, bem como de polícia e de cortes permanentes, mas

carente até mesmo de juristas profissionais e de escrita. A sociedade che-

yenne apresentava-se como a clássica sociedade sem legislador, sem ju-

rista e sem Estado7, ótimo terrenoi de prova para quem, como Edward

Adamsom Hoebel e Karl Nikcerson Llewellyn, buscasse descobrir se era

possível a existência de um direito não verbalizado. Como fazer, portanto,

5 Ano no qual, como é sabido, o antropólogo escreveu Crime and Custom in Savage Society (publicado

em Londres pela Routledge and Kegan Paul). 6 Nesse sentido, L. Nader, verbete Diritto e Società, 2. Antropologia Giuridica, na Enciclopedia Treccani

delle Scienze Sociali, Roma, 1993, p. 134. 7 Acerca das quais remete-se a Rodolfo Sacco, Modelli notevoli di società, I Cardozo Lectures in Law,

org. de P. G. Monateri e U. Mattei, Cedam, 1991; Id., Le grandi epoche del diritto, em Non solo Occi-dente, coleção sob a organização de M. Guadagni e U. Mattei, Turim, 199; Id., Il diritto mutto, nos Studi in memoria di Gino Gorla, Milão, 1994, tomo I, pp. 681 e ss.

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para desvelar a existência de um direito entre os Cheyennes? A colabora-

ção de Karl Llewellyn ao projeto de Edward Adamson Hoebel fora determi-

nante neste ponto.

O então já célebre Betts, Professor of Jurisprudence na Columbia

Universtity Law School, expoente de ponta do realismo jurídico norte-

americano – que havia, anteriormente, seguido o jovem antropólogo, afilia-

do, por sua vez, à escola funcionalista, na tese de doutoramento entre os

índios Comanches8– tinha pronta a resposta que sua escola de pensamen-

to lhe entregara. Como Oliver Wendell Holmes lhe havia ensinado, em sua

época, “a vida do direito não é a lógica, mas a experiência”9. A ausência de

uma law in the books não incidia, portanto, para Llewellyn, sobre a possibi-

lidade real de estudar as regras jurídicas presentes em uma sociedade;

que era sobretudo a law in action. Ademais, cerca de quinze anos antes, já

Malinowski, mestre espiritual de Hoebel, ao descrever a vida e os costu-

mes das populações das Ilhas Trobriand da Melanésia10, havia esclarecido

que o direito coincidia mais com a prática do que com a normas verbaliza-

das. E onde seria localizada a experiência do direito senão nas controvér-

sias e nas maneiras através dos quais as mesmas eram resolvidas? O

conflito e sua solução tornaram-se de tal forma centrais no estudo do direi-

to junto aos Cheyenne e, mesmo que outros antropólogos antes de Hoebel

e Llewellyn tivessem estudado as controvérsias e sua solução nas socie-

8 Em seguida (1940) publicada sob o título de The Political Organization and Law-Ways of the Coman-

che Indians, Menasha, Wisconsin, sob os auspícios da American Anthropological Association. 9 O. W. Holmes Jr., The Common Law, Cambridge, Mass., 1881.

10 B. Malinowski, Crime and Custom in Savage Society cit.

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dades tradicionais11, o método casuístico – chamado “case method appro-

ach” –, que dali em diante dominou a cena entre os antropólogos do direi-

to, foi sempre atribuído aos dois autores de The Cheyenne Way: Conflict

and Case Law in Primitive Jurisprudence12.

O direito revela-se, para Hoebel e Llewellyn, no momento da lide e

de sua composição e, para além da qualificação da norma que acaba por

ser aplicada como jurídica ou não, ou das instituições estabelecidas para

dirimí-la, a controvérsia emerge como unidade de análise, presente em to-

das as sociedades e, por isso mesmo, instrumento idôneo de comparação.

O exame dos litígios resolvidos publicamente permite aos dois pesquisado-

res descobrir quais são as consequências jurídicas do homicídio, assim

como as normas que regem o matrimônio, o adultério, a propriedade e as

sucessões hereditárias entre os Cheyenne de Montana.

Após o estudo de Hoebel e Llewellyn a questão se as sociedades

sem escrita, sem cortes, sem juristas, sem legisladores e sem poder cen-

tralizado pudessem ter um direito foi definitivamente respondida em senti-

do positivo e, com ela, foram afastados em larga medida também as tenta-

tivas de dar uma definição restritiva do conceito de norma jurídica e de di-

reito... Uma definição, em relidade, simultaneamente inclui e exclui. De-

marca um âmbito; insere algo no interior desse âmbito e exclui algo mais: e

a exclusão é quase sempre arbitrária. Eu não tenho a pretensão de excluir

11

Ver, p. ex., J. Richardson, Law and Status Among The Kiowa Indians, Nova Iorque, 1940; R. F. Bar-ton, Infugao Law, in: Univestity of California Publications in American Archaeology and Ethnology, 1919, XV, 1, pp. 1-186. 12

Publicado pela Oklahoma University Press em 1941 e republicado em 1992 na coletânea The Legal Classics Library por Gryphon Editions.

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nada do âmbito jurídico”. Em certo sentido o direito é tão amplo quanto a

própria vida, afirmava Llewellyn13. No rastro desses autores, os jus-

antropólogos tendem atualmente a identificar o direito com a noção ampla

que lhe conferia Malinowski, como sistema de controle social14. O terreno

estéril das definições parece, desse modo, abandonado15.

2. a) Após o estudo da sociedade Cheyenne, o conflito e sua solu-

ção constituíram durante muito tempo o paradigma de referência dos estu-

dos de antropologia jurídica. A controvérsia passa a ser estudada em sua

complexidade.

13

Ver o relato de W. Twining, Karl Llewellyn and The Realist Movement, Londres, 1973, p. 571. 14

Veja-se, por todos, L. Nader, verbete citado, passim, especialmente pp. 136-137: “Em outras pala-vras, o estudo antropológico do direito não conhece limites pré-concebidos, e coloca em discussão, ainda, as ideias ou os conceitos pré-constituídos relativos ao direito.” 15

Acerca das conceituações resta presa ainda apenas uma pequena parte da antropologia, a de língua francesa. Em testemunho das preocupações dogmáticas, não compartilhadas com a antropologia jurí-dica norte-americana, típica dos antropólogos do direito franceses, estão as tentativas de definir o obje-to de investigação da disciplina através de distinções terminológicas entre etnografia, etnologia e an-tropologia jurídica. Veja-se N. Rouland, Antropologia giuridica cit., pp. 120 e ss. É sobre preocupações de ordem conceitual que se funda, ainda, a rejeição recente do conceito de pluralismo jurídico por uma parte da antropologia jurídica, sobretudo a francesa, que distingue entre pluralismo “jurídico” e plura-lismo “normativo”, atribuindo ao segundo termo um conteúdo mais amplo, compreensivo das normas “implícitas” e “inferenciais”, “de elaboração interacional e não institucional”. Neste sentido, R. A. MacDonald, Pour la reconnaissance d‟une normativité implicite et „inférentielle‟, in : Sociologie et Sociétés, XVIII, 1, abril 1986, pp. 47 e ss. ; G. Roscher, Pour une sociologie des ordres juridiques, in : Les Cahiers de droit, 29, 1, 1988 ; A. Lajoie, Analyse du language et internormativité dans un territoire autochtone ; Kahnawake, Centre de Droit Public, Université de Montréal, 1993, citados por R. Motta, Intorno ai concetti giuridici e antropologici. Occidente e altri « blochi culturali » a confronto, in : Materiali per una storia della cultura giuridica, 1995, p. 434. O recurso a tais distinções evidencia, em realidade, as dificuldades em aceitar uma definição de direito desvinculada de confins pré-concebidos, pelo que existiriam normas jurídicas propriamente ditas (aquelas não mais implícitas, inferenciais e interacionais) e normas jurídicas “menos jurídicas”, apenas e somente “normativas”. Ver R. Motta, op. cit., especial-mente p. 431. Para uma crítica ao conceito de pluralismo baseado em pressupostos de caráter definitó-rio, ver ainda J. Carbonnier, Sociologie Juridique, A. Colin, Paris, especialmente pp. 150 e ss., bem como as observações a respeito feitas por N. Rouland, op. cit., p. 85.

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O método etnográfico, ilustrado por Malinowski no primeiro capítulo

dos Argonautas do Pacífico16, levou os antropólogos a confrontar-se com

realidades caracterizadas por modos de solução de controvérsias bastante

diversos entre si. A classificação respectiva variou de acordo com o ponto

de observação adotado.

A distinção baseada na intervenção de um terceiro (ou sua ausên-

cia) na resolução do litígio contrapõe a negociação entre as partes – a de-

nominada solução diádica – à mediação, à arbitragem e à decisão jurisdi-

cional reclamada perante órgãos públicos – a denominada solução triádica.

Uma classificação diversa, fundada desta feita na existência de terceiro

que atue como decision maker, contrapõe, ao contrário, a tratativa – ou

negociação entre as partes – e a mediação à arbitragem e à decisão por

parte de órgãos judiciários17. Nas duas primeiras hipóteses, de fato, a deci-

são da controvérsia compete às partes que, no caso da mediação solicitam

a um terceiro tão-somente a tarefa de propor uma solução: o mediador es-

timula as partes a resolver o litígio, não decidindo por elas. Diversamente

estão as coisas relativamente à arbitragem, no qual o árbitro é escolhido

pela parte com a finalidade de decidir por ela. Neste último caso, assim

como na hipótese de uma solução requerida a um órgão público, o decisi-

on maker é um terceiro. Naturalmente, como nos faz perceber Peter Stein,

16

Argonauts of the Western Pacific, 1922, republicado em 1984 pela Waveland Press. 17

A elaboração da distinção entre negociação e decisão judicial com base na presença ou ausência de um third-part decision-maker deve-se sobretudo a Philip Gulliver. Em seu trabalho clássico Disputes and Negotiations – Cross-Cultural Perspective, Nova Iorque, 1979, o autor busca demonstrar, através de uma comparação entre as negociações dirigidas a solucionar as controvérsias trabalhistas no sis-tema norte-americano e o modo de solução dos litígios junto ao povo agricultor dos Arusha da Tanzâ-nia, o modo como as tratativas entre as partes encontrem uma mesma estrutura em todos os lugares, seguindo trajetórias e fases análogas em todas as sociedades, independentemente do objeto da dispu-ta.

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“abstratamente, é nítida a distinção entre o mediador, que auxilia as partes

a chegar a um acordo, e o árbitro que, a pedido delas, decide em lugar das

mesmas. Na prática, frequentemente é difícil distinguir ambas as figuras, e

por vezes os antropólogos utilizaram os dois termos indiferentemente. Em

ambos os casos, os litigantes devem aceitar voluntariamente a decisão pa-

ra que ela tenha eficácia. Ela não pode, como ocorre com a sentença das

cortes regulares, ser imposta às partes contra a sua vontade. Muitas vezes

pode não ser realmente claro se trata-se de uma decisão das partes que o

mediator conseguiu obter delas ou de uma decisão do árbitro”18. Convém

observar como ambas as classificações mencionadas não levam em con-

sideração os comportamentos unilaterais, ou seja, as formas de autotutela.

Em uma ótica diversa, os modos de solução das controvérsias po-

dem ser distintos por serem formais ou informais: em tal perspectiva, a

contraposição vê, de um lado, a decisão jurisdicional, e, de outro, as for-

mas de solução tradicionais, vale dizer, a arbitragem, a mediação, a trata-

ria e a autotutela.

b) Independentemente da perspectiva adotada, as diversas formas

de solução de controvérsias foram vinculadas com as diversas formas polí-

ticas e econômicas características das diversas sociedades estudadas.

18

Neste sentido, P. Stein, I fondamenti del diritto europeo. Profili sostanziali e processuali dell‟evoluzione dei sistemi giuridici, in Giuristi stranieri di oggi, coleção organizada por C. Mazzoni e V. Varanno, apresentação de A. De Vita, M. D. Panforti e V. Varanno, Milão, 1987, p. 6.

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As sociedades acéfalas, sem organização estatal, revelaram-se do-

tadas de mecanismos capazes de assegurar a ordem social e de resolver

as disputas de modo completamente análogo ao que ocorre nas socieda-

des de poder centralizado por força das leis e de sua aplicação por parte

de tribunais. Isso confirma o dado de que a ordem não se atinge necessa-

riamente através da presença de uma autoridade central que faça uso da

força e, para isso, valha-se da lei escrita, dos tribunais e da polícia.

Por muito tempo os etnógrafos buscaram relacionar o desenvolvi-

mento econômico com as formas de solução de conflito, em uma perspec-

tiva tipicamente evolucionista. Fora observado, assim, que para as socie-

dades de caçadores-coletores a obtenção de um acordo entre as partes

em conflito não era indispensável, diferentemente do que ocorria nas soci-

edades agrícolas, nas quais a sedentarização tornava crucial o caráter pa-

cífico do convívio. A violência e a autotutela conviviam assim muito melhor

nas sociedades da primeira espécie do que nas da segunda19. O aumento

da complexidade dos meios de produção foi conectado com a modificação

dos modos de solução das controvérsias com o objetivo de sustentar que

ao desenvolvimento econômico da sociedade faria contraponto uma su-

cessão das formas de resolução das controvérsias que veria em seu pri-

meiro grau a autotutela e a negociação entre as partes e, após, em ordem

sequencial, a mediação, a arbitragem e, afinal, a decisão jurisdicional20.

19

V. P. Gulliver, Nomadic Movements: Causes and Implications, in: Pastorialism in Tropical Africa,T. Monad (org.), Londres, 1975, pp. 369 e ss.; E. Colson, Social Control and Vengeance in Plateau Tonga Society, in: Africa, 23 (3), 1953, pp. 199 e ss.; M. Gluckmann, Custom and Conflict in Africa, Oxford, 1955. 20

L. T. Hobhouse, G. C. Wheeler, M. Ginsberg, The Material Culture and Social Institutions of the Sim-pler Peoples, Londres, 1930.

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Nessa ótica, a presença do órgão público jurisdicional seria típico das so-

ciedades mais evoluídas, ao passo que as mais simples revelar-se-iam ca-

rentes até mesmo do instrumento da mediação21. A filosofia evolucionista

subjacente desenvolveu-se a ponto de considerar cada grau da escala in-

dicada como pressuposto necessário para a passagem à fase econômico-

jurídica seguinte22. Somente a comparação transculturam pode refutar a

exatidão de teorias semelhantes. Sociedades de caçadores-coletores

comparadas revelaram utilizar formas diversas de solução das disputas: os

Innuit, estudados por Hoebel, privilegiavam a violência e a autotutela, con-

trariamente do que se verificava junto a alguns povos que habitavam o de-

serto do Kalahari23, que resolviam pacificamente as próprias controvér-

sias24. Observou-se como sociedade economicamente mais simples faziam

uso de instrumentos de solução de conflito situados em um grau mais ele-

vado em comparação a sociedades economicamente mais complexas, e

como sociedades situadas no mesmo grau de desenvolvimento econômico

utilizassem diferentes mecanismos de solução de controvérsias. Socieda-

des industriais “altamente civilizadas”, aí compreendida a sociedade inter-

nacional, ademais, tendem hoje a migrar de um modelo conflituoso e juris-

21

E. A. Hoebel, The Law of Primitive Man, Cambridge, Mass., 1954. 22

Remete-se a R. D. Schwartz, J. C. Miller, Legal Evolution and Societal Complexity, in: American Journal of Sociology, 70 (2), 1964, pp. 159 e ss. 23

W. Ury, Disputes Resolution Notes form The Kalahari, in: Negotiation Journal, 6 (3), 1990, pp. 229 e ss. 24

Sobre questão ainda recente veja-se L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, P. G. Monateri e U. Mat-tei (orgs.), sob o título Antropological Projects: Law in motion, ocorrido em Trento, dias 26 e 27 de maio de 1996, no prelo por Harmattan-Italia.

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dicional de solução do conflito para um modelo de tipo conciliatório e in-

formal25.

c) É exatamente o perfil do caráter conciliatório mais do que confli-

tual do modo de solução da controvérsia, de outro lado, propiciou um certo

número de informações. A passagem dos modos informais de resolução

do conflito – negociação, mediação e arbitragem – à solução de tipo juris-

dicional coincide, nas observações dos antropólogos do direito, com o pro-

gressivo declínio do caráter conciliatório da composição do litígio. Isso é

tanto mais verdadeiro quanto mais o órgão decisório público for expressão

de uma verdadeira autoridade estatal, que pode dispor da força para con-

vocar diante de si os litigantes e para fazer executar as próprias deci-

sões26.

O procedimento informal visa à obtenção de um compromisso acei-

tável para ambas as partes, na medida em que a ameaça da retorsão em

caso de ausência de acordo opera para os contendores como um incentivo

à renúncia de parte das próprias pretensões. Em um contexto análogo, a

solução final dependerá não apenas da aplicação das regras jurídicas ao

caso, mas também ao peso do status, da força política e das relações in-

terpessoais entre as partes. Nesse contexto, ademais, o direito não será

25

L. Nader, Civilization and Its Negotiations, in: Understanding Disputes, The Politics of Argument, P. Caplan (org.), Oxford-Providence, 1995, pp. 39 e ss. 26

É evidente que o binômio modelo conflitual/modelo conciliatório não é coincidente com o binômio re-solução formal judicial/resolução informal das disputas, todas as vezes em que, restando em aberto a via da autotutela, as partes optem por esta alternativa.

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objeto de uma aplicação estrita (o que, todavia, não é feito às custas da

certeza, como demonstram Hoebel e Llewellyn)27 e o âmbito da controvér-

sia não terá contornos predeterminados, podendo as partes incluir nele

mais de uma questão. A organização judicial estatal modifica sobretudo o

aspecto conciliatório do modo de solução do litígio. Como nos chama a

atenção ainda o mesmo Peter Stein, de fato, “uma corte instituída por uma

autoridade central, que tem atrás de si o peso da comunidade, não tem o

dever de reconciliar as partes. Em maior ou menor grau, pode impor a elas

sua decisão, aplicando-a coativamente, quer elas a aceitem, quer não”28. A

decisão judicial pode, assim, dar razão total a um dos dois litigantes, sem

dever, ao menos de maneira aparente, levar em consideração fatores di-

versos daqueles estritamente jurídicos, que tornem a solução tomada acei-

tável do ponto de vista da parte vencida. A norma jurídica, que doravante

tende a ser enunciada abstratamente, antes do surgimento da controvér-

sia, recebe portanto uma aplicação necessariamente mais rígida, enquanto

a disputa ostentará confins pré-estabelecidos dos quais a corte não poderá

afastar-se na decisão da causa. Estaremos, assim, muito próximos daque-

le modelo que será definido como o clássico legal process, com suas ca-

racterísticas de verbalização de um complexo de normas conhecidas e

27

“Embora não houvesse juristas profissinais junto aos Cheyenne e raramente as regras jurídicas fos-sem enunciadas com precisão, os juízes Cheyenne eram capazes de aplicar seu sistema jurídico não-escrito com sabedoria e segurança dignas dos maiores magistrados da tradição euro-americana”, ex-plica-nos Laura Nader, na introdução à mais recente edição do trabalho de Hoebel e Llewellyn (Derlan, N. J., 1992). 28

P. Stein, op. cit., p. 16.

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precisas, que encontram aplicação geral em juízos que separam os fatos

relevantes para a causa daqueles irrelevantes29.

Exemplifica tal estado de coisas uma comparação entre o modo de

resolução dos litígios entre os povos estudados por Philip Gulliver, Paul

Bohannan e Elisabeth Colson, ou seja, respectivamente, os Ndendeuli do

sul da Tanzânia, os Tiv da Nigéria setentrional, e os Gwembe Tonga, po-

pulação da planície nos limites entre a Zâmbia e o Zimbabue.

Entre os Ndendeuli do sul da Tanzânia chega-se à solução das

controvérsias através da negociação entre grupos opostos, integrados pe-

los parentes e apoiadores das partes em litígio. Aqueles que não queiram

tomar partido a favor de uma ou da outra das partes atuam como mediado-

res. “A solução de uma controvérsia no interior da comunidade entre os

Ndendeuli”, explica-nos Phil Gulliver, “depende não apenas da aplicação

das normas, do reconhecimento dos direitos e das expectativas de tipo ju-

rídico, ou da respectiva força contratual das partes litigantes e de seus

apoiadores, mas também de considerações relativas aos efeitos que o no-

vo atitude produzirá sobre os interesses da comunidade como um todo e

sobre a continuidade da cooperação e da concórdia entre vizinhos”30. Nas

palavras de Peter Stein: “Na busca de soluções os Ndendeuli farão refe-

rência a normas e praxes amplamente aceitas nas sociedades, mas pode-

29

P. Stein, op. cit., pp. 16 e ss. Ver ainda R. Schlesinger, H. Baade, P. Herzog, E. Wise, Comparative Law, 1994, 80-1. 30

P. Gulliver, Disputes Settlements Whithout Courts: the Ndendeuli of Southern Tanzania, in: Law, Cul-ture and Society, L. Nader (org.), Chicago, 1969, p. 67.

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rão utilizar também outros argumentos, como a necessidade de proteger

os grupos existentes e a harmonia da sociedade em seu conjunto”31.

Entre os Tiv, da Nigéria, na época em que tal população foi estuda-

da por Paul Bohannan, o domínio colonial já tinha imposto uma solução

das controvérsias de tipo jurisdicional. Nada obstante, a elaboração de

mecanismos decisórios judiciários é interessante observar o modo como a

escassa influência exercida pelo poder estatal colonial sobre as instituições

locais tenha, de fato, mantido entre os Tiv algumas características da solu-

ção de conflito típicas das sociedades de poder difuso. O tribunal indígena

instituído pelos ingleses – o jir mbatarev – apresenta uma forte comistão

de elementos tradicionais e modernos. Particularmente o aspecto tradicio-

nal pode ser percebido no caráter necessariamente conciliatório da deci-

são. Mesmo que o processo se desenrole na presença de um policial ar-

mado de bastão, o qual teria por tarefa fazer executar a sentença, esta é,

na realidade, reconhecida como válida e eficaz apenas se a solução pro-

posta pela corte recebe o assentimento por parte dos dois contendores.

Caso contrário, o caso é considerado como não-resolvido, eis que não é

sobre a coerção oriunda do uso da força pública estatal que o tribunal Tiv

funda sua própria capacidade de impor a decisão32. O caráter compromis-

sório que esta última assume implica, ademais, a possibilidade de a corte

ampliar o processo relativamente ao fato específico que constitui objeto da

disputa, bem como de recorrer a argumentos diferentes daqueles mera-

mente jurídicos para encontrar a solução a ser proposta. Antes, como sub-

31

P. Stein, op. cit., p. 8. 32

P. Bohannan, Justice and Judgement among the Tiv, Londres, 1957, pp. 60 e ss.

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linha Bohannan, a decisão final do jir muito raramente faz referência a

normas jurídicas: “A finalidade da maior parte do jir é a de determinar um

modus vivendi: não a de aplicar o direito, mas a de decidir aquilo que é jus-

to em um caso particular. Frequentemente os Tiv buscam tal finalidade

sem fazer qualquer referência explícita a normas ou „leis‟”33.

Entre os Gwembe Tonga, população estudada por quase quarenta

anos por Elisabeth Colson, a penetração do poder estatal é atualmente

evidente, sobretudo quanto ao modo diverso de gerir os conflitos relativa-

mente ao passado. O instrumento jurisdicional é atualmente o principal

modo de resolução das controvérsias. No passado o mecanismo de solu-

ção de conflitos mais utilizado era constituído pela tratativa pública entre

grupos familiares, durante a qual os membros mais velhos de cada grupo

especificavam as razões do litígio, declaravam as normas aplicáveis e

buscavam uma solução aceitável para ambas as partes. Em 1956, quem

não estivesse satisfeito com a solução negociada poderia recorrer à Chi-

ef‟s Court instituída pela administração colonial, então chamada local court,

junto à qual vigoravam algumas das formalidades típicas do modelo clássi-

co de legal process34. Tais formalidades são hoje próprias do headman‟s

court, corte do chefe de vilarejo, tornada parte da organização judiciária es-

tatal após 1991, na qualidade de tribunal de primeira instância. Como Col-

son nos faz observar, a mudança do modo de solução das disputas incidiu

em duplo sentido sobre os temas que são objeto de litígio. De um lado, as-

siste-se ao aumento de controvérsias sobre questões de bagatela, que em

33

Neste sentido, P. Bohannan, op. cit., p. 19. 34

E. Colson, The Social Organization of Gwembe Tonga, Manchester, 1960, pp. 171-176.

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outros tempos não teria podido constituir objeto de tratativa pública, posto

que dificilmente os litigantes teriam encontrado apoio de seus familiares

caso a disputa fosse considerada de pouca importância. De outro lado, a

decisão não mais assume caráter conciliatório; as partes são obrigadas a

apresentar no tribunal apenas os fatos relevantes para a causa, sem poder

apelar para aspectos mais gerais, relativos às suas relações recíprocas; a

corte pode julgar e decidir unicamente acerca das questões aventadas pe-

las partes; sobre os litigantes paira a ameaça do poder estatal para o caso

de serem violadas as formalidades processuais ou de não ser respeitada a

decisão da corte35.

Em conclusão, a tipologia das análises de campo relatadas, ao tes-

temunhas a passagem gradual dos modos informais de solução dos litígios

para uma solução de tipo jurisdicional torna óbvio o quanto a presença do

Estado constitua, simultaneamente, origem e explicação do modelo confli-

tual de resolução das controvérsias.

d) Regras jurídicas e princípios gerais não são, portanto, ausentes

nas sociedades sem escrita e sem Estado. Estas, como demontrara J. Go-

ody36, revestem simplesmente um papel e ocupam um espaço diverso –

mas nem por isso menos importante – no pensamento, nos discursos e na

prática relativamente ao que ocorre nas sociedades nas quais existem ju-

35

E. Colson, The Countenciousness of Disputes, in: Understanding Disputes, cit., 1995, pp. 65 e ss.; especialmente pp. 73-76. 36

J. Goody, The Domestication of the Savage Mind, Cambridge, 1977.

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ristas profissionais e sistemas sofisticados de elaboração e de verbaliza-

ção das normas. A enunciação das regras e dos princípios gerais na forma

que os torna compatíveis com o modelo clássico de legal process depende

de uma série de fatores.

Além da necessidade de escrita e de juristas profissionais é neces-

sário que questões referentes às particulares relações entre as partes não

assumam relevo na determinação da solução do conflito, que em tal caso

restaria muito singular para poder receber uma posterior aplicação. Ade-

mais, a verbalização de normas geralmente aplicáveis é ligada uma vez

mais à presença do Estado que, como nos ensina Paolo Grossi, em nome

da regra geral, abstrata e impessoal, esmaga toda particularidade concre-

ta37.

A rigidez do direito obtida através da enunciação e aplicação de re-

gras gerais e iguais para todos traz frequentemente consigo uma forte se-

paração entre a justiça produzida pelas cortes estatais e o sentimento po-

pular de justiça. A reaproximação entre uma e outra obtém-se, por vezes,

através do controle leigo sobre a aplicação do direito por parte de juristas

profissionais: o júri ou mesmo os juízes de paz em nossas sociedades es-

tatais constituem exemplos disso que se afirma.

Voltando à análise do conflito nas sociedades tradicionais, já se

narrou a forma como os antropólogos do direito o examinaram em sua

complexidade. Entre os diversos pontos de observação assumidos reves-

37

P. Grossi, L‟ordine giuridico medievale, Bari, 1995, pp. 54 e ss.

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tem-se de particular interesse, em nosso ponto de vista, o perfil da soleni-

dade e da importância das formas na resolução dos litígios e a inserção da

variável do tempo no estudo das controvérsias.

Elisabeth Colson, Phil Gulliver, Sally Falk Moore e Max Gluckman –

entre outros – estudam quais são os efeitos do respeito às formas sobre a

resolução do conflito. A solenidade do foro público – trate-se de negócio,

de mediação, de arbitragem ou de decisão jurisdicional – reveste-se de

importância determinante na obtenção da solução do litígio. O encontro

formal entre as partes evita o enfrentamento violento entre as mesmas. O

foro público modifica o tipo de argumentação utilizada para fazer valer as

próprias razões relativamente ao foro privado: os litigantes sabem que a

aceitação dos próprios pontos de vista depende da capacidade de cada

um de formulá-los em termos aptos a satisfazer o nível formal geralmente

exigido pela comunidade e necessário para convencer os próprios apoia-

dores e os demais38. Como ensina Max Gluckman, quer os litigantes, quer

os mediadores, e mesmo os órgãos públicos jurisdicionais buscam mos-

trar-se ao mesmo tempo rezoáveis e justos39. No foro jurisdicional, por ou-

tro lado, as formas desempenham o duplo papel de simbolizar o status da-

queles que julgam e de legitimar as suas decisões40. Recordar as perucas

do juízes ingleses parece ser útil.

38

Sobre o tema ver P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., 1979, p. 192. 39

Neste sentido, M. Gluckmann, The Reasonable Man in Barotse Law, in: 7 Journal of African Admin-istration, 1955, p. 51 e p. 127; e in 8 ivi, 1956, p. 101 e p. 151. 40

S. F. Moore, Individual Interests and Organisations Structures: Disputes Settlements as “Events of Ar-ticulation”, in: Social Anthropology and the Law, Hamnett (org.), Londres, 1977, p. 185.

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Parece igualmente evidente a razão da ausência daquelas perucas

se tratam-se de Law Lords: na condição de comitê do órgão legislativo em

função judicante, a House of Lords extrai alhures sua legitimação.

A simbologia das formas – na comunicação ou no comportamento –

e seu respeito revelam-se, definitivamente, indispensáveis à solução do li-

tígio, determinando-lhe o grau de aceitação social.

Elisabeth Colson narra um episódio que exemplifica a questão. En-

tre os Gwembe Tonga da Zambia a corte do vilarejo é integrada pelo chefe

do vilarejo e por dois assistentes “a latere”. Quando julgam os casos que

lhe são submetidos os três sentam-se sobre assentos, ao passo que os

contendentes fazer valer suas próprias razões sentados sobre o chão. Em

1992 uma conflito público teve como protagonistas dois homens que goza-

vam de particular prestígio: um por ser o mais rico membro da comunida-

de, o outro por ter feito carreira na polícia nacional. Isso levou os magistra-

dos a permitir que os litigantes também sentassem sobre assentos: erro fa-

tal. Decaída a simbologia da inferioridade espacial cai por terra também a

legitimação dos juízes para resolver a contenda. Os juízes parecem, pe-

rante a comunidade, como homens do mesmo nível dos litigantes, com de-

feitos morais ainda piores do que os destes, cuja palavra não vale mais do

que a das partes em lide: o caso permanece irresolvido entre os insultos

gerais41.

41

E. Colson, The Contentiousness of Disputes, cit., pp. 77-79.

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Acerca da necessidade de analisar o conflito levando em conta a

variável tempo, insiste mais de um antropólogo do direito. Hoebel e Lle-

wellyn são criticados por Laura Nader porque “utilizam em sua análise ca-

sos referentes a um período de tempo de setenta anos, comprimindo-os

em uma dimensão de presente etnográfico”42. Sally Falk Moore explica-nos

que “em uma Antropologia dinâmica, o período do estudo etnográfico é

concebido como um momento em uma história mais longa, independente-

mente do fato de que uma sequência possa ou não ser observada. Os de-

senvolvimentos futuros sempre fazem parte do presente etnográfico”43.

De um lado, portanto, enfatizar a dimensão tempo significa colocar

em foco a necessidade de observar o conflito em uma perspectiva históri-

ca, que leve em conta a existência de fatores externos aptos a produzir

uma mutação no modo de solução da controvérsia. O impacto do colonia-

lismo ou mesmo da filosofia missionária-cristã no direito consuetudinário

africano44 e o impacto da penetração do Estado em sociedades anterior-

mente carentes de organização centralizada – com tudo o que o dado

comporta em termos de regras sobre a propriedade da terra e das águas,

da falência dos liames familiares, da competição entre direito estatal e ou-

tros direitos – estão entre os fatores que não podiam permanecer fora do

estudo antropológico do direito, mesmo que orientado pelo paradigma da

controvérsia.

42

L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II Lição. 43

S. F. Moore, Imperfect Communications, in: Understanding Disputes, cit., 1995, p. 32. 44

M. Cannoch, Law, Custom and Social Order: The Colonial Experience in Malawi and Zambia, Cam-bridge, 1985.

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Por outro lado, a consideração do fator temporal permite relativizar

o significado que a solução do conflito parece assumir no imediato45. Um

exemplo vale por todos. No seu primeiro volume sobre os Lozi da ex-

Rodésia do Norte – atualmente Zâmbia – no qual havia utilizado material

colhido durante os anos 1940, Max Gluckman descreve com grande ênfa-

se e riqueza de detalhes uma decisão da corte local (“The case of the He-

adman‟s Fishdams”)46, que nos é apresentada como fruto de um delicado

compromisso entre as partes, em testemunho da capacidade da solução

judicial africana de restaurar o equilíbrio social e normativo por meios con-

ciliatórios47. Sua volta aos Lozi em 1965 reserva-lhe, no entanto, uma

amarga surpresa: o aparente feliz compromisso não fora senão uma ilusão

momentânea, porque as partes não tinham realmente achado a solução

aceitável, tanto que uma havia matado a outra certo tempo após a decisão

do tribunal48.

Exatamente a tomada de consciência do afastamento entre solução

jurídica de um problema e sua solução social, leva Gulliver a refutar a ex-

pressão “dispute settlement” enquanto sinônimo de repacificação das par-

45

Acerca deste ponto basta indicar, eis que bastante evidentes, os paralelismos com a intenção mani-festada pela maior parte do movimento realista norte-americano, de “sair das bibliotecas” para seguir a controvérsia em seus desdobramentos posteriores relativamente à “solução” jurisdicional. Ver W. Twin-ing, Karl Llewellyn and the Realist Movement, cit.; G. Tarello, Il realismo giuridico americano, Milão, 1961; U. Mattei, Stare Decisis, Milão, 1988. 46

Em M. Gluckmann, The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia, Manchester, 1955, pp. 178 e ss. 47

De modo semelhante daquilo que se viu ocorrer junto aos Tiv estudados por Paul Bohannan, e tam-bém junto ao Lozi da Zâmbia, a elaboração de um mecanismo decisório de tipo judicial não coincide, realmente, com a aceitação de um modelo conflitual de resolução da lide. Isso pelo menos em todas as ocasiões em que os vínculos entre as partes sejam complexos, ou seja, quando os contendores man-tenham relações permanentes: nesta hipótese, explica-nos Gluckman, o objetivo da conciliação torna-se imprescindível para os juízes Lozi. 48

M. Gluckman, The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia, Manchester, 1967, p. 432.

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tes49. A constatação de que o próprio fato de levantar uma questão instiga

as partes a pensar e a explicitar as razões do conflito vem acompanhada

da convicção de que mesmo a forma mais conciliatória entre os modos

tradicionais de solução de controvérsias possa comportar um comprome-

timento das relações entre os indivíduos ao final50. Abre-se assim o cami-

nho para o estudo de métodos menos explícitos de enfrentar os conflitos. A

partir da análise das hipóteses nas quais as partes não têm interesse na

resolução de uma controvérsia, porque podem optar por não ter mais rela-

ções recíprocas (caso de algumas populações nômades)51, passa-se ao

estudo dos contextos nos quais o litígio explícito não é socialmente aceitá-

vel, como entre os Batistas do Sul dos Estados Unidos da América52, ou

ainda nos casos nos quais o contraste assumido entre as partes é evitado

através de um silêncio e aparente desinteresse pela injustiça sofrida, que

pode conduzir silenciosamente ao ostracismo53. Poder-se-ia falar de for-

mas “mudas” de solução de litígio54. Estamos, de todo modo, distantes do

paradigma da controvérsia em sua formulação clássica. Tal paradigma,

ademais, já havia sido vítima dos ataques de grande parcela dos estudio-

sos da antropologia jurídica.

49

P. Gulliver, Disputes and Negociations, cit., 1979, pp. 78 e ss., p. 169 e p. 184. 50

Acerca deste ponto, além de P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., p. 128, veja-se S. F. Moore, Individual Interests, cit., 1977, p. 186 e E. Colson, The Contentiousness, cit., 1995, pp. 69 e ss. 51

Entre os pigmeus da África central é comum, em uma fase inicial do desacordo, armar as tendas de forma que a abertura de uma não fique voltada para a abertura da outra. Se, posteriormente, nem mesmo a intervenção do “bufão”, dirigida a desdramatizar e ridicularizar o conflito, terá eficácia, a solu-ção final não poderá ser outra senão aquela de procurar um novo grupo ao qual seja possível associar-se. 52

C. Greenhouse, Interpreting American Litigiousness, in: History and Power in the Study of Law: New Directions in Legal Anthropology, J. Starr e J. F. Collier (orgs.), Ithaca, 1989. 53

B. Yngvesson, The Atlantic Fishermen, in: The Disputign Process, Law in Ten Societies, L. Nader e H. Todd (orgs.), Nova Iorque, 1978, pp. 59 e ss. 54

Aqui a referência que se faz é a Rodolfo Sacco, evidentemente, Il diritto muto cit.

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3. As críticas ao uso do “case method approach” não tardaram, em

realidade. Já Malinowski, em um de seus últimos escritos – uma recensão

do trabalho de Hoebel e Llewellyn sobre os Cheyenne – evidenciara como

o método casuístico utilizado pelos dois autores padecia de um defeito de

perspectiva limitada sobre o direito, que dele derivava. Para Malinowski, a

par dos denominados trouble-cases era necessário estudas os chamados

trouble-free cases. Um quadro que tivesse dato conta do direito de uma

sociedade somente no momento de sua violação, e não no momento de

sua observância, resultaria inevitavelmente incompleto. O reconhecimento

da dificuldade de descobrir as regras jurídicas voluntariamente observadas

em uma sociedade sem escrita, sem códigos, sem juristas profissionais,

não reduzia a exigência de identificar as normas jurídicas que regulavam

realidades jurídicas acerca das quais a conflitualidade aberta fosse escas-

sa ou inexistente. Entre os Cheyenne este era o caso, por exemplo, do se-

tor relativo à propriedade, cujas regras os autores não conseguiam identifi-

car em função da falta de um número consistente de controvérsias explíci-

tas sobre o tema. O apelo de Malinowski por um estudo do sistema jurídico

como parte de um sistema mais amplo, compreensivo relativamente aos

vários mecanismos de controle social, encontrou guarida por parte de

quem, como Elisabeth Colson, fez uso do chamado método casuístico am-

pliado. O estudo etnográfico do direito não mais ficara confinado à análise

dos meios institucionais de resolução de conflitos. Se o direito não deveria

ser estudado de maneira isolada relativamente aos demais sistemas de

controle55, é sobretudo na estrutura social e cultural que se deveria buscar

55

“O estudo etnográfico do direito não é simplesmente um estudo das instituições jurídicas, e os siste-

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as dinâmicas relativas à observância voluntária das normas. A importância

de que, sob tal perspectiva, revestem-se as relações de troca recíproca e

os liames de lealdade estabelecidos na sociedade dos planaltos de Tonga,

estudada por Colson, evidencia as razões da conformidade voluntária para

com as normas por parte dos membros daquela comunidade. A observân-

cia voluntária das normas e das formas de solução do conflito que poderí-

amos chamar de “mudas” – não-institucionais, implícitas – são categorias

bastante próximas. Além das hipóteses nas quais o conflito não assume

forma explícita e não chega às sedes institucionais em virtude da operação

de fatores sócio-culturais como aqueles indicados – que levam as partes a

arrefecer logo ao nascer da possível controvérsia –, o método casuístico

alargado permite aos antropólogos do direito identificar outros sistemas

não-institucionais de resolução de conflitos. Aos estudos sobre a tratativa,

a mediação, a arbitragem, a decisão jurisdicional, se seguem, então, aque-

les sobre os mecanismos de ridicularização das partes, do uso de sistemas

de arrefecimento do conflito, da ênfase sobre o sentimento de vergonha,

que propiciam a obtenção de uma solução não-verbalizada da controvér-

sia. A ampliação do espectro dos modos de solução de conflito traz consi-

go um interesse pela identificação das estratégias subjacentes à escolha

entre os mesmos por parte dos protagonistas do litígio. Uma vez mais são

os fatores sócio-culturais que atraem a atenção dos antropólogos do direi-

to.

mas jurídicos constituem apenas uma parte de sistemas mais amplos”, afirma L. Nader, verbete Antro-pologia giuridica cit., p. 136.

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No rastro das indicações fornecidas por Max Gluckman56 descobre-

se como em uma situação de relações recíprocas complexas – i.e., na qual

os litigantes tenham fortes interesses comuns (econômicos, familiares, cul-

turais, etc.) – as partes recorram com maior facilidade a uma solução ne-

gociada da controvérsia. A necessidade de manter sãos os vínculos recí-

procos e o desejo de prosseguir, no futuro, com a própria relação, os esti-

mulará a buscar uma solução de tipo conciliatório57. Se, contrariamente, os

vínculos entre as partes são menos significativos, os litigantes recorrerão

mais facilmente a sistemas mais conflituais de solução da controvérsia, tais

quais a arbitragem ou o recurso à jurisdição de um órgão público, mos-

trando-se dispostos a aceitar uma decisão voltada a dar razão, de maneira

drástica, a um ou a outro58. O desenvolvimento de uma teoria relacional

dos mecanismos de solução dos litígios – baseada na observação de que

o tipo de relação entre as partes condiciona o tipo de procedimento adota-

do concretamente – será acompanhado dos estudos de quem não se satis-

faz com a explicação da queda em um ou outro método de solução de con-

trovérsias em termos puramente objetivos. Laura Nader, Harry Todd59,

June Starr, Barbara Yngvesson60, entre outros, chamam a atenção para os

protagonistas da contenda, sobre os “titulares do direito”, para dar uma

resposta mais complexa ao fenômeno. Starr e Yngvesson esclarecem co-

mo além do tipo de relação entre as partes – simples ou complexa –, o ob-

56

M. Gluckman, The Judicial Process, cit., 1955, passim 57

Parecem evidentes os nexos com a distinção, muito difundida na Análise Econômica do Direito e na Teoria dos Jogos, entre relações “one shot” e relações continuadas. Ver, para uma introdução básica, R. Cooter, T. Ulen, Law and Economics, Glenview, 2 ed., 1996. 58

Por todos, veja-se L. Nader, verbete Antropologia giuridica, cit., p. 137. 59

Nader-Todd (orgs.), The Disputing Process, Law in Tem Societies, Nova Iorque, 1979. 60

Starr-Yngvesson, Scarsity and Disputing: Zeroing in on Compromise Decisions, in: American Ethnol-ogist, 3, (II), 1975, pp. 553 e ss.

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jeto da disputa pode ser determinante na escolha do modo de solução do

litígio. Assim, se a controvérsia envolve valores particularmente cruciais –

como a propriedade de um bem imóvel, o acesso ao poder, o prestígio no

interior do grupo – as partes poderão ser levadas a preferir a solução de ti-

po conflitual à de tipo conciliatório para garantir para si o sucesso na dispu-

ta, ainda que isso implique a ruptura em suas relações sociais. A chave de

leitura proposta por Nader, por sua vez, baseia-se principalmente sobre as

relações de poder entre os contendores, que fazem suas escolhas em fun-

ção das relações de força recíprocas61. Na nova perspectiva, a ênfase é

colocada realmente sobre as partes como protagonistas ativas na constru-

ção do sistema jurídico. Fala-se, portanto, de “actor oriented approach”.

Ainda nos anos setenta, todavia, ao lado daqueles que souberam

desenvolver a orientação de raio amplo de Malinowski, permaneciam – en-

tre os antropólogos do direito – aqueles que continuavam a se declarar fi-

éis ao método casuístico puro. A tensão entre os primeiros e os segundos,

grosseiramente referidos uns a Malinowski e outros a Max Gluckman e a

Paul Bohannan (por terem os últimos utilizado o case-method approach no

estudo dos casos solucionados pelos tribunais dos Lozi e dos Tiv), explode

no ano de 1977, durante o congresso da associação dos antropólogos

americanos acerca do significativo tema “Rules v. Power”. Alguns anos

mais tarde os tons do debate foram amenizados e o trabalho de John Co-

maroff e Simon Roberts, Rules and Processes62, é testemunho do reencon-

61

L. Nader, Harmony and Ideology: Justice and Control in a Mountain Zapotec Village, Stanford, 1990; Id., Civilization and its Negotiations, in: Understanding Disputes, cit., 1995, pp. 39 e ss. 62

Publicado em Chicago em 1981.

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tro do equilíbrio entre as orientações que anteriormente se debateram.

Atualmente é possível para S. F. Moore afirmar que “atualmente, o velho

tema norms vc. power tem escasso significado e não oferece qualquer

resposta. Adquire cada vez mais a imagem de falsa oposição sempre exis-

tente. É evidente, de fato, que power e norms podem estar em jogo atual-

mente”63. A sábia constatação da famosa antropóloga de Harvard, no en-

tanto, não deve nos fazer perder de vista a importância que teve a passa-

gem de um estudo do direito como sistema em si para um estudo do direito

como sistema indissoluvelmente vinculado a outros mecanismos de contro-

le social, para a colocação da Antropologia jurídica entre as metodologias

de análise do direito capazes de superar o rígido positivismo ainda domi-

nante.

4. “A marginalização do direito como objeto de estudo”64, operada

pelo antropólogo-jurista através da ampliação da perspectiva de observa-

ção realmente permitiu à antropologia do direito que oferecesse respostas

às questões colocadas pelo realismo jurídico.

Uma rápida olhadela voltada ao passado faz-se necessária.

O iluminismo, com seu anelo em direção da racionalidade do siste-

ma e sua ênfase sobre o valor da certeza jurídica como se sabe havia

conduzido à identificação do direito com sua fonte. Naquela ótica, o direito

apresentava-se como inteiramente verbalizado e, para o jurista europeu-

63

Neste sentido S. F. Moore, Imperfect Communications, in: Understanding Disputes, cit., p. 30. 64

Trata-se de uma expressão empregada pela conhecida antropóloga do direito de Berkeley, Laura Nader, durante o evento VI Cardozo Lectures in Law, cit.

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continental, completamente contido nos códigos e na lei. A crença na com-

pleta verbalização do direito e a convicção de que as normas escritas e

aplicadas coincidissem se harmonizavam bem com a exigência de que o

direito fosse certo. Mas na França François Gény já deveria destruir aber-

tamente a ilusão iluminista. O juiz, explica-nos ele, não é a mera “boca da

lei”65.

O mundo do common law, de sua parte, já tinha tido que acertar

suas contas com os vários Bentham e Austin, os quais, erguendo o véu

ficcional da teoria declarativa66, tinham contribuído no sentido de instigar

os tribunais ingleses a vincular-se rigidamente aos próprios precedentes

para assegurar a certeza do direito, que eles, diversamente, não estavam

mais formalmente em condições de garantir.

Ao realismo jurídico sueco e norte-americano caberia dar o golpe

de misericórdia na convicção de que norma enunciada e norma aplicada

coincidissem. Os realistas nos ensinam que existem dinâmicas ocultas,

não raro arbitrárias – além de não verbalizadas – que presidem a vida jurí-

dica. A decisão concreta, nos dizem eles, mesmo que formalmente reivin-

dique sua origem nos princípios estabelecidos pelo legislador ou na regra

enunciada por este ou por aquele precedente jurisprudencial oculta uma

escolha que encontra sua verdadeira fonte alhures. Donde a dissociação

65

A redução de todo o direito ao texto como estratégia de legitimação do jurista romanista é enfatizada atualmente por Antonio Gambaro, in: A. Gambaro, R. Sacco, Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996, pp. 240 e ss. Veja-se, ainda, P. G. Monateri, Il modello di civil law, in: A. Procida Mirabelli di Lauro (org.), Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996. 66

De acordo com a qual os magistrados, ao declararem a norma jurídica aplicável ao caso que lhes é submetido nada mais fariam senão trazer à luz aquele conjunto de imutáveis em vigor desde sempre que constituem o common law.

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entre law in action e law in the books, e donde, ainda, os problemas de le-

gitimação do juiz ocidental em efetuar escolhas em nome e por conta da

coletividade.

Os caminhos percorridos pelo vários movimentos pós-realistas nor-

te-americanos tiveram todos como última parada a busca de uma resposta

às questões de fundo postas pelo realismo. Se os Critical Legal Studies

assumem, relativamente ao tema, uma posição cética e pós-moderna, in-

capaz de restituir legitimação às escolhas do juiz ocidental67, caminhos

mais construtivos foram percorridos por outros filões da cultura americana.

Assim a análise econômica do direito coloca-se em busca da coerência,

vindo a encontrá-la na eficiência econômica das normas que regem o direi-

to68; os mecanismos institucionais e seu desenvolvimento possibilitam à

escola do Legal Process de Harvard o encontro de uma legitimação do sis-

tema jurídico em sua estrutura69; o papel desempenhado pela tradição ao

guiar e organizar as escolhas do juiz é, ao final, reivindicado por mais de

uma corrente de pensamento70.

A passagem de um estudo antropológico do direito centrado no pa-

radigma da controvérsia para a análise atenta às dinâmicas externas ao

67

Ver G. Marini, Ipotesi sul metodo nel diritto privato. Piccola guida alla scoperta di altri itinerari, in: Riv. Crit. Dir. Priv., 1990, p. 343. 68

Ver R. Pardolesi, verbete Analisi economica del diritto, in: “Digesto”, 4. ed., Discipline privatistiche, Turim, 1995. 69

W. Eskridge, P. Frickey, The Making of Legal Process, 107 Harvard L. R., 2031, 1994. Sobre o tema, remete-se ainda a P. G. Monateri, Pensare il diritto civile, Turim, 1995. 70

Refiro-me, aqui, entre outros, a K. Llewellyn, autor de The Common Law Tradition, Deciding Appeals, Boston, 1960; a G. Fletcher, Introduzione elementare alla scienza giuridica, in: Il Cardozo Lectures in Law, P. G. Monateri e U. Mattei (orgs.), Pádua, 1991; Id., Basic Concepts of Legal Theory, Oxford, 1996; e A. Barak, La discrezionalità del giudice, in: Giuristi stranieri di oggi, C. Mazzoni e V. Varanno (orgs.), com apresentação de A. Gambaro, Milão, 1996.

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conflito institucionalizado permite ainda à Antropologia jurídica inserir-se

entre os movimentos culturais que buscam oferecer uma resposta constru-

tiva às questões postas pelo realismo jurídico.

A prova que com The Cheyenne Way Hoebel e Llewellyn fornece-

ram sobre a existência de uma law in action confirma-se com a teoria de

que a vida do direito é uma variável independente de sua verbalização,

mas não oferecia ainda explicação alguma sobre as dinâmicas subjacentes

à law in action em si. Somente a Antropologia posterior buscará resolver

problemáticas do gênero.

O antropólogo do direito pode contar, para a execução de tal tarefa,

com a facilidade decorrente do fato de que suas pesquisas o colocam em

contato com sociedades nas quais dificilmente ocorreu o divórcio, comum

no mundo jurídico ocidental, entre direito e tradição71. A ausência, nesses

contextos, de uma linha de demarcação nítida entre norma jurídica e nor-

ma social, entre norma jurídica e norma religiosa, entre juiz e chefe tradici-

onal, assim como a ausência de um jurista profissional que tenha imper-

meabilizado formalmente o direito relativamente aos demais mecanismos

de controle social, tornam mais fácil a identificação daqueles fatores sócio-

culturais que contribuem para com a determinação das dinâmicas e das

escolhas jurídicas também no mundo ocidental, mas que entre nós operam

de maneira extremamente criptotípica (oculta). Donde o grande interesse

71

Sobre o tema, veja-se A. Gambaro, Il successo del giurista, in: Foro it., 1983, V, pp. 85 e ss.; H. Ber-mann, Law and Revolution, The Formation of Western Legal Tradition, Cambridge, Mass., 1983, pas-sim; U. Mattei, Verso una tripartizione non eurocentrica dei sistemi giuridici, in: Studi in memoria di Gino Gorla, Milão, 1994, vol. I, p. 775. Ver, ainda, A. Gambaro, R. Sacco, Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996, pp. 41 e ss.

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teórico de uma “análise antropológica do direito” que reivindique, ao lado

dos demais movimentos “law and ...” um papel como metodologia idônea

de ser aplicada a todo o campo.

5. a) Os antropólogos do direito do Século XX desenvolveram suas

investigações junto aos sistemas ditos tradicionais, os quais, no entanto,

em contato estreito com a crescente globalização, continuam desapare-

cendo gradualmente.

O grande desafio dos jusantropólogos do Século XXI consiste, por-

tanto, em identificar o rumo futuro de sua disciplina.

Da micro-antropologia deve-se passar à macro-antropologia, asse-

veram os estudiosos da matéria, pretendendo com isso colocar em primei-

ro plano a exigência de abandonar o estudo exclusivo das sociedades

“primitivas” para passar a um estudo antropológico do direito de alcance

pleno. A questão que então se coloca é: qual o papel que pode ser de-

sempenhado pela Antropologia na análise da western legal tradition?

Certamente aos estudos antropológicos do direito referiu-se e con-

tinua a referir-se mais de um movimento de reforma nos países ocidentais.

A reavaliação do material antropológico com finalidades de reforma

do direito por parte de juristas não-antropólogos esteve à base, por exem-

plo, da introdução do sistema da Alternative Dispute Resolution nos Esta-

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dos Unidos da América. Aplicado às mais variadas situações conflituais –

de problemas de vizinhança às questões relativas à tutela dos consumido-

res ou ainda à tutela ambiental, bem como nas relações intra-societárias –

o instrumento da ADR teve como insuspeito inspirador Philip Gulliver e seu

estudo sobre a negociação, como explica Nader72. Os anos 1970 e 1980

assistem surgir na América um amplo movimento direcionado à pacificação

e à substituição dos métodos conflituais de resolução das controvérsias

por métodos de feição mais conciliatória. O desejo de encontrar uma solu-

ção para o problema da ineficiência e insuficiência do sistema jurisdicional

leva o então Chief Justice da Suprema Corte Federal Warren Burger a de-

clarar: “Os nossos predecessores distantes abandonaram lentamento o tri-

al by battle e os demais métodos bárbaros de resolução dos conflitos; tam-

bém nós devemos abandonar a confiança plena no instrumento conflituoso

para resolver todo tipo de controvérsia”73. A privatização da justiça – por

meio da mediação, da arbitragem ou da conciliação – constitui a forma de

diminuir a pressão sobre as cortes e, obviamente, os estudos antropológi-

cos que haviam indicado de que forma a harmonia poderia ser restabeleci-

da entre as partes, também mediante o compromisso e não apenas atra-

vés do recurso à jurisdição e à execução forçada das decisões, oferecem

argumentos convincentes para os defensores da filosofia da ADRNT.

72

Ver L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II lição. 73

Neste sentido, W. Burger, Annual Message of the Administration of Justice, Warren E. Burger, Chief Justice of the United States, no congresso da American Bar Association, 12 de fevereiro, 1984. NT

ADR, sigla do Alternative Dispute Resolution (Solução Alternativa de Controvérsias), movimento em prol da adoção de meios alternativos de solução de litígios.

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A Antropologia jurídica representa uma boa fonte de soluções tam-

bém em outras ocasiões nas quais o direito oficial ocidental se mostra em

crise. Assim, por exemplo, na Austrália os estudos etnográficos sobre o di-

reito tradicional são levados em conta por quem propõe, e consegue, en-

tregar os aborígenes, declarados pela cortes estatais culpados de fatos

criminosos específicos, às tribos de pertença, a fim que de nela lhes seja

aplicada a sanção tradicional74.

O recurso aos estudos antropológicos do direito mostra-se útil, ain-

da, nas hipóteses nas quais o Estado promove um “desjurisdicização” de

fatos criminosos, favorecendo a mediação entre autor e vítima do crime, de

modo que o ressarcimento voluntário do dano substituam, mesmo que in-

formalmente, a sanção penal. A transação penal, como forma de concilia-

ção substitutiva da ação judicial, começa a desenvolver-se no Canadá, nos

Estados Unidos e na Inglaterra já nos anos 1970. Mais recentemente re-

corre-se a ela para evitar a ação penal, ou ainda para evitar a aplicação da

pena, em França, na Finlândia, na Holanda, na Bélgica, na Áustria e mes-

mo na Alemanha, embora neste último sistema o exercício da ação penal

revele-se obrigatório. Por vezes a possibilidade de uma transação penal é

oficialmente limitada à hipótese em que o autor do delito seja menor75.

74

E. Venbrux, R. Silverman, M. Nielsen (orgs.), Aboriginal Peoples and Canadian Criminal Justice, To-ronto e Vancouver, 1992, in: Commission of Folk Law and Legal Pluralism, Newsletter XXVI, novembro de 1995, pp. 45 e ss. 75

Sobre tais temas remete-se a J. Pradel, Droit pénal comparé, Paris, 1995, pp. 147 e ss. e bibliografia ali citada.

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Os estudos de todos aqueles que, na esteira de Émile Durkheim76,

teorizaram a evolução de uma lógica punitiva para uma lógica compensa-

tória, em proporção direta com o crescimento em termos de “civilização” de

determinada sociedade, parecem conferir uma legitimação culturalmente

prestigiosa àquelas políticas do direito que objetivam transformar a sanção

penal em sanção civil através de mecanismos “mediadores” lato sensu,

como os indicados77. Donde opera-se a devolução de novos espaços para

a análise antropológica, espaços que no entanto parecem mais abertos no

plano da política do direito do que no cognoscitivo.

Sem aqui indagar além acerca de fenômenos que nos levariam lon-

ge com toda certeza, aquilo que é premente evidenciar como o direito esta-

tal dos países ocidentais recorre à Antropologia em função da solução de

problemas contingentes, de crescimento excessivo, poder-se-ia dizer, para

os quais qualquer proposta criativa poderia parecer aceitável. Nada obs-

tante, e ainda no plano da política do direito, os riscos culturais dessas

operações não podem ficar ocultos. A institucionalização de processos de

origem tradicional e espontânea não poderá senão subverter a estrutura de

maneira irremediável.

A experiência da redução a escrito dos costumes africanos no perí-

odo colonial deveria ter ensinado uma lição difícil de esquecer.

76

E. Durkheim, De la division du travail social, Paris, 1893. 77

A esta temática, à qual estarei dedicando aprofundamentos futuramente, fiz menção em: Ai confini della responsabilità. Prime riflessioni per un programma di ricerca in diritto comparato, in: Rass. Dir. Civ., 1995, pp. 857 e ss.

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b) Se, portanto, o futuro da Antropologia jurídica não parece residir

em uma utilização “domesticada” dos mecanismos tradicionais de controle

social, tampouco se crê que a estrada para o futuro dos estudos antropo-

lógicos possa ser vislumbrada como a melhor compreensão que através

dos mesmos se possa obter acerca dos problemas de convívio entre tradi-

ções jurídicas diversas. Não parece competir à Antropologia jurídica encar-

regar-se de descobrir se e de que maneira o direito estatal de determinado

país deva resolver questões relativas ao reconhecimento do instituto da

poligamia quando praticada por um muçulmano residente em um país eu-

ropeu, ou ainda se e de que modo o direito oficial francês ou belga deva tu-

telar a imigrante africana repudiada, ou mesmo de que forma tal direito de-

va gerir as lides oriundas dos ritos de vodu praticados pelo vizinho.

Certamente um conhecimento do direito e da cultura das tradições

diferentes da western legal tradition é útil para enfrentar temas que fre-

quentemente colocam-se com maior propriedade no plano do direito inter-

nacional. Todavia reduzir o estudo jusantropológico ao campos de proble-

mas análogos limita-o muito fortemente em suas potencialidades.

Pela mesma razão, igualmente reducionista nos parece o objetivo

de quem identifica as possibilidades de sobrevivência da disciplina aqui

discutida78 na existência de “blocos culturais em condições de expressar

diferentes estilos normativos”79.

78

É este o ponto de vista de Riccardo Motta, o qual, na ótica de uma macrocomparação de modelos ju-rídico-culturais, questiona-se se também o estilo jurídico navajo poderia ser validamente comparado com os três blocos culturais analisados por Clifford Geertz (veja a nota seguinte), concluindo com a ob-

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Não há necessidade, em essência, de uma competição ou intera-

ção entre tradições jurídicas diferentes, particularmente entre as ocidentais

e as demais, para justificar a utilidade dos estudos antropológicos do direi-

to. Mesmo se a western legal tradition acabasse por operar uma ocidenta-

lização global do direito – de modo que, por exemplo, hipoteticamente, o

Navajo common law, com suas cortes, não se distinguisse mais do com-

mon law do Estado do Arizona, de Utah e assim por diante, ou ainda os ín-

dios Iroqueses Mohawk aceitassem a total homogeneização com os que-

bequenses ou com os canadenses, ou ainda os ciganos tivessem de

abandonar suas tradições jurídico-culturais – a Antropologia jurídica man-

teria ainda plena legitimação científica.

E isso por dos motivos.

servação de que “trata-se da comparação entre blocos exóticos, como os geertzianos, ou do confronto entre estilos jurídicos ocidentais e Mixed Native Jurisprudence, como no caso do Hozho e dos Navajos (o contraste entre a harmonia tradicional e o „jogo de soma zero‟ do direito norte-americano moderno) e sua classificiação provisória em algum lugar da Southwestern Jurisprudence, compreensiva das ex-pressões jurídicas e doutrinárias de Arizona, Utah, Novo México e Colorado, bem como as federais, ou ainda o jogo de encaixes e tolerâncias das relações entre os Mohawk, ou mesmo entre seus represen-tantes de Quebec e do Canadá, as linhas incertas das fronteiras interculturais, acompanhadas das dife-renças muito mais nítidas de seus núcleos ético-jurídicos indicam um caminho (provavelmente não tão nova) certamente eficaz para estudos comparativos sobre diferentes culturas jurídicas e sobre suas bases étnico-culturais, explícitas e implícitas. Enquanto existirem blocos culturais capazes de expressar diferentes estilos normativos, subsistirão as razões para as pesquisas sobre cultural boundary zones, que gradualmente substituem-se no âmbito das pesquisas antropológicas aos territórios etnográficos clássicos. Vale dizer, subsistirão razões também para sustentar que existe um potencial científico e di-dático que os estudos antropológicos e comparativos do direito ainda podem desenvolver.” R. Motta, Intorno ai concetti giuridici e antropologici, Occidente e altri “blocchi culturali” a confronto, in: Materiali per la storia della cultura giuridica, pp. 417 e ss., especialmente pp. 436 e ss. 79

Faz referência à noção de “blocos culturais”, entre outros, Clifford Geertz, em um conhecido ensaio intitulado Local Knowledge, Fact and Law in Comparative Perspective, in Id., Local Knowledge, Further Essays in Interpretative Anthropolgy, Nova Iorque, 1983, no qual o autor compara três “blocos culturais” correspondentes ao estilo judiciário no mundo de cultura islâmica (o Haqq), no mundo de cultura india-na (o Dharma), bem como no mundo de cultura maltesa (o Adat).

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Antes de mais nada, como nos ensina Laura Nader, a Antropologia

jurídica nas sociedades complexas pode ser utilizada na perspectiva de um

“studying up”. “O que aconteceria se, na reinvenção da Antropologia, os

antropólogos estudassem os colonizadores em lugar dos colonizados, a

cultura do poder em vez daquela dos que não têm poder, a cultura dos ri-

cos em lugar da dos pobres?”80. O método etnográfico, explica-nos a fa-

mosa antropóloga do direito de Berkeley, pode ser aplicado de maneira útil

para a compreensão das dinâmicas subjacentes ao direito ocidental. “Es-

tamos nos especializando para compreender culturas inteiras em um con-

texto intercultural. Deveremos então nos encontrar perfeitamente à vonta-

de na tarefa de descrever e estudar as law firms como sociedades secre-

tas, de tentar analisar os liames de poder ao descrever aqueles comporta-

mentos consuetudinários que são absolutamente indispensáveis para

compreender, por exemplo, os mecanismos existentes por trás do funcio-

namento do Congresso... O antropólogo deveria, mais do que qualquer ou-

tro, em função de sua própria compreensão do princípio da reciprocidade,

estar em condições de analisar a razão pela qual as decisões dos Federal

Communication Commissioners poderiam ser „racionais‟”81, afirma Nader,

que prossegue indicando exemplificativamente os diversos âmbitos de

aplicação de um studying up: as instituições jurídicas ocidentais, sua buro-

cracia, as public agencies e seu funcionamento. A perspectiva do antropó-

logo, que aplique às próprias instituições a técnica de observação “partic i-

pante” utilizada no estudo das instituições jurídicas das sociedades tradic i-

80

L. Nader, Up to the Anthropologist, Perspectives gained from Studying up, in: Reinventing Anthropol-ogy, D. Hymes (org.), Nova Iorque, 1972, p. 289. 81

L. Nader, Up to the Anthropologist, cit., p. 293.

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onais, ao laicizar o direito ocidental, tornando-o menos uma prerrogativa

apenas da classe dos juristas, contribui para uma melhor compreensão e

um maior conhecimento de nosso “estilo jurídico”. É nesta linha de pensa-

mento que Laura Nader enfrenta o tema da harmony ideology.

A ideologia da harmonia, que nos anos 1970 e 1980 domina a bus-

ca norte-americana de métodos alternativos de resolução de controvérsias

deságua, como se indicou, no incentivo ao uso de procedimentos extraju-

diciais de tipo conciliatório. A arbitragem e, ainda mais, a mediação e a ne-

gociação entre as partes, são os métodos de resolução das controvérsias

encorajados pela harmony ideology, na ótica de uma superação da solu-

ção de tipo conflitual que dá lugar obrigatoriamente à jurisdição estatal.

O momento de maior sucesso, nos EUA, da corrente de pensamen-

to conhecida como “ADR Movement”, coincide, como ensina Nader, com

um exportação da mesma filosofia em âmbito internacional. Em 1985, ob-

serva a estudiosa, a administração Reagan retira-se do acordo de subme-

ter-se voluntariamente à jurisdição da Corte Internacional de Justiça: “O fa-

to foi provavelmente a mais visível continuidade de uma tendência mais

ampla que fez escola entre os membros da ONU, que tinha registrado uma

constante redução do número dos Estados que concordavam e submeter-

se à jurisdição obrigatória da Corte Internacional”82. No âmbito internacio-

nal, portanto, a negociação entre as partes toma o lugar do recurso à deci-

são da Corte de Haia.

82

L. Nader, Civilization and its Negotiations, cit., p. 44.

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O que oculta a passagem do método conflitual de resolução das

controvérsias para o conciliatório?83 O que se esconde em essência dentro

da ideologia da harmonia dominante, pergunta-se Laura Nader. Um pers-

pectivo histórico-comparativa, unida à aplicação do método etnográfico ao

direito das sociedades complexas possibilita à Antropologia jurídica colocar

em evidência as lógicas subjacentes às escolhas relativas ao processo de

solução de conflito a ser adotado.

A ideologia da harmonia acaba por ser indicada, assim, como meio

de controle social e parece a detentora de uma ideologia que já era própria

dos missionários nos territórios colonizados, funcional relativamente à ma-

nutenção do poder na lógica hegemônica do mais forte. A ênfase no valor

da harmonia nas relações entre as partes oculta, na interpretação de Na-

der, o desejo de não modificar as relações de poder existentes, com evi-

dente vantagem para aqueles que já são detentores de tal poder84. A sin-

tonia com a análise dos Critical Legal Studies é, aqui, mais do que eviden-

te.

c) A análise antropológica do direito oficial, do direito dos juristas

cultos não é, todavia, o único caminho aberto para a Antropologia jurídica

83

O leitor verá como o binômio resolução judicial versus negociação não exaure o espectro das alter-nativas possíveis. Os Estados soberanos sempre terão aberto o caminho do conflito armado, de modo que a própria noção de conflito, tal qual utilizada por Nader, parece um tanto imprecisa. 84

Nader, L. Civilization and its Negotiations, cit., e Id., Harmony Ideology, cit., 1990.

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do futuro (um futuro hipotético no qual se assista à globalização e à homo-

geneização das culturas e das tradições jurídicas).

Laura Nader declara a inadequação dos estudos etnográficos tradi-

cionais para a construção de modelos válidos para o estudo da sociedade

moderna ocidental. A despersonalização típica da sociedade de massa im-

pediria que possam aí operar os mecanismos de controle social típicos das

sociedades tradicionais, caracterizadas, contrariamente, por fortes liames

sócio-políticos dos seus componentes85. Consequentemente a estudiosa

limita ao estrato oficial do direito a própria investigação antropológica da

western legal tradition.

O direito, todavia, mesmo na tradição ocidental – os estudos antro-

pológicos já o ensinaram – não é apenas aquele dos legisladores, dos juí-

zes, das cortes e dos juristas. O direito oficial não coincide com a totalida-

de do fenômeno jurídico. Rodolfo Sacco nos diz: “É possível um direito não

verbalizado? Eu somente posso me fazer a pergunta oposta. É possível

um direito completamente verbalizado? ... Eu duvido que exista ou possa

existir um direito inteiramente verbalizado”86. E ainda “Em todo ordenamen-

to dotado de um legislador e de jurista culto sobrevivem elementos jurídi-

85

« Law in face-to-faceless societies, characterized by unequal distribution of power, does not lend itself easily to the solutions for handling disputes in small face-to-face communities where power differential are less. Ethnografic studies of law often remove law from the center of the study, because, in societies where people share common social and political linkages, generalized social control results. In such set-tings, gossip and public opinion help detter socially harmful behavior and serve to direct disputes. How-ever, the more attentive we become to settings were law or governmental social control reigns, in plac-es where there are fully developed nation states, the more our studies center around law to the exclu-sion of other systems of social control. Then the traditional ethnographic studies of particular societies no longer provide a model”. L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II lição; id., Antropologia giuridi-ca, cit., p. 138. 86

R. Sacco, Modelli notevoli di società, cit., p. 42.

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cos pertencentes às fases mais primitivas... O Estado (italiano) julga gratui-

tamente qualquer conflito de interesses privados, mas coloca em operação

obstáculos importantes para dissuadir o jurisdicionado de acionar a Corte

(papel selado caro, custos de assistência legal, má qualidade dos serviços

judiciários; etc.): não faz sentir aqui seu peso, sem que se possa percebê-

lo, o tácito desejo de poder afastar-se das disputas dos particulares? E, ao

menos, não seria verdadeiro, talvez, que somente um percentual mínimo

dos conflitos seja resolvida pelo órgãos do Estado? E que muitas vezes

uma desaprovação social bastante evidente atinja quem toma a iniciativa

da ação judicial?”87.

Se, portanto, o Estado não resolve senão uma mínima parcela dos

conflitos e se, como é confirmado por Peter Stein, os rastros dos antigos

métodos de resolução das controvérsias “frequentemente sobrevivem

mesmo quando institui-se um mecanismo estatal de resolução dos confli-

tos”88, isso significa que na tradição ocidental ladeia o direito oficial um ou-

tro direito, diferente daquele do jurista culto, de fonte não-estatal89.

87

R. Sacco, Il diritto muto, cit., p. 693. 88

P. Stein, I Fondamenti, cit., p. 3, mas também a p. 15. 89

A propósito, ademais, veja-se em profundidade P. Grossi, L‟ordine giuridico medievale, cit., pp. 19 e ss. O grande historiador do direito, na esteira da proposta pluralista formulada por Santi Romano na obra L‟ordinamento giuridico (Florença, 1946, 2. ed.), nos lembra que, “se é verdade encontra nos dias atuais „normalmente‟ no legislador e na administração pública seus produtores habituais, é igualmente verdadeiro (e o fato é atualmente indiscutível) que a produção do direito é privilégio essencial de qual-quer aglomeração social que pretenda viver plenamente sua própria liberdade na história... E é direito, portanto, não apenas aquele produzido pela macro-entidade estatal, mas também aquele produzido por uma gama de ilimitado e ilimitável de estruturas sociais nas quais pode encontrar lugar, em determina-das condições, como a comunidade internacional, uma confissão religiosa, a família e a denominada comunidade criminosa, bem como as diversas aglomerações privadas.”

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A verbalização de uma parte de tal direito “mudo” é tarefa da Antro-

pologia jurídica, que na busca das regras fundamentais valer-se-á do mé-

todo comparativo. Por outro lado, como se foi demonstrado recentemen-

te90, uma abordagem à comparação jurídica que descurasse os aspectos

mudos (não-verbalizados) seria gravemente deficitária tanto no plano heu-

rístico quando no plano taxinômico91.

Mais de um Antropólogo do direito fez uso da comparação.

Max Gluckman confrontou o direito dos Barotsi do então Norte da

Rodésia com o direito ocidental para demonstrar a comparabilidade de du-

as tradições, uma das quais denegrida e desvalorizada pela outra. Os Lozi,

que consistem na tribo mais culta e dominante entre os Barotsi, ao decidi-

rem judicialmente as controvérsias, acabam por fazer uso de conceitos e

categorias jurídicas análogas àquelas próprias da tradição ocidental. Parti-

cularmente o princípio da razoabilidade constitui, de acordo com a exposi-

ção de Max Gluckman, um critério universal comum à maior parte dos sis-

temas jurídicos92.

São notórias as críticas feitas sobre o tema por Paul Bohannan re-

lativamente às dificuldades comparativas. Ao sublinhar a unicidade das ca-

tegorias e dos valores próprios de cada cultura, Bohannan sustenta a im-

90

J. Vanderlinden, Comparer les doits, Diegem (Bélgica), 1995, pp. 397 e ss. 91

Significativamente tal ensinamento, absorvido pela escola comparatista italiana, foi valorizado no Ja-pão, onde o convívio de um estrato jurídico oficial e de um estrato jurídico informal (giri) é ainda mais evidente. Ver Kitamura, Brèves réflexions sur la méthode de comparaison franco-japonaise, in : Rev. Int. Dir. Comp., 1995, p. 861. 92

M. Gluckman, The Judicial Process cit., 1955, especialmente o capítulo III.

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possibilidade de traduzir e comparar as categorias conceituais de cada tra-

dição sem deformar-lhes o significado. Os resultados aos quais Gluckman

havia chegado constituíam, para Bohannan, uma ilusão de ótica, devida ao

fato de que, traduzindo para o inglês os conceitos jurídicos lozi, Gluckman

os teria ocidentalizado, desnaturando-os93.

É justificável com tal propósito recordar a lição que os seminários

de Cornell havia dado a todos que se propusessem à comparação para

permitir-lhes superar mais de um problema de tradução jurídica94.

Philip Gulliver coteja as transações jurídicas que desenvolvem-se

entre os Arusha da Tanzânia com as transações que desenvolvem-se en-

tre os trabalhadores da industrializada América do Norte, chegando à con-

clusão de que existe um modelo de negociação comum a todas as tradi-

ções jurídicas, cujas fases são muito similares, não obstante a diversidade

do objeto da controvérsia95.

Laura Nader confronta o sistema jurídico zapoteca do sul do México

com o sistema jurídico norte-americano sob a perspectiva do acesso à jus-

tiça. Suas conclusões são no sentido de que os Zapotecas têm acesso ao

direito, ao passo que os cidadãos americanos não. Os últimos, com efeito,

não conhecem o funcionamento de seu próprio sistema jurídico e frequen-

93

P. Bohannan, Ethnography and Comparison in Legal Anthropology, in: Law in Culture and Society, L. Nader (org.), Chicago, 1969, pp. 401 e ss. 94

A temática da homologação dos dados estruturais não-homogêneos, tanto no interior quanto no exte-rior da western legal tradition, já é enfrentada com notável proficiência na introdução de R. Schlesinger (org.), Formation of Contract. An Inquiry into the Common Core of Legal Systems, 2 v., Nova Iorque, 1967. 95

P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., 1979.

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temente não podem ser permitir o recurso a um jurista profissional, único

oráculo do direito ocidental, em função do alto custo da prestação profissi-

onal96.

A comparação na qual se pensa nesta sede tem finalidade diversas

dos perseguidos por Max Gluckman, Philip Gulliver e Laura Nader. Não se

trata, com efeito, de evidenciar as falhas do sistema jurídico ocidental ou

de demonstrar que sistemas jurídicos diversos dos nosso são igualmente

dignos de interesse científico, ou ainda de descobrir qual sistema seja me-

lhor ou pior. Trata-se, na realidade, de observar nosso próprio sistema

através dos “óculos” teoréticos fornecidos pelo aparato antropológico. Os

modos de solução das controvérsias típicos das sociedades tradicionais,

sejam eles institucionalizados ou não, sobrevivem também em nossa tradi-

ção: os estudos etnográficos sobre sociedades tradicionais nos servem de

espelho que reflete os elementos que estão presentes em nosso sistema,

mas que se tal espelho permaneceriam invisíveis97.

Verbalizar as normas criptotípicas, isto é, ocultas, que regem a

maioria das agregações sociais intermediárias que compartilhas os mes-

mos valores socioculturais (pense-se na família, nas organizações profissi-

onais, na comunidade acadêmica, nas comunidades constituídas pelos

membros de uma faculdade, nos escritórios de advocacia, etc.) torna-se

mais fácil quando aquelas normas e aqueles mecanismos de solução das

96

L. Nader (org.), No Acces to Law, Alternatives to American Judicial System, Nova Iorque, 1980; Id., Up to the Anthropolgist, cit., p. 300. 97

Por último, decorrem ainda deste aspecto de self-reflection as mais importantes potencialidades da comparação. J. Langbein, The Influence of Comparative Procedure in the United States, in: 43 Am. J. Comp. Law, 1995, pp. 545 e ss.

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controvérsias são observados em sua operação alhures, em contextos

com os quais o jurista culto ainda não os relegou à esfera do não jurídico.

Os estudos da estratificação do direito na África98 nos servem, então, para

evidenciar a competição e a interação de modelos e de tradições jurídicas

existentes também em nosso direito, mas que no contexto africano resul-

tam muito mais evidentes em função da maior concentração temporal du-

rante a qual fizeram seu aparecimento. Os estudos sobre modos informais

de resolução das controvérsias nas sociedades tradicionais, especialmente

em se tratando de processos não institucionalizados, nos esclarecem so-

bre os mecanismos atuantes em nível de agregações sociais intermediá-

rias de nossa sociedade.

A abordagem denominada actor oriented propicia o esclarecimento

a forma como, também em nosso sistema, o recurso à jurisdição do Estado

não é senão um – talvez o mais drástico – entre muitos mecanismos de so-

lução do conflito à disposição das partes99, as quais efetuam uma escolha

em favor da decisão jurisdicional legitimando, no fundo, o juiz da tradição

ocidental, cuja neutralidade e legitimação para decidir em nome e por con-

ta da coletividade fora colocada em dúvida pelo realismo jurídico.

98

Remete-se a R. Sacco, Il diritto africano, Turim, 1995; M. Guadagni, Il modello pluralista, in: A. Proci-da Mirabelli di Lauro, Sistemi Giuridici Comparati, Turim, 1996. 99

Pense-se, por exemplo, na experiência do frequente recurso à jurisprudência estatal que a academia italiana está vivendo atualmente: esta surge como LA SPIA do funcionamento falho dos tradicionais mecanismos de solução de controvérsias de tipo conciliatório (mecanismos mudos, negociação, medi-ação), que anteriormente operavam de maneira eficaz. Tais mecanismos são descritos, em um modelo antropológico simplificado, por U. Mattei e P. G. Monateri, Faculty Recruitement in Italy: Two Sides of the Moon, in: 41 Am. J. Comp. Law, 1993, pp. 351 e ss.; veja-se, ainda, V. Zeno-Zencovich, Pubblica-zioni concorsuali e deflorestazione, in: “Contratto e impresa”, 1993, p. 355.

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Em síntese, em um direito que “tornar-se-á provavelmente cada vez

menos estatal”100, não apenas a Antropologia jurídica tem um futuro, mas

mostra-se como o futuro do direito.

100

Neste sentido, R. Sacco, La circulation du modèle juridique français, Rapport de Synthèse, nos anais do encontro da Associação Henri Capitant, 1994, p. 13.