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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA A construção da "descanção" de Tom Zé Altaila Maria Alves Lemos Fortaleza-Ce 2006

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA

    A construo da "descano" de

    Tom Z

    Altaila Maria Alves Lemos

    Fortaleza-Ce

    2006

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  • 2

    ALTAILA MARIA ALVES LEMOS

    A CONSTRUO DA DESCANO DE TOM Z

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Lingstica da Universidade

    Federal do Cear, como requisito final para

    obteno do ttulo de Mestre em Lingstica.

    Orientador: Prof. Dr. Nelson Barros da Costa

    FORTALEZA

    2006

  • 3

    Esta dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica como

    parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de Mestre em Lingstica,

    outorgado pela Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos

    interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade.

    A citao de qualquer trecho da dissertao permitida, desde que seja feita de acordo

    com as normas cientficas.

    _____________________________________

    Altala Maria Alves Lemos

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Cear

    (Orientador)

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr.

    (1 Examinador)

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Universidade Federal do Cear

    (2 Examinador)

    _______________________________________________________________

    Prof Dr Universidade Federal do Cear

    (Suplente)

    Dissertao defendida e aprovada em ___/___/_____

  • 4

    Engrandecimentos

    Ao meu querido e sempre Andr, por me seduzir a escrever com vida,

    morando ao meu lado.

    Ao amigo e companheiro Talvanes, por confessarmos um ao outro nossos

    desassossegos em conversas harmoniosas e angustiantes ao telefone.

    Ao Nelson Costa, por ter sido delicado, compreensivo, amigo e orientador em

    vrios momentos desse percurso.

    Ao grupo Discurso, Cotidiano e Prticas Culturais, por propiciar a expanso de

    questes e pesquisas literodiscursivas.

    professora Bernadete Biasi, por no incio do curso ter me aceitado,

    distncia, como sua orientanda, embora eu no tenha continuado sob sua

    orientao.

    professora Mnica Cavalcante, por sua afetuosa ateno em momentos que

    esteve em risco o caminhar no mestrado.

    Ao carinhoso, amigo e professor Jlio Csar, por sua fora espiritual ao me

    incentivar e me ajudar no processo de seleo do Mestrado com o emprstimo

    de livros e com suas idias.

    Ao Washington, por nossas conversas sutis sobre Tom Z e sobre outras

    canes.

    professora e coordenadora Mrcia Nogueira, por sua postura serena ao lidar

    conosco e com as nossas pendncias no Programa e por nossas trocas de

    comentrios e empolgaes cinematogrficas.

    Aos sobrinhos meigos Diego, Juninho, Ingrid, Lia e Ayla, por expressarem o

    bonito desejo constante de viver.

    Ao meu outro sobrinho Renan Poeta, por perceber, antecipadamente uma das

    caractersticas da natureza humana ao afirmar que todas as pessoas so

    misturadas e que a viagem a vida da gente.

    s minhas irms Altair, Rosngela e ao irmo Ivanildo, pelas reais e

    saudveis divergncias existentes entre ns; e aos amigos primos Luis Alves e

    Mirian pela fora constante.

    minha Me Ozana, por sempre tentar me compreender e me acompanhar do

    seu modo.

  • 5

    amiga afetuosa Luanda, por seu sincero companheirismo e por sua fora em

    distribuir energia de ativao.

    E aos demais amigos (prximos e distantes) que foram sinceramente amigos

    em momentos sensveis desse percurso: Isabel Silvino, Felipe, Ana Cludia,

    Robrio Augusto, Dona Ercy, Carmen Silva, Lda, Grazi, Jlio Lira, Andria

    Mary e mais outros dos quais me lembrarei depois.

    Ao programa de Ps-Graduao em Lingstica, Laura e Antnia.

    FUNCAP, por financiar este trabalho.

  • 6

    minha famlia

  • 7

    RESUMO

    Este trabalho pretende discutir os modos do compositor baiano Tom Z

    se inserir no mundo atravs de uma quantidade significativa e qualitativa de

    canes1. A partir da anlise de investimentos discursivos, ou seja, das

    maneiras do qu e do como se diz ou se faz dizer sua construo

    literodiscursiva. Focalizamos alguns pontos, como modos do compositor se

    posicionar diante da mdia fonogrfica, valores estticos musicais. Utilizamos

    como referencias tericos algumas categorias da Anlise do Discurso, segundo

    Dominique Maingueneau (cdigos de linguagem, ethos, cenografia, paratopia),

    os conceitos grotesco e carnavalizao de Mikhail Bakhtin, alm de outros

    autores. Discutimos, portanto, que efeitos de sentidos geram os investimentos

    na cano, os quais nos levaram a pensar na idia de uma descano.

    Palavras chaves: cano, investimentos discursivos, descano.

    1Dos lbuns:

    Z, Tom. Estudando o Pagode. 2005.

    Z, Tom. Jogos de Armar- Faa voc mesmo. Trama, 2002

    Z, Tom. Srie dois Momentos Vol. 15 (Relanamento do Cd Estudando o Samba, 1975, e de O Correio

    da Estao do Brs, 1978). Continental, 2000.

    Z, Tom. Srie dois Momentos Vol. 14 (Relanamento em cd de Estudando o Samba, 1972, e de Todos

    os olhos, 1973). Continental, 2000.

    Z, Tom. Com defeito de fabricao. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama, 1999.

    Z, Tom. No Jardim da Poltica (ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) Independente, 1998.

  • 8

    ABSTRACT

    This work intends to discuss the ways the composer from Bahia Tom Z

    paths the musical community in order to picture a relevant amount of popular

    songs. This point must be aimed through the analysis of discoursive traces, i.e.,

    the way he says and is said in the literomusical community. We focused some

    points: the way he faces the media and some esthetical values. Our theoretical

    basis is the Discourse Analysis (A.D.), according Dominique Maingueneau

    (language codes, ethos, cenography, paratopia), the concepts of grotesque and

    carnavalization, according to Mikhail Bakhtin, and some other authors. We

    discussed, then, what effects of meaning generate the authors traces in the

    song activity, what makes us think of what we call a non-song (descano).

    Key-words: song, discourse, non-song

  • 9

    ndice

    INTRODUO----------------------------------------------------------------------------------10

    CAPTULO l

    O processo do trabalho --------------------------------------------------------------------17

    Percurso terico: trilhas e labirintos discursivos---------------------------------------21

    Traos Constitutivos da Linguagem: do princpio dialgico ao Interdiscurso---23

    A construo da Enunciao----------------------------------------------------------------25

    Descano e Deslinearizao--------------------------------------------------------------30

    A voz que alimenta a voz--------------------------------------------------------------------37

    A performance na cano-------------------------------------------------------------------38

    Movimento de Instabilidade na cano: uma condio paratpica---------------40

    O ser grotesco e carnavalizante-----------------------------------------------------------42

    O Caminho de chegar e no-chegar: percurso do como dialogar com as

    canes-------------------------------------------------------------------------------------------45

    CAPTULO ll

    Apresentao e contextualizao: Tom Z----------------------------------------------48

    CAPTULO III

    Ressonncias e desformas da cano: Descancionando por entre rasuras e

    imagens grotescas-----------------------------------------------------------------------------54

    Deslineariazao e defeitos verbais ------------------------------------------------------53

    O defeito: problema e perfeio------------------------------------------------------------55

    Ser estavelmente paratpico num lugar de entre lugares---------------------------64

    A reinterpretao ou releitura: o inacabamento ou efeitos de descano----66

    Jogos para desmontar e armar------------------------------------------------------------68

    Embates entre posicionamentos discursivos -----------------------------------------78

    A construo de cenografias na cano, da cidade longnqua para uma grande

    cidade---------------------------------------------------------------------------------------------83

    Apenas uma tentativa de concluso------------------------------------------------------92

    Referncias Bibliogrficas-------------------------------------------------------------------94

    Anexos--------------------------------------------------------------------------------------------97

  • 10

    INTRODUO

    O que nos trouxe verdadeiramente aqui foram resqucios tocantes,

    desses to recentes e to distantes que transformavam corpo em msica. Dos

    to distantes, tratava-se de ondas inesperadas e oscilantes causadas por

    Jimmy Page, guitarrista do grupo musical de rock Led Zeppelin, o primeiro

    escutado por mim, por intermdio de um amigo chamado, guitarristicamente2,

    Beto. No momento da escuta, as distores de timbres sonoros se expandiam.

    Isso foi o longo comeo que me levou a um lugar, bateristicamente

    falando, de transtornadas e distintas ondas musicais (compositores e ritmos),

    ao lado de amigas (Ana Cludia, Andria e Denise). Reunamo-nos

    semanalmente para tocar e ouvir, no formato do grupo musical intitulado Dress.

    A partir dele, ns nos movamos em ondas, sendo cada uma delas de

    diferentes timbres, tocados em uma nota s. Juntas, seguindo estrada e

    estradas de palcos perifricos, chegamos num lugar comum, onde todos

    tocavam e se tocavam, ao ponto de destocarmos e desenlaarmos nossas

    cordas.

    Foi nesse fim e chegada que se iniciou novo caminho, descortinado pelo

    outro: o caminho de nova vitalidade musical, de uma msica com outros

    significantes e significados, sugerindo-nos, at ento, a novidade de um olhar

    dedicado ao significar amplo. No era s a descoberta do par instrumento e

    voz, era muito mais complexo e triplo.

    Foi quando escutei e vi com meus prprios olhos um corpo, uma voz

    estranha, arranhada e familiar em lngua nordestina, um tanto bem humorada

    e irnica num palco pertencente a vrias lnguas que falavam simultaneamente.

    Foi nesse lugar que vi pela primeira vez Tom Z cantando, no ano de 2004, no

    festival Vida e Arte. Tardiamente ou em circunstncias ideais? Tomo as duas

    opes como verdadeiras.

    2 Palavra incorporada por Rogrio Duarte no livro Tropicaos. O qual autor e artista mltiplo (design

    grfico, compositor, poeta, professor, compositor e um dos membros experienciador do evento

    Tropicalista).

  • 11

    Foi esse o momento de transio: a mudana de um antigo objeto de

    pesquisa de mestrado, a escrita de si no gnero textual virtual blog para uma

    escrita de si e de vrios outros, na linguagem do gnero musical cano.

    Vi a possibilidades de se ouvir msica em outro lugar, alm de ouvi-la

    no palco. Senti a cano, em seu sentido amplo: modos de habitar o mundo,

    atravs de uma lngua e de lnguas, de uma construo esttica, contaminada

    de valores culturais; e em seu sentido restrito: a msica no gnero especfico, o

    cancional, letra e som, palavra e instrumentos em um s corpo.

    Percebi palpavelmente a inquietude que sua cano me proporciona,

    observando nela inquietaes metamusicais e socioculturais.

    A palavra cantada j se tornava precria frente a gestos e expresses

    sem palavras verbais que deixavam pistas para construirmos teias de relaes

    entre seu discurso e outros. Foi a que vi o no dizer sendo dito, de algum

    modo, o verbo e in-verbo enlaados.

    O interesse em estudar msica no ambiente acadmico tambm foi

    influenciado pela disciplina Tpicos em Anlise do Discurso, cursada no

    Mestrado em Lingstica da Universidade Federal do Cear, no perodo de

    2004-2. Essa foi ministrada pelo professor e doutor Nelson Barros da Costa,

    amigo afetuoso, meu orientador. A partir desse perodo, discuti com ele

    possibilidades de se estudar msica, o que resultou no seu apoio e dedicao,

    pacientemente, durante os processos de mudanas de ordens terica, afetiva e

    psicolgica, ocorridas ao longo do curso de mestrado.

    Foram esses aspectos que me levaram a investigar Tom Z. Ao lado de

    um amigo musical, singularmente to presente em aula e em fora de aula, e to

    inquieto quanto Tom Z, chamado um tom Talvanes.

    Assim, logo surgiu a idia de dialogar com o discurso literomusical de

    Tom Z, aliado s inquietaes que percebi na sua msica: o modo de se

    posicionar diante do pblico, quanto s questes referentes ao fazer cancional,

    ao dilogo com o outro, seu exterior; questes polticas, questes da linguagem

    verbo-musical, as quais nos suscitavam efeitos de sentido.

    A desconstruo musical, a problematizao da vida, a apresentao e

    representao realistas de um mundo conflituoso so tomadas em suas

  • 12

    canes, surgidas em experimentaes rtmicas e verbais num corpo

    cancional. Foi atravs da percepo e da ruminao de tais elementos que

    apontamos e refletimos sobre investimentos discursivo e interdiscursivo, ou

    seja, maneiras de habitar e desenhar cano. Inspiramo-nos na idia de

    descano, que um modo de se comportar e de se afirma a cano.

    Segundo Z (2003), a cano sentida como um acontecimento natural,

    no correr do tempo, num contratempo, como um dia atravessando uma vida,

    numa improvisao. A cano experimentada a partir de um corpo cancional,

    chamado de tero csmico, de montanha virgem e corpo de pedra (Z,

    2003, p.24), sendo encontradas l possibilidades de construo, a partir de

    pedaos de notas musicais gravadas, guardadas em gavetas.

    Aliadas ao corpo cancional, tem-se a problematizao ou doenas da

    vida, compreendida por ns como as marcas que apontam para a condio

    instvel do indivduo, de ser e no ser, de estar e no-estar. Estudar e divagar

    um pouco, portanto, sobre a cano de Tom Z conversar com as entranhas,

    brechas e fissuras que a vida gera.

    Ao realizarmos um percurso sobre seu trabalho musical, encontramos

    relatos documentais e biogrfico em Campos (1993), em Calado (1997), em

    Sanches (2002) e Z (2003). Lemos o trabalho biogrfico escrito pelo Tom Z3,

    no qual so relatados histrias de vida do msico e sua participao na ecloso

    do movimento Tropicalista. O contedo do livro apresenta descries

    biogrficas, uma longa entrevista com Lus Tatit4, seo do livro que mais nos

    interessa, na qual nos detemos, e mais as letras de canes at ento

    realizadas. Tom Z relata os primeiros envolvimentos com a msica, na sua

    cidade natal Irar, Bahia5.

    H tambm algumas crticas com relao sua participao no

    movimento tropicalista, segundo Tatit (in Z, 2003). Atravs desse relato,

    investigamos como se deu seu relacionamento com o tropicalismo, em que

    Tom Z se torna um tropicalista e um no tropicalista ou um outro tropicalista.

    3 Tropicalista Lenta Luta.

    4 Lingista e estudioso da semitica musical.

    5 Apresentamos detalhes sobre esse assunto mais adiante, no captulo III: apresentao de

    Tom Z.

  • 13

    Campos (1993)6 realiza uma reviso da histria da msica popular

    brasileira referente aos movimentos Bossa Nova e Tropicalismo. Discute as

    origens e posturas poltica e musical de ambos os posicionamentos. Com

    relao aos msicos e compositores do primeiro, cita Joo Gilberto; e do

    segundo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, dentre outros, e no

    posfcio cita Tom Z. O autor atribui a ele o carter de baiano esquecido ou o

    menos conversado no contexto do tropicalismo. A partir de uma breve

    observao sobre suas canes, compara o compositor a um trovador que

    sabe fustigar um bom tom e fundir palavra e som (CAMPOS, 1993, p. 335).

    Tal comentrio pressupe que Tom Z, de certa forma, tem uma repercusso,

    mesmo que aparentemente discreta. Embora toquemos nessa relao, no

    desejamos, necessariamente, saber a intensidade de sua participao no

    tropicalismo, mas as implicaes de sua cano influenciadas por esse

    movimento.

    Calado (1997) narra sobre a infncia e adolescncia de Tom Z e suas

    influncias musicais. Segundo o autor, o gnero baio de Luiz Gonzaga, os

    xaxados de Jackson do Pandeiro, aliados aos cantores de rdio nacional mais

    o folclore da regio de Irar (BA) e as cantigas de violeiros e os sambas de

    rodas das lavadeiras constituram as inspiraes do baiano. Percebemos a

    uma dada ausncia de trabalho mais consistente com relao msica de

    Tom Z, a preocupao de Calado, portanto, no passa de uma curiosidade

    biogrfica e musical, um tanto discreta, talvez. Tal fato enfatizou a

    necessidade de ns adentrarmos na sua cano.

    Com relao figura do compositor Tom Z, no presenciamos um

    estudo especfico. Apenas o trabalho autobiogrfico a que j nos referimos

    acima (Z, 2003).

    Nos primeiros sinais de composio, ao ser bloqueado pela presena

    da namorada, resolve se reconstruir como compositor, relendo seu processo

    de criao, impondo-se as seguintes metas para reinveno de seu trabalho:

    mudar o tempo do verbo (mudar o tempo das construes verbais da cano,

    do pretrito passado para o presente do indicativo); trocar o lugar no espao-o

    lugar (mudar de lugar, sair da cidade natal, Irar, em busca do lugar que lhe

    6 Balano da bossa e outras bossas

  • 14

    beneficiasse musicalmente); achar um novo acordo tcito(usar assunto-

    espelho na cano cujo personagem construdo fosse uma representao da

    vida e circunstncia do ouvinte); limpar o campo(no usar um corpocancional,

    o cannico, mas plasmar a cantiga com outra matria)( Z, 2003, p. 24).

    Ao debruarmos sobre a produo musical de Tom Z, no podemos

    deixar de lado sua participao no contexto do movimento esttico ideolgico

    Tropicalista7. O movimento que questionou valores culturais, nacional

    brasileiros e internacionais, revelou-se num episdio de subverso de

    costumes, que ps mesa as contradies de uma sociedade burguesa e o

    caos do mundo ps-moderno (o homem e o aglomerado de veculo de

    informaes). Expressou-se em vrios mbitos de manifestao artstica, como

    na literatura, no cinema, nas artes plsticas e principalmente na msica.

    Na msica, por exemplo, a ideologia tropicalista construda atravs da

    integrao dos movimentos e gestos do corpo ao canto e fala, atravs da

    multissemiose de elementos verbais, resultante da carnavalizao ou da

    inverso de hierarquias (morfolgica, sinttica e semntica), bem como no-

    verbais (gestos, performances, a relao do corpo com objetos). Com relao

    insero do corpo na msica, Barthes (apud Favaretto 2000:37) observa:

    A inscrio do corpo na substncia viva do som tenciona a lngua

    cantada, levando ao ultrapassamento dos fenmenos decorrentes de

    sua estrutura, como estilos de interpretao, idioletos dos compositores,

    mudanas rtmicas, variaes de timbres .

    A msica de carter tropicalista reconstruiu, desse modo, a noo de

    msica, dialogando com as transformaes cultural e industrial da poca,

    relendo os costumes tradicionais, causando um curto-circuito na estrutura de

    canes at ento construdas.

    7 Termo idealizado pelo artista plstico Hlio Oiticica para designar um ambiente Tropiclia ou

    um penetrvel, conjunto de cabines que o espectador explorava pisando em areia, pedra e gua, cruzando plantas e araras, lendo frases inscritas em paredes, assistindo a uma tv ligada no fim do labirinto, caminho teleolgico rumo ao ps-moderno. Depois, Gilberto e Caetano se apropriaram do termo para traduzir as subverses de valores na msica, literatura, dentre outros ambientes.

  • 15

    H outra viso relacionada ao seu envolvimento com o Tropicalismo, de

    acordo com Tatit (apud Z, 2003, p. 223-225). Trata-se da idia de que o

    projeto musical de Tom Z, o da busca da imperfeio, da incompletude, da

    descano (plasmar a cano com outros elementos) foi movido pelas

    angstias calcadas na necessidade de uma nova cano.

    Postura diferente dos idealistas centrais tropicalistas, que visavam a

    uma cano popular, nova, acabada, pronta para se tornar pop. Tatit (in Z,

    2003: p. 223-225) afirma que o aspecto em comum entre Tom Z e o

    Tropicalismo era a busca de uma msica nova, mas com vis oposto.

    Ao considerarmos tais posturas, no pretendamos neg-las ou afirm-

    las, mas investig-las, penetrando mais nas imagens, nas fendas que o som

    das palavras cantadas e faladas de Tom Z produz, construindo assim, uma

    terceira viso do que venha ser ou no ser tropicalista.

    Portanto, levando em considerao sua relao com o posicionamento

    ideolgico tropicalista e sua construo discursiva literomusical, partimos de

    duas vises diferentes, uma que insere Tom Z integralmente e outra que o

    afasta desse posicionamento ideolgico. A primeira refere-se idia de

    Sanches (2002) que o considera, de certa forma, um tropicalista puro, de

    esquerda, que se ope indstria cultural, deixando-se levar at as ltimas

    conseqncias. Mas, o que seria tropicalista de esquerda? estar isolado da

    mdia? Mesmo quando estava isolado (aproximadamente entre os anos 70-80),

    ele produzia e estudava msica. E hoje, incio da primeira dcada de 2000,

    podemos afirmar que ele um tropicalista de esquerda?

    Dentre tantas irregularidades, onde e como ver uma possvel ordem do

    caos na obra musical de Tom Z, levando em considerao o posicionamento

    Tropicalista que o gerou? E hoje que posicionamento ele assume?

    Paralelamente ao nosso olhar contemplativo e de espanto diante da

    msica de Tom Z, integrou-se a ele a viso terica da Anlise do Discurso, de

    Dominique Maingueneau. Essa teoria observa no discurso o lugar de inmeras

    relaes entre um discurso e outro, nos quais pressupem-se posicionamentos

    de carter ideolgico (como tambm esttico, lingstico e cultural) do

  • 16

    enunciador. Um outro aspecto a se notar como se d a condio de

    existncia, social, institucional do artista msico, escritor, cineasta, artista

    plstico? Como ele se encontra diante de normas e convenes impostas pelo

    campo artstico? Como o artista convive com outros em espaos pblicos?

    Ao investigarmos tais questes, utilizamos do autor Dominique

    Maingueneau o conceito de paratopia, que designa a ocupao de um lugar

    instvel do artista no campo artstico. E outros tais como ethos e cenografia.

    Trazer para o palco questes estticas e scio-culturais que

    colaboravam para uma incessante construo musical e para uma releitura do

    lugar no qual ns estvamos e desconhecamos a prpria revitalizao de si,

    da msica e de nossas relaes com as polticas cotidianas e com as mais

    burocrticas. Desse modo, tornou-se relevante pensar sobre tais questes no

    referido trabalho.

    O trabalho se inicia com um breve pensar sobre o processo do caminhar

    com a pesquisa acadmica. Em seguida, h a apresentao de elementos

    tericos centrais referentes idia do signo dialgico da linguagem verbal, aos

    conceitos grotesco e carnaval, na perspectiva de Bakhtin (1997,1999),

    Teoria da Anlise do Discurso segundo Maingueneau (2001, 2004), idia de

    cdigo apriorstico da linguagem de acordo com Campos(1993), de descano

    segundo Tom Z, de inacabamento e performance vocal segundo Zumthor

    (1998, 2001), e deslinearizao de acordo com Pingnatari (2004). Ainda nesse

    primeiro captulo, relatamos o processo de desenvolvimento do trabalho ou o

    caminho de chegar e no chegar: percurso do como dialogar com as canes.

    No captulo segundo, apresentamos um histrico sobre a vida e contexto

    do qual emerge o msico Tom Z.

    No captulo terceiro e ltimo iniciamos a leitura e anlise das canes,

    seguido o mesmo das concluses e referncias bibliogrficas.

  • 17

    CAPTULO 1

    1. O PROCESSO DO TRABALHO

    Iniciar uma pesquisa acadmica, ao nosso olhar, se permitir descobrir-

    se no percurso do trabalho, surpreender-se no processo de descoberta ou de

    redescoberta, sentindo os objetos, espiritualmente e materialmente, para criar

    sempre um novo objeto. Mas difcil mesmo para ns foi estar em processo de

    alienao, como determinadas tendncias cientficas certamente desejam, no

    qual o ser humano se afasta de sua real natureza, que exterior sua

    dimenso espiritual, colocando-se como uma coisa, uma realidade material,

    objeto da natureza. Nesse sentido, alienar-se isolar-se da prpria vida ou

    ignorar o tumulto que a vida gera, cotidianamente, em ns. Apesar de

    admitirmos o carter de alienao no trabalho cientfico, no atribumos a este

    o mesmo. Interpretamos nesta pesquisa um trabalho que se move e cresce a

    partir de uma entrega de si num dilogo que se constri com olhares de uma

    perspectiva terica e o do pesquisador sobre o objeto.

    Portanto, acreditamos que o trabalho, o presente, que se deixa levar ou

    arejar-se por interferncias cotidianas da vida, por formas disformes de viver,

    no se torna alienado, por vislumbrar a relao entre vrias possibilidades de

    olhar. O cruzamento do olhar cientfico com o filosfico talvez seja o que se

    interessa pela vida? Talvez sim. Talvez no. Depende da posio

    epistemolgica que se assume. Por que a pesquisa cientfica numa tendncia

    positivista exige, ou tenta impor, de algum modo, um olhar que no se deixa

    interagir com outros, mesmo sabendo ns que num olhar h um outro e outros?

    Portanto, a nosso ver, produzir um trabalho de pesquisa acadmica,

    tendo como eco a idia de alienao, da submisso espiritual e vital em

    prioridade ao objeto, foi difcil e delicado. Mesmo assim, acreditamos e

    estamos construindo outros ecos.

  • 18

    Em resistncia a essa angstia e crena num novo fazer, tentamos e

    insistimos em conversar, ouvir, ler e interpretar, sem deixar de apreciar, as

    canes do compositor Tom Z.

    Pois, em nossa percepo, Tom Z, ao assumir um lugar de compositor

    musical, revela-nos atravs de sua fala musicada angstias tristes e felizes da

    vida, ou seja, formas disformes e gelatinosas que, verdadeiramente, compem-

    nos. Trao esse que muito nos instiga e nos move a estabelecer uma relao

    de proximidade entre o interior e o exterior de sua msica. Vendo como se

    do os significados dessa aproximao e relao. Isso o que chamamos sem

    querer chamar, de anlise discursiva de um texto, do verbal ao no-verbal.

    Mas como tentamos chegar at sua msica? Existem inmeras

    maneiras de olhar para ela e de falar com ela: atravs da Historiografia,

    Etnografia, Sociologia, Antropologia, Filosofia, Lingstica, Musicologia e de

    outras maneiras. Dentre esses possveis olhares, optamos por um que, talvez,

    permita a integrao de vrios: o olhar discursivo da linguagem cancional.

    Olhar discursivamente levar em considerao contextos interiores e

    exteriores a um texto, sendo esses lingstico, histrico, social, filosfico,

    cultural, ou a integrao de todos num pancontexto, diramos.

    A idia de discurso corresponde a vrias acepes diferentes entre si,

    das mais elementares s mais complexas. Optamos pela concepo de

    discurso no sentido mais amplo, como uma disperso de textos que se

    encontram e dialogam a partir de marcas textuais explcitas ou no.

    O olhar discursivo est em circunstncias de comunicao verbal e no

    verbal, desde que se perceba a rede de ligaes que h entre uma fala e outra,

    entre seu interior e seu exterior. H na cano, como em outras linguagens,

    musical e no-musical, um entrelaamento de teias de significados que se

    cruzam aleatoriamente, no sendo possvel saber onde se inicia e termina esse

    cruzamento.

    O estudo da linguagem numa perspectiva discursiva diferencia-se da

    perspectiva unicamente lingstica na medida em que a primeira dialoga com

  • 19

    seu exterior, permitindo aberturas percepo de traos vertiginosamente

    histricos, filosficos, sociais, ideolgicos entre um discurso e outros, para

    alm dos traos da materialidade da lngua. Ou seja, uma anlise discursiva

    textual de linha francesa no separa o seu exterior (o social, o cultural,

    histrico, dentre outros) do seu interior (o material lingstico). J na segunda

    perspectiva, uma anlise essencialmente estruturalista efetua cortes, rupturas,

    preocupando-se primordialmente com a gramtica da materialidade lingstica.

    A relao que se constri nessa anlise interna, se d entre seu

    interior e seu outro interior vizinho, num sistema ou arquitetura fechada,

    isolada da possibilidade de intervenes externas. J a anlise discursiva tenta

    arejar a estrutura fechada.

    Nesse sentindo, a Anlise do Discurso de linha francesa visa

    concretamente, debruar-se sobre a arquitetura de prdios habitados, que

    trazem tona seus significados. Um olhar discursivo percebe a cidade em sua

    dinmica, ou seja, a pulsao ecolgica que ela constri com seus habitantes

    em mltiplas cartografias.

    Tomando como referncia o sentido de discurso na arquitetura de

    prdios, vemos na cano que o olhar discursivo se realiza atravs da

    interao e dinmica de ritmos, melodia, arranjos, vozes, tons, timbres e

    silncio. Onde a tambm encontramos a pulsao ecolgica e mltiplas

    cartografias que nos levam a diferentes lugares scio-culturais, desenhando

    um corpo e corpos, que nos revelam maneiras da cano se fazer.

    As maneiras ou modos de se construir uma cano podem comportar-se

    ora como estratgias, ora como investimentos discursivos. Ao realizar

    investimentos, o sujeito enunciador no planeja rigorosamente seu discurso,

    ele se coloca sem necessariamente desejar vencer ou competir com outro,

    enquanto que ao falarmos de estratgias8, h um sentindo militar,

    conotativamente, h a idia de uma ao voltada para um ataque.

    8 Arte militar de planejar e executar movimentos e operaes de tropas, navios e/ou avies,

    visando a alcanar ou manter posies relativas e potenciais blicos favorveis a futuras aes tticas sobre determinados objetivos. Definio transcrita do novo dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa Aurlio (verso eletrnica).

  • 20

    Mas o que queremos com isso? Nem sabemos exatamente. Temos

    certeza de que nos move aqui no somente apontar investimentos

    discursivos e estratgias nas experimentaes orais, poticas e musicais

    construdas pelo compositor Tom Z, mas signific-los, ou seja, discutir seus

    efeitos de sentidos.

    Ao iniciar o trabalho, foi possvel, antecipadamente, relacionar nosso

    motivo de pesquisa, ou canonicamente, nosso objeto, as canes de Tom Z,

    teoria da Anlise do Discurso de Maingueneau e eleg-la como apoio terico.

    Percebemos adiante que o referido apoio no nos instigou a utilizar

    positivamente9 as categorias de anlise discursivas, j que optamos por

    dialogar tambm com outros pensadores e conseqentemente com outras

    categorias, que de certo modo se integram perspectiva discursiva. Os

    pensadores referem-se a Bakhtin (1997,1999) que traz as idias da refrao,

    do dialogismo, do carter grotesco e carnavalizante do signo lingstico; a Paul

    Zumthor (1998, 2001), que nos apresenta um olhar antropolgico sobre a

    potica e performance vocal e a idia de inacabamento; a Dcio Pignatari, que

    discute aspectos da no linearidade do signo, e Campos(1993) no que se trata

    do cdigo apriorstico da linguagem.

    D-se mrito a Maingueneau por expor uma metodologia sistematizada

    sobre elementos discursivos voltada para a anlise de textos como prticas

    discursivas. Para ele, as unidades que compem o discurso compreendem

    sistemas de significantes, enunciados ligados a uma semitica textual,

    relacionados histria e sociedade. Uma anlise discursiva, portanto, parte

    9 O uso de pronomes que se dirigem a pessoas do discurso no decorrer desse trabalho no

    linear, ou seja, no conservamos do incio ao fim uma nica pessoa (1 pessoa, 3 pessoa). Ora assumimos nosso discurso em primeira pessoa quando nos mostramos mais sensivelmente envolvido por dado momento do trabalho (como se apresentou na Introduo), ora nos colocamos em terceira pessoa do plural. E noutro momento no assumimos pessoalidade. Esse uso indisciplinado da pessoa discursiva no nosso texto se deu de modo inconsciente e imperceptvel, foi um gesto que se percebeu no fim do percurso e que atribumos a ele um significado relevante: reflete espontaneidade e o no assujeitamento do autor sobre convenes de ordem formal, gramatical. A pessoa do discurso manifestada aqui mltipla, heterognea, um eu que no se livra da interferncia de outros eus. A multiplicidade pessoal no mascarada e nem omitida em nenhum momento, dada a vontade indomvel do eu se colocar diante da leitura do mundo: do percurso do trabalho cientfico, da interpretao da cano com base numa fundamentao terica.

  • 21

    de uma anlise simultnea, conjunta de textos provenientes de variados

    ambientes histricos e sociais.

    Partimos da idia do signo lingstico dialgico que fundou e influenciou

    diretamente o pensamento sobre a noo de interdiscurso, segundo

    Maingueneau. Em seguida, para uma discusso sobre a idia de signo

    redundante ou cdigo apriorstico de acordo com Campos, para dialogarmos

    com a idia de descano.

    2. PERCURSO TERICO: TRILHAS E LABIRINTOS DISCURSIVOS

    Toda imagem artstica, assim como um corpo fsico, produtos e

    instrumentos de uso funcional, podem ser revestidos de sentidos para alm de

    seus significados primeiros, particulares. Trata-se do que Bakhtin/Volochinov

    (1997, p. 31) chama de sentido ideolgico, um significado que remete a outro

    fora de si mesmo. Quando h o revestimento de outros significados, atribudos

    a um objeto, que atravessem suas particularidades, deposita-se nele um

    produto ideolgico, a representao de uma ideologia.

    De acordo com Bakhtin (1997), o signo tem carter ideolgico por

    revelar uma multiplicidade de significados e sentidos possveis expressos numa

    interao social, de acordo com os interesses social, cultural, econmico. O

    carter ideolgico estende-se a variadas dimenses fenomenais, do signo

    verbal ao no-verbal:

    Todo fenmeno que funciona como signo ideolgico tem uma

    encarnao material, seja como som, como massa fsica, como cor,

    como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.

    (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1997, p. 33).

    A encarnao material do signo traduz o mundo exterior, um significado

    que gera outro signo. O signo no corresponde apenas a duas partes:

    significante e significado, como expressa uma das dicotomias saussureanas,

    mas a inmeros significados e significantes.

  • 22

    A infinidade de significantes e significados do signo lingstico e no

    lingstico gera a refrao do signo. Compreendemos, desse modo, que os

    signos refratam e refletem o mundo material, carregando diversos e

    inacabados feixes de pensamentos construdos na dinmica da vida.

    O efeito da coexistncia de distintos valores sociais, culturais e

    ideolgicos confrontados e compartilhados entre os indivduos ao longo de

    sucessivos ciclos vitais a configurao da refrao do signo lingstico, ou

    seja, a multiplicidade de fendas semnticas que o signo constantemente gera,

    evitando uma nica verdade. Significar, portanto, refratar; no possvel

    significar sem refratar. A refrao, assim, o modo como se inscrevem nos

    signos a diversidade e as contradies das experincias histricas dos grupos

    humanos. Como nos mostra Faraco (2003), a partir da leitura do pensamento

    bakhtiniano sobre a refrao do signo:

    Os signos so espaos de encontro e confronto de diferentes ndices

    sociais de valor, plurivalncia que lhes d vida e movimento

    caracterizando o universo da criao ideolgica como uma realidade

    infinitamente mvel (FARACO, 2003, p. 53).

    A refrao sgnica compreendida como um entrelaamento de

    inmeras linhas de conscincias e verdades explicitadas ou no em diferentes

    discursos, no suporte de enunciao. Desse modo, o carter refracionrio do

    signo revela vrias direes de significados valorativos e mostra a diversidade

    de percepes ideolgicas de determinados grupos humanos, que foram e so,

    naturalmente construdas ao longo da experincia do convvio social.

    2.1 TRAOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM: DO PRINCPIO

    DIALGICO AO INTERDISCURSIVO

    Ao pensarmos em esfera comunicativa humana na perspectiva de

    Bakhtin (1997), estamos nos referindo ao contexto, diramos, da linguagem

    estratificada socialmente, de carter predominantemente heteroglossmico ou

  • 23

    plurilingstico, revelador de multiplicidade de lnguas sociais. A estratificao

    da linguagem representada em enunciados verbais, os quais denunciam a

    disposio paralela de estratos cristalizados ou camadas sociais, carregados

    de dimenses avaliativa e opinativa, que expressam posicionamentos scio-

    ideolgicos diversos.

    A comunicao verbal marcada pela interao com o outro, pela

    relao do eu com o outro, idia que fundamenta a metfora do dilogo infinito

    de um discurso com o outro. A palavra ideologia aqui, em sentido amplo,

    significa o universo de produtos do esprito humano ou da cultura imaterial,

    cujas manifestaes so de carter filosfico, religioso, poltico, dentre outros.

    Levando em considerao a estratificao da linguagem e a refrao do

    signo, qualquer enunciado ideolgico, j que toda palavra em uso est

    sempre sujeita a ser avaliada, est a servio de julgamentos e opinies.

    Para Bakhtin (2002), a linguagem por natureza heterognea e

    dialgica em oposio ao carter homogneo e fechado da lngua, tal como

    sugeria Saussure.

    Mas o que chamamos de carter dialgico da linguagem, atributo que

    remete a uma palavra to habitual entre ns: ao dilogo?

    Compreendemos por dialogismo uma tenso entre dilogos constantes e

    infinitos. Trata-se de cruzamentos de fronteiras vocais, onde diferentes vozes

    sociais se entrecruzam continuamente e multiformemente. Ele construdo

    atravs de pressuposies de outros dizeres, sendo eles um dilogo com

    outros, nem sempre simtrico e harmonioso, entre os diferentes discursos que

    se configuram numa comunidade lingstica. Esse dizer , portanto, de uma

    reposta ao j dito, ao no dito, e refuta, confirma, prev reflexes, dentre outras

    aes.

    O dilogo entre discursos a que nos referimos no se trata de um

    consenso ou de um acordo entre interlocutores acerca de um pensamento,

    mas de uma infinidade de relaes ideolgicas, de um espao de confronto

    entre vozes sociais.

  • 24

    Desse modo, o dialogismo concebido como o princpio constitutivo da

    linguagem e atravs desse princpio gerado, de acordo com Mainguenau

    (2004) o primado do interdiscurso.

    Maingueneau (op. cit) defende que o discurso se firma a partir da

    insero e cruzamentos de outros discursos, o discurso existe a partir de uma

    alteridade que sempre o atravessa. A construo interdiscursiva, por sua vez,

    perpassa pela trade: universo discursivo, campo discursivo, espao

    discursivo.

    O universo discursivo compreende a diversidade discursiva, ou seja, as

    possibilidades mltiplas de valores e de posturas ideolgicas tomadas pelo

    homem ao longo de sua experincia social. E integra o conjunto de distintos

    grupos ideolgicos ou campos discursivos que entram em atrito, em confronto,

    em afinidades.

    Tais grupos so denominados campos discursivos. Cada campo

    apresenta um conjunto de formaes discursivas (que designa a construo

    histrica, social, cultural, econmica de determinado campo discursivo ou de

    um membro que pertena a esse campo).

    H os campos poltico, filosfico, cinematogrfico, dentre outros, sendo

    esses recortes de um universo discursivo. Isso no significa, portanto, que

    cada campo seja isolado um do outro, ao contrrio disso, um perpassa o outro

    continuamente, gerando dilogos. Dessa maneira h a visualizao

    panormica de diferentes campos, possibilitando a dinmica de trocas e

    relaes entre eles.

    E sua possvel especificao, como nos referimos acima, ocorre em

    favor de uma escolha. A partir da delimitao de um campo discursivo constitui-

    se um discurso e nele se visualiza uma rede de operaes consideradas

    regulares e que moveu sua formao.

    No campo discursivo h uma diversidade de espaos discursivos ou

    planos discursivos, coexistentes e concorrentes entre si.

    As diferentes formaes social, poltica, ideolgica, cultural, ou seja, as

  • 25

    distintas formaes discursivas, movidas por posies e objetivos outros,

    podem conviver num mesmo campo discursivo.

    Tendo em vista esta breve apresentao dos conceitos dialogismo,

    universo discursivo, campo discursivo, formao discursiva e espao

    discursivo, consideramo-los elementos que contriburam de algum modo para

    discutirmos polmicas em volta de posicionamentos problematizados10 na

    cano Tom Z.

    2.2 A CONSTRUO DA ENUNCIAO

    Agora, explanaremos alguns conceitos referentes aos elementos que

    constroem a enunciao, o evento que constitui o agente principal da insero

    do homem no mundo:

    O piv da relao entre lngua e o mundo: por um lado, permite

    representar fatos no enunciado, mas por outro, constitui por si mesma

    um fato, um acontecimento nico definido no tempo e no espao

    (MAINGUENEAU, 2005, p. 193).

    Num dado enunciado, a realizao de um produto verbal e no verbal,

    atravs da interao legitimada a partir da integrao de vrios elementos,

    dos lingsticos (cdigo de linguagem) aos no lingsticos (gestos, sons,

    disposio de objetos). atravs da interlngua11, ou seja, das relaes dadas

    numa determinada conjuntura entre as variedades de uma mesma lngua, que

    se constitui um cdigo de linguagem, atribuindo singularidade a uma obra.

    Maingueneau (2001: 104) define o termo cdigo como um sistema de regras

    aliado a um conjunto de prescries e de signos que geram uma comunicao.

    A interlngua, relao entre lnguas diferentes e as variaes de uma

    mesma lngua, d-se atravs de uma pluralidade de lnguas, externa e interna.

    Sabemos que a legitimao de um discurso no se d necessariamente

    10

    Dilogo entre os posicionamentos Bossanovista e Tropicalista, apresentado no captulo 4, pgs. 70-75 11

    A idia de interlngua se relaciona com a noo de heteroglossia ou de plurilingismo, de acordo com Bakhtin (1993).

  • 26

    atravs de uma nica lngua. O autor emprico de uma obra pode, em dado

    contexto, por alguma razo, romper com a homogeneidade lingstica atravs

    do plurilingismo externo, do uso de outras lnguas externas lngua materna.

    O efeito do uso de outras lnguas num enunciado sugere vrias

    intenes, como a diluio de um conservadorismo lingstico, do domnio ou

    de uma suposta superioridade de uma lngua sobre outra.

    Um escritor, alm de poder utilizar lnguas externas no seu discurso,

    pode usufruir tambm da variao lingstica no mbito de uma mesma lngua.

    o que chamamos de plurilingismo interno. Essa variao se d em funo

    de distintos contextos: geogrfico (dialetos, regionalismos), social (popular,

    aristocrtica, etc.), situao de comunicao (mdica, jurdica...), nveis de

    lngua (formal, familiar...).

    O enunciado, ao se estabelecer atravs do cdigo de linguagem,

    constri cenas de enunciao, o contexto imediato da enunciao. O termo

    cena refere-se designao teatral por pressupor numa enunciao a

    existncia de bastidores, cenrios, participantes com papeis definidos.

    As cenas enunciativas tratam da cena englobante, cena genrica e da

    cenografia. A cena englobante implica o tipo de discurso que praticado

    (poltico, religioso, publicitrio etc.). J a cena genrica se relaciona ao gnero

    do discurso, que prtica discursiva designada, se um artigo jornalstico,

    uma propaganda televisiva. Essas duas cenas constituem o quadro cnico que

    definido como o espao estvel no interior do qual o enunciado adquire

    sentido - o espao instvel do tipo e gnero de discurso (Maingueneau,

    2001:87).

    E por ltimo, a cenografia designa a condio e o produto de uma

    enunciao, constituindo um articulador da obra e do mundo. Ela o processo

    fundador de inscrio legitimada de um texto. Apresenta, canonicamente, um

    foco de coordenadas estabilizado que se refere direta ou indiretamente

    enunciao construda a partir de protagonistas da interao da linguagem:

    enunciador, co-enunciador, assim como as circunstncias espacial e temporal

    (eu e tu, aqui e agora). Ela define as condies de enunciador e co-

  • 27

    enunciador. A cenografia ou situao de enunciao de uma obra enunciada

    atravs de uma instituio verbal, de um gnero discursivo (no sendo ele o

    fator nico e inteiramente condicionante da obra), que tambm traz suas

    prprias condies de produo como participantes: o lugar, o momento para

    sua manifestao, os circuitos por quais passa e a norma que presidem o seu

    consumo.

    De acordo com Maingueneau (2001), a cenografia de uma obra literria

    dominada pelo cenrio literrio, que o contexto pragmtico da obra, que

    associa uma posio de autor e uma posio de pblico, cujas modalidades

    variam de acordo com as pocas e as sociedades. Os elementos que integram

    as condies de situao de um enunciado (posturas do enunciador, tempo,

    espao), no entanto, nem sempre esto explcitos.

    Outro elemento que integra a cena enunciativa o ethos no qual o

    enunciador expressa uma voz, uma voz que marca posturas, formas de

    habitao do sujeito interlocutor do enunciado e que so assimiladas pelo co-

    enunciador frente a uma cena genrica. Estamos falando tambm de um

    conceito originado na Retrica antiga, o eth ou ethos, que diz respeito ao

    modo como o enunciador orador fala seu discurso, que gestos, posturas

    poltica e tica, revelam ao ouvinte. De acordo com Aristteles, a concepo

    de ethos, traduzida por Maingueneau, designa:

    as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, atravs

    de sua maneira de dizer: no o que diziam a propsito deles mesmos,

    mas o que revelavam pelo prprio modo de se expressarem.

    (ARISTTELES apud MAINGUENEAU, 1997, p. 45)

    O ethos que antes era observado apenas em gneros de discursos

    recitados e orais (em textos literrios, como na epopia e em discursos

    polticos, judicirios, respectivamente), torna-se visvel tambm em textos

    escritos. Sua manifestao pressupe a veiculao de um gnero discursivo.

    Portanto, o ethos (o modo de se mostrar do enunciador ao co-

    enunciador) expresso pela palavra oral e escrita, pelo gesto, aspecto fsico e

    entonao, constituindo num gnero discursivo, sendo tais elementos prprios

  • 28

    do sujeito encenado e no do sujeito real. Maingueneau (1995, 1997, 2001)

    leva em conta trs categorias para se analisar o etos: o tom, delineado numa

    vocalidade, o carter e a corporalidade.

    Qualquer gnero do discurso carrega consigo uma vocalidade, ou seja,

    uma voz do sujeito que expressa atravs de um tom e que conferida pelo

    co-enunciador. Como coloca Maingueneau (1997, p. 45), ... a descrio dos

    aparelhos no deve levar a esquecer que o discurso inseparvel daquilo que

    poderamos designar muito grosseiramente de uma voz.

    O tom construdo a partir de uma voz numa dada cenografia,

    empregado para todos os enunciados escritos. O tom est ligado ao carter,

    que designa um conjunto de propriedades psicolgicas, estereotpicas

    especficas de uma poca e lugar, expressas pelo enunciador e sendo

    atribudas pelo leitor-ouvinte.

    A corporalidade refere-se a uma representao do corpo que envolve a

    maneira de se vestir e de se movimentar do enunciador. O corpo no s

    explicitado pelo enunciador, mas tambm induzido pelo co-enunciador. No

    gnero discursivo de modalidade escrita a corporalidade pode ser percebida

    em marcas lingsticas, na iconografia do texto. Na verdade, o corpo ou

    corporalidade de um discurso est em diversas linguagens, podendo ser

    transmitido de vrias maneiras, pois como explicita Maingueneau (2001, p.

    140):

    Atravs da iconografia, dos tratados de moral ou de devoo, atravs da

    msica, da estaturia, do cinema, da fotografia..., circulam

    esquematizaes do corpo, valorizados, ou desvalorizados, que

    encarnam vrios modos de presena no mundo.

    As categorias que denotam um tipo de etos (tom, carter e

    corporalidade) so integradas num discurso formando um corpo que ser

    incorporado por um co-enunciador. A incorporao a ao que o etos exerce

    no seu co-enunciador, levando-o a conferir um etos ao seu fiador, a leitura

    que ns fazemos do etos. De acordo com Maingueneau (2001, p. 140), a

    incorporao um processo que pressupe trs registros interligados:

  • 29

    - A enunciao da obra confere uma corporalidade ao fiador, d-lhe

    corpo;

    - O co-enunciador incorpora, assimila desse modo um conjunto de

    esquemas que correspondem a uma maneira especfica de se relacionar

    com o mundo habitando seu prprio corpo.

    - Essas duas primeiras incorporaes permitem a constituio de um

    corpo, o da comunidade que comungam no amor de uma mesma obra.

    Diante da integrao dos elementos que compem uma enunciao:

    interlngua, ethos, as cenas englobante e genrica, montando uma cenografia

    (o espao definidor das condies contextuais ou pragmticas do enunciador e

    co-enunciador), tm-se como efeito dela um posicionamento ou uma tomada

    de posio poltica, ideolgica, assumida pelo sujeito enunciador. O

    posicionamento, num sentido amplo, segundo Maingueneau (2001), diz

    respeito s:

    ... doutrinas, escolas, movimentos estudados pelas escolas literrias...

    Ao faz-lo, exploramos a polissemia de posio em dois eixos principais:

    o de uma tomada de posio, o de uma ancoragem num espao

    conflitual (fala-se de uma posio militar) (MAINGUENEAU, 2001, p.

    69).

    A cano, alm de ser um dilogo entre a vida e as "tcnicas" de

    composio, tambm resultante de uma prtica discursiva, por nela estarem

    atuando posturas e formaes discursivas concorrentes, constituindo-se em

    uma situao de enunciao onde h um sujeito ou sujeitos enunciadores

    (cancionistas) que desvendam ao co-enunciador (ouvinte) uma certa atitude,

    um posicionamento poltico, explcita ou implicitamente.

    Diante da relao dos elementos: cdigo de linguagem, cenografia, etos,

    apresenta-se como efeito dessa imbricao um posicionamento social.

  • 30

    Portanto, discutimos efeitos de sentido gerados pelos investimentos

    discursivos, ou seja, pelos elementos textuais ou no, que legitimam um

    discurso, permitindo a insero do homem no mundo, observados no discurso

    literomusical de Tom Z.

    Chamamos a ateno para o termo investimento discursivo, o qual ser

    utilizado ao longo desse trabalho. O referido termo foi designado por Costa

    (2001)12, ao se apropriar de umas das categorias discursivas sistematizada por

    Maingueneau (2001), a de investimento genrico. Essa define que o

    enunciador ao tomar uma posio ideolgica ou posicionamento parte de um

    investimento, de uma aposta numa modalidade genrica ou num gnero textual

    em defesa e em legitimao de seu discurso. Costa (op. cit.) expande a noo

    desse investimento a todas as partes integrantes de uma enunciao,

    argumentando que o investimento se d em todos os momentos de inseres

    enunciativas.

    Portanto, o enunciador ao se pronunciar investe no s num gnero

    discursivo, mas tambm num cdigo de linguagem, num ethos, numa

    cenografia.

    3. DESCANO E DESLINEARIZAO

    Apresentamos nesse ponto o que compreendemos sobre descano

    (palavra recorrente no nosso trabalho) e algumas consideraes sobre a idia

    de deslinearizao, partindo de reflexes de Wisnik (1989), Tom Z (2003),

    Pignatari (2004) e de Campos (1997).

    A descano como um modo de musicar. Um fazer errado ou um

    desfazer fazendo? Como esse modo de fazer cano se constri? Quais

    12

    Na tese A PRODUO DO DISCURSO LTERO-MUSICAL BRASILEIRO. O estudo pioneiro em

    descrever a produo da Msica Popular Brasileira com fundamentos da Teoria da Anlise do Discurso

    de linha francesa(AD).

  • 31

    percursos so trilhados? Que elementos se relacionam ao carter tropicalista,

    ao no tropicalista ou, quem sabe, a um outro ser tropicalista?

    Tentaremos definir nesse momento algo quase indefinvel, a descano,

    que, para ns, torna-se um incmodo necessrio. Descrever o sentido de

    descano dialogar com questes em torno de cano no sentido amplo.

    A descano um modo de construir uma cano, diz respeito

    construo de arranjos musicais, a gestos enunciativos que envolvem as

    manifestaes verbal e no-verbal, que transgridem certa linearidade sonora.

    A denominao descano nega a palavra cano, no no seu sentido

    genrico amplo, dado como uma msica breve acompanhada de canto e

    instrumento, mas no sentido cannico, apreendido pelo cdigo apriorstico,

    expresso que designa um modo predeterminado de fazer cano voltada para

    fins comerciais.

    Antes de nos determos nesse assunto, voltemos um pouco a uma breve

    histria e origem da cano brasileira.

    Foi atravs da interao entre as culturas indgena, africana (dos rituais

    religiosos, magia acompanhado de instrumentos rtmicos, percussivos e de

    sopros - gaitas, apitos) e a portuguesa (da manifestao musical mais meldica

    que rtmica, em hinos catlicos e cantos gregorianos) que a msica se

    expandiu em lugares maiores, aproximadamente no sculo XVII13.

    O canto como voz pe em prtica a vontade de dizer, de contar. Aliado

    ao som e vozes de instrumentos musicais, materializa-se a cano.

    Num sentindo sublime e vital da palavra, a cano um modo de

    compor a vida e seu cotidiano em ritmos e melodias, o registro de prticas e

    gestos experienciados que traduzem vivncias e histrias do indivduo no

    mundo. A voz cantada muito mais que cantar: relatar. A caracterstica

    formal que a designa a unio do canto a uma melodia.

    13

    Para maiores esclarecimentos de fundamentao histrica da Msica Popular Brasileira, consultar o trabalho de Luiz Tatit, O sculo da cano (2005).

  • 32

    Partindo de uma reconstruo das razes da cano brasileira, atravs

    de uma leitura no to profunda de Tatit (2005), vimos na cano um modo de

    afirmao das misturas de representaes vocais dos batuques africanos,

    mestios e brancos europeus de classes inferiores.

    Tais dados histricos nos mostram uma viso da manifestao musical

    naquele perodo e nos leva a relacionar, de algum modo, idia de descano,

    como um caminho de mistura de sons e culturas, sem se fixar numa hierarquia

    de valores sonoros.

    Como ouvir o som de uma descano? Talvez seja necessrio que

    entremos numa onda, que nos movimente para vrios lados e perspectivas.

    Falo de ondas que nos tocam e tocam, de uma fsica e metafsica

    sonora. A onda como corpos vibrantes transmitidos na atmosfera, num tempo

    contnuo: impulso e repouso. A msica o som das ondas: movimento em sua

    complementariedade, inscrito na sua forma oscilatria, pausa e silncio

    quando oscila em seu repouso. H tantos ou mais silncios quantos sons nos

    sons(WISNIK, 2004, p. 19).

    A afirmao acima j nos diz um quase tudo sobre msica, uma

    descrio complexa que nos relata muito mais, instigando-nos a perceb-la

    intimamente. A oscilao sonora, ao mesmo instante que nos envolve num

    tempo e num contratempo, por outro lado, leva-nos a um impulso, lana-nos

    fora de uma linha cancional prevista. A voz, portanto, na cano descano

    pousa, arrisca outras vozes e palpita. Perceber que no silncio h tanto som e

    que no som h tanto silncio , de algum modo, conceber a msica como uma

    forma de descano.

    Romper com o tempo previsto da cano, escutar rudos gerados pela

    imprevisibilidade do cantar e de um dado arranjo , de certa maneira, desfazer-

    se de um cdigo apriorstico musical, de um modelo linear de cano, que se

    presta unicamente demanda comercial. Discutir o fazer musical, pensar

    outros discursos musicais (valores desconstrutores e reconstrutores musicais,

    polticos, cultural, econmico) na cano, significa se introduzir no campo de

    uma descano.

  • 33

    Ao lermos Tom Z em narrativa do seu processo de composio, a

    cano parece ser apenas um meio para se chegar a uma outra cano,

    chamada descano: Minha quimera de fazer descano no aludia cano

    em si, era s um artifcio para eu poder cantar sem ser cantor (Z, 2003, p.24).

    Com esse depoimento Tom Z assume na sua fala um etos de ruptura com a

    cano no seu sentido cannico, msica acompanhada de voz e instrumento.

    Essas informaes parecem apontar para um modo de compor a descobrir,

    insento de predeterminaes. Assim, antecipa-nos a construo do ethos de

    uma descano.

    Mas no sabemos ainda qual seria essa cano que no cano. Aos

    nossos ouvidos, essa cano sempre est por vir, parece que ela no se fecha

    nela mesma, e caso isso acontea, dar-se-ia no desencontro com o modelo de

    cano determinado.

    Pensamos que a idia de descano significa romper com o tempo

    previsvel na cano, digamos, uma ruptura no cdigo apriorstico musical.

    Noo referente redundncia de conhecimento musical, ao conjunto de

    caractersticas de natureza prevista, unidas num cdigo construdo de

    elementos que independem da experincia do leitor ouvinte, sendo algo a

    priori, apriorstico, que leva o ouvinte absoro global de uma mensagem

    musical condicionada sobre valores estticos impostos arbitrariamente.

    Ento, a audio possvel de uma cano dar-se-ia pelo reconhecimento

    de elementos sonoros repetitivos, previsveis, tornados convencionais pela

    mdia. Tal afirmao nega a concepo segundo a qual o artista oscilaria numa

    dialtica banal-original, previsvel-imprevisvel, redundante-informativa, de

    acordo com A. Mole (apud CAMPOS, 1993, p.180). O reconhecimento dessa

    repetio retroalimenta a digesto de mais um produto industrial, em srie,

    alimentando a mquina publicitria, comercial fonogrfica.

    O ouvinte, portanto, contaminado por valores estticos musicais,

    arbitrariamente: como dadas melodias, arranjos e letras, retroalimentados pela

    mdia e indstria fonogrficas. Percebemos uma ascenso quantitativa de um

    produto finalizado que se ope ao valor qualitativo da msica popular.

  • 34

    A msica que favorece o cdigo apriorstico se faz numa redundncia,

    na repetio em srie, tida como produto acabado. Quanto maior a

    redundncia e a previsibilidade, menor o conhecimento, a informao e a

    aprendizagem, se no h conhecimento no h comunicao. Ao consultarmos

    Pignatari (1997), vimos que h dois casos extremos de no-comunicao: o da

    imprevisibilidade total e o da total previsibilidade dos sinais.

    Se h um total estranhamento na cano que no leva interao de

    um signo com outro, no possvel sua audio, podendo haver, que o

    menos significativo, uma compreenso precria que no traduz sentidos da

    escuta. Possivelmente, como exemplo dessa intraduo ou incompreenso

    seria, hipoteticamente, uma cano tocada numa lngua indita, totalmente

    nova, ao som de instrumentos tambm inusitados aos ouvidos de um pblico

    que, culturalmente no usufrui desse tipo de sonoridade.

    Caso haja uma total previso do que se pronuncia, a informao torna-

    se redundante, a compreenso prolixa, uma prolixidade desnecessria,

    impotente. A redundncia, nesse caso, trata-se de uma cano que segue

    praticamente um mesmo arranjo, uma mesma temtica, diferenciando-se

    apenas uma da outra o timbre de voz, embora muitas vezes h uma repetio

    dela14.

    Como um locutor, ento, pode emancipar-se, musicalmente, e ocupar

    um lugar no mundo se no se comunica? Esse um dos problemas presentes

    na cano vinculada ao cdigo apriorstico, que mostra sempre uma mesma

    idia de signo musical ou uma mesma configurao de arranjos verbal e no

    verbal, os quais tendem a migrar para um no lugar, sendo este o da repetio,

    o lugar fixo e pr-estabelecido.

    O efeito desse hbito reduz a qualidade de recepo musical do ouvinte.

    Ele, convivendo com esse modo de construo musical, em idade mais

    avanada, s reconhece e no conhece outro modo de cano. Tal evento

    ocorre devido a sua maior resistncia em no aceitar a imprevisibilidade de

    arranjos em funo de uma conveno, de um cdigo apriorstico musical, de

    um conjunto de arranjos musicais cristalizados, imutveis.

    14

    Tais como as vozes das cantoras Ivete Zangalo, Daniela Mercury, dentre outras.

  • 35

    J a msica numa condio qualitativa, da no redundncia, trata-se de

    um processo em construo, que se prope abertura de reformulaes e

    recriaes, interrupo da linearidade. A descano, nesse sentido,

    atravessa o cdigo apriorstico, abrindo possibilidades de outros cdigos que

    constroem imprevisibilidades e descobertas.

    Ainda assim, a descano pode gerar tambm uma previsibilidade, no

    entanto, diferente da outra, a significativa: a previso da imprevisibilidade.

    Minuciosamente, a descano ocorre no plano esttico e no-verbal

    (meldico, instrumental e com relao mistura de gneros cancionais), no

    seu plano verbal, atravs de modos de desconstrues sintticas, de recriao,

    montagem e remontagens lingsticas. Ela no se realiza numa total

    impreviso.

    A impreviso no significa um fazer aleatoriamente. Paradoxalmente, h

    um planejamento da impreviso, seria um acordo tcito, como Tom Z

    apresenta no seu livro autobiogrfico:

    ...era o que eu queria fazer com a cano tradicional: limpar o campo.

    Concluso que me induziu a organizar as outras idias que at ento,

    vinha praticando intuitivamente e desorganizadamente (Z, 2003, p. 21).

    As idias desorientadas tomaram um corpo organizado e se revelaram

    num plano compreendido em quatro pontos: mudar o tempo do verbo, trocar o

    lugar no espao - o lugar, achar um novo acordo tcito, limpar o campo.

    Mudar o tempo do verbo (Z, 2003, p. 21), era sair do passado e

    praticar o presente. Acordo contrrio ao das canes tradicionais que

    habitavam sempre um passado, o de contao de histrias.

    A troca do lugar (Z, 2003, p. 22), onde vivia, em Irar, j atraa um

    passado de pocas. Ento, mudar geograficamente era construir um novo

    presente, que se refletisse na sua cano. O intuito aparente era expandir a

    cano, arej-la e desapegar-se do passado to presente e arraigado. A

    mudana do lugar revelava a busca de novas fronteiras para a cano.

  • 36

    O terceiro ponto seria um acordo tcito (Z, 2003, p. 22): um dilogo

    entre cantor e ouvinte. Atravs do cantar o presente, Tom Z introduziria um

    assunto espelho na cano, na qual o ouvinte fosse o prprio personagem.

    O ltimo ponto, limpar o campo (Z, 2003, p. 22), um novo passo para

    se desfazer de uma cano insatisfeita. Segundo o relato do compositor, ele se

    inspirou numa cena do curso de fotografia que havia realizado, descobriu mais

    uma maneira de se chegar almejada cano. A cena referida era a do

    instante em que lhe foi sugerido a observao de duas fotografias de uma

    mesma pessoa. Uma contaminada por objetos desordenados e a outra apenas

    com a imagem da pessoa sem objetos. A fotografia mais preenchida de

    objetos, que embaraavam a imagem inferia a limpeza desse campo.

    Encarregado de retirar os elementos que compunham a primeira foto,

    surpreende-se com o processo da retirada. Ao que o levou a relacion-la

    com a cano, ao desejo de limpar seu campo cancional, livrar a cano da

    contaminao do passado e da temtica padro: o amor infeliz.

    No entanto, ao nos aproximarmos desse campo cancional, mais

    presente cronologicamente15, compreendido nos lbuns Com defeito de

    Fabricao, Jogos de Armar, Imprensa cantada torna-se mais coerente usar a

    expresso sujar ou poluir o campo, no limp-lo. Como significa a expresso

    pater la bourgeoisie, ou seja, desafinar o coro monofnico dos

    contentes etc.

    A partir dessas inquietaes foi se construindo o significado de

    descano. Alm de se opor ao cdigo apriorstico de msica, uma maneira

    de se desapegar do passado cristalizado.

    Portanto, consideramos a descano um modo de composio que

    gerou a cano de Tom Z, desde o princpio de sua trajetria. Ao mesmo

    instante que ela o fez existir, levou-o a uma condio de isolamento16, por ele,

    talvez, no ter correspondido s expectativas de gravadoras e produtoras da

    15

    Aproximadamente entre o perodo 1999-2005. 16

    Estamos nos referindo ao perodo (1970-1980) de construo dos lbuns Estudando o Samba, Todos os olhos, Correio da Estao do Brs, Nave Maria, Se o caso chorar. Instante em estado de ostracismo.

  • 37

    poca, diferentemente do que ocorreu na dcada de 1990. A partir da, vem se

    lanando atravs de uma gravadora de porte pequeno, a Trama, mas com

    dada ascenso no mercado fonogrfico.

    Ao nosso olhar, o sentido da descano no processo de composio

    estende-se tambm aos mais recentes trabalhos de Tom Z17. E assumida

    como um posicionamento esttico, ideolgico e poltico.

    Um posicionamento descancional que gera uma poltica musical, um

    modo de se relacionar com a cano, sublinhando valores e incmodos de

    ordem esttica e tica gerados no campo musical. E que so influenciados por

    fatores externos e internos ligados cano, tambm no seu sentido formal.

    Nesse contexto, ao incorporar a figura de cantor e compositor, Tom Z

    leva-nos a reconfigurar aspectos sobre msica popular: quanto distribuio

    cannica de gneros cancionais, da cultura nordestina, da mdia e indstria

    fonogrficas, de personagens e mitos.

    4. A VOZ QUE ALIMENTA A VOZ

    A voz jaz no silncio do corpo como o

    corpo em sua matriz

    Zumthor

    Mudando de um lugar para outro e habitando o mesmo, ouvimos com

    mais ouvidos a construo de vozes que se cancionam e descancionam na

    msica de Tom Z.

    No cabe voz apenas um olhar fisiolgico, lingstico, fontico vocal. A

    sua emisso cantada, interpretada marca um lugar ou lugares na cano. Para

    alm de um debruar-se cientificamente sobre ela, a voz expressa sua

    17

    Jogos de Armar-Faa voc mesmo (2000); Com defeito de Fabricao (1999); Imprensa Cantada (2003).

  • 38

    materialidade no seu prprio ato de manifestao. Delimita uma vontade de

    dizer, de existir do indivduo que nela perpassa:

    (...) a voz querer dizer a vontade de existncia, lugar de uma ausncia

    que, nela, se transforma em presena; ela modula os influxos csmicos

    que nos atravessam e capta sinais: ressonncias infinitas que faz cantar

    toda matria.... (ZUMTHOR, 1997 p. 11)

    A voz constri, em volta da palavra enunciada, simbologias: ... a voz e

    suas vias, a garganta mais profunda... boca emblemtica, passagem para alm

    do corpo... (p. 15). Assim, traduz-se o intraduzvel. A voz mostra um corpo na

    sua dinmica cantada e no cantada.

    Ouvimos a msica captando sua voz ou vozes, no s a voz do msico

    interpretador (que emite outras vozes, alm da sua) como a voz do arranjo de

    instrumentos no verbais, reveladoras do que h em ns. E se direciona ao

    outro e a ns mesmos. Sentimos a msica em seu sentido amplo, a msica das

    msicas, assim, entre a variedade de vozes, humanas e trans-humanas, talvez.

    Apesar da concretude vocal na cano referente aos seus traos

    qualitativos palpveis como o tom, timbre, alcance, altura, registro, h tambm

    traos talvez inominveis, na sua escuta, que nos sugerem uma hibridao e

    disperso de sons, tornando ainda mais viva sua materialidade.

    4.1 A PERFORMANCE NA CANO

    A diversidade de linguagem humana para expressar inmeras idias e

    sensaes vasta e indomvel. A msica, assim como o teatro, dentre outras

    vivncias e experincias transcendentais traz corpo, voz e vozes. Possibilita a

    desconstruo da linearidade da voz e do corpo previsivelmente modelado

    socialmente, dentro de valores comportamentais cannicos, estereotipados.

    A desconstruo, portanto, torna-se mais uma maneira de se posicionar

    no mundo, mais um modo de vivenciar o corpo sem seguir, necessariamente,

    valores pressupostos, institucionalizados.

  • 39

    atravs da desconstruo do corpo e voz que adentraremos tambm

    na idia de uma performance na cano que, possivelmente, migra para uma

    descano ou para a desconstruo de cano. Traz tona rasuras vocal e

    instrumental.

    Compreendemos o sentido de rasura como ato ou efeito de risco,

    raspagem, feito na parte escrita de um texto ou documento etc. para tornar

    invlidas ou ilegveis palavras ali contidas18. O risco ou raspagem ocorre no

    texto da cano, na voz e instrumento, mas que a possvel invalidade ou

    ilegibilidade constri outra validade textual, musical.

    Defendemos no contexto de nossa anlise que o sentido do risco ou

    raspagem caracterstico da rasura torna um texto ilegvel para assumi-lo em

    sua legibilidade. necessrio encobrir, omitir ou errar o texto de uma cano,

    potencialmente estereotipada com certos valores pr-estabelecidos, como

    apresenta o cdigo apriorstico19, para afirmar o seu contrrio.

    A rasura afirma a voz do corpo, dos instrumentos, dos arranjos

    instrumentais, criadora de outro tempo e encenao na cano. Levando-nos

    dinmica de uma descano.

    A rasura percebida como um investimento discursivo, um acrscimo de

    algo que perturba uma sonoridade cannica. Ela desencadeada em arranjos

    vocal e instrumental, possibilitando gerar atos performticos20 vocais e

    corporais (estereotipados ou no) que expressam outros modos de habitar a

    msica.

    No contexto das artes plsticas, a performance pode ser um ato

    transgressor e de ruptura. Foi influenciada pelo pensamento oriundo do

    movimento de vanguarda - o futurismo, na Itlia, sculo XX, que tinha como

    foco radicalizar os conceitos vigentes de arte. Enfocaremos a performance

    vocal na cano, lugar e manifestao musical de maior interesse nosso. A

    18

    Definio apresentada no dicionrio Houaiss, de Lngua Portuguesa. 19

    Pginas 19-21. 20

    De acordo com Zumthor, ato performtico uma ao oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem potica simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. (ZUMTHOR, 2001, p.222).

  • 40

    performance musical em sentindo amplo teve significativa interferncia do

    compositor Jonh Cage, que incorporava nela silncio, rudos, pausas

    imprevisveis, princpios zens, elementos influenciados pela cultura oriental.

    Rasurar e performatizar a cano dialogar com outros campos

    discursivos da msica. possvel atravs dela desfazer-se de laos familiares

    e reconstruir histrias. criar uma nova msica, um novo percurso sonoro,

    num sentido amplo, trilhar caminho que integra uma atmosfera sempre em

    fertilizao.

    A rasurar a cano e assumir atos performticos pode causar efeitos de

    carnavalizao e grotesco, no sentido de Bakhtin (1999).

    5. MOVIMENTO DE INSTABILIDADE NA CANO: UMA CONDIO

    PARATPICA

    Nesse instante cabe a apresentao do conceito paratopia, que

    denomina uma condio instvel do indivduo.

    Em outros termos, a condio paratpica expressa o estado inconstante

    do indivduo de estar e no estar em lugares institucionalizados ou no. Refere-

    se a uma negociao difcil entre o lugar e o no-lugar, uma localizao

    parasitria, que vive da prpria impossibilidade de se estabiliza

    (MAINGUENEAU, 2001, p 28).

    O termo paratopia designa para alm do topos, do lugar, mas que lugar

    esse? Os lugares socialmente cristalizados (classe, papis, cargos, etc.) e,

    sobretudo, o da instituio, com a qual um indivduo convive conservando

    normas ou regras impostas explicitamente e implicitamente, sendo socialmente

    reconhecidas e que lhe cobram fixao e permanncia.

    Desse modo, um indivduo escritor ocupa um lugar para alm do lugar

    institucional, fato que torna conflituosa sua existncia, pois, assim como um

    msico, um danarino, um cineasta, dentre outros, (...) alimentam sua obra

  • 41

    com o carter radicalmente problemtico de sua prpria pertinncia ao campo

    literrio (digamos o artstico) e sociedade (MAINGUENEAU, 2001, p. 27).

    A Literatura, assim como outras linguagens humanas e artsticas

    (Msica, Cinema, Teatro, Artes Plsticas)21, so percebidas, de modo amplo,

    sociologicamente, mas antes, tambm, em seus micro lugares ou campos

    especficos: o literrio, o musical, o cinematogrfico, dentre outros. So nesses

    micros lugares que encontramos macro e rgidas regras que fazem o escritor

    ou msico, dentre outros, existirem socialmente num campo menor.

    Como produzir msica sem corresponder s expectativas contratuais

    desse micro campo? Que normas regem o campo musical? Ento, como

    ser msico sem ser msico? Como essas questes se refletem na cano de

    Tom Z?

    A verdade que h vrios campos na Msica, um campo maior (o

    dominante) e sub-campos (os marginalizados) em cada gnero cancional. O

    campo maior seria o campo apriorstico musical ou cdigo apriorstico, que

    segundo Campos (1997), refere-se s leis sagradas e imutveis de um cdigo

    de linguagem musical condicionado pelo veculo de massa, retroalimentador de

    uma conveno de valores estticos musicais, que cristaliza a msica,

    conforme j vimos.

    O outro campo denominado subcampo se encontra em espaos sociais

    mais isolados, so campos sem pr-determinaes que, movidos por um

    intenso desejo de existir, como os grupos nomeados Rock de garagem,

    sobrevivem de qualquer modo. A msica que se inscreve nesse campo toca

    em lugares especficos, em estdios annimos, por opo prpria ou em outras

    circunstncias, raramente tocam em algum lugar, por no cumprir com dados

    arranjos e melodias impostos pela indstria fonogrfica.

    21

    Maingueneau restringe-se em suas anlises textuais ao campo literrio: relao escritor, sociedade, instituio. Em algumas obras, ele analisa textos religiosos, teatrais, jornalsticos e publicitrios. Estamos nesse contexto observando a relao msico, sociedade instituio. O msico como escritor musical.

  • 42

    De certo modo, assim se fez a cano de Tom Z22 e de muitos dos

    quais nem sabemos pelas razes de optarem por se tornarem inexistentes,

    sendo possvel tambm uma outra, a de no corresponder s expectativas

    fonogrficas. E nesse subcampo, h ecos de cano sempre dispersos numa

    atmosfera musical desinteressada.

    5.1 O SER GROTESCO E CARNAVALIZANTE

    A condio instvel, parcialmente isolada ou paratpica do indivduo ao

    romper com determinada hierarquia institucional pode tambm integrar-se ao

    estado de grotesco. Estado em que o indivduo provoca e assume as

    necessidades viscerais e vitais do corpo, permitindo-se a vivncia de

    mutaes que desintegram uma dada ordem, almejando uma vida distante da

    normatividade pr-estabelecida. A seguir, apresentaremos algumas noes

    referentes idia do carnaval, derivao carnavalizao, a qual ns

    relacionamos condio paratpica e idia de descano.

    O grotesco a expresso da figura de linguagem hiprbole, da forma de

    comunicao (seja ela corporal, gestual-visual, verbal) que foge a uma

    conveno, apresentando alteraes de formas, tamanhos, cores, fonticas,

    morfolgicas, sintticas, comportamentais. O carter grotesco traz tona a

    abertura do corpo ao mundo, o corpo encarna o universo material, as

    instabilidades cosmolgicas: o mundo fsico, ambientes e animais.

    Tal caracterstica foi revelada em rituais e eventos carnavalescos no

    perodo da Idade Mdia.

    A idia de grotesco refletida na obra de Bakhtin (1999) atravs da

    manifestao da cultura cmica popular na Idade Mdia e no Renascimento, no

    contexto da obra do escritor e pensador Franois Rabelais. Tal manifestao

    caracterizada como um evento do carnaval.

    22

    Embora Tom Z seja visto como marginalizado no momento tropicalista (anos 60-70), recentemente, na dcada de 90 e incio de 2000, observado como um msico e cantor popular, freqentando programas televisivos(Programa do J Soares, Roda-Viva, Provocao), dando entrevista em revistas de circulao nacional (Bravo).

  • 43

    A idia de carnaval, concebida por Bakhtin (1997:122), designa uma

    forma sincrtica de espetculo de carter ritual, muito complexa, variada, que

    sobe base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variaes

    dependendo da diferena de pocas, povos e festejos particulares.

    Nesse sentido, o carnaval permite a fuso de elementos culturais

    diferentes e antagnicos, em um s elemento. Tal evento se corporifica numa

    linguagem de formas concretas-sensoriais e simblicas.

    Bakhtin (1999) nos apresenta a vivncia das formas do carnaval da

    cultura cmica popular omitida e marginalizada nos estudos literrios e no

    contar oficial da histria humana.

    Cuidadosamente, ele discute as modalidades de manifestao dessa

    cultura, subdividida em trs categorias: as formas dos ritos e espetculos

    (festejos carnavalescos, obras cmicas representadas na praa pblica); Obras

    cmicas verbais (orais e escritas em Latim ou em lngua vulgar); diversas

    formas e gneros do vocabulrio familiar e grosseiro (insultos, juramentos)

    (BAKHTIN, 1999, p. 4). Tais manifestaes em si carregam sua singularidade

    marcada pela construo de um outro mundo, um mundo margem do mundo

    j existente.

    O carnaval representava uma postura subversiva com relao a certos

    hbitos e rituais institucionalizados. Os eventos ritualsticos apresentavam uma

    viso do mundo, do homem e das relaes humanas totalmente diferente,

    deliberadamente no-oficial, exterior Igreja, e ao Estado, pareciam ter

    construdo, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda

    vida(...) (BAKHTIN, 1999, p. 4-5).

    Formas ou desformas de alteraes corporais como faces do baixo

    ventre a imagem de rebaixamento, da degradao que visa comunho da

    vida com a terra. Erguer o baixo revela o estado de transformao, de

    metamorfose ainda incompleta no estgio da morte e do renascimento, do

    crescimento e da evoluo.

  • 44

    Desse modo, a cultura carnavalesca constri-se numa ambivalncia. A

    vida tambm experienciada num processo de ambivalncia, numa

    contradio constante, a partir de dois plos de mudana: a morte e o nascer; o

    princpio e o fim; o antigo e o novo. Isso mostra a influncia cosmolgica na

    vida, o fluxo de mudanas geradas no indivduo que reflete a inconstncia do

    mundo. O carnaval faz o mundo se apresentar de modo imperfeito, inacabado.

    A individualidade passa a ser um estgio de fuso.

    Bakhtin (1997) ao tomar como princpio a idia do carnaval

    compreendida na linguagem dos rituais nomeou de carnavalizao a

    transposio dessa idia para as linguagens de imagens artsticas, literria.

    Com isso o autor delineia quatro categorias ou cosmovises

    carnavalescas que apontam para maneiras de vivenciar o carnaval, sendo elas:

    o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade; um modo de

    relaes mtuas do homem com o homem; a familiarizao ou msallinaces e

    a profanao.

    A primeira ou o livre contato familiar entre os homens contesta a

    distribuio dos homens numa totalidade hierrquica, a qual dita leis,

    proibies e restries. Ope-se concepo hierrquica e inaugura o livre

    contato familiar. Os diferentes planos nos quais o homem se encontra, ou seja,

    os das desigualdades sociais de classe econmica, de nvel intelectual migram

    para outro lugar e fundem um s plano, o da praa pblica.

    A segunda categoria revela a libertao do comportamento e gestos do

    homem das foras impostas ou do domnio hierrquico da vida

    extracarnavalesca. Os homens interagem e se comunicam no levando em

    considerao classe social, ttulos, idade e fortuna.

    A terceira categoria trata da familiarizao que designa a extenso da

    livre relao familiar a tudo: a valores, a idias, fenmenos e coisas. H a

    combinao do sagrado com o profano, do elevado com o baixo, do sbio com

    o tolo.

  • 45

    A ltima, a profanao tambm vinculada terceira formada pelos

    sacrilgios carnavalescos que expressam aes iconoclastas, a inverso de

    valores bblicos e dignos de respeito, atravs de pardias carnavalescas.

    Essas categorias firmam o carter contraditrio da vida humana atravs

    da inter-relao de todas as coisas. Elas so idias concreto-sensoriais,

    espetacular-rituais vivenciveis e representveis na forma da prpria vida, que

    se formaram e viveram ao longo de milnios entre as mais amplas massas

    populares da sociedade europia (Bakhtin, 1999, p. 124).

    Essas categorias exerceram intensas influncias na Literatura no que se

    refere construo de formas e gneros literrios.

    Partindo desse percurso, consideramos nesse trabalho que os traos

    grotescos e carnavalizantes apresentados tambm se estendem aos modos

    de se mostrar a cano, no seu corpo verbal, meldico, sonoro, instrumental. E

    funcionam como investimentos discursivos, apontando tambm para o que

    apresentamos sobre descano.

    6. O CAMINHO DE CHEGAR E NO CHEGAR: PERCURSO DO COMO

    DIALOGAR COM AS CANES

    Fomos guiados no percurso dessa viagem musical, esse

    verdadeiramente inacabado, pelo no saber, causa maior de nossa escuta. O

    desconhecido fez-nos ouvir e ver, no escuro, o colorido de canes.

    Falar sobre e com a msica, de modo amplo, tentando traduzi-la

    verbalmente, em seus efeitos e distores, quase um ato inalcanvel, uma

    vez que a linguagem musical no d nomes a coisas visveis e palpveis, tal

    como faz a linguagem verbal.

    A linguagem musical expressa linhas sonoras e rudos que se encontram

    e se desencontram. Por mais que haja uma dedicao em explic-la

    verbalmente, a msica aponta com uma fora toda sua para o no-verbalizvel,

    atravs de certas redes defensivas que a conscincia e a linguagem

  • 46

    cristalizada opem sua ao e toca em pontos de ligao efetivas do mental

    e do corporal, do intelectual e do afetivo (WISNIK, 2004, p 28).

    A viagem foi movida por um olhar que apreciou a relao de existncia

    da msica com o seu mundo exterior e, em parte, com o seu mundo interior,

    levando em conta no a quantidade x e exata de canes, mas a intensidade

    com que ela ou elas se manifestaram discursivamente.

    Explicitamos, portanto, construes sgnicas de traos que perfuram e

    integram o discurso literomusical do compositor Tom Z, sem necessariamente

    ou unicamente classificar, categoricamente, os modos de inseres

    discursivas.

    Analisamos uma parcela relevante de canes23 dos lbuns: Jogos de

    Armar-Faa voc mesmo, Com Defeito de Fabricao, Correio da Estao

    do Brs. E mais uma quantidade mnima significativa de canes dos lbuns

    Se o caso chorar, The hips of Tradicion, Todos os olhos e Jardim da

    poltica. Outros lbuns como Estudando o Pagode e Estudando o Samba

    foram citados com intuitos argumentativos voltados para a construo de

    sentido de posicionamentos musicais.

    Levamos em considerao melodia24 e letra. Noutro momento, a anlise

    do lbum como um todo (encarte25, melodia e letra) de algumas canes

    necessrias para discutirmos dados efeitos de alguns investimentos

    discursivos. E outros elementos musicais: ritmo, harmonia,