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A Construção da Telerrealidade: O Caso Linha Direta Sonia Montaño 1

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A Construção da Telerrealidade:

O Caso Linha Direta

Sonia Montaño

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Sumário

Resumo ............................................................................................................................................................ 3

Introdução........................................................................................................................................................ 4

1 Televisão e realidade .................................................................................................................................... 6

1.1 A sociedade transparente ............................................................................................................... 6

1.2 A telerrealidade.................................................................................................................................... 10

1.2.1 O telejornalismo ................................................................................................................... 16

2 TV e sociedade no Brasil ............................................................................................................................. 22

2.1 O Brasil pós-64. A televisão e a TV Globo................................................................................. 22

2.2 O Brasil na Globo........................................................................................................................... 25

2.2.1 A cena brasileira na teledramaturgia .................................................................................. 26

3 Telerrealidade no telejornalismo da Globo..................................................................................................... 29

3.1 O Padrão Globo de Qualidade ..................................................................................................... 29

3.2 O telejornalismo na Globo............................................................................................................ 33

3.2.1 O programa Linha Direta ..................................................................................................... 36

4 Telerrealidade no Linha Direta ......................................................................................................... 41

4.1 Elementos enunciadores do programa ........................................................................................ 42

4.1.1 Introdução ............................................................................................................................. 42

4.1.2 Abertura ................................................................................................................................. 43

4.1.3 As vozes no Linha Direta ..................................................................................................... 44

4.1.3.1 Vozes do programa ................................................................................................ 45

4.1.3.2 As vozes “reais” ...................................................................................................... 47

4.2 Linha Direta, jornalismo e notícia.................................................................................................. 51

Considerações finais.......................................................................................................................................... 55

Referências bibliográficas .................................................................................................................................. 57

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A autora é jornalista formada na UNISINOS e atua no Setor de Comunicação do Instituto Hu-manitas Unisinos.

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Resumo

A construção da telerrealidade: o caso Linha Direta

é o Trabalho de Conclusão do Curso de Ciên-

cias da Comunicação, habilitação: Jornalismo,

de minha autoria, finalizado em novembro de

2002, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos

– UNISINOS, sob a orientação da Profa. Dra. Su-

zana Kilpp.

O objeto deste trabalho é o estudo da realida-

de televisiva, ou telerrealidade, nos modos como

aparece especialmente no programa Linha Direta,

um programa veiculado pela TV Globo, desde

maio de 1999. O trabalho situa a TV na sociedade

brasileira, e a sociedade brasileira na TV, mais es-

pecificamente na emissora de maior audiência, a

Rede Globo de Televisão. Analisa a forma de a

Globo retratar o Brasil na teledramaturgia e no

telejornalismo e, de maneira especial, analisa um

determinado programa do Linha Direta, desde as

teorias do jornalismo e da notícia, até os concei-

tos de drama e espetáculo.

Através desta análise cheguei a perceber um

modelo de sociedade concebido pela Globo. Um

único enunciador com diversos enunciados so-

bre a justiça, sobre a emissora, sobre a sociedade,

sobre a mídia e a tecnologia, sobre as instituições

tradicionais e sobre os poderes públicos; sobre o

público e o privado.

Linha Direta é, portanto, um espaço de muitas

vozes, de muitos ruídos, mas também é exata-

mente nesse ruído que acontece o silenciamento

das histórias e das pessoas referidas, cujos relatos

e depoimentos não conseguem ser suficiente-

mente “poderosos” para concorrer com a tecno-

logia que atinge mais eficazmente os sentidos do

telespectador.

Um resumo deste trabalho foi apresentado no

evento IHU Idéias do Instituto Humanitas Unisi-

nos, no dia 20 de março de 2003, e posteriormen-

te publicado na terceira edição de Cadernos IHU

Idéias, sob o título O programa Linha Direta: asociedade segundo a TV Globo.

Sonia Montaño

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Introdução

Ao iniciar esta pesquisa, o fiz com a intuição

de que a realidade mostrada na televisão não era

um simples reflexo de acontecimentos externos a

ela (no caso do telejornalismo) ou internos a ela

(programas como os de entretenimento, teleno-

velas, etc). A intuição era de que haveria alguma

coisa a mais, um macrodiscurso que envolveria

esses e todos os programas, algo próprio da tele-

visão, uma realidade em si mesma, construída

pela TV. Uma realidade complexa, com uma lógi-

ca própria, mas que, ao mesmo tempo, investia

muito (e nessa época não sabia quanto, como e

por que) na pretensão de ser reflexo fiel da reali-

dade, ou mais ainda, levada à máxima perfeição

técnica, pretendia ser “a” realidade.

Minha curiosidade girava especialmente em

torno da Rede Globo de Televisão cuja lideran-

ça absoluta parecia transcender uma simples

concorrência com suas pares. Além de ter mais

audiência que as outras emissoras, a impressão

era que ela ia muito mais longe, no sentido de

concorrer também com outras entidades que, de

alguma maneira, formulam, explicam ou cons-

troem a sociedade e fazem o Brasil. Por outro

lado, o fato de eu ser estrangeira me dá um certo

estranhamento e distância com o Brasil apesar

de estar nele, distância que, por estar cheia de

afeto por sua gente, se transforma em curiosida-

de e tentativa de compreender o País, suas histó-

rias, suas culturas, sua gente. Junto com toda

essa auto-observação, notei que uma das tentati-

vas mais fortes, mais claras (ou transparentes) e

mais insistentes de “explicar-mostrar” o Brasil

era a da Globo.

Ao tentar transformar essas intuições em pro-

jeto de pesquisa, assinalei como problema a exis-

tência dessa realidade criada pela televisão que

defini como telerrealidade e tomei como objeto

com a perspectiva de saber: O que é a telerrealida-

de? Qual é a sua lógica? Através de que mecanis-

mos ela é construída na tevê brasileira?

Como objetivo geral, delimitei o estudo dos

mecanismos usados pela Rede Globo de Televi-

são para criar a telerrealidade no programa Linha

Direta, programa da emissora que, baseado em

casos reais de crimes não resolvidos pela polícia,

realiza em torno deles uma construção cheia de

elementos ficcionais. O projeto encaminhava a

pesquisa para descobrir como e por que o pro-

grama realizava aquela construção.

Além de analisar as estéticas e mecanismos

usados no programa Linha Direta para construir

sua telerrealidade, me propunha, também, com este

trabalho, situar a importância da televisão na his-

tória recente da sociedade brasileira e estudar a

forma de fazer televisão e de fazer telejornalismo

da Rede Globo de televisão.

Ao longo de alguns meses, diversos autores,

conversas e sobretudo a observação da TV e seus

programas me ajudaram a me aproximar muito

mais dessa telerrealidade e conhecer, um pouco

mais, seus mecanismos, suas estéticas, suas possi-

bilidades e suas pretensões.

O resultado dessa reflexão foi estruturado ao

longo das próximas páginas da seguinte forma:

O primeiro capítulo tenta fazer algumas rela-

ções entre televisão e realidade. Nele são aborda-

das uma série de características que dão à TV ab-

soluta visibilidade e, portanto, a ilusão de uma so-

ciedade transparente completamente visibilizada

na tela. Ainda neste capítulo, tento abordar al-

guns dos mecanismos da telerrealidade: como é

construída; como acontecem as relações de tem-

po e espaço nela e como são os habitantes dessa

telessociedade. Essa telerrealidade inclui diversos gê-

neros e discursos, por isso ainda neste capítulo é

abordado o telejornalismo, espaço televisivo por

excelência para mostrar (ou mais bem construir)

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a sociedade. Este gênero é estudado aqui desde as

diversas teorias do jornalismo e da notícia.

O segundo capítulo relaciona o Brasil e a tele-

visão brasileira. Ele parte de uma tentativa de si-

tuar a sociedade brasileira nas décadas em que

chegou a televisão ao País, mas especialmente a

partir do regime militar, com o grande impulso

que ele deu ao desenvolvimento da TV para criar,

através dela, um imaginário de Brasil unitário.

Essa construção é assumida e levada à prática

pela Rede Globo de Televisão, que se transforma

no lugar onde acontece o “novo” Brasil e que cria

cenas de um sentimento de brasilidade que é ali-

mentado com diversas referências à realidade

brasileira citadas em sua programação. Aqui há

um olhar especial para a cena brasileira na tele-

dramaturgia da Emissora.

Já o terceiro capítulo aborda a forma de a

Rede Globo construir sua telerrealidade. De manei-

ra geral, o Padrão Globo de Qualidade, marca in-

dustrial e identidade visual da Rede, constitui-se

no “material” com o qual é construída a telessocie-

dade Global. O capítulo aprofunda ainda a forma

de construir a notícia no telejornalismo da emis-

sora. Neste capítulo é apresentado o programa

Linha Direta, sua história, suas características,

aqueles elementos que são comuns a todos os

programas da série e que são fruto da compara-

ção de seis programas exibidos ao longo de 2002.

O quarto e último capítulo consiste numa aná-

lise do programa exibido no dia 25 de abril de

2002, no qual tento examinar o programa desde

os capítulos anteriores especialmente no que se

refere à relação entre realidade e ficção, a cons-

trução da notícia desde as diversas vozes que se

debatem na arena do telejornal, desde as teorias

do jornalismo, do drama e do espetáculo.

Finalmente, enumero algumas considerações

finais, ainda que não definitivas pois as que ficam

em aberto dariam muitas páginas a mais, ou até

novos trabalhos.

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1 Televisão e realidade

O vídeo da TV já é o único olho do homem,e disso deriva o fato de que a TV é a realidade,

e que a realidade é menos que a TV.(do filme Videodrome, de Cronenberg)

A televisão não é um simples espaço de passa-gem da realidade. Ela cria uma realidade própriaque, ao mesmo tempo em que escolhe maneirasde representar a realidade dentro da tela, interagecom os acontecimentos externos a ela, na socie-dade e na história.

Através de um ritmo frenético e incessantede sucessão de fragmentos encadeados, a TVdesperta um encantamento que faz com que aspessoas assistam TV antes de assistir aquelesprogramas por ela veiculados. Para muitas pes-soas, a programação televisiva funciona – comopodia ser antes com outras instituições – comoum marcador de tempo. Um relógio que servepara definir compromissos profissionais e so-ciais (depois da novela das oito, antes do Fan-tástico, etc).

A tevê apresenta um efeito de realidade quenão está dado somente por algumas semelhançasque o mundo televisivo tem com o mundo forada tela. Trata-se de uma forma de visibilização dasociedade que parece estar toda ali, na tela, muitomais do que fora dela. A tevê, dessa forma, con-corre com a realidade.

Nas próximas páginas, tentarei abordar algunsdos mecanismos televisivos que são usados paraconstruir a telerrealidade.

1.1 A sociedade transparente

A cultura visual, de maneira especial no cinemae na televisão, apresenta o desejo de reconstruir,de alguma forma, a realidade a partir de dentro.

Trata-se da tentativa de realizar, com a câmera,uma perfeita ilusão do mundo perceptivo.

Já Benjamin (1987, p. 189) descrevia em deta-lhes o potencial do cinema de mostrar o imper-ceptível com a dinâmica de seus décimos de se-gundo que fez saltar o mundo carcerário de nossos bares,de nossos escritórios e habitações, de nossas estações e fábri-cas, que pareciam aprisionar-nos sem esperança. E agoraempreendemos, entre seus escombros dispersos, viagens deaventuras. Barbero e Rey (2001, p. 27) avaliam queo crescimento do sentido para o igual no mundodo qual o cinema fazia parte estava triturando aaura de um tipo de arte, que era o eixo do que as elites ten-deram a considerar cultura.

Para Lúcia Santaella (1989, p. 90), se o cinemajá permite um aprofundamento da percepção eutiliza instrumentos destinados a penetrar maisintensivamente no coração da realidade, os mate-riais e técnicas da televisão elevam esse potenciala uma grandeza inimaginável.

Mas, nessa tentativa de relação entre culturavisual e realidade, o cinema e a televisão encon-tram semelhanças e diferenças. Quando o cine-ma nasceu foi em forma documental. Contudo,as imagens de Lumière estão longe de ser simplesrecriações da realidade. Apesar de os assistentesdas primeiras projeções dos irmãos Lumière te-rem fugido apavorados diante do trem que“avançava” até eles, assim como outras anedotasque mostram o espanto dos espectadores diantedos “homens em pedaços” quando assistiam pelaprimeira vez o primeiro plano, esses fatos nãomostram outra coisa do que o estranhamentodiante do desconhecido, uma percepção ainda

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não desenvolvida . E como disse Canevacci (2001,p. 134), os espectadores normais precisaram modificar seumodo de percepção e de interpretação.1

Lumière inventou os efeitos de realidade. Suasimagens seduziam por suas minúcias, por sua ca-pacidade de captar uma grande quantidade de de-talhes, como a perfeição com que se percebe ovento agitando as folhas das árvores, a fumaça, osreflexos. E precisamente essa minuciosidade ul-trapassa a realidade e, portanto, distingue-se dela.Para José Luis Fecé (1998, p. 4), a semelhança en-tre o universo filmado e o mundo real, produzidapelo mecanismo da câmera cinematográfica, ou-torga credibilidade a esse espaço virtual, distin-guindo-se este da realidade filmada, sem atrai-çoá-la, ainda que se apoiando nela.

Segundo o autor, essa distância, que nãopermite confundir os dois espaços, é construí-da com elementos como, por exemplo, o “fora-do-campo”, que é o lugar do potencial, do vir-tual, mas também da desaparição e da ausência:lugar do futuro e do passado, sendo o campo o lugar dopresente (Ibid)2.

O que interessa destacar é que os efeitos derealidade coexistem com efeitos de ficção, e queestes têm a ver com esse espaço virtual, não visí-vel na tela, embora presente na mente do espec-tador, que constitui o fora-do-campo. Dito deoutro modo, o cinema não funciona completa-mente sobre a absoluta visibilidade, sobre a evi-dência da imagem, mas a televisão, sim.

De que maneira, então, acontece essa visibili-dade? A pergunta é especialmente válida quandose pensa na classificação de McLuhan (1964, p.351) da TV como um meio frio, de baixa defini-ção, o que não parece corresponder a uma au-to-evidência, já que a imagem deve ser completa-da por um alto grau de envolvimento do teles-pectador. A luz que atravessa um anteparo forma umaimagem de três milhões de pontos por segundo, (ima-gem-chuveiro). O telespectador, ao recebê-los, capta algu-

mas poucas dúzias, com as quais forma uma imagem.McLuhan (Ibid, p. 352) atribui a esse fato a cria-ção de uma participação convulsiva e sensorialpor parte do espectador.

Mas o caráter auto-evidente das imagens nadatem a ver com o grau de sua definição. A visibili-dade televisiva é uma construção técnica e estéti-ca. Nessa construção, há um primeiro aspecto aassinalar: para atingir o grande público, é precisofacilitar a compreensão. Os acontecimentos de-vem apresentar-se em sua máxima visibilidade,ou seja, que se reduza ao máximo sua complexi-dade. O objetivo da visibilidade não é o conheci-mento, e sim o reconhecimento. E, para favore-cer esse reconhecimento, a imagem deve perdersua complexidade e se tornar transparente. Have-ria, então, uma sociedade transparente, que po-deria ser totalmente vista (e, portanto, compreen-dida) na televisão.

O regime da visibilidade televisiva supõe umhipotético acesso ao mundo por uma transparên-cia deste, graças ao poder da imagem e, especial-mente, da transmissão ao vivo, que abordareimais adiante. A visibilidade procura colocar o es-pectador na situação de “testemunha” dessa so-ciedade transparente. Haveria uma identificaçãoentre o ver e o compreender, como se a simplespresença do sujeito frente a um acontecimentodeterminado bastasse para compreendê-lo. Nofundo, essa idéia reivindica uma confiança abso-luta na tecnologia.

Muniz Sodré (2002, p. 21) considera que a es-tética televisiva é uma estética das aparências,porque a representação é apresentativa. Isso sig-nifica que o mundo e o seu fluxo estão vincula-dos e estão quase presentes dentro de nossosolhos. Seguindo sua hipótese, o autor avalia que adimensão crítica e a dimensão argumentativa de-saparecem, enfraquecem nessa nova constelaçãoda representação apresentativa. Nem todos osautores concordam com a idéia de que seja essa a

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1 Esses fatos, longe de mostrar uma equivalência entre realidade e ficção por parte do espectador, são o indicativo de umprocesso histórico particularmente violento naquela época, que interferiu nos modos de percepção do real.

2 Para compreender, posteriormente, a visibilidade na qual a televisão se constrói, é interessante prestar atenção nesse fato:a vista de Lumière institui um campo visual e, com ele, um fora-de-campo, um “mais além” da imagem. E essa é a ima-gem do cinema, uma imagem “imperfeita”: sua presença impõe igualmente uma ausência.

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conseqüência da representação apresentativa daTV. Lúcia Santaella (1990, p. 89-90), por exem-plo, acredita que o potencial de aprofundamentoda percepção da TV seja tão grande que, para en-xergá-lo, é preciso ler o modo como essa lingua-gem se articula e transforma os mecanismos deapreensão e reação diante da realidade.

Para ela, mais do que a dimensão crítica enfra-quecer ou desaparecer, esses mecanismos deapreensão e reação diante da realidade estão mu-dando e, no meu entender, exigindo uma novaforma de crítica através do próprio ver, como su-gere Canevacci.

Seria uma posição sensível não tanto à semiótica, à esté-tica, à comunicação, quanto ao ato “passivo” de ver.“Fazer-se ver” (...) no sentido de desenvolver qualidadessensitivas fundadas nas percepções do olhar, na sensibi-lidade do ver, do transformar-se além do sujeito-em-vi-são, do mudar-se em ver, em coisa-que-vê. Tornar-seolhar, tornar-se olho, fazer-se (...) (2001, p. 14).

Para o autor, esse “fazer-se ver” significatreinar a auto-observação enquanto se observa.Seria estar totalmente dentro e totalmente forados fluxos visuais. Abrir as mercadorias visuaispara dissolver seus fetiches a partir do proces-so comunicativo.

Fora esse esclarecimento, extremamente útilpara a hora de analisar qualquer mercadoria vi-sual, volto a tentar compreender a sociedadetransparente desde um ponto de vista mais antro-pológico. Os habitantes dessa sociedade tambémse regem pelas mesmas regras de extrema visibili-dade e transparência da realidade televisiva. Parao antropólogo social Everardo Rocha (1995, p.99), a complexidade inexiste para as pessoas quevivem dentro da tela. Tudo é simples, pois seudestino, mais que isso – obrigação – é a de falarabsolutamente claro. Entre si e para fora. Paraele, os atores sociais que desfilam dentro da telaparecem substancialmente mais preocupadoscom a dimensão relacional da existência. O focoprincipal não está em qualquer investigação maisprofunda a respeito de sua dimensão interna.

O “espaço interno” de cada um deles não oferece ne-nhuma espécie de problema que não possa ser solucio-nado com rapidez e precisão. É tamanha a facilidade

com que eles entendem e resolvem seus dilemas que,do nosso ponto de vista, ali não pode haver “profundi-dade”, apenas “superfície”. São seres de ação, comuni-cativos e simpáticos. O centro valorizado do sistema é arelação, não o indivíduo (Ibid, p. 169).

Talvez, na construção do perfil dos habitantesda telerrealidade, a criação do primeiro plano tenhaajudado muito, e o protótipo desse perfil sejaJoan Collins, da forma como a descreve Cane-vacci (2001), produto dos eternos primeiros pla-nos do vídeo: eternos, imóveis, estupefatos.

Sua vídeo-máscara não faz a propaganda de mais nada,porque não esconde mais nada... verdadeira máscaramoderna, foi esvaziada de todos os aspectos de interna-lização e interioridade, como um animal empalhado.Para ela, existem somente internos. Ao laicizar a belezade Joan Collins, temos o triunfo da cultura do vence-dor, de toda governabilidade “pérfida” ou da perfídiade todo e qualquer governo.

Voltarei ao primeiro plano mais adiante.Estabelecidas algumas diferenças entre a te-

levisão e o cinema em relação à visibilidade etransparência das imagens, seria de grande utili-dade ver alguns aspectos em comum nos quais avisibilidade televisiva compartilha algumas ca-racterísticas formais com o realismo cinemato-gráfico, especialmente com o surgimento do ci-nema direto.

Essa corrente cinematográfica, que surgiu nosanos 60 e consolidou-se durante os anos 70 e par-te dos 80, aparece hoje como antecedente desse“realismo” midiático fundamentado na máximavisibilidade do mundo. Segundo Gilles Marsolais(apud Fecé, 1998, p. 8), o cinema direto designa umtipo de cine que capta de modo direto (“sobre o terreno”) apalavra e o gesto, graças a um material (a câmera e o mag-netófono) ligeiro, vale dizer, um cinema que estabelece umcontato “direto” com o homem, que procura conectar-se damelhor maneira possível com a realidade. Para Fecé(Ibid, p. 9), esse tipo de cinema não pretendemostrar a realidade de forma idealizada, mas, sim,delinear o problema da verdade no nível das rela-ções humanas.

Para o cinema direto, já não é necessário fa-lar ou comentar as imagens registradas pela câ-mera. A realidade se mostra e se enuncia. Fecé

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(Ibid, p. 6) interpreta esse enunciado como se jánão fosse necessário transformar o “mundo”;basta vê-lo, observá-lo. Essa concepção está mui-to perto da atitude intrínseca ao espetáculo, à pla-téia. Eu vejo uma certa oposição entre duas atitu-des até aqui abordadas e nelas encontro a diferen-ça do distanciamento crítico. A primeira seria asugerida por Canevacci através do ver e se vervendo; a segunda é a apontada por Fecé e seriaum ver restrito a mero espectador.

Se esse tipo de cinema pretende combater osjuízos prévios e as concepções apriorísticas, rei-vindica, talvez inconscientemente, uma socieda-de transparente3.

Na medida em que o cinema e a TV falam em“realidade”, poderiam estar entrando no terrenoético, já que a “realidade” traz implícita uma bus-ca de um ideal de verdade. Não são todas as ten-tativas de um ideal de verdade no cinema e na TVque passam por esse caminho. Exemplos disso,analisados pelo autor, são o Neo-Realismo Italia-no ou o Cinema Novo Brasileiro. Segundo Fecé,ambos buscam um ideal de verdade, mas não têmnada a ver com essa forma de ilusionismo queprocura fazer o espectador crer que é possívelconseguir uma suposta transparência da repre-sentação. Esses movimentos questionam a pleni-tude, a evidência das imagens. O cinema modernopropõe uma interpretação entre o real e a ficção, uma sub-versão da realidade e também uma erosão das convençõesficcionais. Crítica da transparência, mas também buscada possível transformação da sociedade (Ibid, p. 11).

Diante de tantos recursos que apresentam asociedade da imagem como uma realidade inape-lável, têm especial sentido as palavras de AndréBazin (cineasta que esboçara a teoria realista docinema) (apud Fecé, 1998, p. 11) sobre as rela-ções entre a imagem e a realidade. Recorda Bazinque o ato de filmar, na medida em que é uma ati-vidade humana, supõe uma subjetividade, umainterpretação (por exemplo, através do enqua-dramento) da realidade. Segundo ele, o crítico ediretor de cinema e um dos pioneiros do Nouvelle

Vague, Eric Rohmer, substitui a noção de realida-de pela de espaço. Para Rohmer, a essência do ci-nema não reside em uma hipotética relação está-tica com a realidade, mas, sim, na construção deum espaço virtual. Tanto Bazin quanto Rohmerdistinguem a objetividade mecânica (da câmera)do realismo psicológico. A “realidade” não se fazna película, mas na consciência do espectador edo cineasta, vale dizer, do sujeito.

O autor (Ibid, p. 3) encerra sua reflexão, lem-brando que toda imagem (fotográfica, cinema-tográfica ou videográfica, e eu acrescentaria aimagem captada pelo olho humano) desvelauma realidade preexistente capturada e manifes-ta também a presença de um pensamento, deuma subjetividade.

Uma forma de criticar a transparência dasimagens, como sugeria Canevacci, poderia sercomo Deleuze (1987, p. 36-37) a recomenda:

Às vezes, se necessita restaurar as partes perdidas, reen-contrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que sesubtrai dela para fazê-la “interessante”. Mas, às vezes,pelo contrário, há que fazer furos, introduzir vazios eespaços brancos, rarefazer a imagem, suprimir delamuitas coisas que se lhe haviam incorporado para nosfazer crer que se via tudo. Há que dividir ou construir ovazio para reencontrar o inteiro.

Voltando ao cinema direto, como antecessorda visibilidade televisiva, podemos encontrarmais uma chave de leitura dada por Canevacci(2001). Para ele, o cinema direto reflete a realida-de com um leque de metodologias diferentes.Em todas elas, o autor chama a atenção para ouso da voz em off como um recurso que ajuda aconstruir a auto-evidência do mostrado.

O recurso cumpre a função de invisível autoridade ex-terna; possui, com freqüência, o poder de apresentar-secom a força auto-evidente de uma objetividade incon-testável, de tal forma que o ponto de vista ético estabe-lece uma relação ambivalente com o visível, em que oobservado é muitas vezes relegado a mero pano de fun-do de documentário (Ibid, p. 167).

Ou seja, para o autor, o recurso cria um am-biente que coloca o caráter incontestável da ima-

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3 Por que a sociedade desconfiaria de um cinema que não toma partido e se contentaria em restituir tudo aquilo que a câ-mera registra? O cineasta da evidência, do mesmo modo que o repórter, tende à invisibilidade.

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gem em primeiro lugar, e o que é mostrado naimagem, em segundo lugar.

No cinema direto, apesar de que a preocupa-ção esteja voltada para a representação da realida-de, a relação fundamental se estabelece entre su-jeito e objeto (a câmera do sujeito que filma comseu ponto de vista e o objeto da tomada). ParaCanevacci, o que determina essa relação são osmovimentos de câmera, enquadramentos e mon-tagem, mas tudo isso pode encontrar, na voz emoff, a expressão mais clara do desnível em favor dasubjetividade da câmera. Dessa premissa, deduzimosque a voz em off, para além do que diz, nos “fala” da re-lação que o observador deseja estabelecer com o observado,do ponto de vista do sujeito sobre o objeto (Ibid, p. 162).

Uma das metodologias possíveis no cinemadireto, segundo o autor, é o cinema direto ficção.Através da ficção, se constroem cenas da vidareal como se não fosse um fingimento. Esse re-curso é freqüentemente usado no telejornalismo.Essas observações do antropólogo visual serãomuito valiosas para a desconstrução do programaque é objeto de análise neste trabalho.

Até aqui poderia se concluir que, se Lumiérefoi elogiado por conseguir imagens e sons realis-tas, a televisão injeta nas imagens efeitos de rea-lismo. Seria muito mais realista partir de que asimagens só falam de si mesmas. Nesse sentido,Canevacci (Ibid, p. 345) fala de novas e mutantes for-mas de ideologia que se recusam a submeter o todo à parte ea justificar esses mecanismos para achatar-se dentro dosfragmentos da nova cultura visual.

Esse “todo” televisivo esconde algo essencialda TV: seu caráter de mediação, ou seja, sua esco-lha permanente de enquadramentos que revelamopções estéticas e éticas. O fato de mostrar queessas escolhas são tais revelaria que seriam possí-veis outras escolhas e, retomando Canevacci, re-verteriam a ideologia televisiva.

O fato de o discurso da comunicação televisi-va não apresentar ao espectador realidades media-das e sim “verdades indiscutíveis” faz com queele acesse o mundo através dessas representaçõesque aparecem como verdadeiras. De acordo coma hipótese de Canevacci (Ibid, p. 245), as imagensmidiáticas em movimento estão envolvendo toda

a cultura da vida quotidiana, transformando-a emcomunicação. Parece que o indivíduo contemporâneonão tem uma dimensão subjetiva, familiar ou amistosa, anão ser que seja mediada por imagens visuais.

Pelas razões mencionadas até aqui, possoconcordar com Fecé (1998) que o discurso sobrea visibilidade ou a sociedade transparente e, im-plícito nele, o discurso sobre a confiança absolutana tecnologia, deveriam se contrastar mais fre-qüentemente com outros que questionassem aplenitude, a evidência das imagens. O autor lem-bra que, se as ficções do visível proporcionam aoespectador a ilusão de que é possível ver tudo, narealidade as instituições selecionam e autorizamtudo aquilo suscetível de ser mostrado.

1.2 A telerrealidade

O surgimento da televisão coincide com umaépoca de tentativas teóricas de compreensão dasmassas. Martín-Barbero (1997) enumera diversasleituras que os teóricos europeus fazem do fenô-meno. Tanto os de esquerda como os de direita,embora com pontos de vista bem diferentes,mostram um sentimento de degradação e depre-ciação pelas massas. Para os teóricos norte-ame-ricanos dos anos 40-50 (no contexto dos EUApós-guerra, onde o eixo da economia se deslocade lugar e desloca sua reflexão), a cultura de mas-sas representa a afirmação e a aposta na socieda-de da democracia completa.

A síndrome de “liderança mundial” que os norte-americanos adquiriram por esses anos tem sua base,segundo Hebert Shiller, na fusão da força econômica edo controle da informação, e ao mesmo tempo naidentificação da presença norte-americana com a li-berdade; liberdade de comércio, de palavra, de empre-sa (Ibid, p. 57).

A nova sociedade é possível a partir da revolu-ção do consumo, que liquida a velha revolução noâmbito da produção. O que está mudando não sesitua no terreno da política, mas da cultura, enten-dida como o código de conduta de um grupo oupovo. Os Estados Unidos lançavam, assim, um es-tilo de vida (o deles), que, no século XX, seria a

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matéria-prima para o imaginário dos meios de co-municação e, especialmente, da televisão.

Esse pano de fundo dos últimos 50 anos éfundamental para compreender o veículo e a rea-lidade por ele criada. A telerrealidade é a realidadetelevisiva que legitima a ilusão de uma sociedadetransparente. Ela se apóia na absoluta visibilidadee tem como antecessor o cinema direto.

As palavras de Suzana Kilpp (2002, p. 103)poderiam ser usadas aqui como tentativa de defi-nição da telerrealidade, quando ela diz que os pro-gramas e a programação (especialmente em flu-xo) de TV tendem a estruturar-se como um gênero televi-sivo, em cujo interior e na perspectiva do gênero, ficção erealidade se hibridizam tecnicamente, engendrando umarealidade televisiva: simétrica e equivalente a uma ficciona-lidade televisiva.

A telerrealidade, então, pode ser uma realidadetelevisiva tanto quanto uma ficcionalidade televisi-va, uma nova realidade em que não existem as ca-tegorias separadas de realidade e ficção, deixandoessas categorias como próprias de uma sociedadepré-televisiva, pré-tecnológica, pré-moderna.

Essa telerrealidade sai da tela sem sair, incorpo-rando-se ao olho humano. Nas palavras da per-sonagem O”Blivion do filme Videodrome, de Cro-nenberg, citado por Canevacci (2001, p. 234), o ví-deo da TV já é o único olho do homem, e disso deriva o fatode que a TV é a realidade, e que a realidade é menos que aTV. A tevê parece a porta de acesso à existência.A TV é mais que a realidade, porque a realidadefora das câmeras interage com a telerrealidade, epor mais que ambas se influenciem mutuamente,parece que o reconhecimento último de todas ascoisas está no seu registro diante da câmera. Arealidade televisiva se constrói e se sustenta comdiversos recursos e mecanismos.

Um dos recursos que fazem com que a imagemtelevisiva exerça uma forte atração sobre as pessoas,transformando um novo estilo de vida em familiare cotidiano, é a invenção do primeiro plano.

O primeiro plano entra nas casas de formatal que constitui os rostos próximos e familia-res. McLuhan (1964, p. 357) comentou a fami-liaridade que o primeiro plano traz com o se-guinte exemplo:

durante uma entrevista perguntaram a Joanne Wood-ward qual a diferença que sentia entre ser uma estrela decinema e uma atriz de TV. Ela respondeu: “Quando eutrabalhava no cinema ouvia as pessoas dizendo: Lá vaiJoanne Woodward. Agora elas dizem: Acho que co-nheço aquela moça”. Os fãs do velho cinema queriamver como eram seus favoritos na vida real e não nos pa-péis que encarnavam. Os fãs do meio frio da TV que-rem ver seus astros nos papéis que representam.

Para McLuhan, é o envolvimento do telespec-tador com o meio que faz com que o papel do ar-tista de televisão seja mais fascinante do que suavida privada.

Canevacci (2001, p. 146) oferece algumas pis-tas que ajudam a compreender mais o envolvi-mento referido. Segundo ele, a monotonia daimagem visual dá à percepção aquela sensação devertigem, de hipnose, da qual nasce a dificuldadeem separar-se por parte do espectador. Para ele,no excesso do primeiro plano, os rostos se imo-bilizam e viram o macroobjeto da tela. Atravésdas cirurgias plásticas, os rostos viram um eternopresente, idênticos a si mesmos. A imobilidade dorosto tem uma gramática muito própria do primeiro plano:são abolidos os contrastes, os gritos, os excessos. São mui-tos monólogos civilizados e urbanos, próprios do mundourbano da televisão.

É justamente no primeiro plano que pode serobservada uma grande diferença entre o cinema ea TV. Seria esse (o primeiro plano) o grande terre-no de choque entre ambos, nas palavras de Cane-vacci (Ibid, p. 148). O autor observa que o que nocinema é uma articulação de planos espaciais di-ferentes que “movimentam” o vídeo e “tocam” oespectador nos momentos tão raros quanto pre-cisos, na montagem televisiva, torna-se, pelocontrário, uma soma, uma justaposição de cabe-ças cortadas falantes. Para ele, essas cabeças fa-lantes se tornam onipresentes, imutáveis, insubs-tituíveis, indestrutíveis, dando a sensação de fu-rar o vídeo. Esse efeito não seria no sentido de deixar otelespectador entrar na tela, mas de realizar o último dese-jo da produção televisiva: manifestar-se junto ao especta-dor, em cima dele e sempre mais dentro de suas interiorida-des (Ibid), movimento contrário ao pretendidopelo cinema.

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Para o autor toda cultura visual gira ao redordo corpo, e o corpo é o rosto por excelência. Ca-nevacci atribui o sucesso mundial dos seriadosamericanos e das novelas brasileiras ao uso doprimeiro plano. O valor dramatúrgico dos pri-meiros planos consegue comunicar, à formatranscultural, uma seqüência de paixões, todasreduzidas a um módulo elementar. Há, portan-to, uma conexão muito estreita entre a acentua-ção dos planos de seqüência e a proliferação dosprimeiros planos nesse gênero da comunicaçãotelevisiva, o que pode parecer que empobrece a gramáti-ca visual, enquanto a globaliza e multiplica sua produ-ção de sentido emitida pelos mais micrológicos traços fa-ciais (Ibid, p. 131).

Esses códigos com os quais se expressa o pri-meiro plano televisivo trazem uma forma de falarmais “abstrata”, macia, asséptica, bastante nãoinfluente (código verbal); uma tipologia de ex-pressões “naturais” que o rosto emite enquantopuro “estar”, puro fenômeno visível. Trata-se deum sistema de objetos que envolvem o rosto em primeiroplano, que servem de pano de fundo, como num quadro, eque, geralmente, são sinais reconhecíveis de uma extremamodernidade (computadores, arranha-céus, roupas damoda (...) códigos da civilidade (Ibid, p. 142).

Martín-Barbero (1997) ajuda a compreender atelevisão como espaço de encurtamento das dis-tâncias de tempo (pela retórica do direto) e espa-ço (pela simulação de contato). A sua abordagemda tevê é desde os lugares de mediação, ou seja,lugares dos quais provêm as construções queconfiguram sua materialidade social e expressivi-dade cultural. Para ele, os três lugares de media-ções seriam a cotidianidade familiar, a temporali-dade social e a competência cultural.

Neste momento, interessa o primeiro, a coti-dianidade familiar, que, segundo o autor, é o quedá à TV esse aspecto tão próximo e familiar. Issoacontece, fundamentalmente, através de dois dis-positivos que a TV copia da família: a retórica dodireto e a simulação de contato.4

A retórica do direto é esse dispositivo que or-ganiza o espaço da televisão sobre o eixo da pro-ximidade e a magia do ver.

O espaço da televisão está dominado por uma proximi-dade construída mediante uma montagem não-expres-siva, mas funcional com base na “tomada direta”, realou simulada. Na televisão, a visão predominante é a queproduz a sensação de imediatez, um dos traços que fa-zem a forma do cotidiano (Ibid, p. 298).

Quero fazer aqui um amplo parêntese para fa-lar da tomada direta e da transmissão em temporeal. Não devemos confundir a retórica do diretocom a possibilidade televisiva de transmissão aovivo, em tempo real, embora a primeira inspi-re-se na segunda. Essa possibilidade é muito va-lorizada por Arlindo Machado (2000, p. 126). Oautor reconhece que a operação em tempo pre-sente constitui a principal novidade introduzidapela televisão dentro do campo das imagens téc-nicas. Para ele, as condições ao vivo parecemcontaminar o restante da programação televisuale imprimir nela as suas marcas de atualidade.

O excesso e a incompletude do tempo real, se-gundo o autor, opõem-se ao tratamento que a in-dústria cultural dá a esse mesmo tempo, impondouma espécie de controle de qualidade sob a formade uma certa assepsia, uma certa purificação doproduto de todas as suas marcas de trabalho.

Haveria, por parte da indústria cultural, umahibridação dos tempos. O ao-vivo copia da edi-ção gravada seu acabamento, e a programaçãopré-gravada copia do ao vivo seu efeito de temporeal, chegando a um produto asséptico e bemapresentado, “completo”, que sempre parece es-tar sendo transmitido em tempo real com o aca-bamento dos programas gravados.

Machado chama a atenção para o fato de otempo real ser o alvo da crítica de alguns intelec-tuais5. Para o autor, o tempo real é um dos tem-pos mais democráticos do veículo. Ele discordado filósofo francês Paul Virílio (apud Machado,2000, p. 129), dizendo que a transmissão ao vivo

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4 Segundo o autor, apesar das transformações sociais da instituição familiar, a família, como espaço das relações curtas e daproximidade, é tomada pela televisão e reproduzida.

5 Segundo ele, essa escolha é para que a crítica não possa se estender a outros vizinhos “mais nobres”, como é o caso do cinema.

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não faz a guerra chegar às nossas casas trop tard(como teria declarado o filósofo), mas em condi-ções tais de atualidade que ainda torna possível aintervenção. Em outras palavras, como o proces-so chega ao telespectador quando está em anda-mento, permite com que ele ainda possa interagirsobre o fato e modificá-lo.

E essa possibilidade de participação enquantoas coisas estão acontecendo é o que faz a televi-são, como disse McLuhan (1964, p. 359), favore-cer mais a apresentação de processos do que pro-dutos. A inclinação do meio da TV pelos temasque envolvem processos e reações complexas fa-voreceu um novo desenvolvimento para os fil-mes documentários. Com a TV, o western adquiriunova importância, pois o seu tema é sempre “vamos ergueruma cidade”. A audiência participa da formação e do pro-cessamento de uma comunidade a partir de reduzidos emodestos componentes. Para o autor, a imagem de TVgera formas de inter-relação do tipo “faça vocêmesmo”. Quiçá uma das formas de as empresasde TV canalizarem essa característica do veículo éatravés da “interatividade” na qual o telespecta-dor é convidado a se manifestar entre duas oumais possibilidades, ou para escolher o final dahistória, para eliminar alguma pessoa do realityshow, etc. Esse recurso está sendo usado atual-mente por diversos tipos de programas, sejameles de humor, telejornais, debates, etc.

Em sua crítica, Machado lembra que Bourdieuacusa a televisão de não favorecer o pensamentoporque ela é construída sob o signo da urgência,da velocidade e da simultaneidade do tempo pre-sente. Para Pierre Bourdieu (1997, p. 40-41), a ve-locidade é o contrário do pensamento.

Pode-se pensar com velocidade? Será que a televisão,ao dar a palavra a pensadores que supostamente pen-sam em velocidade acelerada não está condenada a terapenas fast-thinkers, pensadores que pensam mais rápi-do que sua sombra...? (...) Ao contrário, o pensamentoé, por definição, subversivo: deve começar por des-montar as “idéias feitas” (...). É preciso desenvolveruma longa cadeia de proposições encadeadas por “por-tanto”, “em conseqüência”, “dito isto”, “estando en-tendido que”... Ora, esse desdobramento do pensa-mento pensante está intrinsecamente ligado ao tempo.

Arlindo Machado (2000, p. 127) avalia o pen-samento de Bourdieu como perigoso, já que eledefende a idéia de que, em situação de urgência, aúnica coisa que se pode fazer é repetir um conhe-cimento já cristalizado, o lugar comum, o concei-to estereotipado, o pré-conceito. Implica dizer quequem pensa não está em condições de agir, ou que quem agenão está em condições de pensar.

Esses “portanto”, “em conseqüência”, “ditoisto”, “estando entendido que”... entendendo-oscomo nexos que, de alguma maneira, explicam eargumentam a procedência das premissas, sãopróprios de uma experiência cultural anterior àpós-modernidade, caracterizada – esta última –pela desordem e fragmentação, pela diferença daracionalidade moderna.

O macrodiscurso televisivo tem uma lógicadiferente, já que está formado por uma colagemde imagens e sons que iguala todos os discursos.Na lógica televisiva, há pequenos tempos mortosque são eliminados no que Fernández (1997, p.113-114) chama de “elipses de montagem”, ins-taurando o ritmo da narrativa. Há uma nova con-tinuidade que o autor chama de Raccord e seria oajustamento das seqüências para dar continuida-de ao relato, feito na mesa de edição. Para Fer-nández, é direto quando não omite nenhum deta-lhe e, quando é indireto, é sempre lógico.

Essa nova lógica da narrativa produzida naedição é diferente da lógica do pensamento linearpróprio de uma época mais racionalista. Poderiapensar-se a partir disso que essa desordem cultu-ral introduzida pela experiência audiovisual in-fluencia os modos de perceber e de pensar. ParaBarbero e Rey (2001, p. 33-34), essa desordematenta fundamentalmente contra o tipo de repre-sentação e de saber no qual esteve baseada a au-toridade. Mais do que buscar seu nicho na idéia ilustra-da de cultura, a experiência audiovisual a repõe radical-mente: desde os próprios modos de relação com a realidade,isto é, desde as transformações de nossa percepção do espaçoe do tempo.

Então, a lógica do pensamento linear que pre-cisa do tempo confronta-se com a desordem cul-tural de um tempo não linear, portanto um pre-

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sente que não é uma consecução do passado eque coloca todas as coisas em um mesmo plano.

Finalmente, Machado (2000, p. 129) questiona:

como pode a transmissão ao vivo ser tão nociva aosolhos dos intelectuais e, ao mesmo tempo, tão perigo-sa aos olhos das autoridades, dos censores e guardiõesdas mídias? (...) Não por acaso, em situações políticasperigosas, a maioria das lideranças políticas e autorida-des militares evita dar depoimentos ao vivo, preferin-do o conforto do material pré-gravado (e evidente-mente, censurado).

De fato, em tempos de governos ditatoriais dequalquer tendência política, o que menos há naTV é transmissão ao vivo.

A tendência a imitar o ao-vivo é tal que, defato, fica muito difícil saber quando uma pro-gramação é ao vivo e quando é pré-gravada.Muitas vezes, os telespectadores ligam para aemissora com a certeza de que o programa queestão vendo está acontecendo naquela hora, enem sempre é assim. Segundo Umberto Eco(1984), um dos sinais do ao-vivo (que era muitousado na programação gravada para dar a ilusãode tempo real, na época em que Eco escreveuesse livro, na década de 80) é o olhar do apresen-tador fixo na câmera.

Os que não olham para a câmera estão fazendo algoque se considera (ou se finge considerar) que acontece-ria mesmo que a televisão não existisse, enquanto, nocaso contrário, quem olha para a câmera estaria subli-nhando o fato de que a televisão existe, e que seu dis-curso acontece justamente porque a televisão existe(Eco, 1984, p. 186).

Mesmo que hoje esse recurso esteja superado,e existam outras formas de os programas imita-rem o tempo real, acho válido o comentário deUmberto Eco, não tanto para marcar duas for-mas de mostrar os tempos da telerrealidade, e simduas estratégias diferentes para aproximar o te-lespectador. Aquela que aconteceria como se otelespectador não estivesse apela à sua curiosida-de e voyeurismo, colocando-o em situação de es-pião, testemunha ou cúmplice. Quando o apre-sentador ou outro personagem televisivo olhapara a câmera, sublinhando a presença do teles-

pectador, está apelando a um interlocutor cons-ciente, amigo, companheiro, quase que umco-protagonista capaz de se posicionar e respon-der. Esse recurso é muito usado em situações emque se busca uma resposta ativa do telespectador,como os casos em que ele é convidado a colabo-rar com o programa de alguma maneira. Assim, atelevisão hoje dá ao telespectador uma formamuito específica de “participação”, dando a ilu-são de real incidência do público na sua progra-mação. Esse mecanismo pode ser uma forma desubstituir a aspiração real de participação social(no sentido de incidir na construção da socieda-de) própria de toda pessoa, além de um rendi-mento lucrativo importante para as emissorasque atraem audiência e anunciantes.

Martín-Barbero (1997, p. 203), ao levar emconta que a televisão é a irrupção do mundo doespetáculo e da ficção no espaço da cotidianidadee da rotina, fala da importância do apresentadorpara realizar a mediação entre as diversas partes.Segundo o autor, a televisão especifica seu modode comunicação, organizando-se sobre o eixo dafunção fática, isto é, sobre a manutenção do con-tato, e, para realizar essa passagem, a TV usa duasmediações fundamentais: a figura do apresenta-dor e um certo tom coloquial.

O apresentador-animador na televisão – que se encon-tra presente nos programas informativos, nos concur-sos, nos musicais, nos programas educativos e até nosculturais, para sublinhá-los –, mais do que um transmis-sor de informações, é, na verdade, um interlocutor, oumelhor, o que interpela a família, convertendo-a em seuinterlocutor. Por isso, seu tom coloquial e a simulaçãopermanente de um diálogo que não se restringe a umarremedo do clima “familiar” (Ibid, p. 294).

Se a mediação do apresentador garante a uni-dade, uma das características mais facilmenteconstatável do discurso televisivo é sua fragmen-tação. González Requena (1999, p. 25), quandose refere ao discurso televisual, fala em uma es-trutura programática, unificadora das estruturasautônomas. Para ele, os programas carecem deautonomia pela sua fragmentação, que introduzno seu interior mensagens estranhas, spots publi-

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citários, informações de última hora, advertênciassobre futuros programas, etc6.

Portanto, para Requena (1999, p. 33), há umasubmissão de cada discurso parcial ao discursoglobal programático e a seus próprios critérios defuncionalidade. A continuidade atua de imediatocomo o procedimento que religa os fragmentosem função às exigências, não dos textos parciaisde origem, e sim à estrutura geral da programa-ção. Nos encontramos assim com uma sistemática dafragmentação em que cada um dos fragmentos elementares,por sua carência de totalidade e autonomia, termina porconverter-se em elementos recorrentes de continuidade queatuam como conectores dos fragmentos com que se justa-põem (Ibid, p. 36). O autor aborda o discurso tele-visual como um texto que tem uma coerênciatextual de superfície, no qual as aberturas, vinhe-tas e propagandas funcionam como elementos depontuação e copulativos (semelhante às conjun-ções lingüísticas).

Para Arlindo Machado (1988, p. 108), a frag-mentação faz parte da linguagem televisiva, por-que ela tem necessidade de se organizar de talforma a prender e interessar o espectador even-tual, que está de passagem por aquele canal e queprecisa de imediato entender o que está se pas-sando. Nesse sentido, ele descreve uma monta-gem televisiva com três cortes.

O primeiro é a montagem interna do programa. O se-gundo é a montagem em termos da macroestrutura datelevisão (um telejornal, uma telenovela) com os breakscomerciais e outras interrupções, além de amarrar cadacapítulo ou unidade com sua continuidade no dia se-guinte. O terceiro é a montagem que o espectador reali-za, com sua unidade de controle remoto, de um progra-ma a outro; de uma emissora a outra. Essas três grandesestruturas de montagem se interpenetram e agem umassobre as outras (...) A amarração das imagens é o resul-tado de uma grande colagem que faz “casarem”, mes-mo que de forma desconcertante, o pranto da mulher“traída” pelo vilão com o sorriso da modelo que escovaos dentes com a pasta X e fragmentos de um incêndioque está acontecendo naquele momento no centro dacidade (Ibid, p. 109).

Machado demonstra como os relatos televi-suais são descontínuos e fragmentários, fruto deuma estruturada, quebrada e solta tomada do fo-lhetim, enquanto o cinema incorporou a estrutu-ra orgânica do romance oitocentista.

Essa colagem de imagens fragmentadas é umdos pontos que mais merece críticas por parte dealguns intelectuais com um certo ideal de culturamais “ordenada”. Barbero e Rey (2001, p. 33) cri-ticam essas posturas e vêem nessa colagem umasimilitude com a forma das metrópoles moder-nas. Segundo eles, o fluxo televisivo constitui ametáfora mais real do fim dos grandes relatospela equivalência de todos os discursos – infor-mação, drama, publicidade ciência, pornografia,dados financeiros –, pela interpenetrabilidade detodos os gêneros e pela transformação do efême-ro em chave de produção e em proposta de gozoestético. Mas, segundo os autores,

essa nova experiência remete aos novos “modos de es-tar juntos” na cidade, às sociabilidades cotidianas que ocaos urbano suscita, uma vez que, ao mesmo tempo emque desagrega a experiência coletiva, impossibilitandoo encontro e dissolvendo o indivíduo no mais opacodos anonimatos, introduz uma nova continuidade: adas redes e dos circuitos, a dos conectados.

Para os autores (Ibid, p. 31), então, dá-se umadiversificação de formatos ao mesmo tempo quese vive um profundo desgaste dos gêneros e umacrescente debilidade do relato e a extinção do re-lato como fruto das trocas de experiências (aque-le que vem de longe). O relato seria asfixiado pelonovo modo de comunicar: a informação. Substi-tui-se a experiência pelo relato do cronista.

Os gêneros foram um grande motor e pontode ancoragem da indústria cinematográfica no“aparato” perceptivo das massas. Lembra Mar-tín-Barbero (1997, p. 249) como Hollywood in-ventou alguns gêneros e recriou outros. Segundoele, o gênero pode ser aplicado ao cinema comomecanismo a partir do qual se obtêm os reconhe-cimentos – enquanto chave de leitura, de decifra-

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6 Algumas dessas formas de fragmentação se dão através de programas com limites temporais bem precisos, mas que care-cem de autonomia temática, porque seu único objeto é remeter - anunciar, apresentar, publicitar - outros programas daemissora. Outros que fazem referência, do interior de um deles, a outro(s) programa(s) da própria emissora, etc.

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ção do sentido e enquanto “reencontro” com omundo. É um registro temático, um repertórioiconográfico, um código de ação e um campo deverossimilhança.

Na TV, os gêneros apresentam-se de outraforma. González Requena (1999, p. 37) situa-osdentro do discurso televisivo heterogêneo. Ouseja, o macrodiscurso televisivo tem capacidadede integrar no seu interior uma multidão de gêne-ros, tanto em relação a seus referentes (ficção,realidade – documentários – culturais, espetacu-lares, etc), como a suas características discursivasou registros genéricos (dramáticos, informativos,musicais, cômicos, etc.).

Para o autor, isso não significa uma crise dostipos de gêneros tradicionais; eles se mantêm per-feitamente reconhecíveis, aumentando a veloci-dade e a intensidade de sua fragmentação e com-binação múltipla. O que Requena (1999, p. 38)destaca é a aparição de novos tipos ou “forma-tos” de programas, caracterizados pela presençaem seu interior dessa heterogeneidade de gênerosque distingue o discurso televisivo dominante.

1.2.1 Telejornalismo

Ao tentar compreender a relação da televisãocom a realidade, como é o caso deste capítulo, sefaz imprescindível falar de telejornalismo, já queseria ele, por excelência, o espaço para informarsobre fatos reais. No Brasil, o telejornalismo é ga-rantido por lei. O decreto lei 52.795 de 31/10/1963 trata do regulamento dos serviços de radio-difusão e estipula que as emissoras dediquem cin-co por cento do horário da programação diária aoserviço noticioso. Esta lei, assim como vários au-tores (Puente 1999, p. 166; Maciel, 1995, p. 30)estão apoiados no pressuposto de que o telejor-nal é necessário para ajudar as pessoas a tomaremmelhores e mais informadas decisões.

Para o Dicionário Técnico da TV (Roiter eTresse, 1995, p. 113), o telejornal é o programajornalístico que apresenta as notícias pela televi-são. Pode ser local, regional ou em rede (nacional).A “realidade”, enquanto fatos e acontecimentosque sucedem na sociedade, seria a matéria-primado telejornalismo, que no Dicionário de Informa-

ção, Comunicação e Jornalismo (Souza 192, p.182) está contraposto à ficção, que seria um gêne-ro literário baseado em fatos imaginários.

Para Soledad Puente (1999, p. 165) a separa-ção radical entre ficção e não-ficção no telejornalnão é tão necessária. Ela reconhece que funda-mentalmente a diferença acontece quando o te-lespectador senta na frente da TV para assistir uminformativo. Ele o faz por diversos motivos. Pode serdesde um motivo mais prosaico – sua admiração paracom o apresentador, por exemplo –, até outro mais louvá-vel, como a necessidade de conhecer a realidade. Mas ha-veria uma diferença a grosso modo em relaçãoao fato de que alguém que procura determinadainformação sobre algum aspecto da sociedade,prefere um telejornal a um programa de entrete-nimento. Embora, para a autora, o telejornalprocure também fazer as pessoas passarem umbom momento.

Isso pode ser notado, entre outras coisas, nalinguagem verbal dos telejornais. Os manuais re-comendam que ela seja adequada às característi-cas da oralidade própria do veículo, como se oapresentador estivesse sentado na sala do teles-pectador numa conversa de amigos. A linguagemdeve ser simples, direta, objetiva, com a maiorclareza possível, coloquial. (Maciel, 1995, p. 31).

Segundo Rezende (2000, p. 54), o verbal nodiscurso televisivo assume uma natureza que setorna perfeitamente afinada e compatível com asimagens. Para o autor, a oralidade é o canal detransmissão da TV. A linguagem oral, acompanha-da de recursos expressivos complementares ges-tuais, faciais, vocais, etc, ao contrário da escrita,lança mão de freqüentes seqüências justapostas,omitindo muitas vezes os operadores de conexão.

Nesses casos, o tom da fala, as hesitações, aspausas importam mais do que o uso irretocáveldas normas gramaticais. A palavra falada é maisapropriada para comunicar emoções. Segundo oautor, essa simplificação da linguagem oral é maisaplicável ao jornalismo informativo, que é dirigidoa um público maior que o opinativo, já que ele sedirige geralmente a um público mais especializado.

Uma pergunta antiga no jornalismo informa-tivo é aquela que busca definir a notícia. Para Má-

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rio Erbolato (1991, p. 53), é impossível definir oque é notícia. O autor enumera uma série de si-tuações diversas que seriam notícia, mas o quetodas elas podem apresentar em comum é o des-pertar o interesse nos leitores, telespectadores,ouvintes, etc.

A história do jornalismo mostra uma diversi-dade muito grande (e um amadurecimento) emrelação ao imaginário sobre a notícia. NelsonTraquina, em seu último livro sobre teorias dojornalismo (2002, p. 74), enumera sete teoriasque tentam responder de maneiras diferentes(mas não necessariamente excludentes) à ques-tão de por que são as notícias como são. O autorsalienta uma mudança de paradigma no séculoXIX: o jornalismo é concebido fornecendo fatose não opiniões.

A primeira teoria mencionada pelo autor é ateoria do espelho (Ibid, p. 74-77). É a primeiraque surgiu na tentativa de explicar a notícia. Mes-mo que hoje seja unanimidade dizer que ela é in-suficiente para explicá-la, ainda restam algunsdos seus defensores. Muitas vezes, a teoria do es-pelho está presente na prática jornalística, numaespécie de “senso comum” com que muitas pes-soas enxergam o jornalismo, talvez, em grandeparte mantida pelos próprios veículos que se be-neficiam com o mito da imparcialidade jornalísti-ca. A teoria basicamente diz que as notícias sãocomo são porque a realidade o determina. A notí-cia seria um espelho da realidade, e o jornalista,um comunicador desinteressado. Essa teoria afir-ma que haveria um método científico para elabo-rar a informação que garante o acesso à objetivi-dade e a neutralização da subjetividade do repór-ter. Dessa forma, alimentou-se a crença de que osjornalistas são imparciais porque o respeito dasnormas profissionais lhes assegura o trabalho derecolher a informação e de relatar os fatos, sendosimplesmente mediadores que “reproduzem” oacontecimento na notícia. Essa teoria pode serfacilmente posta em causa sem que isso signifi-que pôr em causa a integridade do jornalista.

Uma segunda teoria chamada da ação pessoalou do gatekeeper, embora também com grandes li-mitações, parte da idéia que aquele que constrói a

notícia é possuidor de uma subjetividade. Paraela, a notícia é uma série de escolhas feitas pelojornalista. A notícia é explicada como um produ-to da pessoa e das suas intenções; é quase exclusi-vamente psicológica.

Uma terceira análise é chamada de teoria orga-nizacional; insere o jornalista em seu meio e acen-tua o fato de ela absorver a visão da empresa embusca de recompensa, evitando punições. O pon-to de partida é que os jornalistas absorvem porosmose ao longo do tempo a política editorial daempresa e suas normas. Essa teoria valoriza a im-portância da cultura organizacional mais do que acultura profissional. No jornalismo de televisão,por exemplo, a teoria considera que a lógica“mais audiência, mais receita publicitária” é umfator de decisão da notícia. Por outro lado, aquestão dos custos de produção é decisiva para ahora de escolher a que notícias dar cobertura.

Na década de 60, tenta-se explicar a notíciacom as teorias de ação política. Elas são seme-lhantes à teoria do espelho, já que partem doprincípio de que é possível reproduzir a realida-de. Para elas, a notícia deve refletir a realidade“sem distorção”. Manejam elementos como “ob-jetividade” e o que se aceita como seu oposto“parcialidade”. O que as diferencia da primeirateoria é que os veículos de comunicação são vis-tos de forma instrumentalista, sejam de esquerdaou direita. O jornalista é uma pessoa que “procura a ver-dade” no papel de “cão de guarda”, de “contrapoder”,“herói do regime democrático”. Só que os jornalistas fa-riam isso com “parcialidade”, no sentido de “distorcer arealidade” (Ibid, p. 93), seja para difundir suas opi-niões anticapitalistas (na visão de alguns autores),seja para se submeter aos grandes interesses polí-ticos e econômicos, fazendo da notícia propa-ganda que sustenta o capitalismo (segundo ou-tros autores). Para estes, haveria uma relação di-reta entre o resultado noticioso do veículo e a es-trutura econômica da empresa jornalística. Se-gundo Traquina, essa teoria apresenta algumas li-mitações. Uma delas, é sua metodologia que é deanálise de conteúdo. Ela não é suficiente paracompreender as intenções dos produtores ou osprocessos de produção. Mas o problema central

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da teoria está na visão determinista dos jornalis-tas e da mídia.

Com a teoria construtivista (Ibid, p. 94-100),surge, na década de 1970, pela primeira vez, umateoria que concebe a notícia não como espelhoou distorção da realidade e sim como uma cons-trução com uma realidade interna própria. Elatraz um novo paradigma considerando a notíciacomo uma construção. Em primeiro lugar, a teo-ria não parte da dicotomia entre realidade e as mí-dias que devem refletir essa realidade, porque es-ses meios estão dentro da realidade e ajudam aconstruí-la. Em segundo lugar, defende que aprópria linguagem não é uma transmissora diretados significados inerentes aos acontecimentos,porque a linguagem neutral é impossível. Em ter-ceiro lugar, é da opinião de que:

a mídia noticiosa estrutura inevitavelmente a sua repre-sentação dos acontecimentos, devido a diversos fato-res, incluindo os aspectos organizativos do trabalhojornalístico, as limitações orçamentais, a própria manei-ra como a rede noticiosa é colocada para responder àimprevisibilidade dos acontecimentos (Ibid, p. 95).

Essa forma de compreender a notícia nãonega o valor de as considerar como correspon-dentes da realidade exterior, e, enquanto aborda-gem narrativa, não se nega o teor informativo dasnotícias. Para o autor, a notícia, como todos osdocumentos públicos, é uma realidade possuido-ra da sua própria realidade interna.

A teoria chama a atenção para todos aqueleselementos que dão significado à notícia, de formatal que poderia haver outros significados do mes-mo fato. Segundo a teoria construtivista, a notíciarevela informações sobre o que faz sentido, sobre o que im-porta, sobre o tempo e o lugar em que vivemos. As coisassão noticiáveis porque representam a natureza conflituosado mundo. Elas trazem os fatos ao horizonte do “signifi-cativo” (Ibid).

Há duas teorias que se baseiam na construti-vista: a estruturalista e a interacionista. A pri-meira, tal como a teoria da Ação Política, vê nosmedia a reprodução da “ideologia dominante”,mas reconhece uma certa autonomia do jorna-lista que está no meio de uma série de estruturasque o direcionam. Já a teoria interacionista ex-

plica a notícia como a percepção, seleção etransformação de uma matéria-prima (os acon-tecimentos) num produto (as notícias) (Ibid, p.106). Para essa teoria, os acontecimentos estãotodos ali à espera de serem julgados dignos deter noticiabilidade. Ao mesmo tempo, o jorna-lista e as empresas vivem sob a pressão do espa-ço (a notícia pode surgir em qualquer lugar) e dotempo (os acontecimentos podem surgir a qual-quer momento, e o jornalista tem uma hora defechamento). Dessa forma, a notícia é uma for-ma de as empresas e os jornalistas colocaremuma ordem no espaço e no tempo.

Até aqui, poderíamos, a grosso modo, verdois grandes grupos em relação à forma de con-ceber a notícia: aqueles que a interpretam comoum reflexo da realidade (“objetivo” ou não, par-cial ou não, com maior ou menor autonomia dojornalista, etc) e aqueles que vêem nela uma outraconstrução (re-construção, um outro aconteci-mento, um contar histórias, etc...). E se busca-mos algo em comum, isso seria a referência aacontecimentos que sucedem numa margem detempo e espaço.

No desenvolvimento deste trabalho que partedesde o início do reconhecimento da telerrealidadecomo uma outra realidade que acontece na TV enão está como um lugar de passagem da “realida-de”, a opção não pode ser outra que a concepçãoconstrutivista: a notícia é uma construção, umanarração, ou um outro acontecimento.

Para Arlindo Machado (2000, p. 102-104), asnotícias e o telejornal não podem ser encaradoscomo um simples dispositivo de reflexão doseventos, de natureza especular, ou como um merorecurso de aproximação daquilo que acontecealhures, mas antes como um efeito de mediação.

O telejornal é, antes de qualquer coisa, o lugar onde sedão atos de enunciação a respeito dos eventos. Sujeitosfalantes diversos se sucedem, se revezam, se contrapõemuns aos outros, praticando atos de fala que se colocamnitidamente como o seu discurso com relação aos fatosrelatados. O telejornal é uma montagem de vozes, mui-tas delas contraditórias, e sua estrutura narrativa não ésuficientemente poderosa para ditar a qual voz nós deve-mos prestar mais atenção, ou qual delas deve ser usadacomo moldura para, através dela, entender o resto.

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Ao colocar em circulação e em confronto asvozes que “relatam” ou “explicam” um confli-to, ao tentar encaixar as vozes umas “dentro”das outras, o que faz mais exatamente o telejor-nal, na opinião de Machado, é produzir umacerta desmontagem dos discursos a respeitodos acontecimentos.

Num certo sentido, podemos dizer que o telejornal éuma colagem de depoimentos e fontes numa seqüênciasintagmática, mas essa colagem jamais chega a constituirum discurso suficientemente unitário, lógico ou organi-zado a ponto de poder ser considerado “legível” comoalguma coisa “verdadeira” ou “falsa”. A questão da ver-dade está, portanto, afastada do sistema significante dotelejornal, pois, a rigor, não é com a verdade que ele tra-balha, mas com a enunciação de cada porta-voz sobreos eventos (Ibid, p. 111).

Ao analisar o acontecimento, Adriano DuarteRodrigues (1993, p. 28) diz que a mídia produz aomesmo tempo um novo acontecimento, que elechama de “meta-acontecimento”. Os meta-acontecimentos são aqueles acontecimentos queenglobam as ocorrências produzidas frente às câ-maras de televisão ou perante os repórteres. Elessão regidos pelas regras do mundo simbólico, omundo da enunciação, articulando as instânciasenunciativas do sujeito-repórter, objeto-fato,agentes e atores. As mídias, relatando um me-ta-acontecimento, produzem além do aconteci-mento relatado, o relato do fato, como um novoacontecimento que vem integrar o mundo.

Para Rodrigues, os meta-acontecimentos dis-cursivos são parte do real, narrado sob o pontode vista do enunciador; com isso, pressupõem aexistência de juízos de valor. Dessa forma, as no-tícias são construídas a partir de acontecimentosdispersos. O autor define o discurso do aconteci-mento como anti-história, uma mera representa-ção dos fatos interpretados pelo sujeito-repórter,o que possibilita uma aproximação entre ficção erealidade. Para ele, a fusão de ficção e realidadefoi uma das alternativas encontradas pelas tevêscomerciais para atrair a atenção e o interesse daaudiência, tanto nas narrativas ficcionais, quantono jornalismo de televisão.

Já Arlindo Machado (Ibid, p. 107) vê no usode mecanismos ficcionais nos telejornais uma

forma de esconder sua condição de mediação.Em alguns casos, trata-se de recursos narrativosde ficção audiovisual (por exemplo, música “dra-mática” na trilha sonora e até mesmo reencena-ção dos acontecimentos com atores).

Outro formato aplicado nos telejornais naconstrução da notícia são os chamados por Bor-dieau (1997, p. 23-24) de “fatos-ônibus”: são fa-tos que, como se diz, não devem chocar nin-guém, que não envolvem disputa, que não divi-dem, que formam consenso, que interessam atodo mundo, mas de um modo tal que não tocamem nada de importante. Nestes casos, a notícia seaproxima do espetáculo, forma que abordarei emseguida; antes, farei algumas observações sobre anotícia como drama.

Para Soledad Puente (1999) a notícia está li-gada à mudança. O homem e seu entorno vivemnuma alteração própria de sua liberdade, que namaioria das vezes implica progresso. Se não hámudança, não há notícia. As notícias são os rela-tos dessas mudanças. Puente distingue notíciade informação e de novidade; a primeira incluiinformações recentes, e a novidade tem comocaracterística a atemporalidade (algo que já exis-tia, mas não foi trazido ao horizonte do interes-se ou da compreensão), mas se constitui em no-tícia na medida em que interessa a um grande nú-mero de pessoas.

Um dos critérios para que um fato seja notíciaé a proximidade. O que mais interessa no mundo a todoser humano é ele próprio e, depois, as coisas próximas aele, a seu corpo e sua mente: seu trabalho, sua saúde, suacasa, sua família, seus amigos, associados, clubes, Igreja,hobbies, recreações e entretenimento (Ibid, p. 44). Estaproximidade teria também um outro significadono tempo: aquilo que ocorreu recentemente; oimediato. Embora este valor se tenha acrescenta-do à notícia na medida em que foram crescendosuas possibilidades técnicas de cobertura quaseinstantânea. Seguindo o pensamento da autora,talvez poderíamos dizer que o veículo, especial-mente através do telejornalismo, leva o telespec-tador a querer ver e ouvir o que está acontecen-do, em definitivo, com ele próprio e tudo o que“ele” abrange. Mas, muitas vezes, a proximidade

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segue o caminho inverso, isto é, uma proximida-de conseguida através de repetição do fato e as-sim ele acaba interessando.

A autora parte da definição do jornalista comoum narrador de histórias e chama a atenção paradois elementos da notícia: o que é contado ecomo é contado. Nesse sentido, Puente encontraelementos em comum entre a notícia e o drama.Não é o mesmo um incêndio sem chamas que com chamas.Para ela, essa noção está tão presente na ficçãoquanto na não ficção, o que mostra sobretudoque jornalismo e drama se unem na ação: o drama imita eo jornalismo mostra essa ação (Ibid, p. 57).

Na apresentação da notícia em televisão, Puen-te critica o método da pirâmide invertida7, tãousado na imprensa escrita e no rádio, mas que,para a autora, é inapropriado para TV. Ela propõeuma maneira diferente de entregar as notícias emtelevisão, construída desde as similitudes entrenotícia e drama.

Definido como relato de histórias do ser hu-mano, o drama, no cinema e na TV, não buscatanto reproduzir a vida quanto intensificá-la. Porisso, o cineasta Hitchcock (apud Puente, 1999, p.32) dizia:

não filmo nunca um pedaço da vida, porque isso as pes-soas podem encontrá-lo muito bem nas suas casas, ouna rua, inclusive na porta do cinema. Não tem necessi-dade de pagar para ver um pedaço da vida. Por outraparte, rejeito também os produtos de pura fantasia,porque é importante que o público possa reconhe-cer-se nas personagens.

Reiven Frank (apud Puente 1999, p. 68), pro-dutor dos telejornais da NBC, foi o primeiro adizer, em 1960, que a notícia de televisão deveestar estruturada como minidrama, com umproblema e seu desfecho; um princípio, ummeio e um final. Para o jornalista, essa seria a es-trutura da notícia que permitiria ao público se-guir o acontecer sem perceber as notícias comotema para iniciados.

Longe de considerar o drama como adjetivoque ressalta tragédias ou menos ainda que reali-

za uma exploração comercial das situações demiséria humana, Soledad Puente propõe a estru-tura do drama para a notícia como alternativa àforma da notícia televisiva de seu país (Chile)que, para ela, não se adapta totalmente ao veícu-lo e, portanto, não obtém todo o papel social, oíndice de audiência e o faturamento econômicoque poderia se revisasse a forma de contar e oque contar na notícia. Ela propõe uma estruturaque resgate as histórias humanas, e que conside-re o pouco tempo no qual a televisão permite di-zer a notícia e a necessidade de prender a aten-ção do espectador do início ao fim e tornaraquela realidade acessível ao grande público.Por isso, a autora propõe a notícia como dramaseguindo sua clássica estrutura: apresentação deuma situação, introdução de um desequilíbrio,clímax e resolução.

O drama, da forma como foi abordado atéaqui, se diferencia do espetáculo como estruturanarrativa. O primeiro é uma estrutura que desdea distração e o entretenimento traz os fatos parao horizonte da inteligibilidade, em um únicomovimento. No caso do espetáculo, da formacomo a ela estou me referindo na notícia, usamecanismos para centrar a atenção do telespec-tador, fazendo com que os fatos não tenham ou-tros significados.

Para Guilherme Rezende (2000, p. 25), a preo-cupação com a audiência é um fator determinan-te ao estruturar a narrativa jornalística como es-petáculo. O formato espetacular, comum àsemissões de ficção e realidade, representou a fór-mula mágica capaz de magnetizar as atenções deum público tão diversificado.

Na sua tentativa de teoria do espetáculo, Gon-zález Requena (1995, p. 66) fala de dois tipos deespetáculos: aquele que se articula sobre a relaçãodual, imaginária, especular, que vincula um sujei-to que olha e um corpo que se oferece a seu olhar– nessa categoria entraria o espetáculo televisivo–, e aquele outro que inclui um terceiro elementoque é o símbolo.

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7 A pirâmide invertida é uma forma de estruturar a notícia na qual é seguida a seguinte ordem: fatos culminantes; fatos im-portantes ligados à entrada; pormenores interessantes e detalhes dispensáveis.

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É necessário que o símbolo recubra o corpo para queeste, além de exibir-se – oferecer-se – se manifeste por-tador de um determinado sentido, de um determinadomistério. O gesto deixa, pois, de se esgotar na exibição,na oferta especular para quem olha e o introduz e certaopacidade simbólica, uma certa resistência que assinalaem outra direção.

O autor explica melhor sua teoria, analisandodiversos modelos segundo o lugar que eles dãoao espectador em relação ao espetáculo que lheoferecem e às limitações que tal posicionamentolhe impõe. Esses lugares vão do mais aberto,como o modelo carnavalesco em que não hámuitos limites entre o lugar do espetáculo e doespectador, pois um se converte no outro a qual-quer momento, passando por outros modelos atéchegar ao “modelo da cena fantasma”, no qualRequena inclui o espetáculo televisivo, e que dãoao espectador um lugar fechado.

A característica dessa forma de espetáculo é oposicionamento da câmera na hora da filmagem,pois é prefigurado o lugar virtual, esencialmenteconcêntrico, que depois ocupará o espectador.“As diferentes posições de câmera concretas adotadas du-rante a rodagem se fundirão depois em um único lugar ma-terial, o ocupado pelo espectador, onde haverão de convergiras múltiplas imagens rodadas”. Para o autor, é realiza-do assim o projeto de visão absoluta, “que se acha-va perfilada na novela decimonônica, na qual o narradortodo-poderoso brindava o leitor com a capacidade de, semse deslocar, estar, em todo momento, no lugar mais canden-te e gozar a cada instante, da mais significativa informa-ção” (Ibid, p. 72). O espectador consegue vertudo, não porque esteja no melhor ângulo de vi-são e sim porque tem acesso, pelo menos poten-cial, a todos os ângulos de visão.

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2 TV e sociedade no Brasil

Falar de televisão é falar do BrasilEugênio Bucci

O Brasil é um país de contrastes: riqueza e po-breza, modernidade e arcaísmo, sul e norte, lito-ral e interior. É dentro desse contexto de contras-tes que pode ser compreendida a presença maci-ça da televisão em um país situado na periferia domundo ocidental. Presença maciça, porque o co-loca como único no hemisfério sul que integra ogrupo de oito países que concentram 3/4 dos te-lespectadores do mundo e quarto país em núme-ro de aparelhos televisivos.

A história da TV no Brasil está muito unida àhistória de industrialização do País e, portanto, àhistória da formação e expansão de um grandemercado de consumo. Segundo dados de Aces-soCom, 81% dos brasileiros assistem TV todosos dias numa média de 3,5 horas. E, do total daaudiência, 52%, segundo Anuário Mídia 2000, as-sistem a Rede Globo de Televisão.

Por tudo isso, torna-se necessário nos aproxi-mar, neste capítulo, da telerrealidade, analisando arelação entre a sociedade brasileira e a “socieda-de” televisiva, mais especificamente na Emissorade maior audiênca que, além de concentrar amaior parte da audiência, estabeleceu um padrãoque se tornou modelo para as outras emissoras e,segundo Maria Rita Kehl (1979-1980, p. 13), in-fluenciou as outras formas de arte que pretendematingir o grande público.

Para compreender melhor o sucesso da televi-são no Brasil, vejo necessário traçar alguns aspec-tos da história do País que permitiram o rápidodesenvolvimento do veículo. O contexto do Bra-sil pós-64 e a TV Globo são importantes paracompreender seu papel na história brasileira e naconstrução de um imaginário nacional.

2.1 O Brasil pós-64:A televisão e a TV Globo

Com 175 milhões de habitantes, segundo oCenso 2000, o Brasil ocupa quase a metade daAmérica do Sul, e seu povo é resultado de mui-tas e diferentes raças e culturas. Durante váriosséculos, o Brasil foi um país rural, onde as fron-teiras pareciam acabar nos limites regionais,mais ou menos marcados pelas culturas tipica-mente regionais.

No ano de 1950, inicia-se uma série de trans-formações no País que, entre outras coisas, der-rubam essas fronteiras regionais. É necessáriocontextualizar essas mudanças, porque criam umnovo estilo de vida que nos ajuda a compreendera televisão, não só como produto dele, mas tam-bém como característica primordial da “socieda-de” que existe dentro da tela.

Durante a década de 50, vivia-se no Brasiluma série de transformações industriais, econô-micas, tecnológicas e sociais tão radicais que, se-gundo Cardoso de Mello e Fernando Novais(1998, p. 560), a sensação dos brasileiros ou degrande parte dos brasileiros era a de que faltavadar uns poucos passos para finalmente nos tor-narmos uma nação moderna.

A incorporação de padrões de produção econsumo, próprios de países desenvolvidos,entre 1945 e 1964, leva a um importante pro-cesso de industrialização, com a instalação desetores tecnologicamente mais avançados, queexigiam investimentos de grande porte. As mi-grações internas e a urbanização ganham umritmo acelerado.

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Para os autores, o desenvolvimento econô-mico rápido da década de 50 criou uma amplagama de oportunidades de investimento, espe-cialmente no período do Governo JuscelinoKubitschek (1956-1960), que tinha como lema“50 anos em 5". Nesses anos, a industrializaçãotrouxe mudanças de hábitos e costumes, alémde produzir uma grande migração interna.

Em 1964, o Governo militar (1964-1979)inaugura um novo “modelo” econômico, social epolítico de desenvolvimento. Mas essa mudançae, especialmente, as conseqüências negativas donovo modelo não eram fáceis de se perceber nomomento, deixando uma sensação de continui-dade essencial no “progresso”.

Começa, assim, um deslocamento permanen-te para as cidades. O Estado construiu estradasde rodagem que facilitaram a migração e aumen-taram o consumo da indústria automobilística.Também foi criada uma infra-estrutura econômi-ca e social (eletricidade, polícia e justiça, escolas,postos de saúde, etc,) nas cidades que foram sur-gindo ou se renovando.

O otimismo era alimentado com novas cons-truções, novos produtos, novos hábitos e costu-mes. Construíram-se arranha-céus equipados comelevadores nacionais. Produziram-se automóveis,caminhões, ônibus, tratores. Surgiram as maravi-lhas eletrodomésticas, além dos supermercados edos shopping centers (o primeiro foi o Iguatemi,de São Paulo, em 1966). É dessa época, também, ohábito de “comer fora”. Multiplicam-se os restau-rantes elegantes, com comida italiana, francesa eportuguesa. Para quem não tem como usufruirdesses lugares, são criadas lanchonetes, fast foods epizzarias baratas. Os hábitos de higiene e limpezatambém mudam, assim como surgem novos emodernos produtos de beleza.

A penetração de valores capitalistas dentro da famílianão teve maiores obstáculos. A casa continua a ser ocentro da vida social, só que a vida em família não é maisgovernada pelo passado, pela tradição, senão que pelofuturo, pela aspiração a ascensão individual, traduzida,antes de tudo pela corrida ao consumo (Ibid, p. 605).

Dessa forma, com a predomínio da Cultura deMassa, a ditadura no Brasil foi fechando os espa-

ços de atuação pública. Mas, para os autores,além da extrema desigualdade social, o regimeconstituiu uma herança de miséria moral, de po-breza espiritual e de despolitização da vida social.

Cardoso de Mello e Novais (1998, p. 637-638)identificam, nesse período, a base do que elesconsideram uma tragédia histórica que se enrai-zou nas profundezas da alma de várias gerações efoi possível graças a uma grande contribuiçãodos veículos de massa, especialmente da televi-são. Para além da violência que empregou duran-te o período autoritário, a “revolução de 64" mol-dou uma outra forma extremamente eficaz de ga-rantir duradouramente a dominação dos ricos eprivilegiados. Forma até muito prazerosa, disfarçadade entretenimento, ou forma muito séria, revestida de infor-mação objetiva: a indústria cultural.

A indústria televisiva consegue, assim, o im-pulso decisivo, porque o Governo militar viunela uma das formas mais eficientes para sua legi-timação. É criado o Ministério das Comunica-ções que fez pesados investimentos em teleco-municações. Ao mesmo tempo, facilitou-se acompra de televisores a crédito.

Exposta a esse impacto, a sociedade brasileirapassou diretamente do analfabetismo à massifi-cação, sem percorrer a etapa intermediária de ab-sorção da cultura moderna. O Brasil, que mante-ve a escravidão até finais do século XIX, 80 anosdepois, parece estar ingressando no “primeiromundo”, mas, na realidade, constrói uma das so-ciedades mais desiguais do mundo.

Diversos autores comentam as conseqüênciasde tamanho salto produzido pela industrializaçãoe acentuado pela rápida difusão e pelo papel datelevisão.

Lúcia Santaella (1990, p. 79) considera que aentrada da TV nesse momento da sociedade bra-sileira provoca o salto abrupto da etapa folclórica da co-municação oral – de que essa população era agente – paraessa espécie de folclore urbano, que são os meios de massa,de que essa população é paciente.

Para Cardoso de Mello e Novais (1998, p.640-641),

quando a TV se expandiu na sociedade brasileira, estanão tinha desenvolvido ainda um nível de autonomia

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de juízo moral, estético e político, assim como os pro-cessos intersubjetivos mediante os quais se dão as tro-cas de idéias e de informações, as controvérsias queexplicitam os interesses e as aspirações, os questiona-mentos que aprofundam a reflexão, tudo aquilo, en-fim, que torna possível a assimilação crítica das emis-sões imagéticas de televisão e o enfrentamento dobombardeio da publicidade.

Para Maria Rita Kehl (1979-1980, p. 21), os di-versos fatores que estão em jogo vão apagando oregional. Uniram-se a busca de um público maior, a in-dustrialização generalizada da produção de bens mate-riais no País e a penetração massiva da indústria culturalem todas as áreas de produção de bens simbólicos. Agora,o circuito pequeno, regional ou local, parece inútil. Segun-do a autora, o fenômeno não é causado pela tele-visão, mas pelo desenvolvimento do País que in-corpora novas e diferenciadas faixas sociais aomercado de consumo cultural. O que ela, sim,atribui à TV é a diluição da contradição, contor-nando as barreiras de classe e de linguagem,transformando a qualidade em quantidade e es-tendendo a mão para os produtores de cultura.

É nesse contexto que surge a TV Globo. Umano depois do golpe militar, ela estava indo ao ar,no Rio, em 26 de abril de 1965. Roberto Marinhoera o dono da emissora. Seu pai havia fundado ojornal O Globo em 1925, mas morreu logo de-pois. Aos 26 anos, em 1931, Roberto Marinhoera o diretor do jornal. Na década de 40, ele deuinício às transmissões da Rádio Globo.

Em relação ao Governo militar, Marinho foirevolucionário de primeira hora e continuou a apoiar to-dos os governos da revolução, como dissera ArmandoFalcão, Ministro da Justiça de 1974 a 1979 (apudAnahia Mello,1994, p. 27). E como “revolucio-nário de primeira hora”, Marinho abraçou, comsua emissora, o objetivo do Governo militar:unificar o País e fazer dele um mercado, objeti-vo que só conseguiria através das grandes possi-bilidades tecnológicas. A introdução do video-teipe, na década de 1960, foi decisiva. As produ-ções feitas no eixo Rio e São Paulo eram levadaspara todo o País, o que favoreceu as redes nacio-nais em detrimento das produções locais. O Paísinteiro tinha que aprender a se reconhecer nosmodelos de vida vindos de Rio e São Paulo. Mas

o fato mais importante para a integração nacio-nal foi quando, em primeiro de setembro de1969, surge o Jornal Nacional, primeiro telejornala atingir praticamente todo o território brasilei-ro em tempo real.

A TV Globo, paralelamente à aceleração daeconomia brasileira, organiza-se como uma indús-tria tipicamente capitalista, de acordo com umamentalidade empresarial, que aprendeu junto aogrupo americano Time-Life. Segundo Homero Ica-za Sanchez (apud Kehl, 1979-1980, p. 96), a TVGlobo, nesse momento, não assume um projetogovernamental, mas sim um papel de rede: rede,porque é um projeto econômico. Se não tem umarede nacional, não se pode cobrar por um minuto de comer-cial o que se cobra. Então, a questão é econômica.

Na década de 70, a entrada da TV a cores aju-dou a mostrar um Brasil que vai “pra frente”:Novo, moderno, colorido, um país onde o so-nho da ascensão social parece estar a um passoda realidade. Como constata Anahia Mello(1994, p. 33), nessa década, a “unidade nacio-nal” passa por frases e fatos como “Brasil,ame-o ou deixe-o” e a transmissão ao vivo, viasatélite, da Copa de 74, no México. O Estadofornecia cerca de 30% das verbas de propagan-da. Pagava por algumas e exigia a exibição deoutras, de graça. A televisão era o principal veí-culo para suas mensagens de propaganda.

Dessa forma, aquele brasileiro ou brasileiraque atravessara, na década de 50, a fronteira rural,expulso pela pobreza, passou por um rápido pro-cesso de desconstrução e de re-construção de umBrasil ao qual teve que se adaptar. O homem e amulher desarraigados que perderam, em um cur-to período de tempo, a imagem de seu país talcomo o concebiam dez ou quinze anos atrás(uma imagem carregada de valores rurais, aindaque defasados em relação à época), como lembraKehl (1979-1980, p. 11), perderam ao mesmotempo seus canais habituais de articulação com acomunidade – “canais” que vão do campinho defutebol de várzea à participação sindical, da festade rua às eleições diretas. A esse brasileiro resta oconsolo da festa Global, resta entrar em cadeia àsoito da noite pelo Jornal Nacional ou assistir “com

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todo o Brasil” a novela do momento. Nessa si-tuação, avalia a autora, resta a televisão como en-carregada de reintegrá-lo sem dor e sem riscos àvida da sociedade, ou ao lugar onde as coisasacontecem. Esse lugar é o próprio espaço da ima-gem televisiva, e esse é o principal papel que arede líder em audiência representou na década.

Sobre esse “lugar”, que chamo neste trabalhode telerrealidade, especialmente sobre esse Brasilconstruído pela e na rede Globo, tratarei nas pró-ximas páginas.

2.2 O Brasil na Globo

O antropólogo social Everardo Rocha (1995,p. 96), falando do cinema e da televisão, afirmaque a definição básica que a comunicação demassa oferece de si mesma é dizer que, lá dentroda tela, se processa uma existência em sociedade.

A sociedade que se processa dentro da RedeGlobo de Televisão é quase identificada com o“Brasil”. A emissora conseguiu forjar um Brasilque está em muitos imaginários, tanto no Paísquanto no exterior, como a imagem mais real doPaís e, às vezes, a única.

De alguma forma, o publicitário WashingtonOlivetto (apud Mello, 1994, p. 26) confirma esseconceito, em um depoimento sobre a Rede Glo-bo. Olivetto reconhece nela um Brasil telerreal. OBrasil, às vezes, me dá a sensação de não ter sido descober-to, e sim escrito. O Brasil é um país ficcional (...) E daíesse fascínio. A ficção invade a vida das pessoas a pontodelas se fanatizarem pelas novelas.

A historiadora Maria Rita Kehl (apud AnahiaMello, 1994, p. 38) tenta perceber a interaçãoentre o Brasil telerreal da Globo e a sociedadefora da tela. A impressão que eu tenho é que a Globoconseguiu, melhor do que qualquer política repressiva deproibição ou censura, alterar a consciência do brasileirosobre sua condição.

A naturalidade com que a televisão se incor-pora à vida da sociedade8 é equivalente à natu-ralidade com a qual a sociedade é representadana tela. Na construção do Telebrasil, a Rede

Globo apela a uma introdução permanente deelementos familiares à cultura brasileira ou aacontecimentos históricos do País. Segundo Kehl(1979-1980, p. 27), essa aproximação da realidadebrasileira partiu das reivindicações por “mais rea-lismo”, “menos fantasia”, “menos ilusão”, vin-das de setores mais avançados do público e dospróprios críticos. Havia uma expectativa “pro-gressista” de que a televisão fosse um espelho darealidade. A emissora, então, resolveu adotar estaestratégia. Colocar o “povo” no vídeo e não omitir nemmesmo os fenômenos criados pelas vanguardas da socieda-de, abordados, evidentemente, com o devido cuidado, paraque as tais massas não os considerem incompreensíveis.

O “mergulho” (não muito profundo e ma-quiado) na realidade brasileira surge, segundo aautora, da constatação de que, melhor do queomitir os problemas e exigências da realidade so-cial, é encapá-los sob a tutela da emissora demaior audência. Dessa forma, acontece uma inte-gração harmônica até daqueles assuntos que po-deriam ser ameaçadores para a ordem vigente.

Nesse procedimento, foi fundamental a cria-ção do Departamento de Pesquisa da Globo, porJosé Bonifácio Sobrinho (o Boni), em 1971. Osetor funciona como auxiliar das áreas de progra-mação e produção, analisando comportamentos,tendências e demandas dos espectadores. ParaKehl (1986, p. 221), foi esse departamento quefez com que a televisão fosse capaz de se anteci-par às demandas em massa do público, captandoo emergente através de suas pesquisas e transfor-mando-o em mito via TV. A autora refere-se aomito de acordo com a definição de Barthes9. Otrabalho da equipe seria captar (roubar...) demandas (in-conscientes?) ainda não transformadas em fala social, ain-da latentes, ou não-expressas ou mal expressas ou expres-sas por minorias, e transformá-las na versão que a Globo(via Boni) considera ser a fala conveniente (Ibid).

Essa, entre outras mudanças, faz parte do quea Rede Globo aprendeu com a Time-Life: umnovo espírito de empresa para a produção demercadoria massiva. A influência do grupo ame-

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8 Devemos ter em conta que a TV está (geralmente em um lugar de destaque) em 87,7% dos domicílios brasileiros.9 Para Barthes, mito é uma fala roubada.

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ricano ajudou a Globo a criar um modelo em-presarial próprio e sem precedentes nas empre-sas de comunicação, no qual adequava o modelomultinacional à realidade brasileira, com “acara” do Brasil. Uma das mercadorias com asquais a Emissora melhor consegue atingir asmassas e colocar o “Brasil” em cena seriam astelenovelas e minisséries.

2.2.1 A cena brasileira na teledramaturgia

A partir de 1969, importantes transforma-ções na TV Globo atingiram a teledramaturgia,tendo em vista a consolidação da Empresa noramo da comunicação e a construção de umaidentidade nacional.

Beneficiada pela implantação do sistema detelecomunicações da Empresa Brasileira de Tele-comunicações (Embratel), a programação daemissora, transformada agora em Rede Globo deTelevisão, passou a ser exibida em outros esta-dos. Foi o ano das mudanças no Departamentode Telenovelas.

A novela, como hoje a conhecemos, surge nomarco de uma preocupação da Globo com a“melhoria de qualidade” e o incremento da pro-gramação nacional em horário nobre, no inícioda consolidação da Rede. E resulta numa linha deprogramação que se firma por volta de 1973 como advento da TV a cores no Brasil (que permite amelhoria de qualidade no padrão visual da publi-cidade, feita a cores já há mais tempo por moti-vos de definição da imagem, “puxando” por suavez a qualidade visual dos programas) e coinci-dindo com o pico da euforia consumista das clas-ses médias.

Maria Rita Kehl (1986, p. 277) enumera umasérie de razões pelas quais a novela é a forma pre-ferida de entretenimento dos brasileiros.

Porque telenovela não é literatura e não exige mergu-lho, concentração, ruptura com o real imediato. Porquetelenovela não é cinema e não solicita do espectadornada além de sua atenção mais superficial, um mínimode sua inteligência e um investimento emocional segu-ro. Porque telenovela não é cinema, e, na sala acesa, en-tre mastigações, vai-e-vens e zunzuns, marca a conti-nuidade do cotidiano, em vez de romper com ele. Por-que telenovela “não tem linguagem”; a redundância e a

simplificação das posições de câmera (plano/con-tra-plano; um abuso de closes e de planos médios); a ca-sualidade tranqüila com que a montagem encadeia asações com a mesma naturalidade com que se passa deuma fofoca a outra num papo de comadres (...) a pró-pria naturalidade com que os comerciais se inserem en-tre cenas importantes, construídos com os mesmos re-cursos de câmera, montagem, expressão dos atores,etc, de modo a que pareçam ter uma relação de comple-mentação com a novela; tudo isso cria a impressão deausência de uma linguagem, de uma construção na tele-novela. Pode-se entrar e sair da novela sem conflitos, oque dá a impressão de que a telenovela é como a vida.

Para Hamburger (1998, p. 449), as telenovelasda Globo modernizam sua linguagem nesse pe-ríodo. Elas ultrapassam definitivamente os limi-tes impostos pelo ambiente dos estúdios e seuscenários restritos, pela tradição da formação tea-tral e da experiência de teleteatro, diálogos empola-dos, marcações rígidas, expressões exageradas – pela suaorigem nos dramalhões mexicanos e cubanos diretamentechupados do gênero folhetim europeu do século XIX. AGlobo passa, assim, a investir o talento de seus autores nolucrativo terreno da “realidade brasileira”.

Em relação às tramas apresentadas pelas tele-novelas, Carvalho (In Kehl 1979-1980, p. 55) dis-se que a maior parte dos conflitos partem de ati-tudes mesquinhas em torno da trama central deascensão social através de algum romance. Essaforma de ver a vida reproduz continuamente amaneira como a ideologia explica os fatos históri-cos do mais corriqueiro problema doméstico àmais intensa paixão – apresentando-os como fa-tos consumados, naturais, inevitáveis.

Em relação às personagens que interpretamessas tramas, eles tentam personificar o “povo”,mas, segundo a autora, não é a cara do povo dojeito como ela é. Tratando de Globo: o povo banhado,barbeado e, no mínimo, com a dentadura em bom estado(Kehl, 1979-1980, p. 69).

A exibição, em 1967, da telenovela Véu deNoiva, de Janete Clair, ambientada nos subúrbioscariocas, marcou a introdução de uma nova linhada programação ficcional, voltada agora parauma temática contemporânea, assentada sobre arealidade brasileira, e mais identificada assim como público. Afastada da emissora, a diretora de te-lenovelas Glória Magadan – que promovera a

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adaptação de obras da literatura mundial, ambi-entadas num passado remoto, com um tratamen-to exacerbado e inverossímil, desde a criação daTV Globo em 1965 – foi substituída por DanielFilho, abrindo espaço para a consolidação deuma nova tendência. A presença de Janete Clairna emissora e a contratação naquele mesmo anode seu marido, o teatrólogo Dias Gomes, permi-tiu a construção de uma teledramaturgia voltadapara uma temática brasileira através de uma lin-guagem “realista”.

Essa linguagem “realista” opõe-se à melodra-mática, romântica e sentimental. O “realismo” dasnovelas é constituído pela estrutura do cotidiano,onde os elementos da realidade se constroemcomo representação do cotidiano vivido, numabusca de fidelidade máxima com o efeito de veros-similhança potencializado (Ibid). Busca-se distan-ciar, promover o apagamento estratégico da idéiade representação e de ficção que se dilui sob a rea-lidade construída dramaturgicamente.

Por outro lado, segundo Hamburger (1998, p.440), a telenovela apresenta uma compreensãometaforizada da vida fora das telas.

A vida, como a percebemos normalmente, é confusa eaté incoerente. Andamos por uma rua, ouvimos pedaçosde frases, vemos pessoas de quem não sabemos nada ematividades, cujo sentido nos escapa. Percebemos sonssem nem os escutar, cheiros, cores que irrompem; senti-mos calor, frio, fadiga que resultam de carregarmos umapesada carga nas costas. Cada uma dessas sensaçõespode predominar, uma depois da outra, dependendo dapessoa, do estado de espírito, do momento.

Escrever uma história ou um roteiro significa,então, pôr ordem nessa desordem: fazendo umaseleção preliminar de sons, ações, palavras; des-cartando muitas delas e acentuando ou reforçan-do o material selecionado. Significa violar a reali-dade (ou pelo menos, o que percebemos comorealidade) para construí-la de outra forma, confi-nando as imagens num determinado enquadra-mento, selecionando a realidade: vozes, emana-ções, às vezes idéias.

Segundo Carvalho (In Kehl: 1979-1980, p.53), o “realismo”, “realidade brasileira”, “vidareal” passam a ser, nessa década, as grandes ban-

deiras dos autores e diretores de telenovelas, queencontram, na imitação das aparências da realida-de empírica, um elemento de sucesso, favorecen-do ainda mais a identificação emocional dos es-pectadores com a problemática vivida e sofridapelos personagens principais. Fala-se em “dosesde realismo”, “nível de realidade”, “graus deaproximação com o real”, como se, num passe decontabilidade, a realidade para a televisão funcionassecomo um tempero, um superaditivo a ser acrescentado emdoses maiores ou menores à obra – que assim ocupariaum lugar medido numa escala de zero a dez, ou seja: dafantasia desvairada à realidade nua e crua. Consistin-do a última, a reprodução perfeita da vida coti-diana pela TV, no ideal (inatingível?) a ser alcan-çado. Para a autora, a convivência com tão peda-gógicas pretensões (pois trata-se de ensinar aoespectador das telenovelas como é a sua realida-de ) mostra que as fórmulas que determinam osucesso comercial das novelas permanecemmais ou menos intocadas.

A incursão da Rede Globo em outros produ-tos ficcionais, tais como os seriados, na década de1970, e as minisséries, a partir de 1982, reafirmoua mesma tendência expressa pelas telenovelas, nosentido de estabelecer uma verossimilhança, pro-curando trazer à tona temas ligados à realidadenacional e ao cotidiano do público, em linguajarcoloquial. Novos temas foram sendo absorvidos,consoantes com as transformações políticas e so-ciais que se processaram ao longo desses anos,entre os quais o fim do regime militar e a mudan-ça nos costumes, além da diminuição da censura,que contribuiu para uma maior liberdade no tra-tamento dos temas, sobretudo aqueles ligados aquestões de ordem sexual.

Com o mesmo tom voltado para aspectos darealidade brasileira, as minisséries brasileiras vêmse constituindo também um importante agentede construção de uma identidade nacional. Entreos diferentes temas tratados nessa linha de pro-gramação, destaca-se a representação da históriabrasileira recente. Mônica Almeida Kornis (2001)faz uma abordagem dessas minisséries, a partir de1986, momento em que o País inicia um processode redemocratização. Para a autora, é, assim,

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numa conjuntura pós-regime militar, distinta da-quela na qual a Empresa foi criada e teve o seupoder consolidado, que a história brasileira dosúltimos 50 anos passa a ser representada em seisminisséries exibidas entre os anos de 1986 e1998, no tradicional horário após as 22h.

Partindo do pressuposto de que a Rede Globotorna-se uma narradora da história do Brasil re-cente, ao construir um discurso sobre a Nação emsua programação ficcional, essas minisséries, se-gundo a autora, são uma narrativa ficcional queconstrói uma memória da história recente nacio-nal, elegendo momentos específicos que permi-tem a abordagem de temas que se ajustam às de-mandas da conjuntura de produção e exibição.

Para a autora, a forma como as minisséries fa-lam do passado significa uma forma de falar sobreo presente, num processo de espelhamento típicode uma representação alegórica. As minisséries

ambientadas no que a autora denomina de “passa-do recente” foram produzidas em momentos dife-rentes dos últimos 15 anos, alternando sentimen-tos de otimismo e pessimismo no que diz respeitoao processo de consolidação de uma nova ordem– democrática – pós-regime militar.

É no interior da programação das minissériesque será construída uma história do Brasil recente,lado a lado com produções que retratam outras fa-ses da história nacional, além de aspectos da socie-dade contemporânea. Realizam-se, nesse formato,trabalhos de caráter mais autoral, com um investi-mento maior na qualidade. Exibidas num horáriode menor audiência para um público, em princí-pio, mais seletivo, as minisséries trazem a marca deum produto nobre, que será ainda beneficiado, aolongo da década de 1990, pela introdução de no-vos recursos técnicos que procuram, crescente-mente, aperfeiçoar a verossimilhança.

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3 Telerrealidade no telejornalismo da Globo

A construção do Telebrasil teve um lugar im-portante através do telejornalismo da Globo, quepor excelência é o espaço da emissora para “mos-trar” o País. O material com que o Brasil da Glo-bo é construído surge a partir da década de 60 echama-se de Padrão Globo de Qualidade. Umpadrão estético que consiste numa forma de or-ganizar os diversos elementos dentro da produ-ção da Emissora, que cria uma ambiência afetivacom os telespectadores e desenvolve um gosto.Esse padrão caracterizado pela limpeza e assepsiaapresentou, ao longo dos anos, um Brasil clean.Através da apresentação de notícias, ao longo detrês horas diárias, em programas que duram dedois a 45 minutos, a Rede adotou um modelo querelaciona diversas formas de apresentar a notíciacomo o drama, os faits-divers, os “fatos-ônibus” e,sobretudo, o espetáculo.

O telejornalismo na Globo foi o primeiro a tera possibilidade de transmissão em tempo realpara todo o País. Esse fato e a forte retórica “bra-sileira” do telejornalismo e de toda a Emissora,junto com sua capacidade de transformar tudoem entretenimento e sua alta qualidade técnica,além de uma liderança absoluta, lhe deu uma cer-ta identificação das imagens por ela veiculadascom o Brasil. E se “a realidade é TV e a TV é maisque a realidade”, o Brasil é a Globo (especialmen-te o Jornal Nacional, mas não só) e a Globo é mais(Brasil) que o Brasil.

A partir de algumas experiências anterioresem telejornais que seguiram a mesma orientação,a Emissora colocou no ar, em 1999, um telejornalcom características um pouco diferentes dasmencionadas até aqui. O Linha Direta surgiucomo programa de utilidade pública e com con-teúdo “popularesco”. O programa mostra casosde crimes (geralmente assassinatos) que aindanão foram totalmente resolvidos pela justiça,

porque a pessoa que cometeu o crime está foragi-da. Desde uma estrutura de drama numa constru-ção de espetáculo, o programa adotou uma fór-mula que é usada pelo restante da Emissora paraabordar esse tipo de assuntos. Os acontecimen-tos são desconstruídos e novos acontecimentossão construídos com uma referência na realidadee uma grande quantidade de elementos telerreais.

3.1 O Padrão Globo de Qualidade

Boni foi um dos responsáveis por criar e im-plementar o Padrão Globo de Qualidade (PGQ),marca industrial e identidade visual da Rede. Se-gundo ele (apud Kehl,1986, p. 186), o PGQ é aforma da Globo se relacionar com o público e ospatrocinadores.

Para habituar o telespectador a ver nosso canal, pre-cisamos colocar no ar um produto que você e o mer-cado estejam dispostos a consumir. E você e o mer-cado têm que confiar que, assim que aquele produtoacabar, vai ser substituído por outro que mereça igualconfiança. Na relação do hábito, passa a existir tam-bém a afetividade.

Ou seja, o hábito de uma programação fixa erepetida por parte da Emissora – aquelas pessoasestão sempre naquele horário nas nossas casas,sem falhar – cria o afeto nos telespectadores, que,ao mesmo tempo, reforça seu hábito e sua “fide-lidade” à Emissora.

Essa nova visão levou a Globo a uma série demudanças, adotando em sua grade de programa-ção a horizontalidade e verticalidade inventadapela TV Excelsior, para criar espaços permanen-tes nos quais alimentou essa relação afetiva como telespectador e comercial com o patrocinador.A Rede burocratizou suas decisões artísticas,criando diretores de núcleo, diretores gerais de

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departamento e por aí a fora. Isso acarretou umahomogeneização de estilo, como lembra Gilber-to Braga, um dos criadores de novelas globais (InAlmeida-Araújo, 1995, p. 29).

Dessa forma, o PGQ, um padrão que se cons-titui na marca visual da Emissora, foi incorpora-do em 1973. Mas não foi essa mudança que atransformou em líder de audiência. A Globo já ti-nha conquistado a audiência através de progra-mas de cunho popularesco. Nos primeiros anos,buscou todas as formas de comunicação da épo-ca sem nenhum pudor, igual às outras emissoras.Ela mantinha programas como O homem de sapatobranco; e apresentadores como Longras; SílvioSantos; Dercy; o Chacrinha, e as novelas mexica-nas da Glória Magadan. O padrão estético daGlobo, até então, era marcado pelo grotesco, damesma forma que o das outras emissoras.

Depois, a TV Globo começou a escolher umpúblico privilegiado, um público consumidordos novos e mais sofisticados produtos dados aoconsumo, como automóveis e eletrodomésticos.A partir daí, começou a se estruturar não em ter-mos de mudar a qualidade de sua programação,mas em termos de estética. Dessa forma, foicriando uma nova grade de programação, per-passada por uma estética da classe média, man-tendo o mesmo nível de qualidade, como lembraValter Avancini (apud Kehl, 1986, p. 244).

No entender de Avancini, a programação daGlobo teria sido vestida pela eletrônica, pela altaqualidade tecnológica.

Com isso, nós passamos a ter mais cuidado com a pro-gramação, ou seja, a vestir os programas (...) Ela tem umalinguagem que foi determinada pelo equipamento, ouseja, a eletrônica criou a imagem da Globo. A sua lingua-gem é representativa do tipo de câmera que ela tem, dotipo de croma que ela usa. O resto é igual... Não é o pro-fissional criando a partir do equipamento, é o equipa-mento se impondo, e ele mesmo sendo a linguagem.

Nessa tecnologia de ponta, o VT foi o primei-ro a possibilitar uma linguagem muito diferenteda antiga programação ao vivo. Os cortes na edi-ção permitem muito mais agilidade na seqüênciadas imagens; o mosaico visual ininterrupto, que

hoje se conhece como a “linguagem da televi-são”, foi o que deu a grande diferença com a lin-guagem teatral.

Com o VT, a Globo adquiriu fórmulas e vícios.A improvisação e a espontaneidade foram desa-parecendo. Limpeza visual tornou-se sinônimode boa qualidade. A ausência de ruídos, aciden-tes, interferências, pequenos momentos em“branco” e imperfeições. Foi esse um dos pri-meiros passos para a construção de um Telebrasillimpo, com brilho, sem ruídos, sem “brancos”,sem acidentes nem interferências, sem cortes naedição, portanto, transparente, um Brasil “real”.

A presença de malabarismos visuais, a utili-zação obrigatória de música, a impossibilidadede silêncios, a voz em off anunciando o próximoprograma, enquanto os créditos e a música-temado programa que apenas terminou ainda estãono ar, o plim-plim junto da logomarca e o “Glo-bo e você tudo a ver” de antigamente, ou o “Agente se vê por aqui” de hoje. Tudo isso compõea marca do PGQ. Padrão que se torna mais forteque o conteúdo de sua programação na determi-nação da preferência (e da formação de hábito)do espectador.

A Globo se transforma, assim, numa emissora“séria”, que promete não dar baixaria (e realmen-te não dá... baixaria técnica), como avalia Kehl(1986, p. 247), sendo que ela se transforma numaemissora à altura de participar do ambiente danova sala-de-estar, onde o ouvinte de classe mé-dia dos anos 70 brinca de futuro executivo de su-cesso, enquanto acompanha os comerciais de ca-dernetas de poupança.

Diversos autores concordam que o PGQ foiquem resolveu de vez os grandes problemas bra-sileiros de miséria e desigualdade econômica, so-cial e cultural – dentro da telerrealidade Global –, éclaro. Para Valter Avancini (apud Kehl, 1979-1980,p. 99-100), o PGQ tornou-se um parâmetro de “perfei-ção”, de “eugenia”, de “limpeza de imagem”, o que con-correu, tanto quanto a censura oficial, para abortar ou al-terar projetos de veiculação da realidade brasileira.

Para Suzana Kilpp (2001, p. 34-35), nessa lin-guagem/formato efetuou-se uma:

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despolitização das imagens, uma diluição das diferen-ças e desigualdades num universo de imagens assépti-cas e folclorizadas de um Brasil (pobre, mas) modernoe unitário, todo ele belo, jovem e bronzeado em Copa-cabana. Esse imaginário, tecnicamente forjado em es-treita vinculação com o marketing, o apoio do Governoe das agências de propaganda, deslegitimou todas as de-mais linguagens/formatos de imagens televisivas.

Para Maria Rita Kehl (1979-1980, p. 13), a lin-guagem Global não só influenciou as outras lin-guagens televisivas, mas também toda a produ-ção artística de massa.

Essa imagem glamourizada, luxuosa ou, na pior das hi-póteses, antisséptica (quando é imprescindível mostrara pobreza, convém, ao menos desinfetá-la: em vez declasses miseráveis, um povo “humilde porém decente”,para não chocar ninguém) contaminou a linguagem vi-sual de todos os setores da produção cultural e artísticaque se propõem a atingir o grande público.

Eu acrescentaria que essa linguagem/forma-to, além de contaminar as outras emissoras e aprodução artística de massa, em maior ou menormedida, contaminou o gosto dos brasileiros,além de sua forma de ver/interpretar o Brasil.

Um outro aspecto a ter em conta na hora defalar do sucesso da Emissora, é que o grande mé-rito inovador da Globo foi ter percebido, antesdas outras emissoras, que um programa de televi-são pode se dar ao luxo de tratar de conteúdosmais ousados, mais atuais, mais “realistas”, sesouber transformar tudo em objeto de distração.Para Kehl (1979-1980, p. 14), distração é, literal-mente, aquilo que o público consome distraído,entre um comercial e outro, entre a sobremesa eo cafezinho, entre o noticiário esportivo e as cha-madas para a próxima novela.

Essa predisposição privilegiada do veículopara o entretenimento e para a distração estádada pelas condições ambientais de máxima ex-posição, na qual a TV desenvolve sua relaçãocom o público, e pelas condições de intimidade

nas quais o público vê a TV. Já que, como lembraa autora, para entrar no mundo da tevê,

as pessoas não precisam mais criar um ambiente, comoa sala escura (assim era quando a TV tinha pouca nitidezde imagem, depois os aparelhos se aperfeiçoaram). Nãoprecisa criar um clima “sacro” de silêncio diante do ví-deo, (apesar de que ela ocupa um lugar no centro dasatenções). Pode-se conviver com os barulhos do jantar,do telefone, das crianças. Ao mesmo tempo que a tele-visão não exige nenhuma ruptura com o real imediato(como o cinema, a literatura, o teatro, o museu), ela en-volve completamente o telespectador sem ele sair domundo “real”.

Na Rede Globo, como em outras emissorastambém, esse converter tudo em entretenimentoe espetáculo está, muitas vezes, perpassado demediocridade e banalização, como se fossemuma única linguagem. É como se a Emissora ten-tasse dizer, em grande parte de seus produtos,que o massivo (e o comercial, que as massas con-somem) só pode acontecer nivelando-se no maisbaixo. Essa retórica de que a banalização é umatributo do massivo parece ser compartilhadapor, inclusive, emissoras educativas, que o assu-mem pelo outro lado, quase demonstrando que a“qualidade” em televisão só é possível desnatura-lizando o veículo, no sentido de deixar de lado oentretenimento e os recursos tecnológicos. Comose programas de qualidade levassem, necessaria-mente, a pouca audiência e a uma linguagemracional, abstrata e excludente. Seguindo esseraciocínio, parece que só há dois caminhos: a op-ção pela banalização massiva e altamente tecno-logizada, ou a qualidade racionalista altamenteexcludente e com pouca tecnologia10.

Portanto, com seu PGQ, e mais no geral, aRede Globo optou por uma estética primei-ro-mundista, uma estética clean. Um dos exem-plos mais claros do uso do clean está na logomarcada Emissora, o globo virtual de Hans Donner,cujo movimento é seguido pelo toque sonoro doplim-plim eletrônico. Segundo Esther Hambur-

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10 A própria Globo contradiz essa premissa com diversas exceções, apresentando produtos massivos de muita qualidadetecnológica e social. Existem, de vez em quando, na Emissora, obras de alto valor social, no sentido em que Walter Ben-jamin (1985) entendia o valor social de uma obra de arte: maior será o valor social da obra quanto menor é a distância en-tre fruição e crítica.

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ger (1998, p. 448), a vinheta da Globo se posicio-na entre iguais (à diferença do indiozinho da TVTupi, por exemplo, com uma antena de cocar,feito à mão livre, que indicava apropriação deuma tecnologia exógena).

A logomarca manifesta a intenção de quem está perfei-tamente atualizado e apto não só para receber imagenscom autonomia, mas também para emitir imagens parao mundo. Os tons metálicos da vinheta high-tech expres-sam sua disposição positiva para com a modernidadeque o meio televisivo “antena”. O plim-plim sugere ainclinação a dominar as regras da globalização (Ibid).

Para Sodré e Paiva (2002, p. 34), uma catego-ria estética é um estado afetivo, uma forma deorganizar os diversos elementos artísticos den-tro da obra. Os mesmos elementos, diversa-mente combinados, produzem efeitos artísticosdiferentes em sua qualidade própria. Um siste-ma coerente de exigências para que uma obra al-cance determinado gênero (patético/trágico/dramático, cômico/grotesco/satírico) no inte-rior da dinâmica da produção artística. A cate-goria responde tanto pela produção e estruturada obra quanto pela ambiência afetiva do espec-tador, na qual se desenvolve o gosto, na acepçãoda faculdade de julgar ou apreciar objetos, apa-rências e comportamentos.

Conforme os autores, em televisão, predomi-nam hoje duas categorias estéticas, padrões deprogramação que não necessariamente são exclu-dentes: o “de qualidade”, ou seja, esteticamenteclean, bem comportado em termos morais e visuaise sempre “fingindo” jogar do lado da “cultura”; eo do grotesco, em que se desenvolvem as estraté-gias mais agressivas pela hegemonia da audiência.

Ao mesmo tempo, poderíamos diferenciarduas modalidades expressivas diferentes do gro-tesco. O primeiro é o grotesco chocante, tão pró-prio da televisão brasileira, voltado apenas para aprovocação superficial de um choque perceptivo,geralmente com intenções sensacionalistas. Essetipo de grotesco é definido por Sodré e Paiva(Ibid, p. 139) como um particular rebaixamento depadrões e valores num espaço televisível. Haveria umaoutra modalidade de grotesco, o grotesco crítico.Ele dá margem para um discernimento formati-

vo do objeto visado. Ou seja, não propicia apenasuma privada percepção sensorial do fenômeno,mas principalmente o descobrimento público ereeducativo do que nele se tenta ocultar. É, assim,um recurso estético para desmascarar convenções e ideais,ora rebaixando as identidades poderosas e pretensiosas,ora expondo de modo risível ou tragicômico os mecanismosde poder abusivo (Ibid, p. 69).

A Rede Globo, sem deixar de ser clean e semabandonar seu PGQ, que dá sua reputação de“qualidade” em todos os produtos, tem adotado,em alguns dos seus programas, o grotesco cho-cante, especialmente desde que as outras emisso-ras ganharam audiência com essa estética.

Sodré e Paiva (2002, p. 139) comparam a te-levisão do grotesco chocante a uma feira públicade variedades e, ao mesmo tempo, questionam:por que essas variedades têm necessariamentetal padrão? O que condiciona o tal “contrato deleitura” da tevê com seu público? Eles respon-dem a essas perguntas, dizendo que a TV não éespelho de realidade nenhuma, exceto de si mes-ma, e que o que o espectador de TV consome é oato de ver, de espiar, de satisfazer-se escopica-mente. O que se poderia chamar de “desejo au-diovisual” é esse movimento de espiar o mundoou as imagens, somente pela pulsão do olhar, in-dependentemente dos conteúdos ou dos signifi-cados. A mirada concentra-se sobre o chocantena televisão do mesmo modo que sobre o mala-barista de feira pública ou sobre o acidente nabeira da estrada. Os autores sintetizam sua teo-ria, dizendo que as emissoras tendem a seguirapenas a lógica da captação do olhar, por maisgrosseira e rebativa que seja.

Para os autores, o uso dessa estética na TV atuasobre o imediatismo da vida cotidiana e incorpo-ra-se à idéia que o indivíduo tende a fazer de simesmo e de seus pares. Nesse contexto, a ótica do gro-tesco suscita o riso cruel, massivo, pretensamente democráti-co, em que antigos objetos de indignação (miséria, opressão,falta de solidariedade, descaso dos poderes públicos, etc) reca-em na indiferença generalizada (Ibid, p. 132).

O grotesco chocante permite rir do sofrimen-to, da dominação, da brutalidade, do ridículoalheio – como se fosse passada a mensagem

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sub-reptícia de que nada de humano pode mais seesperar do Outro, e de que a seriedade indignadanão leva a parte alguma. Para os autores, a impo-tência humana, política ou social de que tanto seri é imaginariamente compensada pela visão desorteios e prêmios financiados pelos patrocina-dores dos programas. Em face do sentimentocrescente de que nenhuma política de Estadopromete ou garante mais o bem-estar coletivo, adesesperança das camadas mais baixas das classesperiféricas é amenizada por jogos que envolvema providência e o destino.

3.2 O telejornalismo na Globo

O telejornalismo da Rede Globo de Televisãoé um dos espaços fundamentais de construçãodo Brasil da Globo. A Emissora criou um padrãotelejornalístico tão forte que estabeleceu-se comonovo modelo de telejornal, que as outras emisso-ras querem alcançar, e também transformou-seem referencial para a produção acadêmica e paraa formação de jornalistas na área de televisão.

Além de unificar o País em tempo real, o jor-nalismo, na Globo, tornou-se uma escola de in-terpretação e tratamento do real, uma espécie deformato para aplicar na realidade, uma forma dever e interpretar – numa única ação – os fatos.

Sem fugir da linguagem Global, os telejornais,como os outros programas combinam realidadee ficção. Eles usam os artifícios das emoções paraobter um telespectador mais seduzido, assimcomo também estão perpassados do clean e, emalgumas ocasiões, do grotesco chocante. Tam-bém o telejornal constrói uma ambiência, um“relacionamento” afetivo e próximo do interlo-cutor; o objetivo é, como em toda a programa-ção, conquistar a atenção do telespectador paraque permaneça ligado à Emissora.

O telejornalismo Global, na forma em quehoje o conhecemos, remonta ao primeiro jornalemitido em tempo real para todo o País. Em 1ºde setembro de 1969, o Jornal Nacional (JN) es-treava, em rede, para todo o Brasil. Sua frase deimpacto na abertura mostra, além de sua fina sin-

tonia com o Governo da época, a identidade dotelejornalismo da Emissora: “O Jornal Nacional daRede Globo, um serviço de notícias integrandoum Brasil novo, inaugura-se neste momento”.

A Globo gasta 40% de seu orçamento em jor-nalismo. A Emissora tem sucursais em Londres,Nova York e mantém mais de 2 mil jornalistasprofissionais ganhando altos salários por contade alguns importantes programas. O Bom DiaBrasil, de manhã; o Jornal Hoje, ao meio-dia; o Jor-nal Nacional, no horário nobre; e à meia-noite, oJornal da Globo. Semanalmente, tem ainda o Fan-tástico, aos domingos, e o Globo Repórter, nas sex-tas-feiras. No conjunto, embora as 89 emissorasafiliadas à TV Globo tenham que apresentar notí-cias locais todos os dias, a programação é produ-zida no Rio e em São Paulo.

Na sua concepção de notícia, a Globo criouum novo modo de apresentação, que incutiu notelespectador uma forte ligação entre jornalismoe espetáculo, forma construída tecnicamente efortalecida pela entrada da cor na TV. Num estu-do comparativo entre telejornais de diferentesemissoras, Rezende (2000, p. 269) apontou algu-mas diferenças no telejornalismo Global. Segun-do o autor, no JN, por exemplo, a figura do edito-rialista e do entrevistador não existem, assimcomo o tempo dedicado às sonoras (quando fa-lam os personagens da notícia) em função demaior número de apresentadores das notícias. Asreferências a outros telejornais e programas daemissora e as matérias ligadas à prestação de ser-viços de utilidade pública foram mais freqüentesno JN que nos jornais de outras emissoras.

Ribeiro e Botelho (In Kehl, 1979-1980, p.93-102) fazem uma descrição dos elementos queredefinem o conceito de notícia para a Globo. Se-gundo eles, a boa imagem passou a representarum dado importante no critério de seleção do no-ticiário, ou, pelo menos, influir no tempo de du-ração da matéria: se o filme tinha bom contraste,belas cores, foco perfeito, então valia a pena es-tender a reportagem.

A maneira com o telejornal organiza o mundoé comandada pela tecnologia. Cobrindo um fan-tástico volume de assuntos, o Jornal Nacional se

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marcou também pela fragmentação da informa-ção. Dizem sobre isso os autores que um depoi-mento de 40 segundos no ar, por exemplo, eraconsiderado extremamente longo.

O padrão estético adquirido pela Emissoratambém incidia sobre a notícia, sendo que pes-soas com defeito físico ou de ar muito miseráveldeveriam a todo custo ser evitadas no vídeo.

No Jornal Nacional, o povo era bonito e bem alimenta-do. O otimismo, a idéia de um Brasil grande e decidida-mente unificado, riscado da lista dos países subdesen-volvidos e agora encabeçando, graças ao “milagre bra-sileiro”, o bloco dos intermediários, quase roçando odesenvolvimento – esta era a imagem que o principaltelejornal do País deveria alimentar (Ibid, p. 33).

Além disso, é preciso considerar que a Globoé líder na utilização de recursos ficcionais. AEmissora categoriza as formas de remontagemdo cotidiano em três tipos: simulação, versão ereconstituição. Segundo Marilene Mattos (2001,p. 8), há diferenças claras entre as três formas.As simulações são baseadas em apenas uma hi-pótese e sem dados concretos de como aconte-ceu o episódio na realidade, isto é, as cenas exi-bidas são imaginadas pela Emissora, e o uso desimulações é mais freqüente no programa LinhaDireta, como veremos no próximo capítulo. Já aversão é para os casos de histórias conflitantes,em que prevalecem mais de uma hipótese, comoas cenas exibidas sobre o assassinato de PC Fa-rias. Na época, a Rede Globo mostrou comoaconteceu o crime em várias versões, todas compresença de atores. Já nos casos em que as infor-mações são incontestáveis, a denominação dadaé reconstituição.

Segundo a autora, apesar dos cuidados técni-cos para distinguir as imagens captadas a partirde uma reconstituição daquelas feitas sem ne-cessidade de encenação, a reconstituição conti-nua sendo atraente para o espectador enquantoespetáculo. Ele não tem preocupação em saberque tipo de “realidade” há atrás da encenação, seos gestos feitos pelos atores correspondem àação dos envolvidos no verdadeiro fato. O rit-mo da televisão faz com que o veículo concentreas informações em um tempo curto, de aproxi-

madamente um minuto e vinte segundos. Masdiante da tela o espectador não tem essas preo-cupações. Ele é capaz de contar, com detalhes,como aconteceu um assassinato porque viu umareconstituição.

Ainda há outras fórmulas usadas pelo telejor-nalismo da Globo, como, por exemplo, o uso denotícias fait-divers. Esse formato é facilitado pelaemoção que a tevê permite passar aos telespecta-dores. Até as notícias aparentemente distantes,como as informações internacionais, podem seratrativas, se relatarem tragédias.

O Fantástico, por exemplo, tem uma formamuito definida de trazer a notícia para dentro doseu espetáculo. Ele fornece um bom exemplodessa grade de fait-divers aplicada à leitura deacontecimentos reais. Um de seus responsáveisestabelece uma espécie de pauta geral na qual sebaseiam para selecionar assuntos e temas fantás-ticos; o programa é especialista em noticiar coisasque acontecem de fato, mas sem importância re-lativa no contexto dos acontecimentos sociais.Os fait-divers, na televisão, têm essa característica:tornam-se o próprio modelo de interpretaçãodos fatos.

Os espetáculos noticiosos da Globo estãosempre comandados por um “mestre de ceri-mônias”, interlocutor que estabelece um conta-to familiar com os telespectadores. Foi o JornalNacional quem afirmou a importância do âncora.Ele acostumou milhões de telespectadores comum rosto, uma voz, uma forma de dizer a notí-cia. O Jornal Nacional esteve indelevelmente liga-do durante trinta anos à imagem de seu locu-tor-mestre. O homem especialmente trabalhadopara dar “credibilidade à notícia”, tal como cre-dibilidade é entendida segundo o padrão Glo-bal, foi Cid Moreira: risonho, bem vestido, bo-nito, segundo um estereotipado padrão de bele-za, que, respeitosamente, entrava todas as noitesde terno e gravata em 90 por cento dos lares bra-sileiros, digno da maior confiança. Para Elisa-beth Carvalho (In Kehl, 1979-1980, p. 33), CidMoreira caracterizava o novo estilo de telejorna-lismo da década de 70: este porta-voz impecávele quase sempre imune à emoção fez parte, na

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verdade, de todo um projeto que caracterizava onovo estilo de telejornalismo.

Segundo Rezende (2000, p. 173), a substitui-ção de Cid Moreira e Sérgio Chapelin por doisnovos apresentadores – William Bonner e LílianWitte Fibe – (deixando Cid Moreira com a fun-ção dos editoriais do JN), tinha um significado demudança na linha editorial do programa: a mudan-ça representava o fim da era dos locutores e a valorizaçãoda presença dos jornalistas na busca para assegurar maiorcredibilidade ao noticiário.

Para Mauro Porto, pesquisador da UNB, aGlobo iniciou uma mudança no telejornalcomo tentativa de resgatar a credibilidade, pro-cesso que ainda está a caminho. Em recente en-trevista à Agência Carta Maior, o pesquisadorsalienta a maior cobertura dada pela Emissoraàs últimas eleições presidenciais como partedessa estratégia.

Em 1995, as Organizações Globo iniciaram um movi-mento de recuperação de credibilidade de seu telejorna-lismo para tentar deter a queda da audiência. Foi quan-do Alberico Souza Cruz, dono de relações íntimas epromíscuas com o ex-presidente Fernando Collor, foisubstituído por Evandro Carlos de Andrade no coman-do do Jornal Nacional. Evandro engendrou o afasta-mento da dupla de “locutores” Moreira/ Chapelin(Carta Maior, 4/11/2002).

Segundo o pesquisador, na época as pesquisasmostraram que o público reprovou a mudançados locutores pelos jornalistas, mas o fato de aEmissora não ter recuado é um claro indício deque estava em curso um plano de mudança na li-nha editorial do programa. Porto vê no processouma mudança não linear devido não tanto a con-vicções quanto a adaptação às exigências da so-ciedade civil.

A mudança vai devagar, em 1997 e 1998, a emissora op-tou pela diminuição da cobertura política em seus tele-jornais por acreditar que a mesma vinha provocandoquedas na audiência dos programas. Foi quando as no-tícias superficiais imperaram no JN. A cobertura donascimento da filha da Xuxa foi uma espécie de clímaxdesse tipo de jornalismo.

Tanto no JN como em todos os telejornais daGlobo, o âncora é uma figura essencial. É ele ou

ela quem garante o equilíbrio e estabelece o nexoentre os mais variados assuntos abordados pelotelejornal. É um ponto de referência, um nexoentre todos os assuntos apresentados: de fato, éele ou ela a quem a câmera retorna após cada re-portagem. São pessoas equilibradas, sérias, muitobem apresentadas, de idade média; não há lourasnem louros apresentando telejornais, sugerindoque os morenos sejam de maior credibilidade (naEmissora, há uma divisão bastante clara nessesentido: as morenas de cabelos lisos apresentamos telejornais – com a ecepção de Glória Maria,apresentadora do Fantástico, que é negra –; aslouras apresentam programas infantis ou atuamem programas de humor: a associação poderiaestar relacionada ao imaginário da “loira burra” jáque elas aparecem sempre associadas a um papelque não precisa de desempenho intelectual). Aseriedade e a credibilidade são construídas porformas de vestir, por cores, por tons de voz, ges-tos e luzes...

A forma da Globo de fazer telejornalismo e deabordar os acontecimentos, descrita até agora, in-fluenciou as outras emissoras. Segundo Carvalho(In Kehl, 1979-1980, p. 39), diante desse modelode telejornal apresentado pela líder em audiência,as demais emissoras, na ânsia de reconquistar umpúblico que maciçamente transferiu sua prefe-rência para a programação global, cairiam fataI-mente na cópia. E, como nenhuma delas jamaisconseguiu dispor de condições técnicas capazesde levar ao ar o show telejornalístico iluminadopelo brilho de paetês e nacarados, a cópia era in-variavelmente ruim, mal-acabada e pobre.

No que se refere à literatura sobre telejorna-lismo, também foi influenciada pelo jornalismoda Globo. Obras de referência, sobretudo, parao ensino de Telejornalismo nos cursos de Co-municação Social e para o iniciante na prática dojornalismo em televisão, parecem ter sido inspi-radas na obra em que também se baseou o Ma-nual da TV Globo (outra consulta recorrentepara estudantes e professores de graduação), Te-levision News, de Irving Fang. Publicado em1972, o livro poderia ser considerado o “Manualdos manuais”, já que traz uma série de recomen-

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dações como o repórter ou redator deve consi-derar a audiência.

Resultado da tese de doutorado do autor, éapresentada uma receita para escrever de formaclara as notícias de televisão, a ELF – Easy Liste-ning Formula. No livro de Irving Fang, há aindareferências ao insucesso do método da pirâmideinvertida no jornalismo televisivo e à utilizaçãoda repetição como recurso de linguagem e infor-mação (Fang, 1977, p. 169).

3.2.1 O programa Linha Direta

“Boa noite. Medo. Impotência. Desamparo.São sentimentos cada vez mais presentes no coti-diano de todos nós. Nós que vivemos no dia-a-diacercados por uma violência cega, uma violênciaque nos oprime. A partir de hoje, você está em li-nha direta com seu direito, em linha direta com acidadania”. Com essas palavras de seu âncora naépoca, Marcelo Rezende, o programa Linha Dire-ta ia ao ar no dia 27 de maio de 1999, na TV Glo-bo, iniciando com palavras que expressavam amatéria-prima que construiria um programa deutilidade pública, jornalístico e com um lugar re-servado ao telespectador para ajudar a resolver oscasos de criminosos que estão fugitivos da polí-cia. O programa chegou a estar em quarto lugarno Ibope da Rede, logo após a novela das 20h, oJornal Nacional e o Fantástico.

Kleber Mendonça (2002), em seu estudo so-bre o Linha Direta, relaciona o programa à repor-tagem exibida seis meses antes, no Fantástico, so-bre o “maníaco do parque”, o motoboy paulista-no que confessou o assassinato de dez moças.Conduzida pelo repórter Marcelo Rezende, a re-portagem misturou realidade, ficção, notícia e es-petáculo. Tratava-se da intenção explícita daEmissora de experimentar um novo formato deabordagem dos temas da realidade. A matéria de40 minutos foi dirigida por Roberto Talma, dire-tor de criação da Globo, com vasto currículo nateledramaturgia e na produção de shows, entreeles o Domingão do Faustão. As declarações docriminoso, dos parentes das vítimas e da políciaforam intercaladas ao som de uma trilha sonoramacabra – com simulações que buscavam re-

construir cenas da infância do criminoso, bemcomo alguns de seus crimes.

Essa reportagem, exibida no Fantástico do dia22 de novembro de 1998, tanto quanto a criaçãodo Linha Direta, enquadra-se, segundo o autor,nos esforços da Emissora para produzir índicesde audiência. De fato, a reportagem deu 50 pon-tos de Ibope, muito mais que a média habitual de36 pontos.

Para Mendonça (2002, p. 55), Linha Direta foiinspirado no programa norte-americano 48 horase 60 minutos, além de tomar inspiração tambémno rádio brasileiro – em programas como RádioPatrulha, da rádio Globo, e Dial Paulista, com GilGomes – e na TV brasileira: o programa AquiAgora, hoje extinto, do SBT, foi o grande inaugu-rador desse gênero na televisão, utilizando umaestratégia de representar assassinatos. O progra-ma retoma também outras experiências televisi-vas como O Grande Júri, da TV Manchete, emque eram simulados todos os passos de um tribu-nal simbólico.

Para Daniel Filho (2001, p. 341), o Linha Di-reta surgiu porque não havia na TV Globo ne-nhum programa popular com caráter de utili-dade pública. Curiosamente fui pegar um programaantigo que havíamos feito em 1990: O Linha Direta:um programa forte, popular, que podia ser feito comoutilidade pública e funcionar para essa determinada faixade público.

O “popular”, no caso do Linha Direta, alémdas características melodramáticas que o progra-ma apresenta, mostra-se na dispensa de saberesprévios, o que o faz acessível a qualquer pessoa.Os peritos que aparecem no programa falam ab-solutamente claro e repetem idéias e palavras.Isso faz com que seja mais significativa sua pre-sença do que suas palavras, e também porque ge-ralmente seus depoimentos são antecipados ouretomados pelo apresentador ou pelo off. Um ou-tro elemento que o faz “popular” é que, geral-mente, com exceção dos casos como a morte dePC Farias, o seqüestro de Welington de Camargo(irmão de dois cantores conhecidos) e algum ou-tro, os casos retratam dramas de pessoas co-muns. Quiçá seja o único espaço da Emissora em

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que o palco se abre a esse tipo de pessoas. Claroque isso acontece nas condições demarcadas pelaGlobo. Por último, seguindo Canevacci (2001), opróprio excesso de off seria um elemento “popu-lar”, porque esse excesso é próprio de mercado-rias dirigidas a pessoas com pouca alfabetizaçãovisual, que muitas vezes coincide com pouca alfa-betização escrita.

O programa se apresenta, assim, como presta-ção de um serviço de utilidade pública consegui-do através da participação do telespectador, ex-plorando a abrangência e velocidade da Emisso-ra, que a justiça não possui. Algumas vezes, temacontecido de o foragido ser mostrado na chama-da do programa e, quando ele vai ao ar, o crimi-noso já ter sido denunciado, no mesmo dia emque é mostrado pela primeira vez. Até o momen-to, 222 pessoas que foram mostradas no LinhaDireta foram capturadas, embora não se saiba, ounão se especifique, quantos deles foram captura-dos por denúncias dos telespectadores e quantospela continuidade do trabalho policial...

Linha Direta é atualmente dirigido por MiltonAbirached e apresentado pelo jornalista Domin-gos Meirelles. O programa conta com uma equi-pe de mais de 50 profissionais, além de equipesde infra-estrutura técnica, produção e pesquisada Central Globo de Produções e Central Globode Jornalismo. São onze repórteres e cinco uni-dades de produção independentes espalhadospor todo o País. A construção do programa estádividida entre quatro núcleos específicos: a coor-denação de jornalismo, responsável pela apura-ção dos fatos e redação do texto jornalístico; onúcleo de dramaturgia, que fica a cargo da dire-ção artística; o núcleo de roteiro, responsávelpelo texto final e pela organização das enque-tes/reportagens; e a produção.

A cada semana, o programa apresenta ao pú-blico duas enquetes/matérias sobre “crimes he-diondos que chocaram a população”.11

Logo após o relato e sua ficcionalização, sãotransmitidas ao telespectador informações sobreo culpado ou suspeito, sendo os espectadoreschamados a ajudar na solução, colaborando comalguma informação ou denunciando onde se es-conde o foragido12.

O apresentador veicula ao telespectador a víti-ma e as suas qualidades, até que aparece o vilão.Enquanto há a mudança na trilha sonora, traba-lha-se o suspense e ajuda-se, juntamente com asimagens, na caracterização da maldade do crimi-noso, em oposição à bondade da vítima. A narra-tiva conduz o suspense de forma crescente até aexecução do crime, antecipando e repetindo asimagens mais fortes no início dos blocos. Os ro-teiristas do programa entrecortam as simulaçõescom as declarações dos parentes da(s) vítima(s),investigadores e promotores responsáveis pelocaso, assim como com material de telejornais queapresentaram alguma informação sobre o caso naépoca em que aconteceu. Tudo conduzido pelavoz off e pelas aparições do apresentador, amar-rando a trama, enquanto caminha por um cená-rio, que tem, nos fundos, uma tela onde está aimagem, ora da vítima, ora do foragido, e, do ou-tro lado, o nome do programa.

Outro fato que determina o encaminhamentodas enquetes para o objetivo do programa – des-pertar a indignação do espectador e sua participa-ção na denúncia dos culpados – é o modo comoo passado dos envolvidos é apresentado. As víti-mas têm sempre passado; em contrapartida, oacusado nunca tem13. Não é apresentada a famí-lia do acusado. Quando ela aparece, é apenas nocontexto atual (após o crime) e acaba tambémsendo colocada no papel da vítima, seguindo queele deve se entregar, que deve haver justiça e re-forçando o caráter bárbaro do criminoso.

Já as virtudes das vítimas são relatadas a partirde histórias da família e dos amigos, das fotos deinfância, dos seus momentos de conquistas e vi-

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11 A condição para fazer parte do programa é tratar-se de algum crime que não tenha sido solucionado, seja porque a justiçanão pôde chegar a uma conclusão, seja especialmente porque o acusado, assassino ou suspeito encontra-se foragido.

12 É nesse aspecto que o programa pretende ser uma Linha Direta entre o cidadão e a polícia para a solução dos casos apre-sentados.

13 Os únicos acontecimentos a serem mostrados são antecedentes criminais, que contribuem para confirmar sua maldade.

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tórias. Nunca há erros por parte da vítima, sendoque essa leitura, muitas vezes, fica forçada. Demaneira geral, toda atitude da vítima será com-preendida e justificada, mas qualquer gesto docriminoso é suspeito.

No fechamento, aparecem o sofrimento e ochoro indignado dos parentes da vítima, emcontraposição ao criminoso que escapa impune-mente. O clima de desespero é acentuado aindamais pela variação de densidade das imagens.Quanto maior a emoção dos parentes da vítima,mais o foco da câmera se aproxima, seja no closeno rosto emocionado, no detalhe das lágrimasescorrendo, das mãos nervosas tremendo ou daboca, que, de tão emocionada, mal consegue ar-ticular as palavras.

O programa como um todo simula um grandejúri simbólico. As testemunhas aparecem de for-ma individual, sentadas, como acontece nos tri-bunais. A simulação (que seria a parte que carece-ria de verdade histórica, porque é construída comatores e tem a legenda “simulação” embaixo) ésempre veiculada junto com a voz em off, que nãoé a voz do apresentador. Há oportunidades emque aparece o off do apresentador, mas nunca ésobre a simulação, e sim sobre imagens de pesso-as reais ou das fotos dela. A voz off, no entanto,nunca aparece nas imagens de pessoas ou fotosreais, ela está mais associada com a cena do cri-me. Isso, junto com a linguagem por ela usada emtempo presente e impessoal, “neutra”, que ante-cipa o que as personagens farão, descobrindo as-sim o conhecimento interno delas, cria em tornodesse recurso uma espécie de ser onipresente eonividente: uma verdade inquestionável. Elaconduz a uma única leitura das imagens e, por-tanto, dos fatos.

Com o recurso das semelhanças, a versão fic-cional cria a ilusão de estar inteiramente subordi-nada à versão jornalística. Além das semelhançasfísicas, os atores usam roupas semelhantes às daspessoas reais e outros recursos como frases ougestos ditos pelas vozes reais e imediatamenteensinados pelos atores, o que dá a impressão defidelidade aos fatos. Na realidade, os depoimen-tos dos familiares e testemunhas são desorgani-

zados e, por vezes, extremamente redundantes,pouco informativos, sendo que a força da narrati-va está muito mais presente nas simulações, nosoff, nas trilhas, na rápida mudança de planos e nasparticipações do apresentador.

Já o apresentador foge da tradicional lingua-gem jornalística. Sua voz nunca se mistura com asimulação. Seu posicionamento busca se identifi-car como o telespectador e a vítima, portanto dei-xa de lado a linguagem impessoal, própria dosapresentadores de telejornais. Meirelles se indig-na diante da maldade da qual está sendo testemu-nha, e ele utiliza, seguidamente, adjetivos paradescrever o criminoso, a vítima e as situações. Ouseja, ele é um interlocutor próximo, que reage in-dignado (sem perder a postura), como reagiriaqualquer um dos telespectadores, se estivessediante de um caso como esse.

O programa apresenta, portanto, característi-cas singulares para estudar a construção da telerrea-lidade, porque está baseado em fatos que efetiva-mente aconteceram, inclusive estão ainda aconte-cendo porque o foragido ainda não foi justiçado– e é necessária a colaboração do telespectador.Mas, ao mesmo tempo, o Linha Direta, na suaconstrução, privilegia a ficção: é uma construçãoelaborada, intercalando a tal ponto telejornalis-mo e teledramaturgia que é impossível delimitaro território de cada um. Linha Direta tem uma for-ma muito específica de empacotar a realidade queo constitui num verdadeiro espetáculo visual.

O programa é classificado na grade de progra-mação da Rede Globo de Televisão como pro-grama jornalístico. Seu formato inclui caracterís-ticas de um documentário. A duração das repor-tagens é maior do que o tempo dado a um telejor-nal, mas são jornalísticas as diversas formas deabordagens utilizadas, como entrevistas, narra-ção e simulação dos fatos.

O núcleo jornalístico diz respeito à notícia talcomo a entendemos classicamente no jornalis-mo. Trata da produção da reportagem, definiçãode pauta, apuração das informações.

Nesse núcleo são reunidas as informaçõessobre o fato concreto e sobre o inquérito poli-cial, além de serem, selecionadas as melhores

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declarações dos parentes das vítimas, do dele-gado responsável pela investigação, dos juízese promotores. É esse núcleo o responsável pe-las declarações reais, pela seleção dos vídeoscaseiros e das fotos das famílias, pelas reporta-gens anteriores sobre o crime (retiradas do ar-quivo da própria Emissora), enfim, de todoconteúdo tradicionalmente informativo, in-cluindo o texto do apresentador.

Mesmo que seja o Departamento de Jornalis-mo quem elabora os textos do apresentador, oprograma abre mão de alguns recursos básicosda linguagem jornalística, como o lead, a lingua-gem direta e o esquema da pirâmide invertida.Mas não abandona, em nenhum momento, oseu papel de “veiculador da verdade”, através deoutros recursos.

As pautas são elaboradas a partir de sugestõesdos jornalistas, telespectadores e da própria polí-cia. No contato diário com delegacias e investiga-dores, acabam se detectando casos mal resolvi-dos, cujos detalhes são interessantes ao progra-ma. Após ser definida a pauta, o Centro de Docu-mentação fica encarregado de levantar todos osdados sobre os crimes: circunstâncias, históriasdas vítimas, precedentes dos criminosos, teste-munhas, pendências policiais, repercussão na co-munidade. A partir de então, são montadas ashistórias que farão parte da edição do programa.

Já o núcleo da teledramaturgia constitui-secomo o responsável pela produção técnica dasimagens da simulação dos eventos que levarão aocrime e do próprio crime, a partir de uma lingua-gem melodramática, fundamentada no grotescochocante. Nesse cenário, o bem e o mal se encon-tram, e o resultado será fatal para o bem, que serávencido pelo mal, até então impune. A encenaçãoestá baseada nos dados obtidos (e selecionados)pelo núcleo de jornalismo. Os atores, lugares,carros e placas, etc. são representados, o mais se-melhantemente possível, com os reais, e as per-sonagens são chamadas com os nomes das pes-soas reais. Simultaneamente há um apagamentodo tempo e, com ajuda do off, há um efeito deaparente autonomia das imagens em relação à suaconstrução midiática, dando a sensação de que

estamos assistindo um acontecimento transmiti-do aqui e agora, em tempo real.

Os cenários nos quais acontecem as simula-ções e os figurinos seguem o padrão Global e nãose diferenciam muito dos cenários das novelas.Muitas vezes, eles não coincidem com o entornode onde os familiares e as testemunhas falam,embora o ambiente real (casa, bairro, móveis)onde estão os familiares das vítimas tenda a serocultado com os closed. Nas simulações, há pla-nos mais abertos e podem-se ver salas, banheiros,casa, móveis, etc.

Em todos os casos, os tipos de crimes sãosempre familiares-passionais, motivados por in-veja, traição, taras, e praticados por psicopatasdesequilibrados ou usuários de drogas. Não exis-tem outras dimensões da vida das pessoas, quesão as que dariam uma originalidade a cada pro-grama. Os criminosos que se encontram foragi-dos nunca são “bandidos de carreira”, mas pes-soas “comuns”, que acabam cometendo crimescujas vítimas são ligadas por vínculos amigáveis,familiares ou afetivos. Isso possibilita um tipo deconstrução mais orientada para o entretenimentoe o voyeurismo do que para a informação.

A dramatização constrói a história a ser con-tada. É nela que está a real imagem com a qual otelespectador fica em relação ao crime, porque énela que são mostrados e ditos os fatos que“realmente” aconteceram. A Emissora abreaqui um raro espaço para atores desconhecidos.Milton Abirached, diretor de Linha Direta, ementrevista à Revista da TV (5/5/2002), disse queo elenco é escolhido com todo cuidado pelaprodução do Linha Direta. Os atores precisam serparecidos com os assassinos ou suas vítimas e, para nãoperder o realismo, não devem ser conhecidos do público.Se o Tarcísio Meira fizer um bandido, ninguém vai acre-ditar que aquele caso aconteceu.

Kléber Mendonça (2002) chama a atençãopara muitos casos em que são incluídas cenas im-possíveis de comprovação (porque a vítima foiassassinada, e o assassino está foragido, e nãohouve testemunhas). Essas cenas, segundo o au-tor, são criadas para colaborar na construção deum determinado perfil do acusado. Há em todos

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os programas uma construção de um perfil, tantodo criminoso quanto da vítima, com característi-cas praticamente idênticas de um programa paraoutro. O recurso da simulação, embora eu acheque seja o mais diretamente responsável pelosdetalhes da construção da personalidade do acu-sado e da vítima, colabora, sobretudo, para dar ailusão de visibilidade total, de sociedade transpa-rente. É a simulação que dá ao programa o cará-ter espetacular, no sentido de entretenimento,que gera tensão, seduz e concentra a atenção dotelespectador. Da forma como se organizam seuselementos, o programa vai seduzindo a ponto defazer com que o telespectador queira saciar umacuriosidade visual, ou seja, queira ver como foique aconteceu o crime.

Para realizar essa pesquisa, gravei seis ediçõesdo programa, exibidas nos dias 14 e 21 de março,4, 18 e 25 de abril e 2 de maio de 2002, além deacompanhar quase todos os programas exibidosde março a outubro de 2002. Numa primeira aná-

lise, identifiquei os elementos comuns nas dife-rentes edições do programa e, depois, escolhi oprograma de 25 de abril para analisar mais especi-ficamente. A escolha desse programa deve-se aque ele mostra os quatro momentos diferentesdo programa com muita clareza. Em primeiro lu-gar, dois crimes que abordam situações particu-larmente preferidos pelo Linha Direta: o primeiroé violência contra uma criança, e o segundo, umachacina, fruto de uma paixão não-correspondida.Após esses dois casos, um criminoso que já foradetido “porque você denunciou”, é mostrado einterrogado, além de serem repetidas as simula-ções já veiculadas em programa anterior, quandoo foragido foi mostrado pela primeira vez. Há,também, um epílogo didático, ensinando o usoda internet, para que os telespectadores entremem contato, denunciem e votem na interativa dasemana. Poderíamos dizer, então, que essa é umaedição bastante expressiva da proposta editorialdo Linha Direta.

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4 Telerrealidade no Linha Direta

O programa do dia 25 de abril de 2002 poderiaser dividido em cinco momentos: a introdução; aabertura; a apresentação dos dois casos; a entre-vista com um homem que foi capturado após sermostrado no programa, veiculada junto com assimulações do crime; e o convite a entrar em con-tato com o programa através de denúncias, de su-gestão de casos ou para votar na enquete do dia,referida a um dos casos.

Essa forma de dividir o Linha Direta em cincomomentos não está relacionada aos blocos doprograma ou à duração desses momentos, massim à tentativa de abordar elementos diversosque o programa apresenta.

Como introdução, aparece uma série de rela-tos (visuais e auditivos) de grande impacto, queconstitui um resumo dos dois casos que serãoapresentados e que, ao mesmo tempo, são umacolagem das cenas mais chocantes do programa.Essa introdução foi realizada em 30 segundos eem 17 planos.

Logo após a introdução, acontece a aberturado programa. Em 12 segundos, gráficos compu-tadorizados se misturam com imagens policiais,o nome do programa, o número da linha telefôni-ca para denúncia e os créditos do programa.

Imediatamente, é apresentado o primeirocaso. Mostra a história de um estudante de medi-cina que espanca um bebê de oito meses que foihospitalizado por um caso de diarréia. A criança éhoje um adolescente que está cego e deformado.O criminoso está foragido.

No fim do bloco, há um breve resumo dosegundo caso, com imagens diferentes dasmostradas no início. Antes dos comerciais,também são mostradas as imagens de um fora-gido capturado pela denúncia do público. Apóso intervalo, começa o desenvolvimento do se-gundo caso.

Esse caso conta a história de uma mulher se-parada, com uma filha pequena, que é insistente-mente assediada por um amigo da família a quemela rejeita. O homem não correspondido desco-bre que a mulher que ama tem um romance comum amigo dos dois. O caso acaba no homicídioda mulher, de seu parceiro e de uma amiga dela,que na ocasião estava junto com eles. O assassinotenta também matar a filha dela, mas um vizinhoconsegue salvá-la. O criminoso está foragido,mas quase no fim do programa aparece uma le-genda dizendo que ele se entregou à justiça pou-co antes de o programa ir ao ar.

Depois de acabar o segundo caso com as devi-das chamadas à denúncia, é mostrado MaconyLima da Silva, um dos culpados pelo assassinatode um promotor de eventos, que fora apresenta-do no Linha Direta no início de 2002. É mostradauma entrevista com o acusado, junto com as ima-gens da simulação já veiculadas quando foi abor-dado o caso.

Para encerrar o programa, o apresentador, natela que está no cenário, mostra a página na Inter-net do Linha Direta, explicando como usá-la echamando os telespectadores a entrarem na pági-na para pedir informações sobre outros foragi-dos, participar da enquete, etc.

Para esta análise, abordarei, em primeiro lu-gar, a introdução geral e a abertura do programacomo a mais clara apresentação da proposta edi-torial do Linha Direta em geral e deste programaem particular. Mas a atenção maior desta análiseserá colocada nos dois casos apresentados no dia,comparando diversos aspectos indicados por al-guns autores. Na abordagem dos dois casos, se-guirei a sugestão de Arlindo Machado (2000, p.108) de verificar se existe alguma hierarquia entreas diversas vozes que se rivalizam na arena do te-lejornal, para saber o grau de polifonia que ele

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tem. Por isso, compararei as vozes ouvidas noprograma e farei algumas considerações a partirdessa comparação.

Dentro da tentativa de ouvir as vozes do tele-jornal, terei uma atenção especial para a voz off,como é entendida por Canevacci (2001, p. 162),um comentário externo empregado freqüentemente de for-ma autoritária e falsamente objetiva, ela “fala” da relaçãoque o observador deseja estabelecer com o observado.

Em segundo lugar, aplicarei as teorias do Jor-nalismo de Nelson Traquina (2001), numa tenta-tiva de explicar a construção da notícia veiculadano programa e algo do que ela diz sobre o jorna-lismo, o programa, a emissora e a sociedade.Analisarei também o programa, a partir das teo-rias do drama e do espetáculo.

O caminho que pretendo percorrer nesta aná-lise, necessariamente, deixa de lado muitas outrasabordagens que poderiam ser feitas, sendo estaspáginas apenas comentários sobre algumas cons-tatações que fiz através da minha percepção vi-sual (o se “fazer ver” de Canevacci), um poucomais desenvolvida, agora, pelo aporte dos auto-res que iluminaram este trabalho.

4.1 Elementos enunciadores do programa

A seguir abordarei, numa primeira parte,aqueles elementos que de alguma maneira funci-onam como vozes enunciantes dentro do progra-ma. Farei uma breve descrição e análise da intro-dução e da abertura e, posteriormente, analisareias vozes no Linha Direta, dividindo-as em vozesdo programa e vozes “reais”. Dentro da primeiraenquadram-se a voz do âncora, as simulações e avoz off presente nas simulações. As vozes “reais”são as dos familiares e amigos das vítimas e aque-les representantes da justiça ou das diversas insti-tuições que têm alguma participação nestes pro-gramas.

4.1.1 Introdução

Descrição: A introdução começa com uma rá-pida seqüência de imagens em que um homemestá apontando uma arma e, finalmente dispara

numa mulher, enquanto ela grita, pedindo socor-ro. Ao mesmo tempo, a voz off diz: “Um jovemresolve matar a quem encontra pela frente”. Naseqüência, aparece o apresentador DomingosMeirelles, no centro do cenário, em pé. Com oolhar fixo na câmera, ele diz: “A família das víti-mas (...) pede justiça”. Aparece a imagem de umhomem sentado numa cadeira, chorando, quediz: “Eu queria perguntar por que ele fez issocom meu irmão”. Novamente entra o apresenta-dor em cena dizendo: “E ainda (...) crime no ber-çário”. Há uma imagem de uma sala de hospital euma enfermeira olhando para dentro dessa salaenquanto grita aterrorizada: “Flávio!”. Um ho-mem com roupas de médico está diante de umberço com um bebê. A voz off diz: “Um estudantede medicina é acusado de espancar um bebê in-ternado num hospital”. Aparece a imagem deuma mulher sentada, do lado de uma mesa, comuma estátua religiosa. Ela diz: “É que meu filhonasceu perfeito”. Novamente a presença doapresentador dizendo: “O crime assustador (...)ainda continua sem punição”. Na seqüência, apa-rece um homem sentado na frente de estantescom livros. Ele diz: “Eu considero ele uma pes-soa cruel, fria e calculista”. Encerrando, apareceo apresentador dizendo: “Tudo agora (...) em Li-nha Direta”.

Nessa introdução foi colocado, inicialmente,o segundo caso a ser mostrado, que apresenta ce-nas mais chocantes e violentas e, em segundo lu-gar, o primeiro caso.

Na edição desse material, foi impresso granderitmo à narrativa. O trecho tem como fundo a tri-lha do programa que mistura ação e suspense. Atrilha, junto com os ruídos usados, seja o tiro, osgritos, os ruídos de ambientes, etc., são funda-mentais na marcação do ritmo e na produção deemoções, provocando reações e sensações no es-pectador. Não há silêncios. A maioria dos planossão fechados, o que mostra, junto com os ele-mentos restantes citados, que prevalece a drama-ticidade sobre a descrição; a ficção sobre a infor-mação. O “realismo” do programa está mais for-temente ancorado na técnica do que na descriçãode fatos históricos.

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O telespectador distraído, após assistir à no-vela das oito e às propagandas, se depara subita-mente com um grande impacto. Em breves se-gundos, ele é “testemunha” de uma confusãoenorme, cujo resultado foi uma mulher assassina-da e uma criança torturada. O momento pode as-semelhar-se a situações de violência, como assal-tos ou acidentes que acontecem cada vez maisfreqüentemente nas ruas das cidades. E, comonesses casos, quando é possível, atraídos pela cu-riosidade do olhar que o grotesco chocante pro-voca, o telespectador se aproxima para ver. Amoldura gráfica que está ao redor de todas asimagens mostradas nesta introdução poderia es-tar sugerindo que aquilo que estamos vendo é sóuma parte, e nos remete a ver tudo. Poderia seruma associação com algo que se vê pela janela aoque se torna irresistível de se aproximar. Para fa-zer isso, deve-se acompanhar o programa.

Nesses breves segundos de impacto, vejodois elementos a serem destacados. Em primei-ro lugar, o encurtamento do tempo e do espaçoem que se sucedem os fatos na telerrealidade doLinha Direta. Em segundo lugar, a ilusão de efi-ciência criada pelo programa já desde os primei-ros segundos.

Ambos os casos estavam na justiça há váriosanos. O do espancamento do bebê desde 1989, ea chacina das três pessoas desde 1996. Mas, em30 segundos, o telespectador “viu” os crimesacontecidos, assistiu ao julgamento simulado, es-cutou o veredicto e sentiu-se chamado a partici-par na solução. O tempo do programa é ágil, efe-tivo, eficiente. O que na justiça leva muitos anos,para o Linha Direta é questão de 30 segundos.

Todas as cenas estão marcadas por muito mo-vimento. O movimento da curta duração dos pla-nos, o movimento das pessoas dentro dos pla-nos; o movimento de travelling da câmera diantedo apresentador. Em seu conjunto, há uma ilusãode círculo em relação a um ponto comum do qualtodos falam: o foragido. Aquele que até o mo-mento se escondeu da justiça e hoje se escondeda câmera (não pode ser mostrado por ela), desdeaquele momento em que “a sociedade” entrouem Linha Direta, está cercado, e sua condição de

foragido (ao ter aparecido no programa) já come-ça a ser ameaçada, ou seja, a captura já começou.A câmera ocupa, nessa introdução, o olho queameaça a condição anônima do foragido. Cria-sea ilusão semelhante às cenas dos filmes policiais,em que o lugar onde se encontra o criminoso écercado, e ele já não tem escapatória.

As imagens apresentam uma série de elemen-tos que misturam a alta tecnologia com o popu-lar. A moldura gráfica que envolve todas essas ce-nas, elementos da urbanidade moderna, como osambientes internos e os figurinos dos atores quefazem a simulação, convivem com os dois fami-liares das vítimas, pessoas simples, cuja simplici-dade é reforçada com elementos mais caracterís-ticos de classes populares, como o capacete demoto, bem visível sobre a mesa do irmão da víti-ma, ou a estátua da Aparecida, do lado da mãe daoutra vítima. Visibiliza-se, portanto, nos primei-ros momentos de programa, o contrato de leituraentre o Linha Direta e a audiência, que nesse caso,pauta-se com uma forte hibridação de tecnologiae elementos da cultura popular.

O telespectador está agora confuso com tãorápidas emoções, mas profundamente curiosopara ver como um médico pode chegar a ser tãodesumano para espancar um bebê, e o que acon-tece dentro de um homem para começar com pa-ixão e terminar em chacina, além de estar dispos-to a colaborar no caso e entrar em cena.

4.1.2 Abertura

Descrição: Depois de o apresentador dizer“Tudo agora (...) em Linha Direta”, inicia-se aabertura do programa. A moldura gráfica de co-res alternadas entre o azul e o vermelho, que até omomento foi o marco das imagens da introdu-ção, ocupa toda a tela. Os pequenos grafismos vi-suais se transformam em quadros azuis maiores.No meio da tela e desses quadros azuis, em formahorizontal, passa uma linha que, em pontos ver-melhos, começa a formar o número de telefonepara a denúncia. Parte dos quadros azuis sãosubstituídos alternadamente por imagens que, aomesmo tempo em que aparecem pequenas em al-gum canto da tela, surgem no tamanho da tela

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por baixo dos quadros azuis. As imagens em se-qüência mostram uma série de cenas policiais.Uma mão disparando uma arma; mãos sendo al-gemadas; retratos de pessoas; um grupo de pes-soas encapuzadas entrando num local, derruban-do a porta e apontando uma arma, etc.

Essa abertura dá à tela um dinâmico, limpo ecriativo movimento, acompanhado pela trilha doprograma e por finas linhas vermelhas que apare-cem e desaparecem no fundo azul. Ao mesmotempo, vão aparecendo os créditos do Linha Dire-ta em lugares alternados. Dessa forma, a tela sedivide entre o número de telefone, os créditos, aslinhas vermelhas e as cenas que vão mudando delugar. Termina com uma imagem de um homemde costas (plano americano) que, com as mãos le-vantadas, tem um machado que desce brusca-mente sobre alguma coisa, mas, antes de a armachegar a seu destino, entra a imagem com fundoazul e o nome (a logomarca) do programa emazul e vermelho, em que a palavra Linha está si-tuada acima da palavra Direta. Na cena seguinte,aparece um efeito, como de explosão de ambosos “Is”, como se fosse uma parede se despeda-çando, e fica, assim, um espaço aberto, uma linhana cor azul com diversas linhas vermelhas emmovimento, como circulando dentro da linhamaior, abrindo um canal que atravessa vertical-mente a tela.

A abertura, criada por Hans Donner, é visual-mente atraente e inspira uma idéia que resume aproposta do programa. Considero que nesses 12segundos, a Emissora conseguiu muito clara-mente mostrar a identidade pretendida para o Li-nha Direta. Essas últimas imagens, ao meu ver,são as mais fortes de todo o programa e as quemais expressam sua proposta. No final de cadabloco, quando se repete a vinheta, se omite a ima-gem da “explosão” dos “Is” e aparece diretamen-te a linha azul aberta com as linhas vermelhas emmovimento dentro dela. De alguma forma, estámostrando como o programa abre um espaçoque despedaça a impunidade que estava instaladae, por estar acontecendo o programa, não seránecessário repetir essa imagem nenhuma vezmais nos seguintes blocos.

A imagem da linha aberta, que poderia repre-sentar a efetividade do programa, a justiça, aponte entre o foragido e a prisão, ou entre a so-ciedade e a justiça, é a que mais se repete emtodo o programa. Os créditos e todas as legen-das durante o programa são feitos em cima des-sa linha; além de que, no fim e início de blocos ecada vez que há mudança de um caso para ou-tro, aparece em sentido vertical ou horizontalessa mesma linha.

4.1.3 As vozes no Linha Direta

Identificação: Para analisar as vozes que estãoem jogo no Linha Direta, tentei verificar formasem que essas vozes mostrem uma hierarquia.Constatei facilmente essa hierarquia ao levar emconta o número de vezes que cada uma é ouvidano programa, o lugar que elas ocupam, a formaem que são mostradas e o grau de informaçõesque elas dão. Ao todo, pode-se escutar, no pri-meiro caso, 17 vezes a voz off; 13 vezes a voz doapresentador (duas delas em off); 12 vezes a vozda testemunha N; quatro vezes as vozes do supe-rintendente e da mãe da vítima; três vezes as vo-zes da segunda testemunha e do pai; uma vez asvozes do professor de faculdade do acusado, dodelegado de polícia, do radiologista, do responsá-vel do ambulatório, do psicanalista, de Alan (a ví-tima) e de Flávio (o acusado, em imagem de ar-quivo de telejornal da época).

No segundo caso, há 20 participações da vozoff; 15 do apresentador (cinco delas em off); dez datestemunha 1; quatro vezes a mãe de Tânia (umadas vítimas); duas vezes da promotora, do pai deTânia e de uma irmã de Tânia; e uma da testemu-nha 2, da irmã de Jocemara (outra das vítimas),do irmão gêmeo de Jocemara e do irmão de Fabi-ano (outra das vítimas).

Claramente pode-se constatar que o predomí-nio em participação, em ambos os casos, estariadado pela voz off e a do apresentador. Não so-mente elas têm um número maior de interven-ções que todo o resto, mas são também as únicasa cobrir todo o caso do início ao fim. São tam-bém elas as que antecipam ou retomam sempreas informações dadas nos depoimentos das ou-

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tras vozes. Portanto, o que diz respeito ao grau deinformação que é oferecido no programa, ele édado pelas duas vozes principais. De alguma ma-neira, então, todas as vozes estão subordinadas aessas duas.

Ao longo destas páginas, farei uma distinçãoentre “vozes do programa” e vozes “reais”. Esseprocedimento de análise é discutível, já que asvozes do Linha Direta são todas as formas queconstituem a linguagem do programa, inclusiveas “vozes reais”, as vozes dos depoentes. Elas sãoapropriadas e colocadas pela Emissora em deter-minado lugar e de determinada forma.

Para compreender melhor a afirmação ante-rior, é bom lembrar que os depoimentos grava-dos já são meta-acontecimentos, ou seja, aconte-cimentos produzidos diante das câmeras e influ-enciados por elas e pelos repórteres. Portanto, o“real” deles deve ser visto desde esse ângulo. Poroutro lado, na eleição dessas pessoas e não de ou-tras, desses planos e não de outros, da cenografiade cada depoente, da edição de sua fala, do lugardo programa onde esse depoimento entrou, dosenunciados que introduzem e seguem aos depoi-mentos etc., em tudo isso, é a voz do programadizendo alguma coisa.

4.1.3.1 Vozes do programa

As vozes por excelência do programa, comojá foi dito, são a do apresentador, Domingos Me-irelles, as simulações e a voz off. A fim de poderanalisar melhor a participação de cada uma des-sas vozes, farei alguns comentários separando-as,embora o sentido do programa seja dado pelacostura destas três vozes e a forma como elas su-bordinam a si as outras vozes.

ã Âncora

Domingos Meirelles lembra o tipo de apre-sentadores mais antigos, dos telejornais daEmissora. O homem de idade mais avançada,cuja credibilidade se apóia mais na sua própriapessoa do que no perfil profissional. Cabelosbrancos, terno e gravata escuros, sério, Meirellesparece ser uma figura escolhida (ou construída)para neutralizar o sentimento de impunidade

que as situações apresentadas inspiram. Suapostura e seu olhar sempre fixo na câmera mos-tram autoridade. Por outro lado, sua figura pare-ce um contraponto à dos criminosos. Ambos nafaixa dos 20 anos, um deles negro, ambos commovimentos violentos, em oposição ao pausadoe “respeitoso” ritmo dos movimentos e da falado apresentador. Por outro lado, há tambémuma oposição com as vítimas que sempre sãoexageradamente inocentes, confiantes e distraí-das (sobretudo na simulação), enquanto Meirel-les não afasta em nenhum momento o olhar dacâmera, por mais que esta esteja em movimento.O apresentador parece nunca ser tomado desurpresa nem pelo movimento da câmera que oestá focando, nem pela troca de câmeras.

Apesar da “neutralidade” que representaseu tom de voz e sua maneira de vestir, o apre-sentador mostra, na sua forma de avaliar os fa-tos e as pessoas, uma ruptura com a linguagem“objetiva” usada pela maioria dos apresentado-res dos telejornais da Emissora, assemelha-semais aos comentaristas. Exemplo disso é o se-guinte comentário realizado pelo apresentadorno primeiro caso, em que, mais do que descre-ver (informar), qualifica: “Mais alguns dias (...)e o bebê estaria em casa. Mas Flávio começou aagir não como um médico (...) mas como ummonstro. Segundo as investigações da polícia,o estudante de medicina iniciou uma série deespancamentos (...) O bebê Alan nunca maisseria o mesmo”.

O apresentador não aparece em nenhumadas outras cenas. Ele é visto exclusivamente nocenário do programa, ou seja, nos estúdios daEmissora. Além disso, é ele a única pessoa doprograma que é vista pelo telespectador (na en-trevista final ao criminoso capturado aparece avoz da repórter, mas ele não é visto). Esses ele-mentos outorgam a Meirelles uma autoridadeimportante no comando do programa. Ao serele uma figura “real” e não estar representando(ele é jornalista, não é ator), ele é quem está emcontato com a produção do programa, com apesquisa anterior, com os estúdios e as câmeras,o que faz com que todo o espetáculo por ele co-

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mandado entre no clima de seriedade e credibili-dade próprios de sua pessoa.

É a voz do apresentador a que fornece as maisimportantes informações sobre os casos. Eleapresenta os foragidos e as vítimas. Como nos se-guintes exemplos:

Flávio Ricardo Baumgart (...) aos 25 anos, no sexto anode Medicina, começava a estagiar no Hospital Universi-tário de Taubaté (...), em São Paulo. Filho de um donode shopping, Flávio (...) levava uma vida normal.

O acusado de todos os crimes é este homem (...) JoãoValdelino Fernandes da Silva. Metalúrgico (...) 33 anos(...) e jogador de futebol. (...) João estava apaixonadopor Tânia, quando descobriu o envolvimento dela comum amigo dele (...) Fabiano. Rejeitado, João decidiu sevingar (...) Matou Tânia (...) a amiga Jocemara (...) e oamigo Fabiano.

Nos dois casos a que estou me referindo nestetrabalho, a voz do apresentador é escutada detrês formas diferentes: com sua imagem no cená-rio do programa, em off sobre fotos e em off sobreimagens das pessoas reais.

O apresentador antecipa, prepara, introduz eexplica ao telespectador as situações que irãoacontecer, fazendo com que a passagem de reali-dade à ficção e vice-versa seja inteiramente nor-mal. Como mostram os seguintes exemplos:

Mas João ainda ia se sentir mais rejeitado com a aproxi-mação de Tânia e de um dos melhores amigos dele (...)Fabiano.

A casa da irmã de Tânia (...) seria o cenário do crime.

Nesta foto a filha de Tânia aparece abraçada a João (...)o futuro assassino da mãe.

ã A Simulação (como voz do Programa)

Alternando os depoimentos e a condução doapresentador, estão as simulações. As imagensdas simulações estão identificadas na parte infe-rior da tela com a palavra “simulação”. No entan-to, o apresentador sempre lembra que as simula-ções foram construídas a partir das informaçõesobtidas na justiça e com testemunhas e familia-res, outorgando a elas toda a “seriedade” e a “ob-jetividade” próprias de sua pessoa.

A escolha das simulações privilegia elemen-tos “fantásticos”, que mais sirvam para criar oespetáculo e não tanto a informação. Exemplodisso é, no primeiro caso, após o depoimento damãe da vítima, em que ela disse que pedia paraJesus lhe mostrar o que estava acontecendo coma criança que estava toda machucada. Após essecomentário, aparece a cena da simulação do ca-sal dormindo e uma imagem difusa (querendorepresentar um sonho), de um homem de bran-co batendo numa criança. A mulher acorda comum grito.

Entre todas as informações – como disse oapresentador anteriormente – obtidas na justiça ecom os familiares e testemunhas, o programaavaliou esse sonho como uma das “fontes autori-zadas” que confirmassem a culpabilidade do cri-minoso. Ainda para reforçar a idéia, o apresenta-dor retoma a cena dizendo: “O pesadelo de Per-pétua (...) era o retrato da realidade (...) O homemvestido de branco (...) era Flávio ”. Uma afirma-ção que a psicologia discutiria longamente...

As simulações constituem a imagem mais for-te dos traços tanto da vítima quanto do acusado.Nos dois casos em questão, as imagens mostramas vítimas como pessoas felizes. Na simulação,pode-se ver a família feliz em torno de Alan queacaba de nascer. Um plano geral mostra uma casabonita e os pais sorrindo junto do berço da crian-ça. Na segunda cena simulada, os pais estão che-gando com Alan ao hospital, mas continuamcom a mesma felicidade do início. O fato de o fi-lho estar doente não retira o clima festivo – o quenão é muito freqüente –; a tragédia só começaráquando se cruzam na simulação com Flávio, o es-tudante de medicina. A partir desse momento,muda a trilha sonora e começa a desgraça paraaquela família que vai em declínio até o crime econtinua hoje.

No segundo caso, há imagens de Tânia feliz,rodeada de amigos, abraçada pela filha “apósuma separação da qual começava a se recuperar”.Inocente, totalmente despreocupada, ela apareceassistindo o jogo do Brasil e comendo pipoca,festejando os gols junto com os amigos, sem se

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dar conta de que o seu futuro assassino estavaolhando o tempo todo para ela.

As imagens que predominam no caso dosacusados são bem diferentes. O ator que repre-senta Flávio é mostrado fundamentalmenteatravés de quatro imagens. A primeira delas, quese repete diversas vezes, o mostra fazendo mus-culação na academia (sozinho em horário emque a academia estava fechada: é dito no progra-ma duas vezes que o dono da academia era ami-go dele e tinha lhe dado a chave). Essas imagens,especialmente, o mostram fazendo exercícioscom os braços e medindo os músculos dos bra-ços. Em segundo lugar, há várias imagens deFlávio andando no hospital com um olhar rígidoe perdido, próprio de pessoas com problemasmentais. É mostrado também várias vezes dolado do berço do menino, batendo nele. E aquarta imagem dele que se repete são planos-detalhe das suas mãos tirando as luvas depois deespancar o bebê.

Do ator que representa João, predominam asimagens dele brincando com a filha de Tânia,como forma de chegar à mãe. Em segundo lugar,ele se aproximando da própria Tânia e sendo re-jeitado por ela. Em terceiro lugar, imagens delebebendo ou jogando sinuca e olhando para asmulheres que passam na sua frente, sugerindouma certa perversão nos seus gestos. Por último,imagens de planos detalhe do olhar com expres-são de ódio para com Fabiano e Tânia.

Em ambos os casos, se contrapõem a dureza,a frieza e a perversão dos acusados com o a pure-za, ingenuidade e bondade das vítimas.

As vítimas nunca estão sozinhas nas simula-ções, estão rodeadas de pessoas e objetos. Os cri-minosos são solitários, misteriosos, com gestos(nesses dois casos especialmente, destaca-se oolhar) que despertam suspeitas desde o início.Deles não são mostrados os familiares, seus bens,etc. Geralmente aparecem em terreno de outros(casa da família da vítima) ou lugares públicos(hospital, bar, local de trabalho).

ã A voz off

Inseparável das simulações e dirigindo suacompreensão, está a voz off. Trata-se de um co-mentário “descritivo” da situação e “neutro” nasua formulação. É como se fosse a única voz queestá na cena do crime. A voz off fala sempre empresente, o que dá a ilusão de tempo real e a “ par-ticipação” do telespectador como testemunha:

Flávio costuma trabalhar na hora do almoço para sairmais cedo. Sai do hospital e vai direto para a academia.

Flávio se dedica a longas sessões de musculação, ele fazquestão de cuidar do corpo. Ninguém sabe que se passana cabeça do estudante.

No segundo caso: João insiste: vai matar Ca-mila. O vizinho luta para salvar a menina.

As falas da voz off só são construídas em pas-sado quando ele fortalece mais a compreensãodo presente, como no seguinte exemplo:

O choro do bebê chama a atenção da auxiliar de enfer-magem do setor de isolamento. Há 20 anos ela traba-lha no hospital e nunca tinha escutado um chorocomo aquele.

4.1.3.2 As vozes “reais”

As vozes “reais”, a meu entender, têm umafunção muito mais simbólica do que informativa.Em primeiro lugar, por se tratar de pessoas reaisque estiveram próximas do crime por vínculosfamiliares com as vítimas (família, amigos); porvínculos institucionais (professor, colegas de tra-balho, delegado e promotora); ou por causa doconhecimento especializado que justifica essapessoa depor, explicando algum aspecto do cri-me (radiologista e psicanalista). A presença des-tes, assim como a presença de notícias sobre ocaso veiculadas na TV na época em que ocorreu ocrime, dão o caráter de documentário. Indepen-dente do que dizem, é o que elas são ou foram oque o programa mais utiliza.

O fato de os depoentes aparecerem sentados etodos eles, em maior ou menor medida, com o

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olhar dirigido a alguém fora da câmera, contrastacom a postura do apresentador em pé, olhandosempre para a câmera. Há através das posturasuma designação de papéis passivos e ativos. Osdepoentes não falam por iniciativa pessoal, elesrespondem, são interrogados. A costura da tramaestá fora deles. A verdade (como clareza da totali-dade dos fatos) está fora deles.

Os depoentes, em maior ou menor medida,são redundantes. A informação que eles dão jáfoi antecipada pelo apresentador ou afirmadapela voz off. Se fossem tirados os depoimentos,as informações sobre o caso seriam exatamenteas mesmas.

Há algumas caracterizações que se repetemem ambos os programas na forma em que sãosignificadas as vozes. No meu entender, haveriauma espécie de classificação e qualificação emque os depoentes são associados, em maior oumenor grau, a atitudes de mais ativas ou mais pas-sivas e omissas em relação à resolução do crime.A proporção dessa qualificação parece ter umarelação direta ao institucional. Quanto menos li-gação institucional, sem cargos representativos,mais espertos e ativos são os depoentes e maiorparticipação eles têm nas suas falas e na represen-tação. Os mais espertos (e menos institucionais)são também mais rápidos na hora de reagir con-tra o crime (na simulação) e na hora de fazer a de-núncia (nos depoimentos). Alguns exemplos po-deriam ser os seguintes:

A testemunha N, do primeiro caso, é a vozpredominante entre aquelas que depõem. Tra-ta-se de uma enfermeira do hospital, a primeira aver e denunciar o espancamento. Ela tem um lu-gar de destaque, uma postura ativa e esperta nacostura com as diferentes vozes. Esse mesmo pa-pel é assumido pela segunda enfermeira que foitestemunha do segundo espancamento. Ambas,na simulação, ocupam um lugar protagônico jun-to ao ator que simula o criminoso.

A primeira voz “real” a falar no primeiro casoé um médico que foi professor do acusado. Ele éprofessor universitário e aparece num ambienteque, provavelmente, seja a universidade. Ele, empé num pátio, com pessoas jovens que passam

por trás com livros nas mãos, diz que o criminosoparecia normal: “Levava uma vida normal, não tinhaindícios de algum problema psiquiátrico. Ele sempre semostrou uma pessoa absolutamente normal”.

No depoimento dele, que imediatamente avoz off confrontará com a opinião das enfermei-ras, mostra-se um tom de omissão. A forma emque o criminoso é representado nas simulaçõesdesde o início, com um olhar psicótico, misterio-so e solitário, questiona qualquer pessoa que pos-sa ter visto nessa aparência “uma pessoa nor-mal”. Mas, além da simulação, disse o off: “As en-fermeiras têm uma opinião diferente sobre o estudante demedicina. Ele acerta nos diagnósticos, mas atende aos pa-cientes com indiferença. Segundo as funcionárias, ele exa-mina as crianças como se fossem objetos”.

Além de uma forma de compreender o crimi-noso, o off indica quem serão as mais espertas co-laboradoras da justiça. Fica o primeiro depoi-mento desacreditado, portanto, não por umaacusação de cumplicidade com o criminoso, – elenão tem cúmplices, está sozinho (o que reforça ailusão de estar vigiado e prestes a ser descoberto)– mas, por uma atitude de omissão inconsciente,quem sabe pela complexidade das estruturas, umcriminoso desse jeito não seja notado na Univer-sidade. Depois de tudo, as primeiras a desconfiarsão as pessoas comuns (enfermeiras) e quem vaidenunciar o foragido serão, também, as pessoascomuns (telespectadores) e não as pesadas, estru-turadas e lentas instituições.

A testemunha N é uma enfermeira que apare-ce sem se identificar, sentada de perfil na frentede uma janela, onde está tudo escuro e entra umapequena luz que permite ver a forma da cabeça eo corpo dela, o suficiente para ver que ela é more-na como a atriz que a representa.

Vejamos algumas de suas onze falas que mos-tram o lugar ativo da personagem:

Para explicar o que ela ouvia quando o acusa-do entrava ao quarto da criança: “ Não era chorode fome, era choro de dor de alguma coisa. E acoincidência (...) Ele podia estar quieto (...) Flávioentrava (...) ele chorava forte".

Quando ouviu que o médico estava batendona criança:

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Eu vi ele e pensei (...) aí vem o Flávio (...) Eu fiquei deolho (...) O bebê estava quieto. Quando ele entrou noquarto (...) eu escutei pá, pá, pá (...) comecei a desconfi-ar (...) Pensei (...) está acontecendo alguma coisa e pas-sei a observar mais.

Quando viu que o estudante estava batendono menino: “Aí foi a hora em que eu vi batendono menino (...) Dava soco com a mão fechada (...)A vez que eu vi foi com a mão fechada.”

Ele socava no olho do menino (...) Já estava o hemato-ma inchado, aquela coisa horrível (...) Eu entrei e gritei:que é isso, Flávio? Pára um pouco (...), o menino estácheio de sangue (...) Ele diz: Sangue? (...) Sai, Flávio! (...)Não!, dizia ele (...), calmo como se não estivesse aconte-cendo nada.

As atitudes marcadas na enfermeira opõem-sea um certo ar de lentidão, torpeza e impotênciaque é atribuído às instituições em geral e, nestecaso, ao hospital, reforçada especialmente na con-frontação da voz do superintendente do hospitalcom as outras vozes e com a escolha das falas dele.

Um exemplo disso é a fala do apresentadorquando comenta, após a primeira testemunha vero espancamento, que ela comunicou o que viu asua colega e ao médico de plantão. Ele acrescen-ta: “O médico foi atrás de Flávio mas não o en-controu (...) Ninguém tomou nenhuma provi-dência imediata”. Neste caso, quem deveria to-mar alguma posição institucional foi omisso. Asúnicas que reagem e enfrentam o criminoso sãoas enfermeiras.

O superintendente do hospital fala em quatroocasiões. Elas são redundantes e até chegam abeirar o ridículo. As falas são:

“Jamais nós, como pediatras (...) poderíamosesperar isso de um estudante de medicina (...)mesmo de um profissional que estava no final docurso de medicina (...) Talvez tenha sido isso umadas causas importantes na demora do diagnósti-co definitivo”.

O apresentador disse que, depois do espanca-mento, por causa dos hematomas, os médicoscomeçaram um tratamento de vitamina C porquepensavam que era uma doença (escorbuto) porfalta dessa vitamina. O superintendente disse:

“Nós acreditamos naquela época que era a do-ença escorbuto (...) Mas hoje não teria dúvida emprimeira hipótese (...) olha, escorbuto não exis-te". Ele volta a dizer: “Talvez o retardo do diag-nóstico definitivo é porque a gente não acredita-va que pudesse acontecer isso com qualquer alu-no que estudava”.

Após o primeiro espancamento, ele diz: “Oestudante Flávio continuou acompanhando acriança”.

No confronto de vozes, então, podemos veruma desvalorização das instituições. Seria comouma espécie de lentidão natural que chega quaseà impotência, sem condições de agilidade, efi-ciência e rapidez diante da possibilidade midiáticaque atinge todo o País e conta com milhões e rá-pidos colaboradores.

A forma de a polícia aparecer não se enquadradentro do mesmo perfil. Seja o delegado do pri-meiro caso ou a promotora do segundo, ambosfalam com segurança e fazem descrições de al-gum aspecto do caso. O primeiro fala sobre operfil do acusado, e a segunda disse a idade dasvítimas numa oportunidade e, na outra, comentaalgo sobre o momento em que foram encontra-dos os corpos. Suas palavras são as seguintes:

“É um crime bastante bárbaro (...) três pes-soas jovens (...) 22 anos tinha a Jocemara (...) 22anos tinha o Fabiano (...) e 23 anos tinha Tânia".

“É que, se a versão de João fosse verdadeira,haveria vestígios de luta, com certeza (...) E o Fa-biano (...) o corpo estava ainda lá quando o peritochegou (...) morto. E a Jocemara (...) ainda estavalá (...) morta, e o ambiente ainda estava intacto(...) sendo preservado pela Brigada Militar”.

Os depoimentos não trazem informações so-bre os casos que não tenham sido ditas pelas ou-tras vozes do programa, mas à diferença das ou-tras, estas vozes aparecem mais firmes e ativas.Haveria aqui, na minha opinião, uma considera-ção da polícia como uma colaboradora no pro-cesso de vencer a impunidade que o programaleva em frente. Na construção do Linha Direta pa-receria ter, com a presença das vozes policiais,uma espécie de auto-reconhecimento da justiça

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como parte do processo maior que, no entanto,só o programa é capaz de fazer.

Há no programa uma simulação de novo jul-gamento, não só no sentido de elementos quelembram o tribunal, mas também no sentido deque o programa “abre“ um novo espaço paraapresentar o caso (“como ele aconteceu”) e opróprio telespectador, a partir de elementos mos-trados pelo programa, chegue a uma conclusão.Desta vez, o julgamento não é segundo os proce-dimentos tradicionais e sim os midiáticos. Aquelainstituição que tradicionalmente interroga agoraé interrogada. Os fatos em que mais se apóia aculpabilidade dos acusados são visíveis para o te-lespectador: gestos, olhares, etc.

Olhando ainda para o tratamento dado às ins-tituições, não se trata, no meu ver, de uma críticasocial, algo que as instituições poderiam fazer enão fazem. Este tipo de postura, de certa formamediadora entre o Estado e o povo, não faz partedo discurso e da visão de mundo da Emissora.Parece mais uma declaração de obsoletismo dasinstituições mais tradicionais pela onipotência,onividência e onipresença midiática. As institui-ções às quais se faz alusão em ambos os casos sãopúblicas, ligadas à Saúde, à Educação e à Justiça.Poderia se ver também no tratamento dessas vo-zes uma espécie de pregação na prática, ou de vi-sibilização de uma sociedade de Estado mínimo.

Ainda dentro das vozes “reais” existe, no pri-meiro caso, à diferença do segundo, a presençade dois peritos: um radiologista e um psicanalista.Ambos os especialistas falam desde seus ambien-tes de trabalho. Nenhum dos dois faz alguma alu-são a ter acompanhado o caso, é provável queambos tenham sido informados e perguntadossobre o caso. Eles opinam sobre os fatos comoautoridades científicas. Mas, também nestes ca-sos, a presença é simbólica, dá seriedade à inves-tigação e confirma “cientificamente” as informa-ções. Além disso, especialmente o depoimentodo psicanalista sobre o que poderia ter provoca-do o crime contra o menino, poderia estar suge-rindo um programa que não se limita a resolverpontualmente os crimes, mas que também pro-cura analisar as causas. O depoimento também

servirá para abrir uma discussão que é retomadana enquete na página da Internet no fim do pro-grama, com diversas causas pelas quais uma pes-soa poderia espancar uma criança.

Após o apresentador dizer que, como conse-qüência do primeiro espancamento, houve fratu-ras no bebê, aparece o radiologista sentado emum consultório médico, com umas radiografiasde pernas e braços na parede. Ele diz:

“A característica era fraturas múltiplas quenormalmente não acontecem numa queda ounum acidente doméstico (...) digamos”.

O psicanalista fala dos psicóticos em geral,tenta dar uma possível explicação para o caso.Está sentado numa poltrona vermelha e diz:

É uma pessoa que estava com psicose (...) afetada, sain-do da realidade (...) E é muito comum, psicóticos comdelírio de perseguição, se sentirem ameaçados peloolhar de outras pessoas (...) É bem possível que aquilofoi se incorporando no delírio dele (...) e que aquelacriança (...) cada vez que entrava em contato com ela(...) ele se sentia perseguido e começou a perder o con-trole (...) a bater e a tentar destruir aquilo que era a partemais incômoda para ele, que é o olhar.

No que se refere às vozes da família, eles sãoaqueles que representam o mais popular do pro-grama. Se vê nos símbolos que se usam do lado(um capacete, uma imagem religiosa, a cama, .....)

Os planos nos quais eles são enquadrados sãofechados, o que permite maior abertura na horade traduzir os fatos às cenas de simulação na cria-ção de ambientes. As falas dos familiares são asque mais mostram repetições e problemas de lin-guagem. Isso pode reforçar o nervosismo (queseria supostamente o natural...) e uma possívelespontaneidade, além de dissolver a informação .Vejamos diversos casos.

A mãe da vítima no primeiro caso disse: “Vejoque a tristeza dele hoje é a mesma porque (...) euvejo que ele sofre na rua”.

O pai de uma das vítimas no segundo casodisse, referindo-se ao assassino:

Ele era amigo de todo o mundo (...) Era amigo de Tâ-nia (...) era amigo meu (...) era amigo desse que morreu(...) era amigo de todo o mundo (...) Ele era um rapazque (...) enganou a gente de uma coisa tão (...) dessa

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maneira que a gente nunca esperava. Quando bateu naminha porta para dizer que ele tinha feito isso (...) eunão acreditei.

O irmão gêmeo de Jocemara, uma das vítimas,disse: “Todo dia primeiro no caso eu faço aniver-sário e ela (...) ela sempre está chegando (...) sem-pre está chegando”.

Os familiares manifestam uma atitude sub-missa. A indignação e a revolta está muito maispresente nas posturas do apresentador e nos ato-res que contracenam com o criminoso do quenas pessoas reais. Os familiares, com gestos trê-mulos, olhares tímidos, choro, se limitam a pedirajuda para que o foragido não faça com o teles-pectador o que fez com eles. Eles são apresenta-dos como extremamente indefesos, necessitadose dependentes do programa, em primeiro lugar, eda ajuda do telespectador, em segundo.

4.2 Linha Direta jornalismo e notícia

Trata-se agora de discutir o Linha Direta à luzdas principais teorias do jornalismo, assimcomo desde a teoria do espetáculo e do drama jádesenvolvida no primeiro capítulo deste traba-lho. A análise tentará confrontar a teoria da no-tícia com as práticas do Linha Direta, aplicandoalguns termos das teorias que me parecerammais iluminadores para entender a notícia noprograma em questão.

Desde a Teoria do Espelho, que concebe anotícia como reflexo da realidade, no programaLinha Direta haveria um elemento decisivo parapensar que não há notícia no Linha Direta. Esseelemento é a utilização da ficção na construçãodo programa, já que para esta teoria há uma fron-teira inviolável entre realidade e ficção, vista estaúltima como invenção e mentira que violam asnormas jornalísticas. Portanto, os recursos de tri-lha sonora e ruídos no fundo da notícia; o recursode simulação dos acontecimentos; a linguagemusada pelo apresentador mais próxima do opina-tivo ao descritivo, assim como o uso abusivo deplanos fechados que acentuam a dramaticidadesobre a descrição; o ocultamento do repórter e a

existência de uma voz off que não é a do apresen-tador, nem do repórter, nem dos depoentes, to-dos eles recursos de ficção intercalados com anotícia, seriam procedimentos rejeitados pela te-oria do espelho.

A tentativa de ver o Linha Direta a partir dateoria do gatekeeper ou da ação pessoal se tornamais difícil porque ela aborda a notícia exclusiva-mente do ponto de vista das decisões psicológi-cas do jornalista. A teoria aponta uma seqüênciade decisões que levam o jornalista a considerar al-gumas informações e deixar de lado outras. Aexistência de uma seleção permanente é facil-mente constatável nos “cortes” do Linha Direta.As escolhas das pessoas que falam sobre o acon-tecimento e a edição de suas falas; os fatos que seescolhem para ilustrar a história das pessoas en-volvidas, os argumentos escolhidos para “de-monstrar” a culpabilidade do criminoso, enfim,os fatos apresentados que terminam no crime e aprópria forma de mostrar o crime (palavras, ges-tos, ruídos e trilhas escolhidos) revelam, sim, aexistência de decisões, portanto de uma subjetivi-dade. Só que essa subjetividade está muito longede ser a de alguma das pessoas que trabalham noprograma. Essa subjetividade está dada pela linhaeditorial do Linha Direta expressa na fórmulaidêntica, aplicada a cada semana para apresentaros casos. Além do mais, torna-se muito difícil (in-clusive para o próprio jornalista) saber até ondeas decisões estão dirigidas por razões pessoais,por normas profissionais, pelo peso da estruturaburocrática da organização, pela absorção in-consciente da linha editorial da empresa, ou portudo isso junto.

Talvez a Teoria Organizacional consiga levarmais em conta esses elementos, pois ela tem umolhar maior para o entorno do jornalista. Sua aná-lise levaria em conta que Linha Direta é um pro-grama da maior empresa de comunicação doPaís, o que implica menor grau de comunicaçãointerativa entre as pessoas da empresa (ela é maiscentralizada) e, portanto, menor grau de autono-mia do jornalista, que nas empresas pequenas. Aorganização do programa dividida em quatro nú-cleos, com uma específica divisão de tarefas e a

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rígida definição da linha editorial do programa,direciona a construção da notícia, sem deixarmuita margem a decisões individuais, emboraessa margem nunca seja totalmente extinta.

Esta linha editorial, que poderíamos resumircomo uma opção pela ficção e o dramatismonuma construção estética do grotesco, sob umrevestimento de sério procedimento jornalísti-co, dando preferência a temas que despertem aindignação da população, direciona a constru-ção da notícia e, segundo a teoria, é essa linhaeditorial que os trabalhadores da notícia absor-vem por osmose e procuram realizar sem umaexplicitação dessa linha por parte da Empresa esim numa convivência diária ao modo recom-pensa-punição.

A teoria levaria em conta também, na sua vi-são do programa, que, como toda empresa jorna-lística, há um negócio que está em jogo. Portanto,analisaria as tramas com sua forte influência dateledramaturgia (em um país muito acostumado àtelenovela), com sua dose de romance e violênciae seu grotesco chocante que procura manter o te-lespectador ligado à trama, e outros elementosem função de uma emissora que está concorren-do com outras na disputa pela audiência e pelosanunciantes.14

As teorias da ação política levariam a confron-tar a notícia no Linha Direta com o papel socialdessa notícia. Na concepção da teoria, o jornalis-mo pode (e deve) refletir a realidade de maneiraparcial e objetiva, mas na prática – segundo a teo-ria – ele tende a ser imparcial, beneficiando certosinteresses econômicos e políticos. A teoria (pelomenos a corrente desta teoria mais desenvolvidana apresentação, acima) analisaria o programapara ver a forma em que ele favorece os interes-ses econômicos e políticos da empresa e dosanunciantes em favor da ordem estabelecida,igualando notícia à propaganda dessa ordem edessa empresa.

Desde essa base, elementos como a persona-lização de ambos os criminosos e a descon-

textualização das histórias contadas sem umvínculo com a história sociopolítica nas quaiselas acontecem seriam alguns dos aspectos a se-rem apontados. Ela avaliaria a forma como asdeficiências das instituições públicas são repre-sentadas como uma maneira de construir a auto-propaganda da emissora e da mídia baseada naeficiência da tecnologia.

A teoria construtivista procuraria ler, nos me-canismos e dispositivos com os quais é construí-da a notícia no programa, as informações que elesrevelam sobre o que faz sentido, sobre o que im-porta, sobre o tempo e o lugar em que vivemos.

Um ponto de partida da teoria (assim comodas outras duas que surgiram a partir da constru-tivista: estruturalista e interaccionista) seria aidéia de que o Linha Direta na construção dosdois casos apresentados está construindo doisacontecimentos diferentes dos que sucederamhistoricamente, mas esses novos acontecimen-tos encontraram nesses casos alguns enquadra-mentos. Ao mesmo tempo, a nova realidadecriada revela informações sobre o tempo e o lu-gar em que o programa e a Emissora se inserem,porque não haveria uma dicotomia entre a reali-dade e as mídias que devem refletir essa realida-de, já que esses meios estão dentro da realidadee ajudam a construí-la.

A teoria chama a atenção para todos aqueleselementos que dão significado à notícia, de formatal que poderia haver outros significados do mes-mo fato. Dessa forma, chamaria a atenção do re-curso da voz off na forma como ele dá significadoàs simulações, e das imagens simuladas (guiadapela voz off) na construção do sentido das figurasprincipais, assim como a presença do apresenta-dor na construção do sentido dos depoimentosque aparecem. Seria mais forte no programa apresença de explicações e enunciados que dãosentido do que os próprios fatos e pessoas.

Se as coisas são noticiáveis porque represen-tam a natureza conflituosa do mundo, Linha Dire-ta entra no cerne do noticiável, enquanto que os

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14 É bom lembrar que o Linha Direta adquiriu essa especificidade de abordagem grotesca por causa da concorrência com asoutras emissoras.

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acontecimentos que usa como referentes mos-tram uma situação (a violência e o papel da justiçadiante dela) que preocupa grande parte da popu-lação. E se as notícias trazem os fatos ao horizon-te do “significativo”, tirando-os do anonimato,como acredita a teoria construtivista, o programarevela sua concepção do mundo na forma comodá sentido às informações que ele mesmo traz.

Mas a teoria, no meu ver, deixaria evidente ainversão dessas duas premissas. A presença maisforte dos elementos que trazem o fato ao hori-zonte do significativo (apresentador, off, simula-ções) que a própria natureza conflituosa dos fa-tos. O programa subsitui o conflituoso do mun-do que lhe serve de referência nos casos por umclima conflituoso provocado pelos efeitos espe-ciais e pelo tom das vozes do programa.

Em relação à estrutura de drama, já citada aci-ma, ambos os casos analisados neste trabalho,apesar de mostrar em um clima dramático o tem-po todo com o uso de elementos que dão drama-ticidade, não seguem a estrutura do drama, asse-melhando-se mais à fábula. Se levamos em contaa clássica divisão do drama em três atos comoapresentação de uma situação, introdução de umdesequilíbrio, clímax e resolução que estruturamas ações humanas, Linha Direta está longe de serdrama. Os dois casos partem desde o início deuma confrontação entre o bem e o mal, personi-ficados em pessoas com os nomes de pessoasreais, mas que na realidade são telerreais. Essaspessoas, através de muitos sinais (mas geralmenteos mesmos em cada caso) são identificadas, des-de o início do programa, de tal forma que o teles-pectador esperará só coisas boas de uma e só coi-sas ruins da outra, sendo as outras vozes secun-dárias como breves ecos que reforçam a maldadede um e a bondade do outro. A tensão não estáintroduzida por uma ação e, sim, personificadaem alguém e reforçada não por ações e, sim, pormecanismos visuais e auditivos. Longe de preten-der que o telespectador se posicione (sinta indig-nação, revolta, compaixão, pena) em relação àhistória que está sendo (de alguma maneira) refe-rida, busca-se que o telespectador sinta essasemoções sem uma referência, ou melhor, em re-

ferência ao programa. Um telespectador distraí-do poderia dizer que é um programa que lhe fazsentir indignação pela injustiça, sendo que os me-canismos do Linha Direta se interpõem de manei-ra que o telespectador não tenha contato com es-sas realidades e, sim, com eles próprios.

Como estrutura narrativa, o programa asse-melha-se mais a estórias como ChapeuzinhoVermelho e o Lobo Feroz e tantas outros relatosinfantis ou não (só que essas histórias não tomamum referente real) com final feliz, do que ao dra-ma, ou seja, histórias humanas. O final feliz doprograma pode e deve ser ajudado a construirpelo telespectador quando seja preso o homemque cometeu o crime. No programa que foi obje-to desta análise, é mostrado o “final feliz” de umoutro caso, com a captura do foragido; e, no se-gundo caso, aparece a legenda de que o crimino-so se entregou à justiça no dia anterior ao progra-ma. A frase parece estabelecer uma relação dotipo causa-conseqüência, como se o programa ti-vesse tal autoridade e eficiência (onipotência) quebastaria agendar os casos e transformá-los emprogramas, para os foragidos se entregarem.

O drama, da forma como foi tratado antes,daria um Linha Direta muito diferente. Permi-to-me aqui citar o cineasta inglês Alfred Hit-chcock, autor e diretor de tantos dramas para ci-nema e televisão, em entrevista ao jornal The Sa-turday Evening Post, no dia 27 de julho de 1957 (InAltmann, 1996, p. 222). O cineasta explicou suaforma de construir o drama, deixando que a audi-ência saiba, por exemplo, onde a bomba está,mas não as personagens.

Você e eu estamos aqui batendo papo. Não precisamosconversar sobre morte ou qualquer outra coisa que te-nha conseqüências sérias, mas se a audiência souberque há uma bomba debaixo de minha escrivaninha,pronta para ser detonada, o suspense mortificará a to-dos eles. Mas, se não contarmos nada a eles sobre essabomba escondida, e ela explode, e nos reduz a pedaci-nhos, a única coisa que sentirão é um choque, um cho-que de um segundo, em contraposição a sessenta ounoventa minutos de uma expectativa de tirar o fôlego.

Apesar de Hitchcock não estar falando de his-tórias “reais”, elas realmente dão uma participa-

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ção ao telespectador que o programa Linha Diretalhe retira. É como se o programa em nenhum mo-mento pudesse deixar sozinho o telespectador di-ante dos fatos e sempre recorresse à mediação delepróprio para toda e qualquer interpretação.

Por último, então, haveria uma análise queprecisa ser feita e que tem a ver com o lugar que oprograma dá a si mesmo e ao telespectador. A teo-ria do espetáculo ajuda a fazer essa análise. Oprograma apresenta um único ângulo de visão, eisso não se refere exclusivamente à característicatécnica que a TV tem de que os diversos ângulos(das diversas câmeras) chegam ao telespectadorcomo uma única possibilidade de visão.

O programa esgota-se na exibição, sem ne-nhuma opacidade simbólica. Os lugares são irre-

versíveis: o espetáculo televisivo nunca é palcopara o telespectador, nem sequer ele aparece nopalco quando denuncia, liga, ajuda a dar algumapista sobre a pessoa que está foragida, como é so-licitado pelo programa na apresentação final queMeirelles faz ao explicar o uso da página da inter-net. Mas o elemento que mais faz do Linha Diretaum espetáculo – e aqui haveria exatamente umadefinição oposta ao que é notícia em todas as teo-rias – é que o programa mostra e coloca o teles-pectador em contato exclusivamente e totalmen-te com o próprio Linha Direta, sem uma referên-cia a outra realidade. Ele é a realidade: seus recur-sos técnicos, sua eficiência, seu apelo permanen-te a estar com ele.

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Considerações finais

Ao concluir este trabalho, embora fiquemmuitíssimas perguntas e sobretudo muito desejode me aproximar mais e também de outras for-mas à telerrealidade, algumas considerações po-dem ser feitas a partir dos capítulos percorridosaté aqui.

Uma primeira e importante descoberta foi ada televisão como um espaço que permite umaprofundamento da percepção da realidade epossui instrumentos que lhe possibilitam pene-trá-la intensivamente. Ela tem, portanto, umenorme potencial de aproximar o ser humano e omundo dela mesma e pode fazer isso de uma for-ma muito natural e descontraída. Trata-se de um“lugar” no qual ficção e realidade, passado e futu-ro, o longínquo e o próximo, todas as linguagense todos os discursos podem estar juntos e ser usa-dos para dizer alguma coisa, ou simplesmente ofato de eles estarem juntos já diz alguma coisa so-bre a realidade. É um lugar privilegiado paraconstruir e contar histórias com formas de narraroriginais e próprias do meio. A realidade televisi-va traz uma nova (des)ordem na qual se destaca acondição de aparente igualdade de todos os dis-cursos, e se assemelha às formas de convivênciahumana nas grandes cidades.

Uma outra questão importante neste trabalhoé a constatação da tendência televisiva a ocultarsua condição de mediação e aparentar a autono-mia do que ela mostra, como se não fosse por elaconstruído e aparentemente ela simplesmentepermitisse que o telespectador se coloque como“testemunha” diante dos fatos. No entanto, sebem que toda imagem desvele uma realidade pre-existente, ela também mostra uma subjetividadeque a captura. Portanto, o telespectador só podeestar diante da TV e de sua telerrealidade.

Não há nada que seja inteiramente real ou in-teiramente ficcional, entendendo, a grosso

modo, esses conceitos como fatos totalmentemateriais ou totalmente imaginários. Na históriado jornalismo e da notícia, tendeu-se a se afir-mar essa separação entre as duas, sendo que oreal sempre esteve mais associado ao valor éticode verdade, e o ficcional ao de mentira. Desdeaí, haveria um imaginário do jornalista associa-do a certos valores de realismo, objetividade eneutralidade. O bom jornalismo se manteria, se-gundo esse imaginário, longe dos recursos deficção e do uso de gêneros como a dramaturgiapara construir a notícia.

A experiência descrita neste trabalho, porém,mostra que, na lógica televisiva, ficção e realida-de não são inimigas, nem são por si mesmas ver-dadeiras ou mentirosas, nem dão um carátermais ou menos ético à informação, ou um valormais ou menos social à Emissora. A presença daficção – que é comum a programas que são degrande valor social e a outros que não são – po-deria ajudar a fazer a notícia mais acessível parao grande público, portanto, torná-la menos eli-tista ou excludente.

Na sociedade brasileira, a televisão teve umpapel importante na transformação de uma so-ciedade mais rural em urbana e “moderna”. A TVGlobo teve nesse processo um lugar específicona forma dessa sociedade ver a si mesma; e na ilu-são criada de ser o Brasil um país de primeiromundo, mas ao mesmo tempo um país cujas ins-tituições são impotentes ou corruptas; em defini-tivo, um país do qual só saem vencedores “suagente” (só na medida em que são telespectado-res) porque são lutadores, alegres e fraternos, en-tre outras coisas, e (como não podia ser de outramaneira) a Emissora; o lugar onde esses brasilei-ros podem viver felizes e protegidos. Essa idéiarepete-se de diversos modos nos programas daEmissora, na forma como ela apresenta a si mes-

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ma, às pessoas e às instituições. As possibilidadestecnológicas da Globo lhe permitem uma ima-gem de altíssima qualidade na qual os brasileirosaprenderam a “se reconhecer”. Os programasGlobais referem-se a elementos da realidade bra-sileira, falas, cenários, acontecimentos, etc., quemostram o cuidado da Emissora no efeito de ve-rossimilhança, visto como mais “progressista”que outras formas e que permite uma maior iden-tificação por parte dos telespectadores.

A possibilidade da Emissora de entrar emrede com quase a totalidade dos municípios e la-res brasileiros é aproveitada para reforçar essesentimento de “brasilidade” em torno dela, alémde sua auto-enunciação como uma instância úni-ca de comunicação real, efetiva e eficaz entre osbrasileiros, sendo que a forma como eles sãoapresentados na tela está próxima de um frag-mento muito pequeno da população.

O programa Linha Direta apresenta-se comoum programa, em primeiro lugar, de utilidade pú-blica; em segundo lugar, é classificado na grade deprogramação como telejornalístico; em terceirolugar (sem dizê-lo explicitamente), seria um dosprogramas mais “populares” da Emissora: a pre-sença de pessoas simples que falam sobre dramasfamiliares e a participação de atores desconheci-dos lhe dariam (lhe dariam?) esta classificação.

A utilidade pública é apresentada no progra-ma como um importante serviço que a Globopresta à sociedade: ela faz justiça. Esse recurso éaproveitado por ela para construir uma sociedadetelerreal. Nessa sociedade, aparecem de uma ououtra forma instituições frustradas, e o programa(a emissora e a mídia) como um novo lugar so-cial; um meio mais rápido, eficiente e efetivo quevem para resolver o problema da impunidade,que as instituições não conseguem resolver. Nes-sa sociedade, emerge o telespectador como umnovo “cidadão”, que está ligado ao programa eajuda15 a resolver o caso. Ao mesmo tempo, autilidade pública e o número de pessoas procura-

das pela justiça que foram capturadas (222 até omomento) é uma das cartas de apresentação nasquais o programa se escuda para justificar suaspráticas e abordagens.

Há uma fórmula que se repete a cada semanano Linha Direta e que se transforma em moldepelo qual passam os relatos dos diversos dramasfamiliares, sendo que os dramas, as histórias e aspessoas que aparecem no programa ocupam umsegundo plano. Isto é, a notícia não está dadapelos casos que a cada semana aparecem no pro-grama. Se as pessoas assassinadas foram uma oumais, se ela era gaúcha ou nordestina, se os as-sassinos são brancos ou negros (geralmente sãonegros), se eles tinham razões contra a vítima, seas famílias estão hoje precisando de algo, sejaeconômica, afetiva ou psicologicamente, nadadisso importa.

O que importa ao programa, e nisso consistesua fórmula, são os seguintes elementos: que oassassinato (da forma que tenha sido) tenha ce-nas chocantes que possam ser representadas logono início do programa; que existam familiaresque possam aparecer e, no final do programa (depreferência chorando), possam dizer que foi umainjustiça que deve ser vingada, porque essa pes-soa solta pode – a qualquer momento – fazer algosemelhante com um familiar do telespectador;que os familiares e pessoas ligadas a instituiçõessociais confirmem a bondade da vítima, a malda-de do assassino e a sua impotência para resolver ocaso; que “o restante” fique a cargo do programa.

O uso do grotesco chocante e o tratamentodado às histórias humanas e às pessoas reais quenele aparecem, procuram de fato chocar o teles-pectador. Entretanto esse choque não é dadopelo encontro do telespectador com o relato deuma realidade, mas pelo encontro dele com osmecanismos ficcionais usados pelo programa.Nesse sentido, o programa interpõe-se entre ossentidos do telespectador e as histórias relatadas:assim, o telespectador não se revolta com a vio-

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15 A ajuda do telespectador, na gramática do programa, já inicia com o fato de ele assistir o programa, sentir a tensão, omedo e a revolta que o programa tenta produzir com seus efeitos especiais. Parece que a ilusão de estar dividindo o dramacom a família já está ajudando.

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lência e o crime, ou se compadece com a desgraçada família que aparece. Ele é levado a um estadode tensão e revolta, sim, mas pelos efeitos sono-ros e visuais quase que por si sós.

Na arena do Linha Direta se ouvem muitas vo-zes, mas elas funcionam como ruídos que confir-mam e reforçam a voz do programa. O que real-mente o programa simula são as histórias reais.Há uma simulação de polifonia, mas na realidadehá um único discurso, o do Linha Direta: um dis-curso único, absolutista, sobre várias coisas. Umúnico enunciador com diversos enunciados so-bre a justiça, sobre a emissora, sobre a sociedade,sobre a mídia e a tecnologia, sobre as instituiçõestradicionais e sobre os poderes públicos; sobre opúblico e o privado.

Linha Direta é, portanto, um espaço de mui-tas vozes, de muitos ruídos, mas também é exa-tamente nesse ruído que acontece um duplo si-lenciamento: o silenciamento das histórias e daspessoas referidas, cujos relatos e depoimentosnão conseguem ser suficientemente “podero-sos” para concorrer com a tecnologia que atingemais eficazmente os sentidos do telespectador.Em Linha Direta, a grande notícia é que a tecno-logia é a linha direta que a Globo estabelece coma notícia, a qual resolve os casos noticiados, viatecnologia de informação e comunicação pon-ta-a-ponta. Trata-se, portanto, de uma telessocie-dade de indivíduos sem sociedade. Nela, os efei-tos são mais reais que a realidade e, a realidade émenos que a telerrealidade.

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