a construção social da cura em cultos umbandistas_alexandre mantovani

169
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A construção social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeirão Preto – SP Alexandre Mantovani Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. RIBEIRÃO PRETO – SP 2006

Upload: kacia-natalia-tedesco

Post on 20-Nov-2015

8 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

Tese de mestrado sobre o umabandismo

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP

    Alexandre Mantovani

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea: Psicologia.

    RIBEIRO PRETO SP

    2006

  • 15

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP

    Alexandre Mantovani

    Jos Francisco Miguel Henriques Bairro

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea: Psicologia.

    RIBEIRO PRETO - SP

    2006

  • 16

    FICHA CATALOGRFICA

    Mantovani, Alexandre

    A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto-SP. Ribeiro Preto, 2006.

    172 p. : il. ; 30 cm Dissertao, apresentada Faculdade de Filosofia,

    Cincias e Letras de Ribeiro Preto / USP Dep. de Psicologia e Educao.

    Bairro, Jos Francisco Miguel Henriques 1. Cura. 2. Psicanlise. 3. Umbanda

  • 17

    FOLHA DE APROVAO

    Alexandre Mantovani A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto para obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Psicologia

    Aprovado em: Banca Examinadora Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituio: __________________________________________________________ Assinatura: __________________________________________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituio: __________________________________________________________ Assinatura: __________________________________________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituio: __________________________________________________________ Assinatura: __________________________________________________________

  • 18

    Mantovani, A. A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um

    terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP. 2006, Dissertao (Mestrado)

    Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto -SP

    ERRATA

    FOLHA LINHA ONDE SE L LEIA-SE

    37 6 NASCIMENTO

    (1999)

    NASCIMENTO

    (1997)

    124 26 MAGGIE (1991) MAGGIE (2001)

    133 13 BASTIDE (1974) BASTIDE (1973)

    138 25 BION (1946) BION (1973)

  • 19

    AGRADECIMENTOS

    Ao prof. Miguel Bairro que me concedeu a oportunidade da pesquisa e que muito contribuiu para minha formao como psiclogo, com sua inteligncia e generosidade. Aos colaboradores da Tenda de umbanda do Pai Joaquim do Congo e Ogum Guerreiro, na pessoa de Dona Tonica que muito gentilmente me receberam e permitiram a realizao da pesquisa. Aos colegas de pesquisa Fbio e Sabrina que me apresentaram aos colaboradores e aos demais colegas do Laboratrio de Etnopsicologia da FFCLRP. minha famlia, meus irmos e cunhados pelo apoio e companheirismo.Ao meu irmo Marcelo pela ajuda com as fotografias. Ao meu pai Bernardo Mantovani pelo constante auxlio na produo dos textos e minha me Hona T. Mantovani pelo auxlio na traduo dos textos em francs. Carina Cella Panaia, minha noiva, pelo seu apoio, companheirismo carinho e, sobretudo pela pacincia! E por estar presente em minha vida. Aos amigos desde os tempos de graduao: Anderson, Rafael, Fbio, Felipe pelos grandes momentos compartilhados. Dra. Pilar, com quem realizo minha anlise e que me auxiliou a adquirir uma compreenso alm da esfera intelectual, fundamental para todas as minhas realizaes. Aos professores Lazlo vila e Rosalina C. da Silva que gentilmente aceitaram participar como membros da banca de qualificao e defesa. A professora Carmen L. Cardoso e professor Antnio D. Carvalho por aceitarem serem suplentes da banca. A todos os funcionrios e professores do Departamento de Psicologia e Educao da FFCLRP-USP A todo Povo de Aruanda!

  • 20

    RESUMO

    Mantovani, A. A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um

    terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP. 2006, Dissertao (Mestrado)

    Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto -SP

    Muitas pessoas se aproximam da umbanda procurando solues para queixas que vo desde

    situaes de sade, problemas financeiros e de relacionamentos interpessoais. Como forma de

    tratamento os terreiros desempenham prticas especficas estruturadas seguindo a cosmologia

    umbandista, uma viso prpria de mundo e de ser humano. No desempenho da cura tem-se

    uma situao em que o indivduo diagnosticado por uma semiologia espiritual, uma

    leitura do mesmo a partir de elementos simblicos religiosos. Este contexto abre espao para

    uma pesquisa psicolgica vinculada ao social, sendo para tanto necessria uma atitude de

    pesquisa no-reducionista e no- etnocntrica.

    O objetivo desta pesquisa foi descrever e analisar prticas de cura desempenhadas em um

    terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP, explorando possveis sentidos

    enunciados nestas prticas.Trata-se de uma pesquisa qualitativa cujas estratgias de coleta de

    dados foram: observao-participante, anotaes em dirio de campo, entrevistas e registros

    audiovisuais. Os dados foram analisados com base na abordagem antropolgica da pessoa,

    que preconiza o estudo do ser humano singular culturalmente contextualizado e distinto da

    representao da pessoa por um eu psicolgico. Tambm toma-se como referncia a

    psicanlise, principalmente pelo tratamento do sujeito feito por Lacan que se assemelha ao da

    antropologia e possibilita uma aproximao do psicolgico ao social, uma vez que trata o

    sujeito estruturado por relaes de alteridade em cadeias significantes, elementos simblicos

    pertencentes ao universo cultural. Como resultados, verificou-se duas prticas de cura

    espiritual chamadas descarrego e transporte. Para a anlise agrupou-se dados referentes a

    oito situaes observadas no campo em categorias que explicitam a compreenso umbandista

    sobre sade e doena, as aes curativas e seus efeitos. Pde-se observar que: o culto

    umbandista apresenta-se como uma cadeia significante formada por elementos verbais e no-

    verbais que enunciam diversos sentidos para comunidade do terreiro. Os sintomas da doena

    espiritual revelam o grau de proximidade do indivduo com a religio. As prticas de cura

    apresentam uma estrutura de eficcia simblica, tal como conceituada por Lvi-Strauss. Alm

    disso, funcionam como forma de expresso de conflitos constituindo um drama social

  • 21

    (Turner). O uso da psicanlise possibilitou uma aproximao entre o pesquisador e os

    colaboradores (umbandistas) e assim foi possvel investigar as prticas de cura levando em

    conta a linguagem e os significados que estas apresentam para os mesmos. As prticas de cura

    apresentam uma funo de insero comunitria, pois na umbanda classificar um indivduo

    como saudvel ou doente implica em reconhecer seu grau de proximidade com a religio.

    Palavras-chaves: cura; umbanda; psicanlise

  • 22

    ABSTRACT

    MANTOVANI, A. The social construction of cure in umbandist cults: a case study in a umbandas terreiro in Ribeiro Preto SP. (Dissertao de mestrado). 2006. (Mestrado) Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto -SP

    Many people seek in umbanda solutions for their health problems, situations of interpersonal

    interactions and financial difficulties. The terreiros treat them by performances of specific

    practices based in a particular conception of the human being and a specific world view. The

    process of healing is carried out on the basis of a spiritual semeiology an interpretation

    based on symbolic religious elements. These conceptions and activities represents a good

    opportunity for a psychological and social researcher program, aimed to be non reductionist

    and also non ethnocentric. We describe the practices of cure performed in a terreiro of

    umbanda in the city of Ribeiro Preto SP, looking for their possible significance. It is a

    qualitative investigation whose data were obtained by participant observations, daily field

    annotations, interviews and audiovisual registrations. The analysis based on the

    anthropologic approach of the person, aimed the singular human being in its cultural context,

    which differs from the mere representations of the person as a psychological ego. The

    reference to psychoanalysis was useful specially through Lacans treatment of the self , which

    is akin to the anthropologic approach and makes possible an approximation of the psycho

    logic and the social, since it consider the person as psychologically structure by its relations

    with the symbolic elements of the cultural universe. We have studied two forms of spiritual

    cures which are called descarrego and transporte. The data were clarified in eight

    categories according to the situations of observations in the field; these categories make

    explicit for the umbandists what is needed for the understanding of the wealth and disease

    states, the healing actions and their effects. We have shown that: the umbandas cult is

    characterized as a significant chain of verbal and non verbal elements that represents diverse

    meanings for the community; the symptoms of the spiritual disease reveal the degree of

    proximity of the persons to the religion; the practices of cure constitute a structure of

    symbolic effectiveness, as in the sense given by Lvi-Strauss. Moreover, they functions as a

  • 23

    form of expression of conflicts within the community, and thus constitute a social drama

    (Turner). The use of psychoanalysis permitted an approximation between the researcher and

    collaborators and made possible, in this way, to investigate the practices of cure taking in

    account the language and the significance that they represent for both of them. These practices

    have the function of an insertion in the community, since in the umbanda, the classification of

    a person as being healthy or sick implicate in the recognition of his/her degree of proximity to

    the religion.

    Key-words: cure; umbanda; psychoanalysis

  • 24

    SUMRIO 1 INTRODUO 25 1.1 Estudos psicolgicos dos cultos afro-brasileiros 1.2 Prticas populares de cura 1.3 O sujeito e o ritual 1.4 Sujeito e Performance 1.5 A cura na umbanda 2 METODOLOGIA 51 2.1 Sobre o mtodo 2.2 Participantes 2.3 Local da pesquisas 2.4 Estratgias de pesquisa 2.5 Procedimentos 2.6 Anlise dos dados 3 RESULTADOS 83 3.1 Contatos iniciais 3.2 As prticas de cura: descarrego e transporte 3.3 O descarrego 3.4 O transporte 3.5 Relatos de experincias 4 DISCUSSO 119 4.1 Eventos disparadores 4.2 Explicaes do terreiro 4.3 Aes curativas 4.4 Reao ps-tratamento 4.5 Sntese 5 CONCLUSO 157 REFERNCIAS 161 ANEXOS 166

  • 25

    1 INTRODUO

  • 26

    1.1 Estudos psicolgicos dos cultos afro-brasileiros

    Desde o incio do estudo das religies afro-brasileiras, com os trabalhos de Rodrigues

    (1900 apud GOLDMAN, 1984), e Ramos (1934) tem-se a utilizao de teorias psicolgicas

    como recurso de explicao para os fenmenos desempenhados nos terreiros de candombl e

    umbanda.

    Os cultos dessas religies chamam ateno pela riqueza de smbolos e pela

    complexidade ritual caracterizadas por uma multiplicidade de elementos como msicas,

    danas, uso de objetos mgicos e pelo fenmeno de possesso por espritos. Para os

    pesquisadores, os cultos forneciam vrias situaes que intrigam a pesquisa sobre o

    comportamento humano. Como diz Silva (1999, p.7):

    (...) dentre os vrios aspectos que se destacam nessa herana africana, aqueles relativos sua religiosidade complexa, aos seus cultos e rituais, exercem particular atrao curiosidade desses pioneiros. E dentre esses, o fenmeno de transe da possesso, exercer um verdadeiro fascnio, constituindo-se campo por excelncia dessa pioneira exercitao dos saberes psicolgicos aplicados anlise da realidade cultural.

    Segundo Goldman (1984), foi Nina Rodrigues o primeiro a se interessar pela posio

    do negro africano na sociedade brasileira e o primeiro a desenvolver trabalhos de medicina

    social abordando questes sobre problemas patolgicos, tanto individuais quanto sociais,

    causados pela mestiagem racial (GOLDMAN, 1984, p. 69). Seus trabalhos consistiam em

    estudos raciais, o que levou a receber muitas crticas por parte de pesquisadores posteriores.

    Apesar do carter classificatrio e evolucionista, o trabalho de Nina Rodrigues abre

    portas para a pesquisa sobre os estudos africanos no Brasil e principalmente sobre aspectos

    psicolgicos do negro e de sua religio. Suas hipteses baseiam-se em estudos antropolgicos

    de sua poca e o autor formula um estudo sobre o fetichismo e a possesso nas religies

    africanas, atribuindo uma relao de parentesco entre os fenmenos que ocorrem no transe

  • 27

    mstico a correlatos psicopatolgicos, como o sonambulismo e a histeria, extrados da obra de

    Pierre Janet: Eu sou levado a crer que os orculos fetichistas possudos por santos no so

    outra coisa que estados de sonambulismo provocados com a duplicao e substituio da

    personalidade (RODRIGUES, 1900 apud GOLDMAN, 1984, p. 74).

    Em comentrio, Goldman (1984, p.75) afirma: Nina Rodrigues faz do transe o

    reflexo direto destas perturbaes psicolgicas, atribuindo ao meio social apenas a

    capacidade de direcionar essas manifestaes.

    Se Nina Rodrigues busca em Janet (apud Goldman, 1984) bases tericas, Ramos

    (1934) investe na psicanlise. Ramos (1934) desloca seu foco da psiquiatria e da antropologia

    evolucionista para a psicanlise de Freud e as teses de Lvi-Bruhl sobre mentalidade

    primitiva.

    Assim, com as contribuies de Ramos (1934), na pesquisa sobre cultos afro-

    brasileiros passou-se das hipteses biolgicas para hipteses psico-sociolgicas e o que era

    antes tratado como um atributo da raa, passa a estar relacionado a uma questo de

    mentalidade e cultura encontrada em crianas, neurticos ou em produes como obras de

    arte e sonhos (RAMOS, 1934, p. 77). As explicaes estavam vinculadas a um estado

    mental, uma forma de estruturao de pensamento. Os cultos africanos teriam esta forma

    devido ao modo como seu pensamento est estruturado.

    No que diz respeito ao estudo psicopatolgico prope uma interpretao diferente

    daquelas teses, no reduzindo a possesso histeria. importante salientar que Ramos (1934)

    toma precaues para o uso destas idias. Era reconhecida por ele a complexidade dos

    fenmenos ali manifestados e sabia ele que a reduo da possesso histeria no garantiria

    uma explicao:

    V-se desta maneira que os phenomenos de possesso no podem ser identificados somente a hysteria como pregou a escola de Charcot. So muito mais complexos. Mas o paralelo entre estes phenomenos, principalmente em sua forma aguda, e os estados hystericos ainda posto em equao (RAMOS, 1934, p. 196).

  • 28

    Mas insiste na psicopatologia.

    A possesso esprito-fetichista um phenomeno muito complexo, ligado a vrios estados mrbidos. Pode ser aguda ou chronica (...) Nos casos chronicos, as perturbaes demonopathicas e mediumnopathicas das possesses, acham-se ligadas ao automatismo mental, e vo desde os phenomenos xenophaticos simples, at os delrios mais complexos.

    Continua um tipo de diagnstico mdico. Sem reduzir a possesso histeria, a

    primeira consistiria num quadro mais complexo, mas tambm classificada em parmetros

    psiquitricos, mais especficos. Ela estaria dentro de um quadro regressivo da personalidade:

    Esses estratos afetivos profundos, arcaicos, resto hereditrio de um primitivo estgio de vida,

    daquela esfera mgico-catrtica das reaes afetivas (RAMOS 1934, p. 283).

    Estas contribuies tiveram o mrito do pioneirismo e abriram os caminhos para a

    pesquisa destas religies, todavia este uso dos saberes psicolgicos no se sustentou, e se

    antes a psiquiatria, a psicologia e a psicanlise eram referncias tericas potencialmente teis,

    o tema das religies afro-brasileiras passou a ser objeto quase exclusivo de estudo de

    cientistas sociais. Isso se deve ao fato destas teorias mdico-psicolgicas serem oriundas de

    contextos ocidentais, que operam com modelos de ser humano oriundos da cultura europia e

    assim, as explicaes sobre o comportamento por um vis psicopatolgico acabariam por

    promover concepes etnocntricas do comportamento dos afros-descendentes, julgados e

    compreendidos luz de modelos de ser humano ocidentais criando obstculos baseados em

    preconceitos.

    Como diz Silva (1999, p.7):

    De certa maneira, esta tradio de abordagem etno-psidos aspectos da cultura afro-brasileira, que se inaugura to fortemente compromissada com tal tipo de projeto, far com que paire sempre, sobre os esforos que lhe so posteriores, um certo tipo de suspeita, um certo registro de tenso nas pretenses da abordagem psicolgica, psiquitrica e psicanaltica dos variados aspectos constitutivos dessa realidade cultural, principalmente daqueles aspectos religiosos que lhe so prprios.

  • 29

    Ou seja, as explicaes de cunho psicolgico no abarcariam a realidade dos

    praticantes do culto, mas sim aplicariam concepes ocidentais de homem e de personalidade

    diretamente a estes contextos, incorrendo no preconceito etnocntrico, que consiste na

    interpretao de valores de uma determinada cultura por outra sem levar em conta as

    diferenas existentes entre elas.

    As explicaes mdico-psicolgicas sobre estes fenmenos s seriam possveis se

    feitas sobre um recorte do ritual, atravs do qual o comportamento de um indivduo, tomado

    empiricamente, mostraria sinais semelhantes aos dos quadros mrbidos. Alm disso, como

    comenta Augras (1995), estas teorias mdicas estavam embasadas em uma perspectiva

    evolucionista, que contribua para um distanciamento ainda maior a respeito do conhecimento

    cultural, pois em ltima instncia teria como pano de fundo a ideologia de diferenciao entre

    culturas, reconhecendo supostas superioridades de umas em relao a outras, e ainda mais por

    estes autores tratarem dos estudos sobre os afro-descendentes em termos de estudos raciais.

    Mas apesar das dificuldades e carncias que o uso destas teorias promovia na pesquisa

    social, a busca pelo entendimento psicolgico destes rituais no deixou de existir, e ao mesmo

    tempo em que existe uma carncia de modelos que abarquem os aspectos psicolgicos em

    contextos sociais, h a necessidade de estudos que integrem estas duas instncias de

    compreenso do ser humano. Augras (1995, p.47) define dois propsitos que fundamentam a

    pesquisa psicolgica em comunidades de terreiros. Em primeiro lugar, a procura pela

    compreenso dos valores e da viso do mundo de significativa faixa da populao

    brasileira. Citando a autora:

    Nada mais importante para o psiclogo do que apreender os modelos de representao da realidade elaborados pelas diversas culturas e subculturas que compem o to rico painel chamado Brasil. Alm dessa necessidade de informao etnolgica, igualmente fundamental investigar o modo pelo qual tais modelos atuam no indivduo e, particularmente, os mecanismos que podem lev-lo maior compreenso de si prprio e melhor integrao dos componentes de sua personalidade (AUGRAS, 1995, p.47).

  • 30

    A proposta de Augras (1995) ento colocar o psiclogo em contato mais prximo

    com a realidade social brasileira e assim desenvolver conhecimentos integrados s formas de

    representao da populao, ao modo como os seus componentes vem e descrevem sua

    realidade. Alm disso, deixa sua marca como psicloga e aponta para a possibilidade dos

    estudos psicolgicos, uma vez contextualizados, servirem como recurso para permitir aos

    indivduos um melhor conhecimento de si.

    Esta segunda proposta descreve o alcance que os estudos psicolgicos teriam no

    mbito da cultura, que seria o de possibilitar o trabalho e investigao do indivduo. Da

    mesma forma como o enfoque psicolgico torna-se empecilho para a pesquisa social, por

    focar o indivduo e seu funcionamento particular, ele tambm pode ser um recurso, se

    utilizado adequadamente, para possibilitar a compreenso dos mecanismos pelos quais o

    coletivo interage com o individual, permitindo at, nas palavras da pesquisadora, promover

    integraes de componentes de personalidades (AUGRAS, 1995).

    As contribuies da psicologia poderiam, segundo Augras (1995) contribuir para

    integrar, contextualizar e relacionar o particular, referente personalidade ou ao indivduo, ao

    universo coletivo, o conjunto de smbolos de uma religio que estrutura a comunidade de

    terreiro.

    Augras (1995) uma pesquisadora que investe no estudo psicolgico das religies

    afro-brasileiras, no mbito do estudo cultural, mas utiliza-se de contribuies filosficas como

    recurso terico. Lpine (2004) tambm investiga o psicolgico no mbito social ao investigar

    a formao da identidade no candombl, caracterizando os orixs como tipos psicolgicos

    (LPINE, 2004).

    Em relao psicanlise e psicanalistas que se interessaram pelos estudos afro-

    brasileiros, podemos citar o trabalho de La Porta (1979) que se disps a fazer interpretaes

    psicanalticas de rituais afro-brasileiro. La Porta (1979), difere da tradio mdica por no

  • 31

    propagar interpretaes psicopatolgicas, mas suas contribuies se caracterizam como

    tradues psicolgicas de fenmenos religiosos, tal como discutem Mantovani e Bairro

    (2005).

    Analisando o uso das teorias psicolgicas, desde os trabalhos dos pioneiros dos

    estudos afro-brasileiros, v-se que, apesar de Augras (1995) ressaltar a importncia e

    necessidade do estudo psicolgico em comunidades de terreiros, existem dificuldades na

    realizao deste tipo de estudo. A prpria Augras (1995) se afasta de teorias psicolgicas e se

    aproxima da fenomenologia como referencial terico e metodolgico, por conta da

    dificuldade em se produzir conhecimento acerca dos rituais afro-brasileiros sem promover

    reducionismos tericos.

    Em relao psicanlise, que esteve presente nos trabalhos pioneiros de Ramos

    (1934), tambm existem dificuldades na aplicao de seus conceitos, mesmo que no sejam

    pelo vis psicopatolgico. A interpretao psicanaltica, entendida como um ato de atribuio

    de significados inconscientes, pode dificultar a pesquisa social, pois, como no caso de La

    Porta (1979), o psicanalista assume a funo de um decodificador de smbolos, baseado na

    premissa de um suposto saber sobre a natureza humana, descreve a realidade do culto em

    termos puramente psicolgicos. Este tipo de uso da psicanlise gera uma distncia entre

    pesquisador e pesquisado, e no fim das contas o conhecimento acerca de fenmenos sociais

    recebe uma verso psicolgica, sem levar em conta a complexidade de tais fenmenos.

    A presente pesquisa pode ser inserida no mesmo contexto que os trabalhos dos autores

    citados. Compartilhando a opinio de Augras (1995) de que h espao e necessidade de se

    realizarem pesquisas psicolgicas que auxiliem na compreenso da cultura e na aproximao

    da pesquisa psicolgica realidade brasileira, investi, assim como Ramos (1934) e La Porta

    (1979), na psicanlise como recurso para a pesquisa social. Todavia, ao contrrio destes dois

    autores, a psicanlise no utilizada nesta pesquisa como fonte de referncia de um

  • 32

    conhecimento universal do homem, mas sim por conta da possibilidade de se utilizar as

    contribuies psicanalticas a respeito da constituio estrutural do sujeito e do inconsciente

    como recurso de investigao social.

    Atravs de uma pesquisa de campo realizada em um terreiro de umbanda da cidade de

    Ribeiro Preto SP, fiz uma investigao sobre certas prticas de cura caractersticas da

    religio umbandista. O objetivo foi investigar o ritual de cura levando em conta a forma como

    os fenmenos religiosos se apresentam no ritual, pelo uso da linguagem prpria da religio, e

    assim investigar os vrios sentidos que se enunciam no ritual em suas mais variadas formas:

    por comunicaes verbais, no-verbais, uso de objetos, cantos e danas.

    Considerando a tese de Crapanzanno (1967/2000) de que cada prtica teraputica est

    relacionada a uma concepo de ser humano, seja cientfica ou religiosa, meu intuito foi

    explorar as prticas de cura a partir das concepes dos praticantes, sem atribuir significados

    psicolgicos aos fenmenos, priorizando explorar os vrios significados e sentidos do ritual1

    tal como eles se mostram, na ao ritual.

    1.2 Prticas populares de cura

    Como a pesquisa tem como foco o estudo do sujeito em prticas de cura umbandista,

    necessria uma explicao a respeito da forma como abordarei a temtica da cura popular.

    O tema da cura popular vem sendo estudado no Brasil principalmente na rea da

    antropologia da sade. Como comentam Alves e Minayo (1994), este campo constitui-se

    como um domnio de estudos acerca das diversas prticas de sade. Dentre os temas

    investigados neste campo, tem-se: a relao mdico-paciente, a eficcia de tais prticas, as

    1 O termo ritual ser usado pela definio de Turner (1967) como um comportamento formalizado para ocasies especficas com referncia mstica ou religiosa. Para Turner (1967) o ritual tem ao tanto nas relaes interpessoais quanto na comunidade.

  • 33

    concepes de sade e doena e as relaes de poder entre prticas mdicas populares e

    cientficas.

    Apesar da pesquisa ter como campo de investigao as prticas de cura de um terreiro

    de umbanda, meu enfoque se distancia um pouco dos trabalhos desenvolvidos na antropologia

    da sade, medicina comunitria e psicologia social.

    A escolha pelo estudo especfico dos rituais de cura popular se justifica por ser este

    um campo que sempre esteve em dilogo, ou proximidade, com os estudos psicolgicos,

    principalmente porque a investigao acerca dos fenmenos de cura abre caminhos para a

    investigao das relaes entre indivduo e sociedade. No estudo da cura popular, a questo

    da doena de um indivduo retratada e explorada sempre dentro do contexto social,

    exigindo-se assim a investigao do fenmeno social (de cura) relacionado ao indivduo (no

    caso) doente.

    Pela literatura internacional, recorrendo a contribuies como as de Lvi-Strauss

    (1949), Taussig (1993) e Crapanzanno (2000), pode-se verificar como o tema da cura em

    contextos religiosos cria um campo propcio para o estudo do homem, enquanto singular, na

    condio de pessoa, em relao ao social.

    Lvi-Strauss (1949; 1948) em dois artigos clssicos sobre a cura e a ao mgica, faz

    toda uma exposio que aproxima o estudo antropolgico do estudo psicolgico, chegando at

    a comparar a cura xamnica, uma forma de cura popular, ao trabalho psicanaltico, que

    supostamente teria como fundamento o trabalho de cura que incide sobre o individuo.

    A tese de Lvi-Strauss (1949) a de que a cura xamnica tem sua eficcia no fato de

    que o xam (curador) e o doente compartilham de uma mesma crena, de um mesmo mito, e,

    assim, a manipulao mgica do mito agiria diretamente sobre a doena individual, pela

    insero e nomeao da mesma no todo social: A cura consistiria em tornar pensvel o

  • 34

    impensvel (...) O xam oferece a sua doente uma linguagem na qual se podem exprimir

    estados no formulados de outro modo informulveis (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 228).

    E ainda:

    A cura xamnica se situa a meio caminho entre nossa medicina orgnica e teraputicas psicolgicas como a psicanlise. Sua originalidade provm de que ela aplica a uma perturbao orgnica um mtodo bem prximo dessas ltimas (...) Em ambos os casos, prope-se conduzir conscincia conflitos e resistncias at ento conservados inconscientes (...) (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 228).

    A doena, segundo Lvi-Strauss (1949), seria uma situao em que o indivduo doente

    se encontra acometido de um mal-estar sem-nome e a manipulao dos smbolos religiosos

    garante que o estado doente provocado por esse desconhecido, que afeta o indivduo, possa

    ser compreendido e significado, resultando na recuperao da sade do mesmo. A este

    processo Lvi-Strauss (1949) chamou de eficcia simblica:

    A eficcia simblica consistiria precisamente nesta propriedade indutora que possuiriam, umas em relao s outras, estruturas formalmente homlogas, que se podem edificar, com materiais diferentes, nos diferentes nveis do vivente: processos orgnicos, psiquismo inconsciente, pensamento refletido (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 233).

    A cura de doenas seria uma operao simblica pela qual a linguagem mtica que une

    xam e doente incide no corpo e promove a remisso dos sintomas pela atribuio de um

    significado mtico mesma. Esta operao simblica, Lvi-Strauss (1949) aproximou-a do

    tratamento psicanaltico. Ao conjunto das estruturas formais, que compem o universo mtico,

    Levi-Strauss (1949) denominou funo simblica, que seria anloga ao inconsciente

    psicanaltico. A funo simblica seria um rgo de funo especfica. Ela se limitaria a

    impor leis estruturais que esgotam sua realidade, a elementos inarticulados que provm de

    outra parte; pulses, emoes, representaes, recordaes (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 235).

    Sendo assim, a teraputica, tanto a do psicanalista como a do xam, teriam uma

    similaridade, por operarem com esta funo simblica (inconsciente), pela manipulao de

  • 35

    smbolos, que re-organiza no plano simblico (marcado pela transferncia no caso do

    psicanalista) a desestruturao de um indivduo, que em suma seria uma desorganizao pela

    falta do smbolo. A diferena entre a cura psicanaltica e a cura xamnica que nesta o mito

    organizador remete ao mito coletivo; j na primeira, o mito individual, relacionado com a

    histria do individuo.

    Taussig (1993), em seus estudos sobre as comunidades indgenas do Potumayo

    (Colmbia), reconhece tambm a cura como um processo de eficcia simblica, tal como

    definido por Lvi-Strauss (1949), mas tambm faz uma explorao sobre o imaginrio da

    populao e defende a tese de que a doena da qual um indivduo acometido carrega as

    marcas histricas do conflito pelas terras. Para ele a histria da regio do Potumayo aparece

    inscrita nos sintomas individuais e a luta pela cura marca a relao do indivduo com todo o

    contexto.

    Para Taussig (1993) a doena individual atravessada pelo social, e aquilo que seria

    da ordem individual, na verdade, formada por tenses sociais, remanescentes do contexto

    scio-histrico e fundamentais para a formao da identidade local. A doena no um

    evento referente somente ao indivduo doente, mas ela representa processos histricos que

    se manifestam em sintomas corporais e no imaginrio popular. Tem-se assim em Taussig

    (1993) a tese de que o social impera at nas mais profundas camadas do psiquismo, que

    seriam as produes do imaginrio.

    Crapanzanno (2000) em seus estudos etnopsiquitricos sobre uma confraria religiosa

    marroquina, os Hamadcha, afirma que a cura religiosa est estruturada dentro de

    concepes de homem socialmente determinadas e o diagnstico de um indivduo como

    doente ou saudvel indica sua posio social, sua referncia dentro da comunidade.

    Tanto em Lvi-Strauss (1949), como em Taussig (1993) e em Crapanzanno (2000), a

    questo entre indivduo e sociedade est presente, na forma como cada autor a apresenta; por

  • 36

    estudos etnolgicos, ou etnopsiquitricos. Alm de apresentarem suas nuances na

    compreenso deste tema. O que importa em nossa pesquisa justamente que a compreenso

    acerca da cura envolve tambm a compreenso acerca da cosmologia de uma determinada

    comunidade, o que inclui uma prpria viso de homem. A concepo sobre a doena, a cura,

    o estar doente e o estar saudvel esto relacionadas a toda estruturao social.

    Abordando o tema da cura em um terreiro de umbanda, meu intuito compreender

    como as prticas rituais enunciam o reconhecimento do doente, ou consulente, no mbito da

    sua singularidade. Como aquilo que seria da ordem do particular, do consulente, recebe

    significados e interpretado pela comunidade? Esta a pergunta que foi explorada.

    No foi objetivo da pesquisa descrever as concepes umbandistas de sade e doena

    ou constatar se h ou no a remisso de sintomas e nem fazer caracterizaes sobre a

    causalidade e natureza de enfermidades; se estas so de origem orgnica, psicolgica,

    psicossomtica, etc. O interesse foi investigar os sentidos que emergem nas prticas de cura,

    seja por parte dos doentes, ou dos curadores considerados como sujeitos, na posio daquele

    que enuncia valores, opinies, juzos, utilizando as estruturas simblicas de um determinado

    contexto. Analisando como o doente e sua doena so compreendidos pela comunidade,

    minha ateno se dirigiu aos sentidos que se formam na articulao entre os enunciados

    singulares (as queixas, os sintomas) e suas repercusses no coletivo do terreiro.

    1.3 O sujeito e o ritual

    Birman (1985) discute a problemtica do uso de conceitos psicolgicos na pesquisa

    sobre a umbanda, tomando como referncia o fenmeno de possesso. Para a autora, a

    possesso por espritos mostra como a umbanda possui uma representao de ser humano que

    contrasta com concepes dominantes oriundas das religies e cincias ocidentais:

  • 37

    No h como evitar o sentimento de estranheza frente a um ritual de possesso, assistindo impassvel ao momento em que uma pessoa vira outra, contradizendo a si mesma numa radical incompatibilidade com o seu comportamento normal (...) No so poucos os argumentos que foram produzidos na nossa cultura no intuito de combater essas representaes da pessoa humana colocadas pela possesso (BIRMAN, 1985, p.9).

    Birman (1985) se refere caracterizao e classificao do transe de possesso luz

    das concepes crists e posteriormente psiquitricas empregadas para a explicao do

    fenmeno. Segundo a autora, aceitar a possesso era algo incompatvel com os ideais cristos.

    Logo, o transe de possesso foi visto como algo malfico e repulsivo tratado como caso de

    exorcismo (BIRMAN, 1985). Pela psiquiatria, o indivduo2 possudo era tratado em termos de

    sade, de normalidade e anormalidade. Para Birman (1985) o discurso da psiquiatria tem

    como referncia a noo de um ego saudvel e a pessoa era tratada a partir de seu eu, de

    sua forma de se expressar em relao a si e aos outros. Segundo a autora:

    A psicologia do ego coloca o indivduo sob o controle absoluto da sua conscincia, o que garantiria uma harmonia com a realidade sua volta e uma coerncia e fidelidade a si mesmo. Tomando tal parmetro como critrio de verdade, a possesso s pode ser vista como uma quebra desse pilar de sustentao do sujeito que a conscincia O indivduo em transe sofre uma perda de conscincia e, alm disso, apresenta um quadro de alterao do comportamento rapidamente identificado pela psiquiatria como doena mental (BIRMAN, 1985 p. 20).

    Em contrapartida:

    Para os umbandistas cada qual possui naturalmente muitas faces, j que a sua pessoa, por destino, sujeita a espritos diversos, que a escolheram como cavalo. Encontramos a na religio um princpio diverso que orienta a viso do mesmo fenmeno: ao invs do indivduo centrado nele mesmo, tendo sua conscincia como fulcro de sua pessoa, ele integrado num sistema mais global, objeto da ao de foras diversas que podem se chamar Xang, Ians, preto-velho e outros mais (BIRMAN, 1985 p. 21).

    2 Por fazermos referncia individualidade utilizando os termos pessoa tal como conceituada pela antropologia francesa e sujeito tal como feito em psicanlise, o termo indivduo ser em nossa pesquisa utilizado para nos referirmos aos consulentes, ou o sujeito tomado concretamente, o doente, o umbandista que freqenta o culto, etc.

  • 38

    Montero (1985) tambm faz colocaes deste tipo, que ressaltam a questo do

    reconhecimento da especfica concepo de pessoa da na umbanda:

    Desenvolver a mediunidade aprender a reconhecer e aceitar aspectos mltiplos e muitas vezes contraditrios, da estrutura psicolgica de cada um. E isto porque, ao mesmo tempo em que habitam o campo astral, constituindo o mundo divino, os guias existem dentro de ns, constituindo parte de nossa estrutura ntima: todo indivduo tem e ao mesmo tempo seu caboclo, seu preto-velho, sua criana e seu exu (MONTERO, 1985 p. 150).

    Na umbanda a pessoa reconhecida como mltipla, no-atomizada. O fenmeno

    de possesso, a mediunidade, a cura, todos estes elementos que participam e estruturam o

    culto umbandista so sustentados por esta concepo de singularidade que ao mesmo tempo

    mltipla. Nas prticas de cura, especificamente, este reconhecimento da pessoa expresso

    na relao que se estabelece entre consulentes e guias, na relao com o corpo e na insero

    do consulente no universo simblico do ritual.

    Pelas colocaes de Birman (1985) e de Montero (1985), um ponto importante para a

    pesquisa psicolgica das religies africanas a necessidade de se levar em conta que nas

    religies afro-brasileiras, como a umbanda, existe uma concepo prpria acerca da

    individualidade humana. Como seria possvel investigar as prticas da umbanda, levando

    em conta que para esta religio a pessoa humana no tratada, reduzida, ao indivduo

    emprico, que tem como auto-referncia sua experincia egica, de ser um eu?

    Por conta destas consideraes, julgo a psicanlise til para pesquisa social em

    terreiros de umbanda. A concepo psicanaltica de sujeito e a forma como o indivduo

    tratado na clnica psicanaltica fornecem recursos teis para a pesquisa social nestes

    contextos, em que existe o desafio de se categorizar e criar representaes a respeito da

    pessoa humana levando em conta as concepes prprias do campo.

    Autores como Bastide (1974), Bairro (2001) e Mantovani e Bairro (2004, 2005)

    propem a utilizao da psicanlise como recurso de investigao social por via da

  • 39

    interdisciplinaridade, pela aproximao de concepes antropolgicas e psicanalticas acerca

    dos conceitos de pessoa e sujeito e pela possibilidade de uso da tica prpria da clnica

    psicanaltica como recurso para a investigao social.

    Bastide (1974), que um autor cuja obra sempre faz referncias e debate com as

    teorias psicolgicas, encontra na interdisciplinaridade um recurso frtil para a pesquisa social.

    Comentando os debates e aproximaes entre psicanalistas e cientistas sociais, afirma que o

    encontro destas disciplinas foi bastante frtil, mas marcado por dificuldades epistemolgicas

    que impediam muitas vezes de se formar um discurso comum. Diz o autor: (...) no h

    psicanlise possvel sem um prvio conhecimento dos meios sociais. E vice-versa: a

    psicanlise fornece sociologia uma contribuio extremamente importante, constituindo a

    segunda aba de um dptico (BASTIDE, 1974 p.276).

    Todavia, pela prtica clnica da psicanlise que Bastide (1974) reconhece esta como

    um recurso para a pesquisa social, por ela tratar o homem enquanto fenmeno total. Ao invs

    de promover recortes cientficos que reduzem o fenmeno a partes, o psicanalista, com seu

    mtodo clnico, trata a pessoa em sua totalidade, reconhecendo nos sintomas, supostamente

    isolados, uma linguagem que compe um todo:

    Ao nosso ver a contribuio da psicanlise sociologia clnica extremamente geral, e vlida mesmo fora do mbito do patolgico puro, a saber; pouco importa que os fatos sociais sejam normais ou mrbidos: eles falam; o socilogo deve aplicar-se antes de tudo a ouvi-los exatamente como o mdico ouve a linguagem do corpo; contudo essa linguagem dos fatos sociais, cujas leis gramaticais o socilogo pretende descobrir, pode deixar de ser compreendida; o que acontece, por exemplo, com o doente que prope ao mdico um pseudo-sentido para esta linguagem, pelo fato de estar impregnado de subjetividade, de uma subjetividade de ser-atolado-na-doena. O mtodo clnico prope uma tcnica cientfica para sair do sentido subjetivo, que o manifesto e passar para o objetivo que o oculto (BASTIDE, 1974 p.211).

    Bastide (1974) se refere ao objeto de estudo da psicanlise que o inconsciente, que

    abarca os sentidos ocultos alm do manifesto, o que falado pelo analisando e no qual o

    psicanalista reconhece uma linguagem que permite um acesso ao seu objeto de investigao.

  • 40

    Esta particularidade da psicanlise , segundo o socilogo, uma contribuio til ao estudo

    social, pois fornece um modelo de pesquisa, baseado numa forma de escuta receptiva ao

    fenmeno em sua forma de expresso, em sua linguagem, sem fragment-lo em partes, ou

    dividi-lo em elementos menores, categorizados, por exemplo, como fatores sociais,

    biolgicos, ou psicolgicos. uma crtica que Bastide (1974) faz aos mtodos quantitativos

    que tomam aspectos isoladamente e a partir de partes generalizam para o todo.

    O mtodo psicanaltico seria uma forma de escuta objetiva daquilo que subjetivo, ou

    seja, que se refere a um sujeito falante, como uma pessoa doente que fala utilizando o termo

    do autor, um ser-atolado-na-doena. Isso seria uma forma de lidar com o fenmeno total.

    Como diz o autor, o mtodo clnico proposto por Freud, pelo contrrio um mtodo

    holstico. Aproxima-se do marxismo que insiste na noo de totalidades e da Antropologia

    de Marcel Mauss, que o estudo dos fatos sociais totais (BASTIDE, 1974, p.212).

    Esta aproximao da psicanlise com a antropologia pelo estudo da noo

    antropolgica de pessoa de Mauss (2003), tambm apresentada em Mantovani e Bairro

    (2004) em um estudo sobre a noo de drama. Segundo os autores, a concepo

    antropolgica de pessoa, tal como apresentada por Mauss (1950/2003), estaria prxima da

    forma como a psicanlise aborda o sujeito, pelo fato de que em antropologia a pessoa, a

    referncia ao ser humano singular, no mbito da personalidade ou da subjetividade, no

    estaria reduzida experincia consciente do eu. Como diz Mauss:

    Trata-se de nada menos que de vos explicar como uma das categorias do esprito humano uma dessas idias que acreditamos inatas lentamente surgiu e cresceu ao longo dos sculos e atravs de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela ainda , mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa e passvel de maior elaborao. a idia de pessoa, a idia doEu". (MAUSS, 1950, p. 369).

    Para Mauss (1950) a noo de pessoa humana seria uma aquisio. A referncia ao

    homem enquanto sujeito a quem podem ser atribudos juzos morais sobre suas aes, ser

  • 41

    reconhecida sua liberdade, sua identidade, social e finalmente o reconhecimento da pessoa

    ligado a uma noo de eu consciente seria fruto de uma evoluo histrica.

    A noo de pessoa seria relativa para cada cultura e o reconhecimento do homem

    no domnio do individual, estaria relacionado a toda a estruturao social, como um fato

    social total (MAUSS, 1950).

    Diz Mauss:

    Uma coisa pode vos indicar a tendncia de minha demonstrao; que vos mostrarei o quanto recente a palavra filosfica Eu, como so recentes a categoria do Eu, o culto ao Eu (sua aberrao) e o respeito ao Eu em particular, ao dos outros (sua norma) (MAUSS 1950, p. 371).

    Mauss (1950) no considera a centralizao e o reconhecimento da pessoa vinculada

    a algum processo psicolgico, como o eu consciente como algo natural do homem.

    Equacionar o sujeito humano, a singularidade ao eu uma atitude prpria de alguma poca,

    de um contexto que valoriza a conscincia e que reconhece a pessoa humana como o eu

    consciente. Mas a pessoa no um fato natural e genrico para qualquer contexto. A

    referncia ao singular , antes de tudo, um produto, evolutivo de um processo histrico.

    Em psicanlise o sujeito tambm no redutvel ao eu. Com a descoberta do

    inconsciente, marca-se um tratamento da singularidade humana em que a conscincia perde o

    lugar dominante, contrariando a tradio filosfica moderna iniciada por Descartes: Para

    muitas pessoas que foram educadas na filosofia, a idia de algo psquico que no seja tambm

    consciente to inconcebvel que lhes parece absurda e refutvel simplesmente pela lgica

    (FREUD, 1923, p.12).

    Mantovani e Bairro (2004) ainda apresentam contribuies de autores como Lacan,

    (1966/1998) que garantem uma maior aproximao a esta forma de tratar o sujeito humano,

    atrelando-o ao contexto social.

    Assim como Bastide (1974) reconheceu na prtica clnica da psicanlise um recurso

    para a pesquisa social, Mantovani e Bairro (2005) tambm apresentam a possibilidade de se

  • 42

    derivar recursos da clnica psicanaltica para a investigao social. A contribuio principal

    seria a atitude tica que a psicanlise sustenta no reconhecimento do fenmeno psicolgico

    como sempre relativo a um sujeito que atribui significados quilo que se expressa:

    A prtica do psicanalista que se ocupa em observar as aes do sujeito e o entendimento deste frente a suas prprias questes diverge da prtica psicanaltica entendida como um instrumento de decodificao psicolgica e assume uma postura tica interessada em reconhecer o sujeito nos atos que enunciam o seu dizer. O sujeito comporta um saber e neste saber que residem os significados ocultos, e no na cabea do analista. (MANTOVANI e BAIRRO, 2005).

    Essa tica apresentada em Mantovani e Bairro (2005) como potencialmente til para

    a pesquisa afro-brasileira estaria prxima da proposta fenomenolgica de Augras (1995), por

    respeitar a realidade dos praticantes da religio.

    Logo, o psicanalista pode entrar no terreiro como um pesquisador que possui uma viso de mundo distinta dos religiosos, mas que, no momento de colher seus dados, retira-se da posio do saber para ouvir as produes culturais como predicados que remetem a significados comunitrios que passam desapercebidos, mas no so tratados como representaes de uma realidade psquica, e sim como formas discursivas locais, portadoras de sentidos (MANTOVANI e BAIRRO, 2005).

    Minha proposta com esta pesquisa foi utilizar, na pesquisa de campo, um mtodo

    estruturado de modo similar ao da prtica clnica da psicanlise e inspirado na concepo de

    interpretao tal como apresentada em Lacan (1966/1998) e como comentam Mantovani e

    Bairro (2005).

    A interpretao em psicanlise, tal como feita no setting clnico, no um ato de

    atribuio de significados psicolgicos a contedos discursivos proferidos pelo analisando,

    mas sim uma investigao de atos do sujeito que mostram efeitos de sentidos implcitos,

    enunciados nas estruturas discursivas pelas quais o sujeito se mostra. Como diz Lacan, sobre a

    prtica analtica:

    Trata-se de uma escanso de estruturas em que para o sujeito, a verdade se transmuta, e que no tocam apenas em sua compreenso das coisas, mas em

  • 43

    sua prpria posio como sujeito da qual seus objetos so funo. Isto o conceito da exposio idntico ao do progresso do sujeito, isto , da realidade da anlise (LACAN, 1998, p.217).

    A prtica psicanaltica proporciona, ao analisando, se posicionar frente aos diversos

    sentidos que emergem de sua fala e remetem a algo que enunciado nas entrelinhas do

    discurso, como estranho, porm que toca profundamente o falante. A interpretao serve para

    elucidar estes sentidos em que o sujeito de imediato no se reconhece, que lhe chegam como

    que pronunciados por outro. Cabe ao psicanalista promover condies para que o

    analisando fale e por meio das suas prprias narrativas possa reconhecer esses sentidos

    implcitos e identificar-se a quem os enuncia, como afirma o casal Ortigues (1989): A

    finalidade da anlise chegar a perceber o tipo de problema que o indivduo se coloca e a sua

    maneira de tentar resolv-lo (p. 16).

    Cabe ao psicanalista proporcionar condies para que o analisando fale, mas no sua

    tarefa atribuir um significado ao contedo da fala do analisando e sim deixar que este faa

    suas livres-associaes e se posicione frente ao que diz. O significado ser dado pelo prprio

    analisando. Como diz Bairro:

    A (boa) interpretao no outra coisa. Longe de uma arbitrria atribuio de sentido, mais ou menos dependente da capacidade mntica de um psico-advinho, lacanianamente concebida a interpretao consiste na escuta de sentidos implcitos, cujo depoimento mapeia situaes de estar sujeito (Bairro, 2004, p. 78).

    Por esta possibilidade de escuta do sujeito que recupera um sentido dado por sua

    prpria fala, a concepo psicanaltica de interpretao pode ser til em pesquisa social.

    Longe de procurar atribuir significados a dizeres alheios, possibilita uma escuta e recuperao

    de dizeres remetentes quela comunidade falante.

    Sendo assim, possvel ingressar em um terreiro e investigar os vrios sentidos

    expressos no ritual pelo posicionamento dos sujeitos frente aos fenmenos ali expressos,

  • 44

    enunciados sob formas discursivas em cadeias simblicas (significantes) estruturadas pela

    linguagem da prpria comunidade.

    Como escrevem Mantovani e Bairro (2005):

    Perde-se de vista a interpretao do ritual centrada em aspectos psicolgicos dos indivduos e se parte para a escuta da produo simblica coletiva. O psicanalista, em um terreiro, poderia ouvir as produes discursivas da ao de pessoas concretas atentando para aquilo que estaria alm do discurso individual, construdo pelas cadeias simblicas referentes a uma cultura especfica, sendo que o espao em que este sujeito se encontra o prprio espao ritual, no qual a linguagem do culto se expressa. (MANTOVANI e BAIRRO, 2005).

    Com base nesta tica psicanaltica escolhi investigar certas prticas de cura da

    umbanda que constituem um campo rico para o estudo psicolgico e social. Da mesma forma

    que o psicanalista no se dispe a atribuir significados aos dizeres do analisando, mas sim se

    dispe a ouvir os sentidos que emergem nestes dizeres como referentes a um sujeito do

    inconsciente, nesta pesquisa de campo me detive a assumir este lugar de escuta, para assim

    investigar os possveis sentidos enunciados em tais prticas.

    1.4 Sujeito e Performance

    Minhas consideraes acerca da cura podem ser classificadas como um estudo da

    performance. Partindo das contribuies de Certeau (1994), sobre o estudo histrico do

    sujeito e das concepes lacanianas sobre a escuta psicanaltica, desenvolvi uma anlise das

    prticas de cura pelo vrtice da enunciao. As prticas de cura da umbanda foram tratadas

    como construes sociais elaboradas e estruturadas dentro de um cdigo e linguagem prpria

    de uma comunidade.

    Partindo das contribuies tericas de Chomsky (Certeau, 1994) sobre a dicotomia

    lingstica entre competncia e performance, Certeau (1994) defende que o estudo da cultura

    popular deve aproximar a pesquisa cientfica do que ele conceitua como artes de fazer, o

  • 45

    cotidiano e suas prticas, como ler, cozinhar e habitar, que em si so construes que

    combinam a linguagem proveniente das culturas dominantes, com a inventividade das

    culturas populares.

    A teoria da dualidade lingstica elaborada por Chomsky (apud, CERTEAU, 1994)

    caracteriza as relaes entre lngua e linguagem. A competncia se situa no plano da lngua

    e est relacionada ao cdigo de um idioma e suas regras. A performance estaria no plano da

    linguagem e caracterizada pelo uso da lngua pelos falantes e pelas variaes que esta pode

    adquirir, de modo que a linguagem diferencia-se da lngua. na performance que surgem

    as diversas formas de linguagem cotidiana, os erros de linguagem, construes como grias

    etc. Para Certeau (1994) o estudo da cultura popular deve se situar num plano de performance.

    Privilegiando-se o ato de falar possvel investigar como uma cultura popular faz uso da

    lngua proveniente de uma cultura dominante e assim constri sua marca de diferena. Como

    exemplo, o autor evoca a dominao colonial, em que elites produziram e impuseram cdigos

    lingsticos frente a uma populao dominada, os indgenas, que por sua vez, em seus rituais,

    promoviam uma subverso, mantendo suas tradies justapostas aos elementos da cultura

    dominante.

    A perspectiva da performance preconiza que se privilegie a manipulao e o consumo

    de um cdigo pelos seus usurios. Logo, perde-se de vista o estudo das representaes que

    uma cultura faz sobre outra para se privilegiar a investigao acerca da apropriao e uso dos

    elementos criados pelas culturas dominantes, por daqueles que costumam-se chamar de

    dominados:

    A presena e a circulao de uma representao no indicam de modo algum o que ela para seus usurios. ainda necessrio analisar sua manipulao pelos praticantes que no a fabricam (CERTEAU, 1994, p. 40).

    Em conseqncia deste posicionamento, Certeau (1994) afirma que as culturas

    populares formulam artes de fazer, (...) forma-se um lxico prprio do cotidiano,

    incompreensvel. Combina-se o material com a inventividade (p. 46). Assim o ato de falar, a

  • 46

    enunciao, adquire para Certeau (1994) maior importncia (para a pesquisa da cultura

    popular) que os enunciados, que estariam no plano das representaes, dos significados. Mais

    importante que saber o que se fala, saber que se fala; que h uma produo discursiva

    prpria que emerge daqueles que supostamente so consumidores. Em decorrncia disto, a

    cultura popular, que ora poderia ser vista como receptora da cultura dominante, adquire forma

    de produtora; e isto se revela para Certeau (1994) nas prticas habituais do cotidiano, como

    ler, habitar e cozinhar.

    Certeau (1994) faz uma crtica s produes cientficas que tomam como referncia o

    atomismo social, cujo pressuposto que o indivduo uma unidade elementar. Para Certeau

    (1994) cada individualidade um lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas

    vezes contraditria) de suas relaes relacionais (CERTEAU, 1994, p. 37).

    Da noo de um indivduo, o homem passa a ser sujeito, e, portanto autor. De um

    simples consumidor, passa a ocupar a posio de autor. Pelas produes deste sujeito, tem-se

    acesso a diversas camadas da histria. Este o ponto que interessa ao estudo da performance,

    pois se enfoca assim a produo do sujeito; entra-se no plano da individualidade (no sentido

    da singularidade do homem), para se conhecer o social e vice-versa, uma vez que o social

    quem determina a posio deste sujeito.

    Nesta pesquisa, as prticas de cura foram tratadas dessa forma; como prticas

    cotidianas de uma comunidade religiosa, e os fenmenos que ali se apresentam so

    interpretados no nvel da performance, como atos de fala produzidos por sujeitos. As prticas

    de cura so tratadas como fazeres cotidianos (Certeau, 1994) de sujeitos que se inscrevem

    no social por produes de sua autoria. A aposta em aplicar a escuta psicanaltica no

    contexto do terreiro, foi justamente realizar a aproximao entre o pesquisador e os

    praticantes da umbanda.

  • 47

    Em psicanlise o que se enfoca so as produes discursivas de sujeitos falantes,

    tomadas no mbito da enunciao. Como foi mencionei, o psicanalista no se dispe a

    adivinhar ou atribuir significados acerca da realidade da fala de seu analisando; ao

    contrrio, sua ateno se dirige fala enquanto ao.

    pelos atos que se tem noo da localizao do sujeito. porque o sujeito se expressa

    por meios verbais e no-verbais que se conhecem os sentidos que denotam o inconsciente.

    Dessa mesma forma, considerei o ritual pelo ponto de vista da ao. Minha ateno se voltou

    para as prticas de cura enquanto performance, para a ao ritual composta por elementos

    culturais que ganham formas de expresso variadas pelos agentes do culto, na forma de dana,

    msica, gestos, hbitos e regras de comportamento.

    1.5 A cura na umbanda

    A umbanda uma religio brasileira surgida no Rio de Janeiro durante a dcada de 20

    pela confluncia de elementos religiosos do catolicismo, kardecismo e candombl,

    sincretizando as vrias influncias culturais que contriburam para a formao do povo

    brasileiro: a cultura europia, africana e indgena.

    Muitas pessoas se aproximam dos cultos umbandistas procurando assistncia espiritual

    e auxlio para a resoluo de queixas. Como parte da rotina dos cultos de umbanda, os

    terreiros oferecem servios de cura caractersticos de suas atividades religiosas. Bairro e

    Leme (2003) afirmam que o termo umbanda servia na cultura banto para designar aquele que

    curava, o curandeiro cuja funo era tratar dos males da comunidade seguindo os

    conhecimentos de sua tradio.

    Como herana destas prticas que remetem s origens africanas, bem como acrescidas

    das influncias do candombl, do catolicismo popular e do kardecismo, as prticas de cura

  • 48

    tm um lugar significativo nos rituais umbandistas, pois justamente o momento em que os

    freqentadores tm a chance de serem atendidos em seus problemas particulares. Dentre as

    queixas que trazem esto problemas financeiros, questes de sade, situaes de conflito

    interpessoal e emocional.

    Pesquisadores como Brumana e Martinez (1991), Carvalho (1995), Loyola (1984),

    Magnani (1980), Montero (1985) e Nascimento (1999) descrevem estas prticas de cura

    caractersticas da umbanda e ressaltam a importncia que o tratamento espiritual adquire para

    os umbandistas e para a comunidade de terreiros.

    A umbanda uma religio que cr na reencarnao e na diviso entre o mundo

    material do cotidiano dos praticantes e o mundo espiritual terra mtica de Aruanda - onde

    residem os espritos elevados. O culto um momento de contato e interao entre homens e

    espritos j desencarnados que pelo transe medinico incorporam em um mdium -praticante

    que possui o dom de receber tais espritos. Estes so classificados e reconhecidos dentro de

    um panteo caracterstico da umbanda, composto por orixs, que so espritos referentes s

    divindades africanas, representantes das foras da natureza, como o fogo, o vento, a gua, o

    metal; e espritos desencarnados, como os pretos-velhos, caboclos, baianos, boiadeiros,

    crianas, pombas-giras e exus. Estes ltimos so alusivos a personagens marcantes da histria

    e do povo brasileiro. Segundo Birman (1985) os guias representam tipos brasileiros, como

    os pretos-velhos, que seriam os escravos negros de outrora, ou os caboclos, que seriam os

    descendentes indgenas; alm de outras figuras populares, como ciganos, malandros etc.

    Toda a estruturao das prticas umbandistas segue esta viso cosmolgica e o

    desempenho da cura quase sempre fica por responsabilidade de espritos incorporados,

    chamados de guias, de alto desenvolvimento moral e espiritual, que propagam benefcios

    aos praticantes pelo ideal de promover a caridade, a ajuda ao prximo. Brumana e Martinez

    (1991), Montero (1985) e Magnani (1980) descrevem prticas como o passe, a benzeo,

  • 49

    a desobssesso que so procedimentos curativos desempenhados na proximidade entre o

    consulente (o indivduo que traz a queixa) e o agente da cura, que pode ser tanto um esprito

    ou um chefe-de-culto.

    Na descrio dos procedimentos que se estabelecem entre guias e consulentes,

    surgem situaes que sugerem explicaes psicolgicas sobre a cura. Isso descrito em

    pesquisas e trabalhos de autores que apresentam teses e reflexes sobre o tratamento

    espiritual, apontando para uma caracterizao da eficcia teraputica que poderia ser

    compreendida por explicaes de cunho psicolgico.

    Pode-se exemplificar por uma citao de Nascimento (1997):

    O que pude observar que o ritual da consulta faz com que se estabelea entre pai-de-santo e o doente uma integrao psquica e a penetrao do pai-de-santo na mente do doente. Nas consultas para se saber sobre o seu problema (sade, trabalho, afetivo, empreendimento, dentre outros), ao indagar o consulente, j tem a resposta no seu inconsciente (NASCIMENTO, 1997, p. 278).

    Tais explicaes so tentativas de descrever e explicar a eficcia do tratamento

    espiritual umbandista a partir de consideraes cientficas. Montero (1985) caracteriza este

    tipo de explicao como algo polmico, mas em suas descries sobre a cura umbandista

    tambm utiliza terminologias psicolgicas para caracterizar a ao curativa.

    Diz Montero (1985, p. 154): tudo se passa como se os smbolos religiosos

    oferecessem uma srie de mecanismos de defesa, socialmente sancionados e psicologicamente

    apropriados que lhe permitem compreender seus conflitos idiossincrticos .

    Desta forma v-se que o estudo da cura umbandista constitui um campo atrativo para a

    pesquisa tanto social como psicolgica, pois permite enfocar o ser humano nestes dois

    aspectos de investigao. Contudo, utilizar explicaes psicolgicas para fenmenos sociais

    no um procedimento simples e pode acabar por propagar os riscos reducionistas que

    marcaram o uso das teorias psicolgicas no mbito do social.

  • 50

    Por conta desta dificuldade em se fazerem estudos que levem em conta a

    complexidade do ritual umbandista na pesquisa social sobre tais prticas de cura, as

    explicaes psicolgicas ficam, ora pairando como hipteses, mas sempre de forma lateral,

    sem constituir-se como foco central de investigao isso no caso de Magnani (1980),

    Montero (1985) ou Nascimento (1999) , ou como tradues psicolgicas do ritual como

    no caso de Rodrigues (1900, apud GOLDMAN, 1984), Ramos (1934) e La Porta (1979) ,

    que descreve o ritual em termos de representaes psquicas, o que no fim das contas, como

    discutem Mantovani e Bairro (2005), acaba por criar uma lacuna entre a realidade dos

    praticantes e as explicaes cientficas.

    Dessa forma, apesar das prticas umbandistas de cura (bem como outros aspectos do

    ritual) constiturem um campo de investigao em que as teorias psicolgicas poderiam

    contribuir para a investigao, necessrio desenvolverem-se pesquisas baseadas em

    referenciais tericos e metodolgicos que possibilitem o aprofundamento e a compreenso

    destas prticas rituais, levando em conta como aquilo que seria relativo ao psicolgico estaria

    atrelado ao social e vice-versa.

  • 51

    2 METODOLOGIA

  • 52

    2.1 Sobre o mtodo

    Esta pesquisa seguiu a metodologia das chamadas pesquisas qualitativas que se

    caracterizam, segundo Bogdan e Biklen (1997), por formas de investigao que aproximam

    pesquisador e pesquisado e utilizam estratgias de coleta que levam em conta a

    contextualizao dos dados, como dizem os autores: Os dados recolhidos so designados por

    qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, lugares,

    conversas e de complexo tratamento estatstico (BOGDAN e BIKLEN, 1997 p. 16).

    Um aspecto da pesquisa qualitativo ressaltado por Bogdan e Biklen (1997) a

    insero do pesquisador em seu campo de estudos: a fonte direta de dados o ambiente do

    campo no qual o pesquisador e sua experincia se tornam instrumento fundamental da

    pesquisa. No caso do presente estudo o ambiente de investigao foi um terreiro de umbanda

    da cidade de Ribeiro Preto, no qual me inseri como observador-participante.

    Para tanto foi necessrio um procedimento prvio de contato com os colaboradores

    para lhes fornecer explicaes sobre a pesquisa e tambm para investigar a viabilidade da

    mesma. Estes contatos prvios tambm foram necessrios para se estabelecer um vnculo com

    os colaboradores e para proporcionar um conhecimento mtuo. Para mim era necessrio saber

    se o terreiro estaria disposto a colaborar com meus objetivos, e disso dependia a aceitao

    deles para comigo.

    A pesquisa foi se efetivando e vrias etapas do processo de coleta foram se

    desenvolvendo a medida em que me inseria com mais profundidade no campo e os

    colaboradores permitiam o acesso a determinados dados e a realizao de procedimentos de

    registro como o uso de cmeras de vdeo digital, Hi 8 filmadoras durante o ritual.

    Como dizem Bogdan e Biklen (1997), O processo de investigao qualitativa reflete

    uma espcie de dilogos entre investigadores e respectivos sujeitos, dados estes no serem

  • 53

    abordados por aqueles de forma neutra (BOGDAN e BIKLEN, 1997, p. 51). Logo, para o

    estabelecimento deste dilogo necessrio para a obteno de dados, foi necessrio um

    processo de aproximao que garantiu minha autorizao para pesquisar os rituais de cura,

    bem como a aplicao dos procedimentos de coleta.

    A principal estratgia de pesquisa foi observao-participante, pela qual pude

    testemunhar os rituais de cura na umbanda, bem como ser submetido aos mesmos. Na

    umbanda, muitos ensinamentos no so veiculados por explicaes conceituais. Se algum

    quer saber de algo, muito freqentemente oferecem pessoa a chance de vivenciar seu objeto

    de curiosidade. Para a realizao desta pesquisa, tive de me submeter ao ritual de cura, e desta

    experincia surgiu o caminho de vinculao da pesquisa com o terreiro. A experincia pessoal

    do pesquisador entrar como estudo de caso nos resultados desta pesquisa, e desde estas

    primeiras experincias, foram registradas como notas de dirio de campo, das quais puderam-

    se obter informaes sobre tais rituais.

    Bogdan e Biklen (1997) enfatizam este procedimento de observao-participante

    como fonte de obteno de dados, afirmando ser necessria uma interao entre pesquisador e

    pesquisado que possibilite que estes ltimos se mostrem. Para tanto o pesquisador deve trat-

    los como sujeitos que produzem sentidos sobre aquilo que executam. Dizem os autores: As

    pessoas no agem com base em respostas pr-determinadas a objetos pr-definidos, mas sim

    como animais simblicos que interpretam e definem, cujo comportamento s pode

    compreendido pelo investigador que se introduza no processo de definio atravs de mtodos

    como a observao-participante (BOGDAN e BIKLEN, 1997, p. 55).

    Todos os procedimentos adotados para a pesquisa dependeram de minha insero

    gradativa no ambiente do terreiro. A opo por trabalhar apenas com um terreiro se justifica

    pelo tipo de investigao realizada e pelos objetivos. O contato com apenas um terreiro

    facilitou a compreenso da lgica umbandista e da forma como o ritual de cura age sobre a

  • 54

    pessoa singular. Isso devido ao alto nmero de observaes que pude realizar semanalmente,

    o que permitiu uma compreenso global da cosmologia umbandista e da estruturao das

    prticas de cura.

    A umbanda, assim como outras religies, composta de uma srie de produes

    simblicas, culturalmente estruturadas, e que so transmitidas por um cdigo especfico. Para

    a compreenso deste cdigo no necessria a visita sistemtica a um nmero plural de

    centros de umbanda, pois, apesar de existirem variaes entre terreiros, h certas estruturas

    comuns que garantem uma coeso tradicional, a identidade umbandista. Da mesma forma que

    o aprendizado de um idioma no requer o conhecimento de todas as formas como este idioma

    se encontra difundido em diversas regies geogrficas, mas sim de um vocabulrio e de

    operaes gramaticais e sintticas gerais da lngua, tambm o cdigo e a estrutura religiosa

    podem ser aprendidos pela observao e insero em apenas um terreiro.

    Sendo o intuito da pesquisa analisar o sujeito intrinsecamente ligado ao social e

    cultura, possvel dizer que a generalizao dos conhecimentos desenvolvidos no estudo de

    um nico terreiro pode ser vlida em termos do conhecimento da compreenso sobre a pessoa

    singular relacionando as estruturas sociais e o sujeito, seguindo o contexto particular do

    terreiro, e tambm a lgica que abrange a cultura umbandista como um todo. Apesar de

    existirem diferenas quanto ao uso de terminologias entre terreiros de umbanda, e at da

    existncia de nuances na organizao do culto, h certas invariantes como a possesso por

    espritos, as divindades do panteo umbandista, a compreenso sobre vida e morte, presentes

    nos mais diversos terreiros. Uma vez que o estudo de um ritual especfico, como o das

    prticas de cura, envolve estas estruturas invariantes, pode-se considerar razovel que os

    dados aqui obtidos mostraram-se seguindo uma ordem simblica geral da umbanda e a

    compreenso sobre os sentidos destes rituais desempenhados em um nico terreiro pode

    acrescer conhecimentos sobre a gramtica geral da umbanda.

  • 55

    2.2 Participantes:

    Para iniciar as explicaes sobre o local de pesquisa e o funcionamento do culto

    necessrio descrever os colaboradores, pois foi atravs deles que obtive as informaes

    necessrias sobre o terreiro.

    Participaram desta pesquisa os dirigentes e alguns freqentadores da Tenda de

    Umbanda do Pai Joaquim do Congo e Ogum Guerreiro. Os dirigentes do culto bem como

    alguns mdiuns participantes assduos do culto sero identificados pelos nomes de tratamento

    do terreiro, geralmente o primeiro nome, ou alguma abreviao. Em relao aos entrevistados,

    seus nomes foram mantidos em sigilo, conforme acordo firmado com assinatura em termo de

    consentimento.

    A opo por divulgar os nomes verdadeiros do terreiro bem como de seus dirigentes

    foi de comum acordo com os colaboradores. Estes reconheceram que divulgar o nome do

    terreiro e principalmente da me-de-santo seria adequado para definir o local onde a pesquisa

    foi realizada, e os ensinamentos a mim conferidos. Na umbanda o nome tem um poder, bem

    como as palavras, e a identificao uma marca religiosa. Os espritos-guias tm seus nomes

    prprios e divulgam-no. A explicitao dos nomes e das referncias pessoais segue a lgica

    religiosa da umbanda.

    Ao firmar este acordo com os colaboradores obtive a seguinte informao de um dos

    dirigentes do terreiro, Seu Aguinaldo que ser descrito identificado adiante: Quando um exu

    vem aqui, ele diz o nome?, respondo que s quando lhe perguntado, Ento, se voc no

    diz o nome as coisas ficam assim... Meio indefinidas. importante citar o nome do terreiro e

    o dela (aponta para a me de santo).

  • 56

    Logo, respeitando as leis e regras morais da umbanda e dos praticantes, utilizei o nome

    prprio dos dirigentes. Dos entrevistados, a opo pelo sigilo se justifica pela exposio que

    estes fizeram em entrevistas de aspectos muito particulares, e a divulgao de seus nomes no

    teria necessidade especfica. A relao entre o nome e o terreiro mostra a afiliao das

    pessoas. No que diz respeito aos dirigentes as relaes destes com a Tenda de Umbanda Pai

    Joaquim do Congo e Ogum Guerreiro ficam bem estabelecidas com a identificao dos nomes

    de referncia da comunidade. No divulguei seus nomes prprios como esto em seus

    documentos de identidade, mas sim o nome utilizado no terreiro.

    Seguem-se as referncias dos colaboradores:

    Dona Antonia (Tonica): a dirigente principal do culto, chamada pelos praticantes de

    madrinha. O termo me-de-santo utilizado na umbanda, mas o termo madrinha tambm de

    uso constante, pois ela quem promove a filiao das pessoas ao terreiro, quem concede as

    iniciaes aos mdiuns e dirige o culto.

    Dona Tonica tem 77 anos e casada com Seu Aguinaldo. Pratica umbanda h mais de

    50 anos. Seu primeiro contato com a religio ocorreu em um centro de umbanda de Ribeiro

    Preto que hoje j no existe, o terreiro da me-de-santo Maria Abadia. Foi o primeiro terreiro

    que Dona Tonica freqentou e onde, segundo ela, logo que entrou, quando comearam a

    cantar os pontos, ela comeou a tremer e apresentar os sinais fsicos da incorporao. Apesar

    de ter comeado com Maria Abadia, sua iniciao, na umbanda e no candombl, chamada de

    feitura de cabea, se realizou com um pai-de-santo, Seu Jos Pretinho, amigo de Maria

    Abadia, que tambm inaugurou um centro de umbanda. Como parte de sua iniciao

    D.Tonica conta os detalhes da feitura de cabea, quando ficou durante quinze dias no ronc

    (sala especfica para a iniciao dos mdiuns), somente rezando e entrando em contato com os

  • 57

    guias. Aps este perodo foi concedida pelo seu pai-de-santo permisso para dirigir trabalhos

    de umbanda. Desde ento vem realizando esta atividade, e faz questo de dizer que sua vida

    sempre foi de dedicao aos orixs.

    Como me-de-santo tem total autoridade, ela quem decide os dias de culto, os

    trabalhos que precisam ser feitos em horrios fora da gira, bem como recebe os principais

    guias da casa.

    Seu Aguinaldo: Marido de Dona Tonica, seu Aguinaldo uma pessoa de destaque no

    centro. Participa da organizao do terreiro, mas no mdium de incorporao. Est sempre

    presente nos trabalhos e auxilia os freqentadores. Instrui e informa sobre como proceder e

    as atitudes que se deve desempenhar no terreiro.

    Existem formas de agir no terreiro, algumas formalidades que so caractersticos do

    culto umbandista e necessitam serem respeitadas pelos participantes, sejam mdiuns ou no.

    No se pode, por exemplo, cruzar as pernas ou os braos durante o culto. Dizem que este

    gesto afasta os guias. A postura corporal muito importante na umbanda e as pessoas so

    freqentemente avisadas disso. Seu Aguinaldo sempre est atento a este tipo de situao, com

    vistas ao bom andamento do culto. Os gestos e palavras que uma pessoa usa podem ter efeitos

    sobre o culto, de modo que os dirigentes esto sempre atentos para o modo como as pessoas

    da assistncia se comportam. Nos rituais de cura ele quem conduz a seqncia do

    tratamento, a entrevista com espritos obssessores e as condutas que devem ser seguidas.

    Seu Aguinaldo muito procurado para dar conselhos; os freqentadores se dirigem ao

    terreiro em horrios distintos da gira para conversar com ele.

    Meire: Filha do casal ocupa um lugar central entre os mdiuns. Ela ocupa o posto de

    Og e se responsabiliza por entoar os pontos cantados, as canes da umbanda em

    homenagem aos guias.

  • 58

    mdium de incorporao, recebe espritos de vrias linhas, mas com mais freqncia

    de um caboclo da linha de Oxssi. As entidades que Meire recebe costumam diferenciar-se

    das demais que so incorporadas na casa. Seu Aguinaldo justifica esta particularidade. Ele diz

    que Meire foi iniciada no candombl e, portanto as entidades que incorpora so diferentes.

    Tambm mdium vidente e como seu Aguinaldo bastante procurada para dar

    conselhos. Durante o culto auxilia os consulente no momento do passe. Meire costuma

    intermediar o dilogo entre o consulente e os guias quando aqueles no compreendem os

    dizeres destes. Os guias usam expresses especficas, por exemplo, no incio do passe as

    entidades da linha dos baianos costuma perguntar ao consulente: voc ta de vera?, que tem

    o sentido de est tudo bem?. Muitos consulentes no conhecem estes termos do cdigo

    umbandista, o que dificulta sua comunicao com os guias. Nessas ocasies Meire costuma

    ficar prxima ao consulente e ao guia e assim facilitar a compreenso dos dizeres do

    mesmo.

    Outros mdiuns:

    Tambm colaboraram para a pesquisa as mdiuns Marlu e Rose que freqentam

    assiduamente o culto e recebem mediunicamente entidades, das quais obtive importantes

    informaes dentre elas:

    a) Marlu: a baiana Maria do Cerrado e o preto-velho Pai Benedito de Angola, guias

    e a pomba-gira Sete Taas.

    b) Rose: a baiana S Maria, a preta-velha Me Maria Conga e a pomba-gira Rosa

    Maria da Praia.

    Tambm tem-se como participante fundamental do culto o tocador de atabaque

    (curimbeiro) Jeferson, que neto de Dona Tonica e de seu Aguinaldo e responsvel pelos

    pontos tocados, a execuo rtmica do instrumento de percusso que compe o ritual.

    Outros mdiuns sero identificados pelas iniciais. So mdiuns que no freqentam o terreiro

  • 59

    assiduamente, mas quando o fazem incorporam espritos, como no caso da mdium L.H sobre

    quem apresentarei um estudo de caso, e a mdium Dona D. que freqenta o terreiro somente

    para desempenhar prticas de cura.

    Alguns freqentadores que mantm estreitas relaes de amizade com os dirigentes, e

    participam do culto assiduamente, assumem a funo de cambonos, que consiste em auxiliar

    no culto, principalmente os guias, oferecendo-lhes cigarros (no caso dos espritos da linha

    dos baianos, por exemplo), ou na entoao dos pontos cantados e fazendo oraes.

    Os demais participantes do culto so os freqentadores que compe a assistncia:

    aqueles que se dirigem ao terreiro para tomar passes e consultarem os guias. Nesta pesquisa

    utilizarei o termo consulente para designar os indivduos da "assistncia", uma vez que se

    dirigem ao terreiro para consultar os guias. A assistncia do terreiro do Pai Joaquim do

    Congo e Ogum Guerreiro composta em sua maioria por indivduos que possuem um grau de

    parentesco com os dirigentes, e moradores da vizinhana. Muitos so negros e de diversas

    idades. Ao longo de minhas visitas aos terreiro pude estimar uma mdia de dez indivduos na

    assistncia.

    2.3 Local da pesquisa

    O centro do Pai Joaquim do Congo funciona no mesmo terreno da casa da me de

    santo. O terreno todo murado; para ter acesso ao terreiro necessrio entrar pelo porto

    frontal da residncia, que fica destrancado nos dias de gira (segundas e sextas-feiras).

    Ao entrar-se pelo porto, encontra-se direita de quem entra, na parte interna do

    muro, uma vela branca ou vermelha acesa em homenagem ao guardio do porto, um exu, a

    entidade do panteo umbandista que guarda a porta do terreiro e controla quem entra e sai

    (no plano espiritual). Tambm h vasos com plantas utilizadas nos rituais, geralmente ervas

    como arruda, guin, alfazema, manjerico. Seu Aguinaldo explica que a organizao do

  • 60

    terreiro segue a organizao do mundo espiritual. Ele explica que para a umbanda, existem

    os mundos da direita e da esquerda. A direita povoada pelos espritos de alta

    luminosidade, os guias que evoluram espiritualmente por conta de seu carter moral. A

    esquerda refere-se ao mundo dos espritos menos evoludos, so os eguns, os exus e pombas-

    giras que so maias apegados ao mundo maaterial onde se encontram os homens.

    Assim, a organizao espacial descreve a diviso entre estes dois mundos, da direita e

    esquerda. A porta de entrada fica em uma parede lateral (para quem olha o terreiro de frente

    da casa), e costuma ficar aberta durante toda a gira. direita de quem entra pela porta da

    frente est localizado o cong, um altar onde esto dispostas imagens dos diversos santos.

    uma construo de tijolos de aproximadamente 1,5m de altura; assemelha-se a uma bancada,

    possui profundidade e as imagens so dispostas tanto sobre a bancada como embaixo dela. Na

    parte de cima do cong h quatro prateleiras onde ficam os santos. So diversas imagens tanto

    de santos catlicos como de orixs africanos, figuras de preto-velhos, baianos, caboclos,

    boiadeiros e ciganos. Chamam ateno duas grandes imagens que ficam logo frente da

    bancada, na prateleira mais baixa. So imagens de So Jernimo, sincreticamente

    correspondente a Xang, o orix do fogo, o representante da justia. Esta imagem tem por

    volta de 30 cm de altura, na qual So Jernimo est sentado ao lado de um leo. Em volta da

    imagem foram penduradas duas guias (colar de contas), uma dourada e outra verde. Esta

    imagem fica direita de quem observa de frente ao cong. Na outra extremidade tem-se a

    imagem de uma ndia, uma cabocla flecheira, na postura similar ao movimento de atirar uma

    flecha. um pouco menor que a esttua de So Jernimo, mas tambm se destaca pelo

    tamanho e por servir de apoio, onde a madrinha pendura suas guias. Acima do cong, em uma

    prateleira, fica a imagem de Jesus Cristo, no crucificado, de braos abertos estendidos como

    caracterstico da umbanda. Nos terreiros de umbanda nunca presenciei a imagem do Cristo

    crucificado.

  • 61

    Abaixo da bancada tem-se uma espcie de tanque, um reservatrio para gua e uma

    torneira, onde ficam as imagens do povo das guas, que so regidas pelos orixs Iemanj e

    Oxum. Neste compartimento tem-se figuras de marinheiros, pescadores e sereias. Na gira

    abre-se um pouco a torneira e o tanque fica com um pouco de gua. No s no cong existem

    figuras de santo. Por todas as paredes temos imagens representando santos, bem como cenas

    bblicas. H retratos de So Jorge, Santa Luzia, uma reproduo da Santa Ceia de Leonardo

    da Vinci e um quadro de uma sereia (imagem referente linha das guas).

    Continuando a descrio, no centro do terreiro, no piso, h uma lajota de forma

    hexagonal, bem no centro da construo. o local onde a madrinha se situa durante a gira, e

    onde se faz a diviso do local entre direita e esquerda.

    esquerda de quem entra pela porta esto dois banheiros, um masculino e outro

    feminino, dispostos em dois cantos. Para quem est dentro do terreiro, de frente ao cong, o

    banheiro masculino fica direita e o feminino esquerda. Assim a diviso entre homens e

    mulheres durante a gira. Os mdiuns homens ficam direita da me-de-santo e as mulheres

    esquerda. Assim tambm para aqueles que assistem, os homens direita e as mulheres

    esquerda. Com exceo da parede da frente onde se encontra o conga, nas paredes laterais e

    dos fundos, encontram-se sofs e bancos de madeira onde os freqentadores (a chamada

    assistncia) se sentam e observam o culto.

    Em trs cantos da sala, bem como acima da porta, tem-se imagens de santos que

    protegem os cantos. Acima da porta h a imagem de um cangaceiro, um copo com gua e

    sal e alho pendurado. No canto esquerdo de quem entra h uma imagem da entidade chamada

    de Z Pelintra, uma figura presente no panteo umbandista, que circula entre a esquerda e a

    direita. No canto da extrema direita h a imagem de um caboclo e no canto adjacente uma

    imagem de Nossa Senhora. Em um dos cantos no se encontra nenhuma imagem. Fui

    informado que sempre deve-se deixar um lado sem nada para que as energias negativas

  • 62

    corram para fora. Os cantos so cerceamentos destas energias, elas protegem tanto a entrada

    como a sada dos fluxos, de modo que preciso deixar um canto aberto para que elas saiam.

    O telhado feito de telhas do tipo eternite, sem laje, onde so penduradas, na parte

    interna, umas sries de bandeirinhas em formas geomtricas, semelhantes s de festas de So

    Joo. Estas bandeirinhas so feitas na cor branca e rosa e periodicamente so trocadas, na

    ocasio da festa em homenagem a So Cosme e So Damio, que ocorre em setembro.

    direita do cong temos um pequeno altar onde se dispem imagens de Ians e Oxum

    e onde os mdiuns acendem velas. Tambm direita temos o trono de uma das entidades

    principais da casa, Ogum Guerreiro, uma poltrona de estofado vermelho com uma estrela de

    cinco pontas estampada. esquerda do cong ficam os atabaques, os instrumentos principais

    do culto, e ao lado destes, na parede oposta de entrada tem-se outra porta que d acesso a

    um corredor. Neste corredor pode-se acessar a residncia; nele tambm temos vasos com

    plantas e por ele tambm se acessa o eboxo, um pequeno cmodo onde ficam esttuas de

    entidades de esquerda, os exus e pombas-giras. Dentro do terreiro, na sala principal, no se

    tem imagens destas entidades.

    Na parede oposta entrada tambm h uma pequena lousa onde os dirigentes

    escrevem algum recado sobre o funcionamento do culto. Tambm ficam pendurados o

    certificado de licena concedido pela Federao Umbandista, que regula o funcionamento do

    terreiro, e um extintor de incndio.

    2.3.1 Objetos e utenslios do culto

    Instrumentos musicais: Atabaques que so os tambores, instrumentos de percusso que

    tocam ao longo do culto do comeo ao fim. Sua execuo fica sob responsabilidade de um

    praticante especfico, o neto de Dona Tonica. O atabaque fica coberto enquanto no est

  • 63

    sendo tocado; somente o curimbeiro pode descobri-lo e tocar. Alm do atabaque utiliza-se o

    agog, instrumento de percusso feito de metal que tocado como um chocalho, um sino,

    produzindo um som metlico e cintilante. Ele usado geralmente para ajudar os mdiuns que

    esto com dificuldades de incorporao. A msica algo muito presente na umbanda. Dentro

    da sala do terreiro h um aparelho de som e uma coleo de discos de vinil (LP), de samba-

    enredo, e outras msicas populares, que para os umbandistas so rezas, so sagradas.

    2.3.2 Objetos ritualsticos.

    Quando as entidades so incorporadas, elas fazem uso de alguns objetos. Os pretos-

    velhos tm bengalas e bancos especficos feitos de madeira. So baixos e utilizados somente

    para os pretos-velhos se sentarem e quando h rituais de transporte. Tambm se tm flechas e

    arcos, representando os caboclos, chapus de palha e de couro em referncia a baianos e

    boiadeiros. Estes objetos ficam dispostos no canto direito ao cong ou alguns ficam

    pendurados na parede, como por exemplo, o arco e flecha. Em frente ao cong ficam

    dispostas duas garrafas com gua salgada e um lquido preparado com ervas na semana santa,

    que utilizado como um purificador, para l