a construção social da cura em cultos umbandistas_alexandre mantovani
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Tese de mestrado sobre o umabandismoTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP
Alexandre Mantovani
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea: Psicologia.
RIBEIRO PRETO SP
2006
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP
Alexandre Mantovani
Jos Francisco Miguel Henriques Bairro
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea: Psicologia.
RIBEIRO PRETO - SP
2006
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FICHA CATALOGRFICA
Mantovani, Alexandre
A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto-SP. Ribeiro Preto, 2006.
172 p. : il. ; 30 cm Dissertao, apresentada Faculdade de Filosofia,
Cincias e Letras de Ribeiro Preto / USP Dep. de Psicologia e Educao.
Bairro, Jos Francisco Miguel Henriques 1. Cura. 2. Psicanlise. 3. Umbanda
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FOLHA DE APROVAO
Alexandre Mantovani A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto para obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Psicologia
Aprovado em: Banca Examinadora Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituio: __________________________________________________________ Assinatura: __________________________________________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituio: __________________________________________________________ Assinatura: __________________________________________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituio: __________________________________________________________ Assinatura: __________________________________________________________
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Mantovani, A. A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um
terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP. 2006, Dissertao (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto -SP
ERRATA
FOLHA LINHA ONDE SE L LEIA-SE
37 6 NASCIMENTO
(1999)
NASCIMENTO
(1997)
124 26 MAGGIE (1991) MAGGIE (2001)
133 13 BASTIDE (1974) BASTIDE (1973)
138 25 BION (1946) BION (1973)
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AGRADECIMENTOS
Ao prof. Miguel Bairro que me concedeu a oportunidade da pesquisa e que muito contribuiu para minha formao como psiclogo, com sua inteligncia e generosidade. Aos colaboradores da Tenda de umbanda do Pai Joaquim do Congo e Ogum Guerreiro, na pessoa de Dona Tonica que muito gentilmente me receberam e permitiram a realizao da pesquisa. Aos colegas de pesquisa Fbio e Sabrina que me apresentaram aos colaboradores e aos demais colegas do Laboratrio de Etnopsicologia da FFCLRP. minha famlia, meus irmos e cunhados pelo apoio e companheirismo.Ao meu irmo Marcelo pela ajuda com as fotografias. Ao meu pai Bernardo Mantovani pelo constante auxlio na produo dos textos e minha me Hona T. Mantovani pelo auxlio na traduo dos textos em francs. Carina Cella Panaia, minha noiva, pelo seu apoio, companheirismo carinho e, sobretudo pela pacincia! E por estar presente em minha vida. Aos amigos desde os tempos de graduao: Anderson, Rafael, Fbio, Felipe pelos grandes momentos compartilhados. Dra. Pilar, com quem realizo minha anlise e que me auxiliou a adquirir uma compreenso alm da esfera intelectual, fundamental para todas as minhas realizaes. Aos professores Lazlo vila e Rosalina C. da Silva que gentilmente aceitaram participar como membros da banca de qualificao e defesa. A professora Carmen L. Cardoso e professor Antnio D. Carvalho por aceitarem serem suplentes da banca. A todos os funcionrios e professores do Departamento de Psicologia e Educao da FFCLRP-USP A todo Povo de Aruanda!
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RESUMO
Mantovani, A. A construo social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um
terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP. 2006, Dissertao (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto -SP
Muitas pessoas se aproximam da umbanda procurando solues para queixas que vo desde
situaes de sade, problemas financeiros e de relacionamentos interpessoais. Como forma de
tratamento os terreiros desempenham prticas especficas estruturadas seguindo a cosmologia
umbandista, uma viso prpria de mundo e de ser humano. No desempenho da cura tem-se
uma situao em que o indivduo diagnosticado por uma semiologia espiritual, uma
leitura do mesmo a partir de elementos simblicos religiosos. Este contexto abre espao para
uma pesquisa psicolgica vinculada ao social, sendo para tanto necessria uma atitude de
pesquisa no-reducionista e no- etnocntrica.
O objetivo desta pesquisa foi descrever e analisar prticas de cura desempenhadas em um
terreiro de umbanda da cidade de Ribeiro Preto SP, explorando possveis sentidos
enunciados nestas prticas.Trata-se de uma pesquisa qualitativa cujas estratgias de coleta de
dados foram: observao-participante, anotaes em dirio de campo, entrevistas e registros
audiovisuais. Os dados foram analisados com base na abordagem antropolgica da pessoa,
que preconiza o estudo do ser humano singular culturalmente contextualizado e distinto da
representao da pessoa por um eu psicolgico. Tambm toma-se como referncia a
psicanlise, principalmente pelo tratamento do sujeito feito por Lacan que se assemelha ao da
antropologia e possibilita uma aproximao do psicolgico ao social, uma vez que trata o
sujeito estruturado por relaes de alteridade em cadeias significantes, elementos simblicos
pertencentes ao universo cultural. Como resultados, verificou-se duas prticas de cura
espiritual chamadas descarrego e transporte. Para a anlise agrupou-se dados referentes a
oito situaes observadas no campo em categorias que explicitam a compreenso umbandista
sobre sade e doena, as aes curativas e seus efeitos. Pde-se observar que: o culto
umbandista apresenta-se como uma cadeia significante formada por elementos verbais e no-
verbais que enunciam diversos sentidos para comunidade do terreiro. Os sintomas da doena
espiritual revelam o grau de proximidade do indivduo com a religio. As prticas de cura
apresentam uma estrutura de eficcia simblica, tal como conceituada por Lvi-Strauss. Alm
disso, funcionam como forma de expresso de conflitos constituindo um drama social
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(Turner). O uso da psicanlise possibilitou uma aproximao entre o pesquisador e os
colaboradores (umbandistas) e assim foi possvel investigar as prticas de cura levando em
conta a linguagem e os significados que estas apresentam para os mesmos. As prticas de cura
apresentam uma funo de insero comunitria, pois na umbanda classificar um indivduo
como saudvel ou doente implica em reconhecer seu grau de proximidade com a religio.
Palavras-chaves: cura; umbanda; psicanlise
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ABSTRACT
MANTOVANI, A. The social construction of cure in umbandist cults: a case study in a umbandas terreiro in Ribeiro Preto SP. (Dissertao de mestrado). 2006. (Mestrado) Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto -SP
Many people seek in umbanda solutions for their health problems, situations of interpersonal
interactions and financial difficulties. The terreiros treat them by performances of specific
practices based in a particular conception of the human being and a specific world view. The
process of healing is carried out on the basis of a spiritual semeiology an interpretation
based on symbolic religious elements. These conceptions and activities represents a good
opportunity for a psychological and social researcher program, aimed to be non reductionist
and also non ethnocentric. We describe the practices of cure performed in a terreiro of
umbanda in the city of Ribeiro Preto SP, looking for their possible significance. It is a
qualitative investigation whose data were obtained by participant observations, daily field
annotations, interviews and audiovisual registrations. The analysis based on the
anthropologic approach of the person, aimed the singular human being in its cultural context,
which differs from the mere representations of the person as a psychological ego. The
reference to psychoanalysis was useful specially through Lacans treatment of the self , which
is akin to the anthropologic approach and makes possible an approximation of the psycho
logic and the social, since it consider the person as psychologically structure by its relations
with the symbolic elements of the cultural universe. We have studied two forms of spiritual
cures which are called descarrego and transporte. The data were clarified in eight
categories according to the situations of observations in the field; these categories make
explicit for the umbandists what is needed for the understanding of the wealth and disease
states, the healing actions and their effects. We have shown that: the umbandas cult is
characterized as a significant chain of verbal and non verbal elements that represents diverse
meanings for the community; the symptoms of the spiritual disease reveal the degree of
proximity of the persons to the religion; the practices of cure constitute a structure of
symbolic effectiveness, as in the sense given by Lvi-Strauss. Moreover, they functions as a
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form of expression of conflicts within the community, and thus constitute a social drama
(Turner). The use of psychoanalysis permitted an approximation between the researcher and
collaborators and made possible, in this way, to investigate the practices of cure taking in
account the language and the significance that they represent for both of them. These practices
have the function of an insertion in the community, since in the umbanda, the classification of
a person as being healthy or sick implicate in the recognition of his/her degree of proximity to
the religion.
Key-words: cure; umbanda; psychoanalysis
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SUMRIO 1 INTRODUO 25 1.1 Estudos psicolgicos dos cultos afro-brasileiros 1.2 Prticas populares de cura 1.3 O sujeito e o ritual 1.4 Sujeito e Performance 1.5 A cura na umbanda 2 METODOLOGIA 51 2.1 Sobre o mtodo 2.2 Participantes 2.3 Local da pesquisas 2.4 Estratgias de pesquisa 2.5 Procedimentos 2.6 Anlise dos dados 3 RESULTADOS 83 3.1 Contatos iniciais 3.2 As prticas de cura: descarrego e transporte 3.3 O descarrego 3.4 O transporte 3.5 Relatos de experincias 4 DISCUSSO 119 4.1 Eventos disparadores 4.2 Explicaes do terreiro 4.3 Aes curativas 4.4 Reao ps-tratamento 4.5 Sntese 5 CONCLUSO 157 REFERNCIAS 161 ANEXOS 166
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1 INTRODUO
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1.1 Estudos psicolgicos dos cultos afro-brasileiros
Desde o incio do estudo das religies afro-brasileiras, com os trabalhos de Rodrigues
(1900 apud GOLDMAN, 1984), e Ramos (1934) tem-se a utilizao de teorias psicolgicas
como recurso de explicao para os fenmenos desempenhados nos terreiros de candombl e
umbanda.
Os cultos dessas religies chamam ateno pela riqueza de smbolos e pela
complexidade ritual caracterizadas por uma multiplicidade de elementos como msicas,
danas, uso de objetos mgicos e pelo fenmeno de possesso por espritos. Para os
pesquisadores, os cultos forneciam vrias situaes que intrigam a pesquisa sobre o
comportamento humano. Como diz Silva (1999, p.7):
(...) dentre os vrios aspectos que se destacam nessa herana africana, aqueles relativos sua religiosidade complexa, aos seus cultos e rituais, exercem particular atrao curiosidade desses pioneiros. E dentre esses, o fenmeno de transe da possesso, exercer um verdadeiro fascnio, constituindo-se campo por excelncia dessa pioneira exercitao dos saberes psicolgicos aplicados anlise da realidade cultural.
Segundo Goldman (1984), foi Nina Rodrigues o primeiro a se interessar pela posio
do negro africano na sociedade brasileira e o primeiro a desenvolver trabalhos de medicina
social abordando questes sobre problemas patolgicos, tanto individuais quanto sociais,
causados pela mestiagem racial (GOLDMAN, 1984, p. 69). Seus trabalhos consistiam em
estudos raciais, o que levou a receber muitas crticas por parte de pesquisadores posteriores.
Apesar do carter classificatrio e evolucionista, o trabalho de Nina Rodrigues abre
portas para a pesquisa sobre os estudos africanos no Brasil e principalmente sobre aspectos
psicolgicos do negro e de sua religio. Suas hipteses baseiam-se em estudos antropolgicos
de sua poca e o autor formula um estudo sobre o fetichismo e a possesso nas religies
africanas, atribuindo uma relao de parentesco entre os fenmenos que ocorrem no transe
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mstico a correlatos psicopatolgicos, como o sonambulismo e a histeria, extrados da obra de
Pierre Janet: Eu sou levado a crer que os orculos fetichistas possudos por santos no so
outra coisa que estados de sonambulismo provocados com a duplicao e substituio da
personalidade (RODRIGUES, 1900 apud GOLDMAN, 1984, p. 74).
Em comentrio, Goldman (1984, p.75) afirma: Nina Rodrigues faz do transe o
reflexo direto destas perturbaes psicolgicas, atribuindo ao meio social apenas a
capacidade de direcionar essas manifestaes.
Se Nina Rodrigues busca em Janet (apud Goldman, 1984) bases tericas, Ramos
(1934) investe na psicanlise. Ramos (1934) desloca seu foco da psiquiatria e da antropologia
evolucionista para a psicanlise de Freud e as teses de Lvi-Bruhl sobre mentalidade
primitiva.
Assim, com as contribuies de Ramos (1934), na pesquisa sobre cultos afro-
brasileiros passou-se das hipteses biolgicas para hipteses psico-sociolgicas e o que era
antes tratado como um atributo da raa, passa a estar relacionado a uma questo de
mentalidade e cultura encontrada em crianas, neurticos ou em produes como obras de
arte e sonhos (RAMOS, 1934, p. 77). As explicaes estavam vinculadas a um estado
mental, uma forma de estruturao de pensamento. Os cultos africanos teriam esta forma
devido ao modo como seu pensamento est estruturado.
No que diz respeito ao estudo psicopatolgico prope uma interpretao diferente
daquelas teses, no reduzindo a possesso histeria. importante salientar que Ramos (1934)
toma precaues para o uso destas idias. Era reconhecida por ele a complexidade dos
fenmenos ali manifestados e sabia ele que a reduo da possesso histeria no garantiria
uma explicao:
V-se desta maneira que os phenomenos de possesso no podem ser identificados somente a hysteria como pregou a escola de Charcot. So muito mais complexos. Mas o paralelo entre estes phenomenos, principalmente em sua forma aguda, e os estados hystericos ainda posto em equao (RAMOS, 1934, p. 196).
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Mas insiste na psicopatologia.
A possesso esprito-fetichista um phenomeno muito complexo, ligado a vrios estados mrbidos. Pode ser aguda ou chronica (...) Nos casos chronicos, as perturbaes demonopathicas e mediumnopathicas das possesses, acham-se ligadas ao automatismo mental, e vo desde os phenomenos xenophaticos simples, at os delrios mais complexos.
Continua um tipo de diagnstico mdico. Sem reduzir a possesso histeria, a
primeira consistiria num quadro mais complexo, mas tambm classificada em parmetros
psiquitricos, mais especficos. Ela estaria dentro de um quadro regressivo da personalidade:
Esses estratos afetivos profundos, arcaicos, resto hereditrio de um primitivo estgio de vida,
daquela esfera mgico-catrtica das reaes afetivas (RAMOS 1934, p. 283).
Estas contribuies tiveram o mrito do pioneirismo e abriram os caminhos para a
pesquisa destas religies, todavia este uso dos saberes psicolgicos no se sustentou, e se
antes a psiquiatria, a psicologia e a psicanlise eram referncias tericas potencialmente teis,
o tema das religies afro-brasileiras passou a ser objeto quase exclusivo de estudo de
cientistas sociais. Isso se deve ao fato destas teorias mdico-psicolgicas serem oriundas de
contextos ocidentais, que operam com modelos de ser humano oriundos da cultura europia e
assim, as explicaes sobre o comportamento por um vis psicopatolgico acabariam por
promover concepes etnocntricas do comportamento dos afros-descendentes, julgados e
compreendidos luz de modelos de ser humano ocidentais criando obstculos baseados em
preconceitos.
Como diz Silva (1999, p.7):
De certa maneira, esta tradio de abordagem etno-psidos aspectos da cultura afro-brasileira, que se inaugura to fortemente compromissada com tal tipo de projeto, far com que paire sempre, sobre os esforos que lhe so posteriores, um certo tipo de suspeita, um certo registro de tenso nas pretenses da abordagem psicolgica, psiquitrica e psicanaltica dos variados aspectos constitutivos dessa realidade cultural, principalmente daqueles aspectos religiosos que lhe so prprios.
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Ou seja, as explicaes de cunho psicolgico no abarcariam a realidade dos
praticantes do culto, mas sim aplicariam concepes ocidentais de homem e de personalidade
diretamente a estes contextos, incorrendo no preconceito etnocntrico, que consiste na
interpretao de valores de uma determinada cultura por outra sem levar em conta as
diferenas existentes entre elas.
As explicaes mdico-psicolgicas sobre estes fenmenos s seriam possveis se
feitas sobre um recorte do ritual, atravs do qual o comportamento de um indivduo, tomado
empiricamente, mostraria sinais semelhantes aos dos quadros mrbidos. Alm disso, como
comenta Augras (1995), estas teorias mdicas estavam embasadas em uma perspectiva
evolucionista, que contribua para um distanciamento ainda maior a respeito do conhecimento
cultural, pois em ltima instncia teria como pano de fundo a ideologia de diferenciao entre
culturas, reconhecendo supostas superioridades de umas em relao a outras, e ainda mais por
estes autores tratarem dos estudos sobre os afro-descendentes em termos de estudos raciais.
Mas apesar das dificuldades e carncias que o uso destas teorias promovia na pesquisa
social, a busca pelo entendimento psicolgico destes rituais no deixou de existir, e ao mesmo
tempo em que existe uma carncia de modelos que abarquem os aspectos psicolgicos em
contextos sociais, h a necessidade de estudos que integrem estas duas instncias de
compreenso do ser humano. Augras (1995, p.47) define dois propsitos que fundamentam a
pesquisa psicolgica em comunidades de terreiros. Em primeiro lugar, a procura pela
compreenso dos valores e da viso do mundo de significativa faixa da populao
brasileira. Citando a autora:
Nada mais importante para o psiclogo do que apreender os modelos de representao da realidade elaborados pelas diversas culturas e subculturas que compem o to rico painel chamado Brasil. Alm dessa necessidade de informao etnolgica, igualmente fundamental investigar o modo pelo qual tais modelos atuam no indivduo e, particularmente, os mecanismos que podem lev-lo maior compreenso de si prprio e melhor integrao dos componentes de sua personalidade (AUGRAS, 1995, p.47).
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A proposta de Augras (1995) ento colocar o psiclogo em contato mais prximo
com a realidade social brasileira e assim desenvolver conhecimentos integrados s formas de
representao da populao, ao modo como os seus componentes vem e descrevem sua
realidade. Alm disso, deixa sua marca como psicloga e aponta para a possibilidade dos
estudos psicolgicos, uma vez contextualizados, servirem como recurso para permitir aos
indivduos um melhor conhecimento de si.
Esta segunda proposta descreve o alcance que os estudos psicolgicos teriam no
mbito da cultura, que seria o de possibilitar o trabalho e investigao do indivduo. Da
mesma forma como o enfoque psicolgico torna-se empecilho para a pesquisa social, por
focar o indivduo e seu funcionamento particular, ele tambm pode ser um recurso, se
utilizado adequadamente, para possibilitar a compreenso dos mecanismos pelos quais o
coletivo interage com o individual, permitindo at, nas palavras da pesquisadora, promover
integraes de componentes de personalidades (AUGRAS, 1995).
As contribuies da psicologia poderiam, segundo Augras (1995) contribuir para
integrar, contextualizar e relacionar o particular, referente personalidade ou ao indivduo, ao
universo coletivo, o conjunto de smbolos de uma religio que estrutura a comunidade de
terreiro.
Augras (1995) uma pesquisadora que investe no estudo psicolgico das religies
afro-brasileiras, no mbito do estudo cultural, mas utiliza-se de contribuies filosficas como
recurso terico. Lpine (2004) tambm investiga o psicolgico no mbito social ao investigar
a formao da identidade no candombl, caracterizando os orixs como tipos psicolgicos
(LPINE, 2004).
Em relao psicanlise e psicanalistas que se interessaram pelos estudos afro-
brasileiros, podemos citar o trabalho de La Porta (1979) que se disps a fazer interpretaes
psicanalticas de rituais afro-brasileiro. La Porta (1979), difere da tradio mdica por no
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propagar interpretaes psicopatolgicas, mas suas contribuies se caracterizam como
tradues psicolgicas de fenmenos religiosos, tal como discutem Mantovani e Bairro
(2005).
Analisando o uso das teorias psicolgicas, desde os trabalhos dos pioneiros dos
estudos afro-brasileiros, v-se que, apesar de Augras (1995) ressaltar a importncia e
necessidade do estudo psicolgico em comunidades de terreiros, existem dificuldades na
realizao deste tipo de estudo. A prpria Augras (1995) se afasta de teorias psicolgicas e se
aproxima da fenomenologia como referencial terico e metodolgico, por conta da
dificuldade em se produzir conhecimento acerca dos rituais afro-brasileiros sem promover
reducionismos tericos.
Em relao psicanlise, que esteve presente nos trabalhos pioneiros de Ramos
(1934), tambm existem dificuldades na aplicao de seus conceitos, mesmo que no sejam
pelo vis psicopatolgico. A interpretao psicanaltica, entendida como um ato de atribuio
de significados inconscientes, pode dificultar a pesquisa social, pois, como no caso de La
Porta (1979), o psicanalista assume a funo de um decodificador de smbolos, baseado na
premissa de um suposto saber sobre a natureza humana, descreve a realidade do culto em
termos puramente psicolgicos. Este tipo de uso da psicanlise gera uma distncia entre
pesquisador e pesquisado, e no fim das contas o conhecimento acerca de fenmenos sociais
recebe uma verso psicolgica, sem levar em conta a complexidade de tais fenmenos.
A presente pesquisa pode ser inserida no mesmo contexto que os trabalhos dos autores
citados. Compartilhando a opinio de Augras (1995) de que h espao e necessidade de se
realizarem pesquisas psicolgicas que auxiliem na compreenso da cultura e na aproximao
da pesquisa psicolgica realidade brasileira, investi, assim como Ramos (1934) e La Porta
(1979), na psicanlise como recurso para a pesquisa social. Todavia, ao contrrio destes dois
autores, a psicanlise no utilizada nesta pesquisa como fonte de referncia de um
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conhecimento universal do homem, mas sim por conta da possibilidade de se utilizar as
contribuies psicanalticas a respeito da constituio estrutural do sujeito e do inconsciente
como recurso de investigao social.
Atravs de uma pesquisa de campo realizada em um terreiro de umbanda da cidade de
Ribeiro Preto SP, fiz uma investigao sobre certas prticas de cura caractersticas da
religio umbandista. O objetivo foi investigar o ritual de cura levando em conta a forma como
os fenmenos religiosos se apresentam no ritual, pelo uso da linguagem prpria da religio, e
assim investigar os vrios sentidos que se enunciam no ritual em suas mais variadas formas:
por comunicaes verbais, no-verbais, uso de objetos, cantos e danas.
Considerando a tese de Crapanzanno (1967/2000) de que cada prtica teraputica est
relacionada a uma concepo de ser humano, seja cientfica ou religiosa, meu intuito foi
explorar as prticas de cura a partir das concepes dos praticantes, sem atribuir significados
psicolgicos aos fenmenos, priorizando explorar os vrios significados e sentidos do ritual1
tal como eles se mostram, na ao ritual.
1.2 Prticas populares de cura
Como a pesquisa tem como foco o estudo do sujeito em prticas de cura umbandista,
necessria uma explicao a respeito da forma como abordarei a temtica da cura popular.
O tema da cura popular vem sendo estudado no Brasil principalmente na rea da
antropologia da sade. Como comentam Alves e Minayo (1994), este campo constitui-se
como um domnio de estudos acerca das diversas prticas de sade. Dentre os temas
investigados neste campo, tem-se: a relao mdico-paciente, a eficcia de tais prticas, as
1 O termo ritual ser usado pela definio de Turner (1967) como um comportamento formalizado para ocasies especficas com referncia mstica ou religiosa. Para Turner (1967) o ritual tem ao tanto nas relaes interpessoais quanto na comunidade.
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concepes de sade e doena e as relaes de poder entre prticas mdicas populares e
cientficas.
Apesar da pesquisa ter como campo de investigao as prticas de cura de um terreiro
de umbanda, meu enfoque se distancia um pouco dos trabalhos desenvolvidos na antropologia
da sade, medicina comunitria e psicologia social.
A escolha pelo estudo especfico dos rituais de cura popular se justifica por ser este
um campo que sempre esteve em dilogo, ou proximidade, com os estudos psicolgicos,
principalmente porque a investigao acerca dos fenmenos de cura abre caminhos para a
investigao das relaes entre indivduo e sociedade. No estudo da cura popular, a questo
da doena de um indivduo retratada e explorada sempre dentro do contexto social,
exigindo-se assim a investigao do fenmeno social (de cura) relacionado ao indivduo (no
caso) doente.
Pela literatura internacional, recorrendo a contribuies como as de Lvi-Strauss
(1949), Taussig (1993) e Crapanzanno (2000), pode-se verificar como o tema da cura em
contextos religiosos cria um campo propcio para o estudo do homem, enquanto singular, na
condio de pessoa, em relao ao social.
Lvi-Strauss (1949; 1948) em dois artigos clssicos sobre a cura e a ao mgica, faz
toda uma exposio que aproxima o estudo antropolgico do estudo psicolgico, chegando at
a comparar a cura xamnica, uma forma de cura popular, ao trabalho psicanaltico, que
supostamente teria como fundamento o trabalho de cura que incide sobre o individuo.
A tese de Lvi-Strauss (1949) a de que a cura xamnica tem sua eficcia no fato de
que o xam (curador) e o doente compartilham de uma mesma crena, de um mesmo mito, e,
assim, a manipulao mgica do mito agiria diretamente sobre a doena individual, pela
insero e nomeao da mesma no todo social: A cura consistiria em tornar pensvel o
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impensvel (...) O xam oferece a sua doente uma linguagem na qual se podem exprimir
estados no formulados de outro modo informulveis (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 228).
E ainda:
A cura xamnica se situa a meio caminho entre nossa medicina orgnica e teraputicas psicolgicas como a psicanlise. Sua originalidade provm de que ela aplica a uma perturbao orgnica um mtodo bem prximo dessas ltimas (...) Em ambos os casos, prope-se conduzir conscincia conflitos e resistncias at ento conservados inconscientes (...) (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 228).
A doena, segundo Lvi-Strauss (1949), seria uma situao em que o indivduo doente
se encontra acometido de um mal-estar sem-nome e a manipulao dos smbolos religiosos
garante que o estado doente provocado por esse desconhecido, que afeta o indivduo, possa
ser compreendido e significado, resultando na recuperao da sade do mesmo. A este
processo Lvi-Strauss (1949) chamou de eficcia simblica:
A eficcia simblica consistiria precisamente nesta propriedade indutora que possuiriam, umas em relao s outras, estruturas formalmente homlogas, que se podem edificar, com materiais diferentes, nos diferentes nveis do vivente: processos orgnicos, psiquismo inconsciente, pensamento refletido (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 233).
A cura de doenas seria uma operao simblica pela qual a linguagem mtica que une
xam e doente incide no corpo e promove a remisso dos sintomas pela atribuio de um
significado mtico mesma. Esta operao simblica, Lvi-Strauss (1949) aproximou-a do
tratamento psicanaltico. Ao conjunto das estruturas formais, que compem o universo mtico,
Levi-Strauss (1949) denominou funo simblica, que seria anloga ao inconsciente
psicanaltico. A funo simblica seria um rgo de funo especfica. Ela se limitaria a
impor leis estruturais que esgotam sua realidade, a elementos inarticulados que provm de
outra parte; pulses, emoes, representaes, recordaes (LEVI-STRAUSS, 1949, p. 235).
Sendo assim, a teraputica, tanto a do psicanalista como a do xam, teriam uma
similaridade, por operarem com esta funo simblica (inconsciente), pela manipulao de
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smbolos, que re-organiza no plano simblico (marcado pela transferncia no caso do
psicanalista) a desestruturao de um indivduo, que em suma seria uma desorganizao pela
falta do smbolo. A diferena entre a cura psicanaltica e a cura xamnica que nesta o mito
organizador remete ao mito coletivo; j na primeira, o mito individual, relacionado com a
histria do individuo.
Taussig (1993), em seus estudos sobre as comunidades indgenas do Potumayo
(Colmbia), reconhece tambm a cura como um processo de eficcia simblica, tal como
definido por Lvi-Strauss (1949), mas tambm faz uma explorao sobre o imaginrio da
populao e defende a tese de que a doena da qual um indivduo acometido carrega as
marcas histricas do conflito pelas terras. Para ele a histria da regio do Potumayo aparece
inscrita nos sintomas individuais e a luta pela cura marca a relao do indivduo com todo o
contexto.
Para Taussig (1993) a doena individual atravessada pelo social, e aquilo que seria
da ordem individual, na verdade, formada por tenses sociais, remanescentes do contexto
scio-histrico e fundamentais para a formao da identidade local. A doena no um
evento referente somente ao indivduo doente, mas ela representa processos histricos que
se manifestam em sintomas corporais e no imaginrio popular. Tem-se assim em Taussig
(1993) a tese de que o social impera at nas mais profundas camadas do psiquismo, que
seriam as produes do imaginrio.
Crapanzanno (2000) em seus estudos etnopsiquitricos sobre uma confraria religiosa
marroquina, os Hamadcha, afirma que a cura religiosa est estruturada dentro de
concepes de homem socialmente determinadas e o diagnstico de um indivduo como
doente ou saudvel indica sua posio social, sua referncia dentro da comunidade.
Tanto em Lvi-Strauss (1949), como em Taussig (1993) e em Crapanzanno (2000), a
questo entre indivduo e sociedade est presente, na forma como cada autor a apresenta; por
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estudos etnolgicos, ou etnopsiquitricos. Alm de apresentarem suas nuances na
compreenso deste tema. O que importa em nossa pesquisa justamente que a compreenso
acerca da cura envolve tambm a compreenso acerca da cosmologia de uma determinada
comunidade, o que inclui uma prpria viso de homem. A concepo sobre a doena, a cura,
o estar doente e o estar saudvel esto relacionadas a toda estruturao social.
Abordando o tema da cura em um terreiro de umbanda, meu intuito compreender
como as prticas rituais enunciam o reconhecimento do doente, ou consulente, no mbito da
sua singularidade. Como aquilo que seria da ordem do particular, do consulente, recebe
significados e interpretado pela comunidade? Esta a pergunta que foi explorada.
No foi objetivo da pesquisa descrever as concepes umbandistas de sade e doena
ou constatar se h ou no a remisso de sintomas e nem fazer caracterizaes sobre a
causalidade e natureza de enfermidades; se estas so de origem orgnica, psicolgica,
psicossomtica, etc. O interesse foi investigar os sentidos que emergem nas prticas de cura,
seja por parte dos doentes, ou dos curadores considerados como sujeitos, na posio daquele
que enuncia valores, opinies, juzos, utilizando as estruturas simblicas de um determinado
contexto. Analisando como o doente e sua doena so compreendidos pela comunidade,
minha ateno se dirigiu aos sentidos que se formam na articulao entre os enunciados
singulares (as queixas, os sintomas) e suas repercusses no coletivo do terreiro.
1.3 O sujeito e o ritual
Birman (1985) discute a problemtica do uso de conceitos psicolgicos na pesquisa
sobre a umbanda, tomando como referncia o fenmeno de possesso. Para a autora, a
possesso por espritos mostra como a umbanda possui uma representao de ser humano que
contrasta com concepes dominantes oriundas das religies e cincias ocidentais:
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No h como evitar o sentimento de estranheza frente a um ritual de possesso, assistindo impassvel ao momento em que uma pessoa vira outra, contradizendo a si mesma numa radical incompatibilidade com o seu comportamento normal (...) No so poucos os argumentos que foram produzidos na nossa cultura no intuito de combater essas representaes da pessoa humana colocadas pela possesso (BIRMAN, 1985, p.9).
Birman (1985) se refere caracterizao e classificao do transe de possesso luz
das concepes crists e posteriormente psiquitricas empregadas para a explicao do
fenmeno. Segundo a autora, aceitar a possesso era algo incompatvel com os ideais cristos.
Logo, o transe de possesso foi visto como algo malfico e repulsivo tratado como caso de
exorcismo (BIRMAN, 1985). Pela psiquiatria, o indivduo2 possudo era tratado em termos de
sade, de normalidade e anormalidade. Para Birman (1985) o discurso da psiquiatria tem
como referncia a noo de um ego saudvel e a pessoa era tratada a partir de seu eu, de
sua forma de se expressar em relao a si e aos outros. Segundo a autora:
A psicologia do ego coloca o indivduo sob o controle absoluto da sua conscincia, o que garantiria uma harmonia com a realidade sua volta e uma coerncia e fidelidade a si mesmo. Tomando tal parmetro como critrio de verdade, a possesso s pode ser vista como uma quebra desse pilar de sustentao do sujeito que a conscincia O indivduo em transe sofre uma perda de conscincia e, alm disso, apresenta um quadro de alterao do comportamento rapidamente identificado pela psiquiatria como doena mental (BIRMAN, 1985 p. 20).
Em contrapartida:
Para os umbandistas cada qual possui naturalmente muitas faces, j que a sua pessoa, por destino, sujeita a espritos diversos, que a escolheram como cavalo. Encontramos a na religio um princpio diverso que orienta a viso do mesmo fenmeno: ao invs do indivduo centrado nele mesmo, tendo sua conscincia como fulcro de sua pessoa, ele integrado num sistema mais global, objeto da ao de foras diversas que podem se chamar Xang, Ians, preto-velho e outros mais (BIRMAN, 1985 p. 21).
2 Por fazermos referncia individualidade utilizando os termos pessoa tal como conceituada pela antropologia francesa e sujeito tal como feito em psicanlise, o termo indivduo ser em nossa pesquisa utilizado para nos referirmos aos consulentes, ou o sujeito tomado concretamente, o doente, o umbandista que freqenta o culto, etc.
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Montero (1985) tambm faz colocaes deste tipo, que ressaltam a questo do
reconhecimento da especfica concepo de pessoa da na umbanda:
Desenvolver a mediunidade aprender a reconhecer e aceitar aspectos mltiplos e muitas vezes contraditrios, da estrutura psicolgica de cada um. E isto porque, ao mesmo tempo em que habitam o campo astral, constituindo o mundo divino, os guias existem dentro de ns, constituindo parte de nossa estrutura ntima: todo indivduo tem e ao mesmo tempo seu caboclo, seu preto-velho, sua criana e seu exu (MONTERO, 1985 p. 150).
Na umbanda a pessoa reconhecida como mltipla, no-atomizada. O fenmeno
de possesso, a mediunidade, a cura, todos estes elementos que participam e estruturam o
culto umbandista so sustentados por esta concepo de singularidade que ao mesmo tempo
mltipla. Nas prticas de cura, especificamente, este reconhecimento da pessoa expresso
na relao que se estabelece entre consulentes e guias, na relao com o corpo e na insero
do consulente no universo simblico do ritual.
Pelas colocaes de Birman (1985) e de Montero (1985), um ponto importante para a
pesquisa psicolgica das religies africanas a necessidade de se levar em conta que nas
religies afro-brasileiras, como a umbanda, existe uma concepo prpria acerca da
individualidade humana. Como seria possvel investigar as prticas da umbanda, levando
em conta que para esta religio a pessoa humana no tratada, reduzida, ao indivduo
emprico, que tem como auto-referncia sua experincia egica, de ser um eu?
Por conta destas consideraes, julgo a psicanlise til para pesquisa social em
terreiros de umbanda. A concepo psicanaltica de sujeito e a forma como o indivduo
tratado na clnica psicanaltica fornecem recursos teis para a pesquisa social nestes
contextos, em que existe o desafio de se categorizar e criar representaes a respeito da
pessoa humana levando em conta as concepes prprias do campo.
Autores como Bastide (1974), Bairro (2001) e Mantovani e Bairro (2004, 2005)
propem a utilizao da psicanlise como recurso de investigao social por via da
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interdisciplinaridade, pela aproximao de concepes antropolgicas e psicanalticas acerca
dos conceitos de pessoa e sujeito e pela possibilidade de uso da tica prpria da clnica
psicanaltica como recurso para a investigao social.
Bastide (1974), que um autor cuja obra sempre faz referncias e debate com as
teorias psicolgicas, encontra na interdisciplinaridade um recurso frtil para a pesquisa social.
Comentando os debates e aproximaes entre psicanalistas e cientistas sociais, afirma que o
encontro destas disciplinas foi bastante frtil, mas marcado por dificuldades epistemolgicas
que impediam muitas vezes de se formar um discurso comum. Diz o autor: (...) no h
psicanlise possvel sem um prvio conhecimento dos meios sociais. E vice-versa: a
psicanlise fornece sociologia uma contribuio extremamente importante, constituindo a
segunda aba de um dptico (BASTIDE, 1974 p.276).
Todavia, pela prtica clnica da psicanlise que Bastide (1974) reconhece esta como
um recurso para a pesquisa social, por ela tratar o homem enquanto fenmeno total. Ao invs
de promover recortes cientficos que reduzem o fenmeno a partes, o psicanalista, com seu
mtodo clnico, trata a pessoa em sua totalidade, reconhecendo nos sintomas, supostamente
isolados, uma linguagem que compe um todo:
Ao nosso ver a contribuio da psicanlise sociologia clnica extremamente geral, e vlida mesmo fora do mbito do patolgico puro, a saber; pouco importa que os fatos sociais sejam normais ou mrbidos: eles falam; o socilogo deve aplicar-se antes de tudo a ouvi-los exatamente como o mdico ouve a linguagem do corpo; contudo essa linguagem dos fatos sociais, cujas leis gramaticais o socilogo pretende descobrir, pode deixar de ser compreendida; o que acontece, por exemplo, com o doente que prope ao mdico um pseudo-sentido para esta linguagem, pelo fato de estar impregnado de subjetividade, de uma subjetividade de ser-atolado-na-doena. O mtodo clnico prope uma tcnica cientfica para sair do sentido subjetivo, que o manifesto e passar para o objetivo que o oculto (BASTIDE, 1974 p.211).
Bastide (1974) se refere ao objeto de estudo da psicanlise que o inconsciente, que
abarca os sentidos ocultos alm do manifesto, o que falado pelo analisando e no qual o
psicanalista reconhece uma linguagem que permite um acesso ao seu objeto de investigao.
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Esta particularidade da psicanlise , segundo o socilogo, uma contribuio til ao estudo
social, pois fornece um modelo de pesquisa, baseado numa forma de escuta receptiva ao
fenmeno em sua forma de expresso, em sua linguagem, sem fragment-lo em partes, ou
dividi-lo em elementos menores, categorizados, por exemplo, como fatores sociais,
biolgicos, ou psicolgicos. uma crtica que Bastide (1974) faz aos mtodos quantitativos
que tomam aspectos isoladamente e a partir de partes generalizam para o todo.
O mtodo psicanaltico seria uma forma de escuta objetiva daquilo que subjetivo, ou
seja, que se refere a um sujeito falante, como uma pessoa doente que fala utilizando o termo
do autor, um ser-atolado-na-doena. Isso seria uma forma de lidar com o fenmeno total.
Como diz o autor, o mtodo clnico proposto por Freud, pelo contrrio um mtodo
holstico. Aproxima-se do marxismo que insiste na noo de totalidades e da Antropologia
de Marcel Mauss, que o estudo dos fatos sociais totais (BASTIDE, 1974, p.212).
Esta aproximao da psicanlise com a antropologia pelo estudo da noo
antropolgica de pessoa de Mauss (2003), tambm apresentada em Mantovani e Bairro
(2004) em um estudo sobre a noo de drama. Segundo os autores, a concepo
antropolgica de pessoa, tal como apresentada por Mauss (1950/2003), estaria prxima da
forma como a psicanlise aborda o sujeito, pelo fato de que em antropologia a pessoa, a
referncia ao ser humano singular, no mbito da personalidade ou da subjetividade, no
estaria reduzida experincia consciente do eu. Como diz Mauss:
Trata-se de nada menos que de vos explicar como uma das categorias do esprito humano uma dessas idias que acreditamos inatas lentamente surgiu e cresceu ao longo dos sculos e atravs de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela ainda , mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa e passvel de maior elaborao. a idia de pessoa, a idia doEu". (MAUSS, 1950, p. 369).
Para Mauss (1950) a noo de pessoa humana seria uma aquisio. A referncia ao
homem enquanto sujeito a quem podem ser atribudos juzos morais sobre suas aes, ser
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reconhecida sua liberdade, sua identidade, social e finalmente o reconhecimento da pessoa
ligado a uma noo de eu consciente seria fruto de uma evoluo histrica.
A noo de pessoa seria relativa para cada cultura e o reconhecimento do homem
no domnio do individual, estaria relacionado a toda a estruturao social, como um fato
social total (MAUSS, 1950).
Diz Mauss:
Uma coisa pode vos indicar a tendncia de minha demonstrao; que vos mostrarei o quanto recente a palavra filosfica Eu, como so recentes a categoria do Eu, o culto ao Eu (sua aberrao) e o respeito ao Eu em particular, ao dos outros (sua norma) (MAUSS 1950, p. 371).
Mauss (1950) no considera a centralizao e o reconhecimento da pessoa vinculada
a algum processo psicolgico, como o eu consciente como algo natural do homem.
Equacionar o sujeito humano, a singularidade ao eu uma atitude prpria de alguma poca,
de um contexto que valoriza a conscincia e que reconhece a pessoa humana como o eu
consciente. Mas a pessoa no um fato natural e genrico para qualquer contexto. A
referncia ao singular , antes de tudo, um produto, evolutivo de um processo histrico.
Em psicanlise o sujeito tambm no redutvel ao eu. Com a descoberta do
inconsciente, marca-se um tratamento da singularidade humana em que a conscincia perde o
lugar dominante, contrariando a tradio filosfica moderna iniciada por Descartes: Para
muitas pessoas que foram educadas na filosofia, a idia de algo psquico que no seja tambm
consciente to inconcebvel que lhes parece absurda e refutvel simplesmente pela lgica
(FREUD, 1923, p.12).
Mantovani e Bairro (2004) ainda apresentam contribuies de autores como Lacan,
(1966/1998) que garantem uma maior aproximao a esta forma de tratar o sujeito humano,
atrelando-o ao contexto social.
Assim como Bastide (1974) reconheceu na prtica clnica da psicanlise um recurso
para a pesquisa social, Mantovani e Bairro (2005) tambm apresentam a possibilidade de se
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derivar recursos da clnica psicanaltica para a investigao social. A contribuio principal
seria a atitude tica que a psicanlise sustenta no reconhecimento do fenmeno psicolgico
como sempre relativo a um sujeito que atribui significados quilo que se expressa:
A prtica do psicanalista que se ocupa em observar as aes do sujeito e o entendimento deste frente a suas prprias questes diverge da prtica psicanaltica entendida como um instrumento de decodificao psicolgica e assume uma postura tica interessada em reconhecer o sujeito nos atos que enunciam o seu dizer. O sujeito comporta um saber e neste saber que residem os significados ocultos, e no na cabea do analista. (MANTOVANI e BAIRRO, 2005).
Essa tica apresentada em Mantovani e Bairro (2005) como potencialmente til para
a pesquisa afro-brasileira estaria prxima da proposta fenomenolgica de Augras (1995), por
respeitar a realidade dos praticantes da religio.
Logo, o psicanalista pode entrar no terreiro como um pesquisador que possui uma viso de mundo distinta dos religiosos, mas que, no momento de colher seus dados, retira-se da posio do saber para ouvir as produes culturais como predicados que remetem a significados comunitrios que passam desapercebidos, mas no so tratados como representaes de uma realidade psquica, e sim como formas discursivas locais, portadoras de sentidos (MANTOVANI e BAIRRO, 2005).
Minha proposta com esta pesquisa foi utilizar, na pesquisa de campo, um mtodo
estruturado de modo similar ao da prtica clnica da psicanlise e inspirado na concepo de
interpretao tal como apresentada em Lacan (1966/1998) e como comentam Mantovani e
Bairro (2005).
A interpretao em psicanlise, tal como feita no setting clnico, no um ato de
atribuio de significados psicolgicos a contedos discursivos proferidos pelo analisando,
mas sim uma investigao de atos do sujeito que mostram efeitos de sentidos implcitos,
enunciados nas estruturas discursivas pelas quais o sujeito se mostra. Como diz Lacan, sobre a
prtica analtica:
Trata-se de uma escanso de estruturas em que para o sujeito, a verdade se transmuta, e que no tocam apenas em sua compreenso das coisas, mas em
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sua prpria posio como sujeito da qual seus objetos so funo. Isto o conceito da exposio idntico ao do progresso do sujeito, isto , da realidade da anlise (LACAN, 1998, p.217).
A prtica psicanaltica proporciona, ao analisando, se posicionar frente aos diversos
sentidos que emergem de sua fala e remetem a algo que enunciado nas entrelinhas do
discurso, como estranho, porm que toca profundamente o falante. A interpretao serve para
elucidar estes sentidos em que o sujeito de imediato no se reconhece, que lhe chegam como
que pronunciados por outro. Cabe ao psicanalista promover condies para que o
analisando fale e por meio das suas prprias narrativas possa reconhecer esses sentidos
implcitos e identificar-se a quem os enuncia, como afirma o casal Ortigues (1989): A
finalidade da anlise chegar a perceber o tipo de problema que o indivduo se coloca e a sua
maneira de tentar resolv-lo (p. 16).
Cabe ao psicanalista proporcionar condies para que o analisando fale, mas no sua
tarefa atribuir um significado ao contedo da fala do analisando e sim deixar que este faa
suas livres-associaes e se posicione frente ao que diz. O significado ser dado pelo prprio
analisando. Como diz Bairro:
A (boa) interpretao no outra coisa. Longe de uma arbitrria atribuio de sentido, mais ou menos dependente da capacidade mntica de um psico-advinho, lacanianamente concebida a interpretao consiste na escuta de sentidos implcitos, cujo depoimento mapeia situaes de estar sujeito (Bairro, 2004, p. 78).
Por esta possibilidade de escuta do sujeito que recupera um sentido dado por sua
prpria fala, a concepo psicanaltica de interpretao pode ser til em pesquisa social.
Longe de procurar atribuir significados a dizeres alheios, possibilita uma escuta e recuperao
de dizeres remetentes quela comunidade falante.
Sendo assim, possvel ingressar em um terreiro e investigar os vrios sentidos
expressos no ritual pelo posicionamento dos sujeitos frente aos fenmenos ali expressos,
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enunciados sob formas discursivas em cadeias simblicas (significantes) estruturadas pela
linguagem da prpria comunidade.
Como escrevem Mantovani e Bairro (2005):
Perde-se de vista a interpretao do ritual centrada em aspectos psicolgicos dos indivduos e se parte para a escuta da produo simblica coletiva. O psicanalista, em um terreiro, poderia ouvir as produes discursivas da ao de pessoas concretas atentando para aquilo que estaria alm do discurso individual, construdo pelas cadeias simblicas referentes a uma cultura especfica, sendo que o espao em que este sujeito se encontra o prprio espao ritual, no qual a linguagem do culto se expressa. (MANTOVANI e BAIRRO, 2005).
Com base nesta tica psicanaltica escolhi investigar certas prticas de cura da
umbanda que constituem um campo rico para o estudo psicolgico e social. Da mesma forma
que o psicanalista no se dispe a atribuir significados aos dizeres do analisando, mas sim se
dispe a ouvir os sentidos que emergem nestes dizeres como referentes a um sujeito do
inconsciente, nesta pesquisa de campo me detive a assumir este lugar de escuta, para assim
investigar os possveis sentidos enunciados em tais prticas.
1.4 Sujeito e Performance
Minhas consideraes acerca da cura podem ser classificadas como um estudo da
performance. Partindo das contribuies de Certeau (1994), sobre o estudo histrico do
sujeito e das concepes lacanianas sobre a escuta psicanaltica, desenvolvi uma anlise das
prticas de cura pelo vrtice da enunciao. As prticas de cura da umbanda foram tratadas
como construes sociais elaboradas e estruturadas dentro de um cdigo e linguagem prpria
de uma comunidade.
Partindo das contribuies tericas de Chomsky (Certeau, 1994) sobre a dicotomia
lingstica entre competncia e performance, Certeau (1994) defende que o estudo da cultura
popular deve aproximar a pesquisa cientfica do que ele conceitua como artes de fazer, o
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cotidiano e suas prticas, como ler, cozinhar e habitar, que em si so construes que
combinam a linguagem proveniente das culturas dominantes, com a inventividade das
culturas populares.
A teoria da dualidade lingstica elaborada por Chomsky (apud, CERTEAU, 1994)
caracteriza as relaes entre lngua e linguagem. A competncia se situa no plano da lngua
e est relacionada ao cdigo de um idioma e suas regras. A performance estaria no plano da
linguagem e caracterizada pelo uso da lngua pelos falantes e pelas variaes que esta pode
adquirir, de modo que a linguagem diferencia-se da lngua. na performance que surgem
as diversas formas de linguagem cotidiana, os erros de linguagem, construes como grias
etc. Para Certeau (1994) o estudo da cultura popular deve se situar num plano de performance.
Privilegiando-se o ato de falar possvel investigar como uma cultura popular faz uso da
lngua proveniente de uma cultura dominante e assim constri sua marca de diferena. Como
exemplo, o autor evoca a dominao colonial, em que elites produziram e impuseram cdigos
lingsticos frente a uma populao dominada, os indgenas, que por sua vez, em seus rituais,
promoviam uma subverso, mantendo suas tradies justapostas aos elementos da cultura
dominante.
A perspectiva da performance preconiza que se privilegie a manipulao e o consumo
de um cdigo pelos seus usurios. Logo, perde-se de vista o estudo das representaes que
uma cultura faz sobre outra para se privilegiar a investigao acerca da apropriao e uso dos
elementos criados pelas culturas dominantes, por daqueles que costumam-se chamar de
dominados:
A presena e a circulao de uma representao no indicam de modo algum o que ela para seus usurios. ainda necessrio analisar sua manipulao pelos praticantes que no a fabricam (CERTEAU, 1994, p. 40).
Em conseqncia deste posicionamento, Certeau (1994) afirma que as culturas
populares formulam artes de fazer, (...) forma-se um lxico prprio do cotidiano,
incompreensvel. Combina-se o material com a inventividade (p. 46). Assim o ato de falar, a
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enunciao, adquire para Certeau (1994) maior importncia (para a pesquisa da cultura
popular) que os enunciados, que estariam no plano das representaes, dos significados. Mais
importante que saber o que se fala, saber que se fala; que h uma produo discursiva
prpria que emerge daqueles que supostamente so consumidores. Em decorrncia disto, a
cultura popular, que ora poderia ser vista como receptora da cultura dominante, adquire forma
de produtora; e isto se revela para Certeau (1994) nas prticas habituais do cotidiano, como
ler, habitar e cozinhar.
Certeau (1994) faz uma crtica s produes cientficas que tomam como referncia o
atomismo social, cujo pressuposto que o indivduo uma unidade elementar. Para Certeau
(1994) cada individualidade um lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas
vezes contraditria) de suas relaes relacionais (CERTEAU, 1994, p. 37).
Da noo de um indivduo, o homem passa a ser sujeito, e, portanto autor. De um
simples consumidor, passa a ocupar a posio de autor. Pelas produes deste sujeito, tem-se
acesso a diversas camadas da histria. Este o ponto que interessa ao estudo da performance,
pois se enfoca assim a produo do sujeito; entra-se no plano da individualidade (no sentido
da singularidade do homem), para se conhecer o social e vice-versa, uma vez que o social
quem determina a posio deste sujeito.
Nesta pesquisa, as prticas de cura foram tratadas dessa forma; como prticas
cotidianas de uma comunidade religiosa, e os fenmenos que ali se apresentam so
interpretados no nvel da performance, como atos de fala produzidos por sujeitos. As prticas
de cura so tratadas como fazeres cotidianos (Certeau, 1994) de sujeitos que se inscrevem
no social por produes de sua autoria. A aposta em aplicar a escuta psicanaltica no
contexto do terreiro, foi justamente realizar a aproximao entre o pesquisador e os
praticantes da umbanda.
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Em psicanlise o que se enfoca so as produes discursivas de sujeitos falantes,
tomadas no mbito da enunciao. Como foi mencionei, o psicanalista no se dispe a
adivinhar ou atribuir significados acerca da realidade da fala de seu analisando; ao
contrrio, sua ateno se dirige fala enquanto ao.
pelos atos que se tem noo da localizao do sujeito. porque o sujeito se expressa
por meios verbais e no-verbais que se conhecem os sentidos que denotam o inconsciente.
Dessa mesma forma, considerei o ritual pelo ponto de vista da ao. Minha ateno se voltou
para as prticas de cura enquanto performance, para a ao ritual composta por elementos
culturais que ganham formas de expresso variadas pelos agentes do culto, na forma de dana,
msica, gestos, hbitos e regras de comportamento.
1.5 A cura na umbanda
A umbanda uma religio brasileira surgida no Rio de Janeiro durante a dcada de 20
pela confluncia de elementos religiosos do catolicismo, kardecismo e candombl,
sincretizando as vrias influncias culturais que contriburam para a formao do povo
brasileiro: a cultura europia, africana e indgena.
Muitas pessoas se aproximam dos cultos umbandistas procurando assistncia espiritual
e auxlio para a resoluo de queixas. Como parte da rotina dos cultos de umbanda, os
terreiros oferecem servios de cura caractersticos de suas atividades religiosas. Bairro e
Leme (2003) afirmam que o termo umbanda servia na cultura banto para designar aquele que
curava, o curandeiro cuja funo era tratar dos males da comunidade seguindo os
conhecimentos de sua tradio.
Como herana destas prticas que remetem s origens africanas, bem como acrescidas
das influncias do candombl, do catolicismo popular e do kardecismo, as prticas de cura
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tm um lugar significativo nos rituais umbandistas, pois justamente o momento em que os
freqentadores tm a chance de serem atendidos em seus problemas particulares. Dentre as
queixas que trazem esto problemas financeiros, questes de sade, situaes de conflito
interpessoal e emocional.
Pesquisadores como Brumana e Martinez (1991), Carvalho (1995), Loyola (1984),
Magnani (1980), Montero (1985) e Nascimento (1999) descrevem estas prticas de cura
caractersticas da umbanda e ressaltam a importncia que o tratamento espiritual adquire para
os umbandistas e para a comunidade de terreiros.
A umbanda uma religio que cr na reencarnao e na diviso entre o mundo
material do cotidiano dos praticantes e o mundo espiritual terra mtica de Aruanda - onde
residem os espritos elevados. O culto um momento de contato e interao entre homens e
espritos j desencarnados que pelo transe medinico incorporam em um mdium -praticante
que possui o dom de receber tais espritos. Estes so classificados e reconhecidos dentro de
um panteo caracterstico da umbanda, composto por orixs, que so espritos referentes s
divindades africanas, representantes das foras da natureza, como o fogo, o vento, a gua, o
metal; e espritos desencarnados, como os pretos-velhos, caboclos, baianos, boiadeiros,
crianas, pombas-giras e exus. Estes ltimos so alusivos a personagens marcantes da histria
e do povo brasileiro. Segundo Birman (1985) os guias representam tipos brasileiros, como
os pretos-velhos, que seriam os escravos negros de outrora, ou os caboclos, que seriam os
descendentes indgenas; alm de outras figuras populares, como ciganos, malandros etc.
Toda a estruturao das prticas umbandistas segue esta viso cosmolgica e o
desempenho da cura quase sempre fica por responsabilidade de espritos incorporados,
chamados de guias, de alto desenvolvimento moral e espiritual, que propagam benefcios
aos praticantes pelo ideal de promover a caridade, a ajuda ao prximo. Brumana e Martinez
(1991), Montero (1985) e Magnani (1980) descrevem prticas como o passe, a benzeo,
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a desobssesso que so procedimentos curativos desempenhados na proximidade entre o
consulente (o indivduo que traz a queixa) e o agente da cura, que pode ser tanto um esprito
ou um chefe-de-culto.
Na descrio dos procedimentos que se estabelecem entre guias e consulentes,
surgem situaes que sugerem explicaes psicolgicas sobre a cura. Isso descrito em
pesquisas e trabalhos de autores que apresentam teses e reflexes sobre o tratamento
espiritual, apontando para uma caracterizao da eficcia teraputica que poderia ser
compreendida por explicaes de cunho psicolgico.
Pode-se exemplificar por uma citao de Nascimento (1997):
O que pude observar que o ritual da consulta faz com que se estabelea entre pai-de-santo e o doente uma integrao psquica e a penetrao do pai-de-santo na mente do doente. Nas consultas para se saber sobre o seu problema (sade, trabalho, afetivo, empreendimento, dentre outros), ao indagar o consulente, j tem a resposta no seu inconsciente (NASCIMENTO, 1997, p. 278).
Tais explicaes so tentativas de descrever e explicar a eficcia do tratamento
espiritual umbandista a partir de consideraes cientficas. Montero (1985) caracteriza este
tipo de explicao como algo polmico, mas em suas descries sobre a cura umbandista
tambm utiliza terminologias psicolgicas para caracterizar a ao curativa.
Diz Montero (1985, p. 154): tudo se passa como se os smbolos religiosos
oferecessem uma srie de mecanismos de defesa, socialmente sancionados e psicologicamente
apropriados que lhe permitem compreender seus conflitos idiossincrticos .
Desta forma v-se que o estudo da cura umbandista constitui um campo atrativo para a
pesquisa tanto social como psicolgica, pois permite enfocar o ser humano nestes dois
aspectos de investigao. Contudo, utilizar explicaes psicolgicas para fenmenos sociais
no um procedimento simples e pode acabar por propagar os riscos reducionistas que
marcaram o uso das teorias psicolgicas no mbito do social.
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Por conta desta dificuldade em se fazerem estudos que levem em conta a
complexidade do ritual umbandista na pesquisa social sobre tais prticas de cura, as
explicaes psicolgicas ficam, ora pairando como hipteses, mas sempre de forma lateral,
sem constituir-se como foco central de investigao isso no caso de Magnani (1980),
Montero (1985) ou Nascimento (1999) , ou como tradues psicolgicas do ritual como
no caso de Rodrigues (1900, apud GOLDMAN, 1984), Ramos (1934) e La Porta (1979) ,
que descreve o ritual em termos de representaes psquicas, o que no fim das contas, como
discutem Mantovani e Bairro (2005), acaba por criar uma lacuna entre a realidade dos
praticantes e as explicaes cientficas.
Dessa forma, apesar das prticas umbandistas de cura (bem como outros aspectos do
ritual) constiturem um campo de investigao em que as teorias psicolgicas poderiam
contribuir para a investigao, necessrio desenvolverem-se pesquisas baseadas em
referenciais tericos e metodolgicos que possibilitem o aprofundamento e a compreenso
destas prticas rituais, levando em conta como aquilo que seria relativo ao psicolgico estaria
atrelado ao social e vice-versa.
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2 METODOLOGIA
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2.1 Sobre o mtodo
Esta pesquisa seguiu a metodologia das chamadas pesquisas qualitativas que se
caracterizam, segundo Bogdan e Biklen (1997), por formas de investigao que aproximam
pesquisador e pesquisado e utilizam estratgias de coleta que levam em conta a
contextualizao dos dados, como dizem os autores: Os dados recolhidos so designados por
qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, lugares,
conversas e de complexo tratamento estatstico (BOGDAN e BIKLEN, 1997 p. 16).
Um aspecto da pesquisa qualitativo ressaltado por Bogdan e Biklen (1997) a
insero do pesquisador em seu campo de estudos: a fonte direta de dados o ambiente do
campo no qual o pesquisador e sua experincia se tornam instrumento fundamental da
pesquisa. No caso do presente estudo o ambiente de investigao foi um terreiro de umbanda
da cidade de Ribeiro Preto, no qual me inseri como observador-participante.
Para tanto foi necessrio um procedimento prvio de contato com os colaboradores
para lhes fornecer explicaes sobre a pesquisa e tambm para investigar a viabilidade da
mesma. Estes contatos prvios tambm foram necessrios para se estabelecer um vnculo com
os colaboradores e para proporcionar um conhecimento mtuo. Para mim era necessrio saber
se o terreiro estaria disposto a colaborar com meus objetivos, e disso dependia a aceitao
deles para comigo.
A pesquisa foi se efetivando e vrias etapas do processo de coleta foram se
desenvolvendo a medida em que me inseria com mais profundidade no campo e os
colaboradores permitiam o acesso a determinados dados e a realizao de procedimentos de
registro como o uso de cmeras de vdeo digital, Hi 8 filmadoras durante o ritual.
Como dizem Bogdan e Biklen (1997), O processo de investigao qualitativa reflete
uma espcie de dilogos entre investigadores e respectivos sujeitos, dados estes no serem
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abordados por aqueles de forma neutra (BOGDAN e BIKLEN, 1997, p. 51). Logo, para o
estabelecimento deste dilogo necessrio para a obteno de dados, foi necessrio um
processo de aproximao que garantiu minha autorizao para pesquisar os rituais de cura,
bem como a aplicao dos procedimentos de coleta.
A principal estratgia de pesquisa foi observao-participante, pela qual pude
testemunhar os rituais de cura na umbanda, bem como ser submetido aos mesmos. Na
umbanda, muitos ensinamentos no so veiculados por explicaes conceituais. Se algum
quer saber de algo, muito freqentemente oferecem pessoa a chance de vivenciar seu objeto
de curiosidade. Para a realizao desta pesquisa, tive de me submeter ao ritual de cura, e desta
experincia surgiu o caminho de vinculao da pesquisa com o terreiro. A experincia pessoal
do pesquisador entrar como estudo de caso nos resultados desta pesquisa, e desde estas
primeiras experincias, foram registradas como notas de dirio de campo, das quais puderam-
se obter informaes sobre tais rituais.
Bogdan e Biklen (1997) enfatizam este procedimento de observao-participante
como fonte de obteno de dados, afirmando ser necessria uma interao entre pesquisador e
pesquisado que possibilite que estes ltimos se mostrem. Para tanto o pesquisador deve trat-
los como sujeitos que produzem sentidos sobre aquilo que executam. Dizem os autores: As
pessoas no agem com base em respostas pr-determinadas a objetos pr-definidos, mas sim
como animais simblicos que interpretam e definem, cujo comportamento s pode
compreendido pelo investigador que se introduza no processo de definio atravs de mtodos
como a observao-participante (BOGDAN e BIKLEN, 1997, p. 55).
Todos os procedimentos adotados para a pesquisa dependeram de minha insero
gradativa no ambiente do terreiro. A opo por trabalhar apenas com um terreiro se justifica
pelo tipo de investigao realizada e pelos objetivos. O contato com apenas um terreiro
facilitou a compreenso da lgica umbandista e da forma como o ritual de cura age sobre a
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pessoa singular. Isso devido ao alto nmero de observaes que pude realizar semanalmente,
o que permitiu uma compreenso global da cosmologia umbandista e da estruturao das
prticas de cura.
A umbanda, assim como outras religies, composta de uma srie de produes
simblicas, culturalmente estruturadas, e que so transmitidas por um cdigo especfico. Para
a compreenso deste cdigo no necessria a visita sistemtica a um nmero plural de
centros de umbanda, pois, apesar de existirem variaes entre terreiros, h certas estruturas
comuns que garantem uma coeso tradicional, a identidade umbandista. Da mesma forma que
o aprendizado de um idioma no requer o conhecimento de todas as formas como este idioma
se encontra difundido em diversas regies geogrficas, mas sim de um vocabulrio e de
operaes gramaticais e sintticas gerais da lngua, tambm o cdigo e a estrutura religiosa
podem ser aprendidos pela observao e insero em apenas um terreiro.
Sendo o intuito da pesquisa analisar o sujeito intrinsecamente ligado ao social e
cultura, possvel dizer que a generalizao dos conhecimentos desenvolvidos no estudo de
um nico terreiro pode ser vlida em termos do conhecimento da compreenso sobre a pessoa
singular relacionando as estruturas sociais e o sujeito, seguindo o contexto particular do
terreiro, e tambm a lgica que abrange a cultura umbandista como um todo. Apesar de
existirem diferenas quanto ao uso de terminologias entre terreiros de umbanda, e at da
existncia de nuances na organizao do culto, h certas invariantes como a possesso por
espritos, as divindades do panteo umbandista, a compreenso sobre vida e morte, presentes
nos mais diversos terreiros. Uma vez que o estudo de um ritual especfico, como o das
prticas de cura, envolve estas estruturas invariantes, pode-se considerar razovel que os
dados aqui obtidos mostraram-se seguindo uma ordem simblica geral da umbanda e a
compreenso sobre os sentidos destes rituais desempenhados em um nico terreiro pode
acrescer conhecimentos sobre a gramtica geral da umbanda.
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2.2 Participantes:
Para iniciar as explicaes sobre o local de pesquisa e o funcionamento do culto
necessrio descrever os colaboradores, pois foi atravs deles que obtive as informaes
necessrias sobre o terreiro.
Participaram desta pesquisa os dirigentes e alguns freqentadores da Tenda de
Umbanda do Pai Joaquim do Congo e Ogum Guerreiro. Os dirigentes do culto bem como
alguns mdiuns participantes assduos do culto sero identificados pelos nomes de tratamento
do terreiro, geralmente o primeiro nome, ou alguma abreviao. Em relao aos entrevistados,
seus nomes foram mantidos em sigilo, conforme acordo firmado com assinatura em termo de
consentimento.
A opo por divulgar os nomes verdadeiros do terreiro bem como de seus dirigentes
foi de comum acordo com os colaboradores. Estes reconheceram que divulgar o nome do
terreiro e principalmente da me-de-santo seria adequado para definir o local onde a pesquisa
foi realizada, e os ensinamentos a mim conferidos. Na umbanda o nome tem um poder, bem
como as palavras, e a identificao uma marca religiosa. Os espritos-guias tm seus nomes
prprios e divulgam-no. A explicitao dos nomes e das referncias pessoais segue a lgica
religiosa da umbanda.
Ao firmar este acordo com os colaboradores obtive a seguinte informao de um dos
dirigentes do terreiro, Seu Aguinaldo que ser descrito identificado adiante: Quando um exu
vem aqui, ele diz o nome?, respondo que s quando lhe perguntado, Ento, se voc no
diz o nome as coisas ficam assim... Meio indefinidas. importante citar o nome do terreiro e
o dela (aponta para a me de santo).
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Logo, respeitando as leis e regras morais da umbanda e dos praticantes, utilizei o nome
prprio dos dirigentes. Dos entrevistados, a opo pelo sigilo se justifica pela exposio que
estes fizeram em entrevistas de aspectos muito particulares, e a divulgao de seus nomes no
teria necessidade especfica. A relao entre o nome e o terreiro mostra a afiliao das
pessoas. No que diz respeito aos dirigentes as relaes destes com a Tenda de Umbanda Pai
Joaquim do Congo e Ogum Guerreiro ficam bem estabelecidas com a identificao dos nomes
de referncia da comunidade. No divulguei seus nomes prprios como esto em seus
documentos de identidade, mas sim o nome utilizado no terreiro.
Seguem-se as referncias dos colaboradores:
Dona Antonia (Tonica): a dirigente principal do culto, chamada pelos praticantes de
madrinha. O termo me-de-santo utilizado na umbanda, mas o termo madrinha tambm de
uso constante, pois ela quem promove a filiao das pessoas ao terreiro, quem concede as
iniciaes aos mdiuns e dirige o culto.
Dona Tonica tem 77 anos e casada com Seu Aguinaldo. Pratica umbanda h mais de
50 anos. Seu primeiro contato com a religio ocorreu em um centro de umbanda de Ribeiro
Preto que hoje j no existe, o terreiro da me-de-santo Maria Abadia. Foi o primeiro terreiro
que Dona Tonica freqentou e onde, segundo ela, logo que entrou, quando comearam a
cantar os pontos, ela comeou a tremer e apresentar os sinais fsicos da incorporao. Apesar
de ter comeado com Maria Abadia, sua iniciao, na umbanda e no candombl, chamada de
feitura de cabea, se realizou com um pai-de-santo, Seu Jos Pretinho, amigo de Maria
Abadia, que tambm inaugurou um centro de umbanda. Como parte de sua iniciao
D.Tonica conta os detalhes da feitura de cabea, quando ficou durante quinze dias no ronc
(sala especfica para a iniciao dos mdiuns), somente rezando e entrando em contato com os
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guias. Aps este perodo foi concedida pelo seu pai-de-santo permisso para dirigir trabalhos
de umbanda. Desde ento vem realizando esta atividade, e faz questo de dizer que sua vida
sempre foi de dedicao aos orixs.
Como me-de-santo tem total autoridade, ela quem decide os dias de culto, os
trabalhos que precisam ser feitos em horrios fora da gira, bem como recebe os principais
guias da casa.
Seu Aguinaldo: Marido de Dona Tonica, seu Aguinaldo uma pessoa de destaque no
centro. Participa da organizao do terreiro, mas no mdium de incorporao. Est sempre
presente nos trabalhos e auxilia os freqentadores. Instrui e informa sobre como proceder e
as atitudes que se deve desempenhar no terreiro.
Existem formas de agir no terreiro, algumas formalidades que so caractersticos do
culto umbandista e necessitam serem respeitadas pelos participantes, sejam mdiuns ou no.
No se pode, por exemplo, cruzar as pernas ou os braos durante o culto. Dizem que este
gesto afasta os guias. A postura corporal muito importante na umbanda e as pessoas so
freqentemente avisadas disso. Seu Aguinaldo sempre est atento a este tipo de situao, com
vistas ao bom andamento do culto. Os gestos e palavras que uma pessoa usa podem ter efeitos
sobre o culto, de modo que os dirigentes esto sempre atentos para o modo como as pessoas
da assistncia se comportam. Nos rituais de cura ele quem conduz a seqncia do
tratamento, a entrevista com espritos obssessores e as condutas que devem ser seguidas.
Seu Aguinaldo muito procurado para dar conselhos; os freqentadores se dirigem ao
terreiro em horrios distintos da gira para conversar com ele.
Meire: Filha do casal ocupa um lugar central entre os mdiuns. Ela ocupa o posto de
Og e se responsabiliza por entoar os pontos cantados, as canes da umbanda em
homenagem aos guias.
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mdium de incorporao, recebe espritos de vrias linhas, mas com mais freqncia
de um caboclo da linha de Oxssi. As entidades que Meire recebe costumam diferenciar-se
das demais que so incorporadas na casa. Seu Aguinaldo justifica esta particularidade. Ele diz
que Meire foi iniciada no candombl e, portanto as entidades que incorpora so diferentes.
Tambm mdium vidente e como seu Aguinaldo bastante procurada para dar
conselhos. Durante o culto auxilia os consulente no momento do passe. Meire costuma
intermediar o dilogo entre o consulente e os guias quando aqueles no compreendem os
dizeres destes. Os guias usam expresses especficas, por exemplo, no incio do passe as
entidades da linha dos baianos costuma perguntar ao consulente: voc ta de vera?, que tem
o sentido de est tudo bem?. Muitos consulentes no conhecem estes termos do cdigo
umbandista, o que dificulta sua comunicao com os guias. Nessas ocasies Meire costuma
ficar prxima ao consulente e ao guia e assim facilitar a compreenso dos dizeres do
mesmo.
Outros mdiuns:
Tambm colaboraram para a pesquisa as mdiuns Marlu e Rose que freqentam
assiduamente o culto e recebem mediunicamente entidades, das quais obtive importantes
informaes dentre elas:
a) Marlu: a baiana Maria do Cerrado e o preto-velho Pai Benedito de Angola, guias
e a pomba-gira Sete Taas.
b) Rose: a baiana S Maria, a preta-velha Me Maria Conga e a pomba-gira Rosa
Maria da Praia.
Tambm tem-se como participante fundamental do culto o tocador de atabaque
(curimbeiro) Jeferson, que neto de Dona Tonica e de seu Aguinaldo e responsvel pelos
pontos tocados, a execuo rtmica do instrumento de percusso que compe o ritual.
Outros mdiuns sero identificados pelas iniciais. So mdiuns que no freqentam o terreiro
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assiduamente, mas quando o fazem incorporam espritos, como no caso da mdium L.H sobre
quem apresentarei um estudo de caso, e a mdium Dona D. que freqenta o terreiro somente
para desempenhar prticas de cura.
Alguns freqentadores que mantm estreitas relaes de amizade com os dirigentes, e
participam do culto assiduamente, assumem a funo de cambonos, que consiste em auxiliar
no culto, principalmente os guias, oferecendo-lhes cigarros (no caso dos espritos da linha
dos baianos, por exemplo), ou na entoao dos pontos cantados e fazendo oraes.
Os demais participantes do culto so os freqentadores que compe a assistncia:
aqueles que se dirigem ao terreiro para tomar passes e consultarem os guias. Nesta pesquisa
utilizarei o termo consulente para designar os indivduos da "assistncia", uma vez que se
dirigem ao terreiro para consultar os guias. A assistncia do terreiro do Pai Joaquim do
Congo e Ogum Guerreiro composta em sua maioria por indivduos que possuem um grau de
parentesco com os dirigentes, e moradores da vizinhana. Muitos so negros e de diversas
idades. Ao longo de minhas visitas aos terreiro pude estimar uma mdia de dez indivduos na
assistncia.
2.3 Local da pesquisa
O centro do Pai Joaquim do Congo funciona no mesmo terreno da casa da me de
santo. O terreno todo murado; para ter acesso ao terreiro necessrio entrar pelo porto
frontal da residncia, que fica destrancado nos dias de gira (segundas e sextas-feiras).
Ao entrar-se pelo porto, encontra-se direita de quem entra, na parte interna do
muro, uma vela branca ou vermelha acesa em homenagem ao guardio do porto, um exu, a
entidade do panteo umbandista que guarda a porta do terreiro e controla quem entra e sai
(no plano espiritual). Tambm h vasos com plantas utilizadas nos rituais, geralmente ervas
como arruda, guin, alfazema, manjerico. Seu Aguinaldo explica que a organizao do
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terreiro segue a organizao do mundo espiritual. Ele explica que para a umbanda, existem
os mundos da direita e da esquerda. A direita povoada pelos espritos de alta
luminosidade, os guias que evoluram espiritualmente por conta de seu carter moral. A
esquerda refere-se ao mundo dos espritos menos evoludos, so os eguns, os exus e pombas-
giras que so maias apegados ao mundo maaterial onde se encontram os homens.
Assim, a organizao espacial descreve a diviso entre estes dois mundos, da direita e
esquerda. A porta de entrada fica em uma parede lateral (para quem olha o terreiro de frente
da casa), e costuma ficar aberta durante toda a gira. direita de quem entra pela porta da
frente est localizado o cong, um altar onde esto dispostas imagens dos diversos santos.
uma construo de tijolos de aproximadamente 1,5m de altura; assemelha-se a uma bancada,
possui profundidade e as imagens so dispostas tanto sobre a bancada como embaixo dela. Na
parte de cima do cong h quatro prateleiras onde ficam os santos. So diversas imagens tanto
de santos catlicos como de orixs africanos, figuras de preto-velhos, baianos, caboclos,
boiadeiros e ciganos. Chamam ateno duas grandes imagens que ficam logo frente da
bancada, na prateleira mais baixa. So imagens de So Jernimo, sincreticamente
correspondente a Xang, o orix do fogo, o representante da justia. Esta imagem tem por
volta de 30 cm de altura, na qual So Jernimo est sentado ao lado de um leo. Em volta da
imagem foram penduradas duas guias (colar de contas), uma dourada e outra verde. Esta
imagem fica direita de quem observa de frente ao cong. Na outra extremidade tem-se a
imagem de uma ndia, uma cabocla flecheira, na postura similar ao movimento de atirar uma
flecha. um pouco menor que a esttua de So Jernimo, mas tambm se destaca pelo
tamanho e por servir de apoio, onde a madrinha pendura suas guias. Acima do cong, em uma
prateleira, fica a imagem de Jesus Cristo, no crucificado, de braos abertos estendidos como
caracterstico da umbanda. Nos terreiros de umbanda nunca presenciei a imagem do Cristo
crucificado.
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Abaixo da bancada tem-se uma espcie de tanque, um reservatrio para gua e uma
torneira, onde ficam as imagens do povo das guas, que so regidas pelos orixs Iemanj e
Oxum. Neste compartimento tem-se figuras de marinheiros, pescadores e sereias. Na gira
abre-se um pouco a torneira e o tanque fica com um pouco de gua. No s no cong existem
figuras de santo. Por todas as paredes temos imagens representando santos, bem como cenas
bblicas. H retratos de So Jorge, Santa Luzia, uma reproduo da Santa Ceia de Leonardo
da Vinci e um quadro de uma sereia (imagem referente linha das guas).
Continuando a descrio, no centro do terreiro, no piso, h uma lajota de forma
hexagonal, bem no centro da construo. o local onde a madrinha se situa durante a gira, e
onde se faz a diviso do local entre direita e esquerda.
esquerda de quem entra pela porta esto dois banheiros, um masculino e outro
feminino, dispostos em dois cantos. Para quem est dentro do terreiro, de frente ao cong, o
banheiro masculino fica direita e o feminino esquerda. Assim a diviso entre homens e
mulheres durante a gira. Os mdiuns homens ficam direita da me-de-santo e as mulheres
esquerda. Assim tambm para aqueles que assistem, os homens direita e as mulheres
esquerda. Com exceo da parede da frente onde se encontra o conga, nas paredes laterais e
dos fundos, encontram-se sofs e bancos de madeira onde os freqentadores (a chamada
assistncia) se sentam e observam o culto.
Em trs cantos da sala, bem como acima da porta, tem-se imagens de santos que
protegem os cantos. Acima da porta h a imagem de um cangaceiro, um copo com gua e
sal e alho pendurado. No canto esquerdo de quem entra h uma imagem da entidade chamada
de Z Pelintra, uma figura presente no panteo umbandista, que circula entre a esquerda e a
direita. No canto da extrema direita h a imagem de um caboclo e no canto adjacente uma
imagem de Nossa Senhora. Em um dos cantos no se encontra nenhuma imagem. Fui
informado que sempre deve-se deixar um lado sem nada para que as energias negativas
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corram para fora. Os cantos so cerceamentos destas energias, elas protegem tanto a entrada
como a sada dos fluxos, de modo que preciso deixar um canto aberto para que elas saiam.
O telhado feito de telhas do tipo eternite, sem laje, onde so penduradas, na parte
interna, umas sries de bandeirinhas em formas geomtricas, semelhantes s de festas de So
Joo. Estas bandeirinhas so feitas na cor branca e rosa e periodicamente so trocadas, na
ocasio da festa em homenagem a So Cosme e So Damio, que ocorre em setembro.
direita do cong temos um pequeno altar onde se dispem imagens de Ians e Oxum
e onde os mdiuns acendem velas. Tambm direita temos o trono de uma das entidades
principais da casa, Ogum Guerreiro, uma poltrona de estofado vermelho com uma estrela de
cinco pontas estampada. esquerda do cong ficam os atabaques, os instrumentos principais
do culto, e ao lado destes, na parede oposta de entrada tem-se outra porta que d acesso a
um corredor. Neste corredor pode-se acessar a residncia; nele tambm temos vasos com
plantas e por ele tambm se acessa o eboxo, um pequeno cmodo onde ficam esttuas de
entidades de esquerda, os exus e pombas-giras. Dentro do terreiro, na sala principal, no se
tem imagens destas entidades.
Na parede oposta entrada tambm h uma pequena lousa onde os dirigentes
escrevem algum recado sobre o funcionamento do culto. Tambm ficam pendurados o
certificado de licena concedido pela Federao Umbandista, que regula o funcionamento do
terreiro, e um extintor de incndio.
2.3.1 Objetos e utenslios do culto
Instrumentos musicais: Atabaques que so os tambores, instrumentos de percusso que
tocam ao longo do culto do comeo ao fim. Sua execuo fica sob responsabilidade de um
praticante especfico, o neto de Dona Tonica. O atabaque fica coberto enquanto no est
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sendo tocado; somente o curimbeiro pode descobri-lo e tocar. Alm do atabaque utiliza-se o
agog, instrumento de percusso feito de metal que tocado como um chocalho, um sino,
produzindo um som metlico e cintilante. Ele usado geralmente para ajudar os mdiuns que
esto com dificuldades de incorporao. A msica algo muito presente na umbanda. Dentro
da sala do terreiro h um aparelho de som e uma coleo de discos de vinil (LP), de samba-
enredo, e outras msicas populares, que para os umbandistas so rezas, so sagradas.
2.3.2 Objetos ritualsticos.
Quando as entidades so incorporadas, elas fazem uso de alguns objetos. Os pretos-
velhos tm bengalas e bancos especficos feitos de madeira. So baixos e utilizados somente
para os pretos-velhos se sentarem e quando h rituais de transporte. Tambm se tm flechas e
arcos, representando os caboclos, chapus de palha e de couro em referncia a baianos e
boiadeiros. Estes objetos ficam dispostos no canto direito ao cong ou alguns ficam
pendurados na parede, como por exemplo, o arco e flecha. Em frente ao cong ficam
dispostas duas garrafas com gua salgada e um lquido preparado com ervas na semana santa,
que utilizado como um purificador, para l