a constituição do sujeito e a ordem patologica

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A ideia do sujeito e as formas patológicas, como se dá

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  • 3 A constituio do sujeito e a ordem patolgica

    H em cada homem estranhas possibilidades. O presente seria cheio de todos os futuros se j o passado no projetasse nele uma histria. Mas, ai de ns, um nico passado prope um futuro nico projeta-o a nossa frente como um ponto infinito no espao (Andr Gide, em Os Frutos da Terra).

    3.1 A constituio do sujeito que se coloca em estados-limite

    O tema da constituio do sujeito est presente no trabalho de Freud e de

    praticamente todos os autores psicanalistas. Vrios destes contriburam de forma

    significativa para o entendimento de como se d esse processo. De incio, duas linhas se

    colocam, pelo menos na aparncia, em plos opostos: as que privilegiam teorias

    pulsionais e as que pensam que a motivao humana pode ser explicada por modelos

    relacionais. Dependendo de como so vistas e interpretadas, as diferentes teorias

    formam espectros bastante diversos. Um exemplo disso a teoria pulsional freudiana

    que, para muitos, v o sujeito se constituindo de forma um tanto solipsista. Para

    Greenberg e Mitchell, a teoria da pulso, no podendo ligar uma psicologia erigida

    sobre conceitos de energia e estrutura com uma psicologia do significado, no pode

    explicar completamente a motivao humana (Greenberg e Mitchell, 1994, p.15). A

    psicanlise de Freud, na opinio de alguns de seus opositores, d pouca nfase ao

    significado com que as pessoas pontuam suas experincias cotidianas, principalmente

    nos estgios iniciais do desenvolvimento humano. Por outro lado, os prprios autores

    acima mencionados se apressam em explicar que Freud utilizou metforas biolgicas,

    muito em funo do zeitgeist de sua poca e de sua prpria formao mdica. Mas

    enfatizar somente este aspecto pode obscurecer a aguda viso psicolgica, a verdadeira

    teoria de significado, que a fez crescer (Ibid., p. 16). De fato, seria at injusto pensar

    em apenas um modelo freudiano, tantas foram as modificaes, adendos, novos

    enfoques dados por Freud s teorias que elaborou ao longo de sua vida. Se, por um lado,

    inventou o modelo pulsional, Freud tambm dedicou boa parte de sua vida a integrar

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    conceitos relacionais na estrutura estabelecida deste modelo. Greenberg e Mitchell

    chegam a classificar de espria esta tentativa de distino da psicanlise como cincia

    natural ou disciplina interpretativa. Para eles, a teoria freudiana de mecanismo

    tambm uma teoria de significado.

    Octavio Souza, em seu artigo Nota sobre algumas diferenas na valorizao dos

    afetos nas teorias psicanalticas, tambm defende esta posio, com ressalvas:

    possvel encontrar, na obra de Freud, grande sensibilidade em relao ao lugar da alteridade na constituio do sujeito, demonstrada de modo mais significativo em seu apelo idia de herana filogentica, na teoria sobre as identificaes (sobretudo na pouco trabalhada noo de identificao primria), na valorizao progressiva do complexo de dipo e no conceito de superego, que um desdobramento da teoria das identificaes. Entretanto, embora o conceito de superego seja a formulao na qual Freud elaborou com mais riqueza e conseqncia suas concepes a respeito da funo da alteridade no psiquismo, ele deixa intocada a questo do estatuto dessa mesma funo no incio da vida psquica, uma vez que supostamente a formao do superego acontece apenas no declnio do complexo de dipo. interessante notar que seria justamente a partir da hiptese da precocidade da formao do superego e da generalizao para todo e qualquer processo pulsional da incidncia dos mecanismos de introjeo e projeo que Melanie Klein buscaria, de modo implcito, dar relevo incidncia da alteridade no momento inaugural da constituio do psiquismo (Souza, 2001, pp. 288-289).

    A oposio entre tericos do modelo pulsional e de outros modelos que

    privilegiem a teoria do significado, ou modelos baseados nas relaes de objeto, traz

    tambm uma outra discusso. Dentro de cada um destes modelos j se pode dizer que

    no existe consenso. Pulso um conceito diferente para Freud, Klein ou Lacan. Por

    sua vez, tambm as relaes objetais so pensadas de maneira bastante distinta entre os

    tericos que privilegiam o modelo relacional. Outros tipos de mapeamento do campo

    psicanaltico foram desenvolvidos, sem que necessariamente contenham superposies

    claras com os modelos pulsional e relacional. Novamente Octavio Souza, em outro

    artigo, Os continentes psquicos e o vazio em psicanlise, traz uma interessante

    contribuio, classificando, por uma abordagem diferente, as teorias analticas:

    a partir desta diferenciao profunda e inicial entre o sujeito e o outro que talvez possamos compreender a multiplicidade das teorias psicanalticas existentes, dividindo-as em dois grandes grupos: aquelas que so intersubjetivas em sua base e aquelas que so identificatrias em sua base. De um lado, teorias que postulam que o sujeito nasce tendo diante de si o objeto; de outro, teorias que postulam que este primeiro momento marcado pela indiferenciao e que tm em Winnicott um de seus principais tericos (Id., 2002).

    Para Souza, no time dos tericos intersubjetivos se renem o principal de

    Freud, Melanie Klein e Lacan, para os quais o sujeito est sempre s voltas com o

    objeto (Ibid.). J os tericos da relao de objeto, que compem o segundo time, como

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    Balint e Winnicott, vo considerar o primeiro momento da experincia psquica como

    no sendo da ordem da diferenciao (Ibid.). Entra a a temtica dos envelopes

    psquicos e dos continentes psquicos, da indiferenciao me-beb.

    importante observar que, em ambos os grupos, houve e tem havido grandes

    progressos na teorizao daquilo que comumente denominado como fase pr-edpica

    (que engloba a fase pr-verbal). Partindo de gneses diferentes e, portanto, com

    pressupostos tambm diversos, estas correntes tm, no obstante, um ponto em comum:

    ambas aceitam e realam a importncia dessa fase no desenvolvimento e na sade

    psquica. Essas duas correntes do pensamento psicanaltico se ocuparam, principalmente

    nos ltimos cinqenta anos, em pesquisar e formar teorias mais elaboradas sobre

    questes relativas psicose e os estados-limite. Com raras excees, existe um

    consenso de que a constituio do sujeito passa por sua fase mais crtica no perodo pr-

    edpico, quando se formam as bases que tero grande influncia sobre suas escolhas

    psquicas futuras. Alguns exemplos (vindos de tericos intersubjetivos, bem como dos

    identificatrios), de situaes nas quais a constituio do sujeito pode induzi-lo ao

    caminho de uma psicose ou de estados-limite, so mostradas a seguir.

    importante realar que muitos dos autores que mais contriburam para um

    melhor entendimento dos estados-limite, como Klein e Bion, escreveram muitos de seus

    artigos com o pensamento voltado para o entendimento das psicoses. No obstante, este

    material se mostrou extremamente til para uma melhor compreenso dos estados-

    limite, o que se explica pela proximidade das etiologias de ambas as estruturas.

    Os prximos itens deste captulo iro mostrar alguns exemplos de como estes

    autores priorizaram o incio da vida psquica e de como formularam algumas de suas

    teorias que influenciaram o pensamento psicanaltico contemporneo, possibilitando

    uma melhor compreenso da etiologia dos estados-limite.

    3.1.1 A formao de smbolos

    Em seu famoso artigo de 1926, Inibies, sintomas e angstia, ao falar do

    recalque como sendo um dos mecanismos de defesa, Freud faz uma ressalva:

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    Pode muito bem acontecer que antes da sua acentuada ciso em um ego e um id, e antes da formao de um superego, o aparelho mental faa uso de diferentes mtodos de defesa dos quais ele se utilize aps haver alcanado essas fases de organizao (Freud, 1926, p. 160).

    Quatro anos mais tarde, em 1930, Melanie Klein escreveria um artigo intitulado

    A importncia da formao de smbolos no desenvolvimento do ego, que ficou

    tambm conhecido como o caso do menino Dick. Refere-se ao relato do tratamento de

    um menino autista, no qual Klein descreve a ausncia da funo simblica e,

    conseqentemente, do interesse por tudo a sua volta. Naquela ocasio, Klein daria

    seguimento sua tese de que o conflito edipiano ocorre em estgios mais precoces do

    que propunha Freud. Para ela, estes estgios so marcados por uma atividade sdica,

    presente em todas as fontes de prazer libidinal. Isto fazia parte daquilo que era

    classificado por ela como realidade primitiva, presente na fase (ou posio, como

    preferia Klein1) esquizo-paranide, dos objetos parciais. A comeava o

    desenvolvimento do ego e tambm o incio do conflito edipiano, marcado pelas

    fantasias sdicas2. O excesso de sadismo traz consigo uma carga de angstia, que coloca

    em ao as formas mais primitivas de defesa do ego, provocadas por duas fontes de

    perigo: o prprio sadismo do beb e o objeto que atacado3. Estas formas primitivas de

    defesa do ego diferem fundamentalmente do mecanismo de recalque: so de natureza

    violenta e implicam expulso (em relao ao prprio sadismo do sujeito) e destruio

    (em relao ao objeto do sadismo). Assim, o ego em desenvolvimento se v diante de

    uma tarefa que no est ao alcance de suas possibilidades nesse estgio: a de dominar a

    mais aguda ansiedade (Klein, 1930, p. 252).

    Klein concluiu que o objeto do ataque sdico identificado, pelo beb, com o

    objeto agressor, isto , ele prprio. Este processo primitivo de identificao4, forma o

    que Klein nomeou de equao simblica. Esta ltima pode ser entendida como um

    pr-simbolismo, pois, neste processo, o smbolo confundido (ou igualado) com o

    objeto. Para Klein, o simbolismo o fundamento de toda a sublimao e de todo o

    1 A palavra posio exprime melhor que o estado (esquizide, paranide, depressivo) surge num dado momento do desenvolvimento do sujeito, podendo repetir-se depois, de forma estrutural, em certas etapas da vida ou em situaes especficas, como formas de defesa. J a palavra fase pode pressupor que o estado descrito tem um comeo e um fim, uma suspenso definitiva aps uma durao especfica. 2 Esta forma de conceber o aparelho psquico primitivo privilegiava a teoria pulsional freudiana. 3 Segundo Klein, o sadismo se torna fonte de perigo porque oferece uma ocasio para a liberao da angstia e porque as armas empregadas para destruir o objeto so sentidas, pelo sujeito, como sendo ameaadoras a si prprio. Por outro lado, o objeto do ataque se torna uma fonte de perigo, pois sentido pelo sujeito como uma fonte de ataques retaliadores. 4 Este processo inspiraria Klein, mais tarde, a desenvolver a idia de identificao projetiva em Notas sobre alguns mecanismos esquizides (1946).

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    talento, pois atravs da equao5 simblica que as coisas, as atividades e os interesses

    se tornam o contedo de fantasias libidinais (Ibid.). Portanto a angstia que impele o

    mecanismo da identificao, atravs da equao simblica, na qual o beb iguala seus

    rgos com os demais objetos, os quais, por sua vez se tornam objetos de angstia,

    impelindo o beb a fazer outras e novas equaes, que iro, por sua vez, formar a base

    de seu interesse em novos objetos e no simbolismo.

    Desse modo, o simbolismo se torna a base no s de toda a fantasia e sublimao, mas tambm da relao do indivduo sujeito com o mundo externo e com a realidade em geral (...). O desenvolvimento do ego e a relao com a realidade dependem da capacidade do indivduo de tolerar a presso das primeiras situaes de ansiedade j num perodo muito inicial (...). essencial que o ego possua a capacidade adequada de tolerar a ansiedade, a fim de elabor-la de forma satisfatria. Desse modo, essa fase bsica ter uma concluso favorvel e o desenvolvimento do ego ser bem-sucedido (Ibid., pp. 252-253).

    Hanna Segal em seu artigo de 1957 Notes on symbol formation, atravs de

    dois exemplos interessantes, ressalta a diferena entre a simbolizao feita por dois de

    seus pacientes: o primeiro um esquizofrnico que aps o inicio de sua doena havia

    parado de tocar violino e ao ser questionado sobre esta atitude, respondeu: voc espera

    que eu me masturbe em pblico? Um segundo paciente relatou um sonho que teve, no

    qual ele tocava violino com uma moa. Ele associou o sonho a uma fantasia de

    masturbao, no qual o violino representava seu rgo sexual e toc-lo representava

    masturbar-se. Embora os exemplos sugiram situaes anlogas de uso de smbolos o

    violino representando o rgo genital masculino e tocar o violino representando o ato

    masturbatrio Segal aponta para um funcionamento bastante diferenciado deste

    smbolo, nos dois exemplos. No primeiro caso, o violino se tornou to completamente

    igualado ao rgo genital que toc-lo em pblico se tornou impossvel: o violino era

    sentido como sendo genital; no segundo caso, o violino representava o genital, tornando

    possvel, portanto, uma diferenciao consciente entre um e outro. Neste ltimo

    exemplo, o violino pde ser sublimado, embora esta hiptese imponha uma diferena

    conceitual importante entre Klein e Segal, de um lado e Jones, de outro. Para Jones

    (citado por Segal), o que sublimado no simbolizado. Nos exemplos acima, Jones

    diria que o violino do primeiro paciente poderia ser considerado como um smbolo, da

    mesma forma que no sonho do segundo paciente. Mas no seria um smbolo, quando

    este segundo paciente, uma vez acordado, tocasse o violino. Neste caso seria um ato de

    5 A palavra no original em ingls equation, que foi, entretanto, traduzida na referncia mencionada como igualdade. Preferiu-se manter a fidelidade ao texto original.

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    sublimao. Segal, discordando de Jones, cita Klein, que mostrava que as brincadeiras

    das crianas uma atividade sublimatria , so tambm uma expresso simblica de

    ansiedades e desejos. Ela afirma que

    A formao de smbolos uma atividade do ego tentando dar conta das ansiedades causadas por suas relaes com o objeto. Primariamente isto representa o medo de objetos maus e o medo de perder ou no ter acesso aos objetos bons. Os distrbios na relao do ego com os objetos so refletidos em distrbios na formao dos smbolos. Em particular, distrbios na diferenciao entre ego e objeto levam a distrbios na diferenciao entre o smbolo e o objeto simbolizado e, conseqentemente, ao pensamento concreto, caracterstico das psicoses (Segal, 1957, p. 394).

    Compartilhando a teoria de Klein, Segal descreve as primeiras relaes objetais

    como um processo de ciso do objeto entre o idealmente bom e o inteiramente mau. O

    objetivo do ego o de unio total com o objeto bom e o de aniquilao total do objeto

    mau, assim como das partes ms do self. O pensamento onipotente soberano e o senso

    de realidade intermitente e precrio. Basicamente no existe o conceito de ausncia.

    Todas as vezes que a unio com o objeto ideal no for concretizada, o que

    experimentado no a ausncia; o ego se sente assaltado pela contrapartida do objeto

    bom o objeto mau. Essa a poca em que o pensamento cria objetos que passam a ser

    sentidos como presentes. Em seu Projeto de 1895, Freud j dizia que (...) a lembrana

    primria de uma percepo sempre uma alucinao (...) (Freud, 1895, p. 392). De

    acordo com Melanie Klein, esta tambm a poca das ms alucinaes; quando as

    condies ideais no so preenchidas, o objeto mau igualmente alucinado e sentido

    como sendo real.

    O mecanismo de defesa talvez mais importante, nesta fase, a identificao

    projetiva. Segal descreve:

    Na identificao projetiva o sujeito, em sua fantasia, projeta grandes partes de si mesmo no objeto e o objeto se torna identificado com as partes do self que o sujeito sente que ele contm. Da mesma forma, objetos internos so projetados para fora e identificados com partes do mundo externo, que passam a represent-los. Estas primeiras projees e identificaes representam o incio do processo de formao de smbolos (Segal, 1957, p. 395).

    Os smbolos precoces, entretanto, como visto anteriormente, no so sentidos

    pelo ego como sendo smbolos, mas como sendo o prprio objeto original. Eles formam

    parte daquilo que Klein denominou de equao simblica. Para Segal, a equao

    simblica entre o objeto original e o smbolo no mundo interno e externo a base para o

    pensamento concreto esquizofrnico, no qual a no-diferenciao entre a coisa

    simbolizada e o smbolo parte do distrbio na relao entre o ego e o objeto.

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    Para Klein, a equao simblica a marca caracterstica da posio esquizo-

    paranide. A evoluo do ego e as mudanas na relao do ego com seus objetos se do

    de forma gradual e assim tambm ocorre com a evoluo da equao simblica para os

    smbolos propriamente ditos. Isto ocorre num perodo que Klein denominou de posio

    depressiva. Aos poucos o ego vai adquirindo um senso de realidade calcado em trs

    principais alteraes em sua relao com o objeto: uma maior conscientizao de

    ambivalncia, uma menor intensidade de projees e uma crescente diferenciao entre

    o self e o objeto. Simultaneamente o ego vai-se tornando cada vez mais preocupado em

    resguardar o objeto de sua agresso e possessibilidade.

    (...) quando surgem conflitos entre amor e dio na mente do beb, e o medo de perder o objeto amado entra em ao, ocorre um avano muito importante no desenvolvimento. Esses sentimentos de culpa e de sofrimento surgem como um novo elemento na emoo do amor. Eles se tornam parte integrante do amor, influenciando-o profundamente em termos de qualidade e quantidade (Klein, 1937, p. 352). Este esforo ir implicar num certo grau de inibio dos impulsos agressivos e

    libidinais. Comea a tambm aquilo que Freud denominou de narcisismo secundrio.

    Essa capacidade do ego de proceder s mediaes dos impulsos sexuais que vai

    permitir a sublimao, conforme nos diz Freud:

    A transformao da libido do objeto em libido narcsica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualizao uma espcie de sublimao, portanto. Em verdade, surge a questo, que merece considerao cuidadosa, de saber se este no ser o caminho universal sublimao, se toda sublimao no se efetua atravs da mediao do ego, que comea por transformar a libido objetal sexual em narcsica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo (Freud, 1923, p. 43).

    Segal postula que a formao dos smbolos na posio depressiva necessita de

    alguma inibio da libido sexual em relao ao objeto original, o que, por sua vez, torna

    os smbolos disponveis para a sublimao. Os smbolos criados internamente podem

    ento ser re-projetados no mundo externo, dotando-o de significao simblica.

    Na equao simblica, o smbolo-substituto sentido como sendo o objeto original. As propriedades prprias do substituto no so reconhecidas ou admitidas. A equao simblica utilizada para negar a ausncia do objeto ideal ou para controlar um objeto persecutrio. Pertence aos estgios mais primitivos do desenvolvimento. (...). A formao dos smbolos governa a capacidade de comunicar, uma vez que toda a comunicao feita por intermdio de smbolos. Quando ocorrem distrbios esquizides nas relaes objetais, a capacidade de comunicar igualmente perturbada: primeiro porque a diferenciao entre o sujeito e o objeto obscura, segundo porque faltam os meios de comunicao, j que os smbolos so sentidos de uma forma concreta e esto, portanto, indisponveis para a comunicao. (...) A dificuldade em lidar com pacientes esquizofrnicos e esquizides encontra-se no somente no fato que eles no conseguem se comunicar conosco, mas principalmente no fato que eles no conseguem se comunicar com eles mesmos (Segal, 1957, p. 396).

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    At aqui, a preocupao de Segal foi a de mostrar as diferenas entre dois

    extremos: por um lado, um ego que ultrapassa as etapas de desenvolvimento at atingir

    a uma maturidade na qual os smbolos podem ser utilizados livremente e a sublimao

    pode se transformar num recurso natural do aparelho mental para controlar a libido

    sexual e agressiva. Por outro lado, um ego que fica preso nas etapas mais primitivas do

    desenvolvimento, numa posio esquizo-paranide, praticamente incapaz de formar

    smbolos. Para Segal, fica clara a importncia que tem este processo de maturao do

    ego, de passar bem pela fase depressiva, lidando com as relaes precoces de objeto.

    Mas este exemplo no indica, evidentemente, que este seja um processo binrio. E Segal

    acrescenta que alguma integrao e relaes objetais totais podem ser alcanadas na

    posio depressiva, acompanhadas da ciso de experincias mais precoces do ego.

    Nesta situao, algo parecido com um bolso de esquizofrenia pode existir isolado no

    ego, tornando-se uma ameaa constante estabilidade. Neste caso, na pior hiptese,

    pode ocorrer um eventual desequilbrio psquico, trazendo ansiedades primitivas em

    forma de equaes simblicas cindidas, que invadem o ego. Na melhor hiptese, um

    ego relativamente maduro, apesar de restrito, pode-se desenvolver e funcionar.

    3.1.2 Os ataques ao elo de ligao

    A comparao entre a personalidade neurtica e a psictica necessria para um

    melhor entendimento dos estados-limite. Freud, em artigo de 1924, escreve sobre aquilo

    que talvez seja a mais importante diferena gentica entre uma neurose e uma

    psicose:

    A neurose o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose o desfecho anlogo de um distrbio semelhante nas relaes entre o ego e o mundo externo (Freud, 1924, p. 167).

    Nas neuroses, o ego se defende do id atravs do recalque. O material recalcado

    acaba criando representaes substitutivas, que so os sintomas neurticos. Para Freud,

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    o ego entrou em conflito com o id, a servio do superego e da realidade, e esse o

    estado de coisas em toda neurose de transferncia6 (Ibid., p. 168).

    No caso das psicoses, segundo Freud, o ego cria um novo mundo externo e

    interno e esse mundo construdo de acordo com os impulsos desejosos do id. O

    motivo dessa dissociao do mundo externo alguma frustrao7 muito sria de um

    desejo por parte da realidade uma frustrao que parece intolervel. Freud resume

    assim, as conseqncias da ao do ego em funo de tais frustraes:

    O efeito patognico depende de o ego, numa tenso conflitual desse tipo, permanecer fiel sua dependncia do mundo externo e tentar silenciar o id, ou ele se deixar derrotar pelo id e, portanto, ser arrancado da realidade (Ibid., p. 169).

    Treze anos antes de escrever seu artigo sobre as diferenas entre neurose e

    psicose, portanto em 1911, Freud escreveu Formulaes sobre os dois princpios do

    funcionamento mental, no qual discorre sobre o princpio de prazer e o princpio de

    realidade. Ao falar sobre este ltimo, ele menciona algumas adaptaes necessrias no

    aparelho psquico, como uma evoluo necessria em resposta ao princpio de

    realidade. Ele escreve ento, em suas prprias palavras superficialmente, sobre estas

    funes: a conscincia das impresses sensoriais, a ateno, a memria, o

    discernimento, o pensamento (Freud, 1911, p. 239).

    A escolha ou fuga para a neurose se d, como Freud esclarece, atravs do

    mecanismo de recalque (produto do conflito entre o ego e o id). J a fuga para a psicose,

    de acordo com Bion, ocorre atravs do mecanismo de identificao projetiva. Para ele, o

    psictico estilhaa os objetos e,

    (...) simultaneamente, todo o setor de sua personalidade que o leva a tomar conhecimento da realidade por ele odiada fragmentada, em pedaos mnimos tambm; pois isto que contribui substancialmente para a sua sensao de que no capaz de restaurar seus objetos ou o prprio ego (Bion, 1994, p. 60). Neste caso, todas as funes que Freud descreve como adaptativas do aparelho

    psquico ao princpio de realidade, so alvo de ataques sdicos e estilhaadores que

    levam minscula fragmentao dessas funes, seguida de sua expulso da

    6 No sentido nosogrfico, esta a categoria de neuroses que Freud distingue das neuroses narcsicas. Em comparao com estas ltimas, as neuroses de transferncia se caracterizam pelo fato de a libido ser sempre deslocada para objetos reais ou imaginrios, em lugar de se retirar para o ego. Disso resulta serem mais acessveis ao tratamento psicanaltico, porque se prestam constituio no tratamento de uma neurose de transferncia no sentido clnico, em torno da relao com o analista (Laplanche e Pontalis, 1995, p. 308). 7 Para Freud, essa frustrao , em ltima anlise, sempre uma frustrao externa, tanto no caso das neuroses como no das psicoses, embora possa tambm proceder do agente interno (superego) que assume a representao das exigncias da realidade (Freud, 1924, p. 169).

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    personalidade e penetrao ou enquistamento nos objetos (Ibid.). Para Bion, na fantasia

    do paciente, as partculas expelidas do ego levariam uma vida independente e sem

    controle, ora contendo objetos externos, ora sendo por estes contidas. Em conseqncia

    deste processo, o paciente se sente rodeado por aquilo que Bion denominou de objetos

    bizarros.

    Cada partcula vivida como consistindo num objeto real que est encapsulado no pedao de personalidade que o engoliu. A natureza da partcula como um todo depender, em parte, das caractersticas do objeto real digamos, um gramofone e, em parte, das caractersticas da partcula de personalidade que o engoliu. Se o pedao de personalidade for relacionado viso, o paciente achar que o gramofone quando estiver tocando estar olhando para ele; se relacionado audio, a ele achar que o gramofone o estar ouvindo, quando posto em funcionamento. O objeto, enraivecido, por ter sido engolido, incha, por assim dizer, e se esparrama, controlando o pedao de personalidade que o engoliu; nesse sentido, a partcula de personalidade tornou-se uma coisa (Ibid., pp. 60-61).

    Por outro lado, este tipo de paciente, por no suportar a realidade, quer-se afastar

    dela o mximo que for possvel, com um mnimo de esforo. Isto mais facilmente

    conseguido se puder desfechar esses ataques destrutivos exatamente no elo de ligao,

    seja qual for, que vincula as impresses sensoriais conscincia (Ibid., p. 61). Para

    Bion, a percepo da realidade psquica ocorre na razo direta do desenvolvimento da

    capacidade de pensamento verbal, com base na posio depressiva. Como descrito nos

    trabalhos de Klein e Segal, nesta posio que ocorre a formao dos smbolos e a

    relao desta com o pensamento verbal. O paciente psictico, entretanto, fica preso

    posio esquizo-paranide, sendo capaz de igualizar, mas no de simbolizar.

    A questo que mais uma vez se impe a de saber se os caminhos do ego tm

    seus contornos to claramente delineados e irredutveis. Para Bion, o ego nunca est

    inteiramente afastado da realidade. Para ele, o contato com a realidade mascarado

    pelo predomnio, na mente e na conduta do paciente, de uma fantasia onipotente, que

    visa a destruir ou a realidade, ou a conscincia que tenha dela e, assim, atingir um

    estado que no vida nem morte (Ibid., p. 59). Em outras palavras, os fenmenos

    neurticos jamais esto ausentes e servem, com sua presena em meio a material

    psictico, como um fator complicador da anlise.

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    3.1.3 Da identificao projetiva ao uso de um objeto

    Pode-se dizer que muitos dos conceitos formulados por Melanie Klein foram

    inspiradores de toda uma corrente psicanaltica contempornea, que enfatiza a

    existncia de relaes de objeto precoces como fundadoras do desenvolvimento

    psquico e da personalidade8. Entre estes conceitos est o de identificao projetiva,

    como o mais importante mecanismo de defesa da posio esquizo-paranide. Klein

    criou esta noo vinculando-a ao sadismo infantil: o beb no deseja somente destruir a

    me, porm quer tambm se apossar dela:

    Muito do dio contra partes do self [projetadas] agora dirigido contra a me. Isso leva a uma forma particular de identificao que estabelece o prottipo de uma relao de objeto agressiva. Sugiro o termo identificao projetiva para esses processos (Klein, 1946, p. 27).

    Bion, alinhado com muitos dos conceitos de Klein, em especial com a idia de

    que a angstia est ligada ao sadismo e pulso de morte, refinou o conceito de

    identificao projetiva. Para ele esta a forma mais importante de interao entre

    paciente e analista, tanto na terapia individual como em grupos. Uma outra contribuio

    de Bion diz respeito confuso reinante no meio psicanaltico, entre os conceitos de

    projeo e de identificao projetiva. Para ele, no caso da identificao projetiva, o

    analista sente que ele est sendo manipulado no sentido de tomar parte, no importando

    quo difcil de reconhecer, na fantasia de um outro (Bion, 1959, p. 149). Em outras

    palavras, a distino entre os conceitos de projeo e de identificao projetiva reside no

    fato de o receptor da projeo ser ou no afetado emocionalmente pela fantasia daquele

    que projeta. Bion tambm estabeleceu uma relao entre a identificao projetiva com

    outras idias, como a dos objetos bizarros,9 e a de continente-contedo. Este ltimo

    conceito, extrado da relao me-beb, traz tambm importantes conseqncias

    clnicas.

    Para Bion, existe, desde o incio da vida, um vnculo emocional profundo entre a

    me e o beb. O sadismo deste ltimo provoca angstias que podem ser muito intensas

    e que tm que ser descarregadas num objeto externo, no caso a me. Esta, por sua vez,

    desde que tenha certas capacidades emocionais, poder absorv-las, e at metaboliz-

    8 Embora, deva-se ressaltar que vrios autores compartilham com Klein a tese das relaes de objeto precoces, mas divergem quanto gnese da agresso e do sintoma. Winnicott um bom exemplo destes. 9 Vide pg. 52.

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  • 55

    las, devolvendo-as de maneira menos angustiante e mais assimilvel ao seu beb. Neste

    processo, a me no precisa fazer uso de interpretaes ou qualquer outra verbalizao.

    Basta acolher o beb de forma que este se sinta seguro, mais calmo. Por outro lado, se a

    me tambm se angustiar, esta angstia poder ser devolvida criana e esta poder cair

    num estado que Bion classificou como terror inominvel. A relao continente-

    contedo representa algo complementar entre a identificao projetiva da criana e a

    receptividade materna. A me o continente deste contedo, recebe-o e processa-o.

    Bion designa com a palavra rverie (que poderia ser traduzida como devaneio) o estado

    de receptividade materna.

    Winnicott no utiliza o conceito de identificao projetiva, at porque o beb

    winnicottiano no tem um outro para projetar objetos e partes do self. Para ele no

    existem objetos bons ou maus internalizados. O beb vive, nos primeiros momentos, um

    processo de indiferenciao em que a me no separada dele, em que s h sentido

    falar no conjunto me-beb. No obstante esta grande e importante diferena terica

    (que traz tambm conseqncias clnicas importantes), pode-se aproximar, por outro

    ngulo, alguns de seus conceitos com os de Klein, Bion e outros tericos

    intersubjetivos. Em seu artigo de 1952, Psicoses e cuidados maternos, Winnicott nos

    fala do conjunto indivduo-ambiente10:

    No incio, o indivduo no uma unidade. Para o observador externo, a unidade o conjunto ambiente-indivduo. (...) Se tudo correr bem, o ambiente criado pelo indivduo torna-se bastante parecido quele que todos geralmente percebem, e nesse caso acontecer algum dia um estgio no processo de desenvolvimento atravs do qual o indivduo passar da dependncia para a independncia. Trata-se de uma fase de desenvolvimento repleta de armadilhas, e do sucesso nessa etapa depende a sade mental no que diz respeito psicose (Winnicott, 1952, p. 308).

    Neste mesmo artigo, Winnicott traa uma srie de diagramas nos quais tenta

    mostrar as diferentes formas de comportamento entre indivduo e ambiente. Faz ento

    um paralelo entre o quadro de um indivduo que procura o ambiente e recebe deste a

    acolhida esperada, com um outro no qual existe uma intruso do ambiente sobre o

    indivduo, provocando um retorno deste a um isolamento defensivo. Este ltimo

    cenrio, para Winnicott, pode ser responsvel por uma ciso bsica no conjunto

    ambiente-indivduo e poderia ter incio no fracasso da adaptao ativa por parte do

    ambiente, no incio da vida (Ibid., p. 311).

    10 Por ambiente, Winnicott quer indicar primordialmente a me ou a pessoa que assume os cuidados maternos.

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  • 56

    Quando existe em alto grau a tendncia ciso nessa fase inicial, o indivduo corre o risco de ser seduzido para uma vida falsa, e os instintos tornam-se nesse caso aliados do ambiente sedutor. (...) Uma seduo bem-sucedida desse tipo pode produzir um eu falso que parece satisfazer o observador incauto, apesar de que a esquizofrenia se encontra latente e ir ao final exigir ateno (Ibid., pp. 311-312).

    Esta ciso no conjunto ambiente-indivduo lana a base para a formao daquilo

    que, alguns anos mais tarde, Winnicott viria a denominar de personalidade falso self.

    Para ele, no incio da vida, tanto o id como o ego no so sentidos pelo lactente como

    sendo seus. Desta forma, satisfazer as necessidades do beb no significa satisfazer suas

    pulses. O ego do lactente est criando fora e, como conseqncia, est a caminho de

    um estado em que as exigncias do id sero sentidas como parte do self, no como

    ambientais (Id., 1960, p. 129).

    Em pelo menos duas outras ocasies distintas, Winnicott aborda, por ngulos

    diferentes, a questo do par me-beb. Em O papel de espelho da me e da famlia no

    desenvolvimento infantil, inspirado em Lacan e seu Estdio do espelho, ele

    pergunta:

    O que v o beb quando olha para o rosto da me? Sugiro que, normalmente, o que o beb v ele mesmo. (...) Muitos bebs, contudo, tm uma longa experincia de no receber de volta o que esto dando. Eles olham e no se vem a si mesmos (Id., 1967, p. 154).

    O beb que olha para a me e se v est num estado de apercepo. como se o

    rosto da me fosse um espelho. Por outro lado, uma me com rosto fixo, ou que reage

    mal quando o beb est em dificuldades ou quando agressivo, vai fazer com que o

    beb, ao olhar para o rosto dela, veja exatamente isto: o rosto da me.

    Assim, a percepo toma o lugar da apercepo, toma o lugar do que poderia ter sido o comeo de uma troca significativa com o mundo, um processo de duas direes no qual o auto-enriquecimento se alterna com a descoberta do significado no mundo das coisas vistas. (...) Na direo da patologia, encontra-se a predizibilidade, que precria, e fora o beb aos limites de sua capacidade de permitir acontecimentos. Isso acarreta uma ameaa de caos e o beb organizar a retirada ou no mais olhar, exceto para perceber, como defesa. Um beb tratado assim crescer sentindo dificuldades em relao a espelhos e sobre o que o espelho tem a oferecer. Se o rosto da me no reage, ento o espelho constitui algo a ser olhado, no a ser examinado (Ibid., p. 155).

    Em um outro artigo, de 1969, O uso de um objeto e relacionamento atravs de

    identificaes, Winnicott traz tona alguns exemplos vistos por um ngulo novo. O

    uso de um objeto, para ele, posterior relao de objeto e requer do sujeito a

    capacidade de colocar o objeto fora da rea dos fenmenos subjetivos. O objeto, se

    que tem de ser usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da

    realidade compartilhada, e no um feixe de projees (Id., 1969, p. 123). A relao de

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  • 57

    objeto mais facilmente explicvel pela psicanlise, j que o relacionar-se pode ser

    examinado como um fenmeno do sujeito enquanto o uso de um objeto requer levar em

    considerao a natureza do objeto, no como projeo, mas como coisa em si. Para

    Winnicott, a psicanlise prefere sempre eliminar todos os fatores ambientais, exceto na

    medida em que se pode considerar o meio ambiente em termos de mecanismos

    projetivos (Ibid., p. 124).

    Os dois exemplos mais marcantes que Winnicott apresenta em seu artigo dizem

    respeito ao uso de um objeto na relao me-beb e na relao analisando-analista. Em

    ambos os casos, h que se passar da relao de objeto, em primeiro lugar, e, atravs de

    uma fase intermediria, chegar, no final, ao uso do objeto. Entre o relacionamento e o

    uso existe a colocao, pelo sujeito, do objeto fora da rea de seu controle onipotente,

    isto , a percepo, pelo sujeito, do objeto como fenmeno externo, no como entidade

    projetiva (Ibid., p. 125). Para alcanar a rea intermediria entre o relacionamento e o

    uso so necessrios alguns passos, todos de vital importncia: em primeiro lugar, o

    objeto encontrado, ao invs de ter sido colocado pelo sujeito no mundo (fim da

    onipotncia); em seguida, o sujeito destri o objeto; o passo seguinte aquele em que o

    objeto sobrevive destruio, o que torna a realidade do objeto sobrevivente sentida

    como tal. S ento, possvel, para o sujeito, usar o objeto.

    O objeto est sempre sendo destrudo. Essa destruio torna-se o pano de fundo inconsciente para o amor a um objeto real, isto , um objeto situado fora da rea do controle onipotente do sujeito. O estudo desse problema envolve um enunciado do valor positivo da destrutividade. Esta, mais a sobrevivncia do objeto destruio, coloca este ltimo fora da rea de objetos criados pelos mecanismos psquicos projetivos do sujeito. Dessa maneira, cria-se um mundo de realidade compartilhada que o sujeito pode usar e que pode retroalimentar a substncia diferente-de-mim dentro do sujeito (Ibid., p. 131).

    Como se v, o conceito de uso do objeto, envolve tambm duas caractersticas

    marcantes: a primeira a da experincia do sujeito, desde o relacionar-se com o objeto,

    seguida das demais etapas at o uso do objeto. A segunda caracterstica depende do

    objeto em si: o objeto precisa sobreviver destruio. O autor aponta em seus

    exemplos, tanto no par me-beb, como no do analisando-analista, que em alguns casos,

    o objeto (a me ou o analista) se deixa destruir, por no suportar a agressividade do

    sujeito. Este deixar-se destruir pode ocorrer por retaliao, abandono ou pelo objeto se

    colocar na posio de vtima dos ataques do sujeito, e impede, no caso do beb, o

    desabrochar de seu potencial de desenvolvimento, e, no caso do analisando, que a

    anlise chegue a um bom termo. Embora Winnicott empregue a palavra destruio,

    para ele a destruio real relaciona-se ao fracasso do objeto em sobreviver.

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  • 58

    Winnicott tambm aponta para a anlise do caso de tipo fronteirio como um

    exemplo da dificuldade da questo do uso do objeto. O cerne do distrbio do paciente

    psictico, mas o que aparece na anlise (e na vida real do paciente) um distrbio

    psiconeurtico (ou psicossomtico), toda vez que a ansiedade central psictica ameaa

    irromper de forma crua. Ele alerta para o fato de que o psicanalista pode ser conivente,

    durante anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurtico e de ser tratado como

    tal.

    A anlise vai bem e todos manifestam satisfao. O nico inconveniente est em que a anlise jamais termina. Pode ser concluda e o paciente pode mesmo mobilizar um falso eu (self) psiconeurtico para finalizar o tratamento e expressar gratido (Ibid., p. 122). Pode-se especular sobre os diversos motivos que levaram a anlise a chegar a

    este ponto: o paciente no aprendeu a alcanar a etapa de encontrar ou destruir o objeto;

    o analista no produz um campo frtil para que esta etapa possa ser desenvolvida; a

    etapa de encontrar e destruir o objeto alcanada, porm o analista se deixa destruir.

    Em todos os casos, aponta Winnicott, analista e paciente tiveram xito em conluiar-se

    para provocar um fracasso.

    Como uma espcie de corolrio da questo da destruio e uso do objeto, fica

    um importante entendimento da questo da agressividade, na medida em que este difere

    substancialmente daquele contido nas teorias clssicas em psicanlise.

    Na teoria ortodoxa, continua a suposio de que a agressividade reativa ao encontro com o principio de realidade, ao passo que, aqui, o impulso destrutivo que cria a qualidade da externalidade. (...) No h raiva na destruio do objeto a que me refiro, embora se possa dizer que existe alegria pela sobrevivncia do objeto (Ibid., p. 130).

    Winnicott, embora muito influenciado pelas teorias de Klein, no aceitava a

    questo freudiana (e kleiniana) da agressividade em termos de pulso de morte. Klein

    partiu da pressuposio bsica de que esta pulso responsvel pelo sadismo original e

    de que este ltimo d vazo angstia. Em outras palavras, Klein privilegiou e

    concentrou seus estudos em torno das fantasias inconscientes da criana ou seja, o

    mundo interno. J Winnicott, embora certamente interessado pelo mundo interno, optou

    por observar e privilegiar o modo como o mundo externo do ambiente familiar propicia

    ou inibe o desenvolvimento emocional da criana. Para ele, existe no ser humano, uma

    tendncia inata ao desenvolvimento saudvel, desde que possa haver uma adequada

    maternagem, ou, em suas prprias palavras, uma me suficientemente boa.

    Parece vivel, no entanto, aproximar Klein (e seus seguidores) de Winnicott, em

    muitos aspectos do desenvolvimento infantil. Partindo de gneses diferentes, ambos

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  • 59

    valorizam a relao dual me-beb como fundamental e como o palco no qual se do as

    principais ocorrncias que podero determinar se o desenvolvimento infantil se far no

    sentido da sade ou da doena. Os temas abordados por Winnicott, como o da ciso

    entre indivduo e ambiente, o olhar da me como espelho do beb e o uso do objeto,

    tentam dar conta de um perodo da vida anterior trade edipiana, anterior castrao,

    um perodo ainda pr-verbal.

    3.1.4 A falha bsica impedindo o nascimento psicolgico

    Em seu conhecido livro A falha bsica, Michael Balint parte de uma reflexo:

    por que os analistas, por mais experientes que sejam e independentemente da escola a

    que pertenam sem exceo tm seus sucessos, seus casos difceis e tambm sua

    cota de fracassos? Balint especula acerca dessa reflexo e conclui que existem dois

    motivos principais para esta ocorrncia.

    O primeiro motivo, de acordo com o autor, diz respeito interpretao dada,

    pela maioria dos analistas, questo da tcnica proposta por Freud. Dessa forma,

    surgiram alguns parmetros, considerados bsicos, que dizem respeito freqncia das

    sesses, durao de cada sesso, questo da abstinncia, conduta do analista

    como um espelho bem polido, etc. Isso se deve, em grande parte, ao que Freud

    escreveu sobre suas experincias clnicas com pacientes obsessivos e melanclicos, para

    quem os conflitos estavam consideravelmente internalizados, ou, em outras palavras, os

    mecanismos e processos defensivos para lidar com estas questes haviam-se tornado

    eventos internos e permanecido como tais. Inversamente, portanto, os objetos externos

    eram pouco investidos por eles.

    Se os eventos e objetos externos forem inconsistentemente investidos, a influncia de tal variao, de um analista para outro, desde que utilizem uma tcnica analtica sensvel, ser ainda menor, na verdade praticamente negligencivel. Esquecendo de que isso s verdade nesse caso-limite e somente primeira abordagem, alguns analistas chegaram idia da tcnica correta, isto , de uma que correta para todos os pacientes e analistas, independentemente de sua individualidade. Se nossa maneira de pensar tiver validade, a tcnica correta uma quimera, uma fantstica compilao de fragmentos incompatveis da realidade (Balint, 1993, p. 8).

    O segundo motivo provvel para o fracasso na anlise, tem a ver com o

    primeiro. A tcnica psicanaltica foi desenvolvida para pacientes que so capazes de

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  • 60

    suportar a interpretao do analista, cujo ego suficientemente forte para aceit-las e

    realizar o que Freud chamou de processo de perlaborao11. justamente com

    pacientes incapazes dessa tarefa que as grandes dificuldades so encontradas.

    Uma das descobertas mais notveis de Freud , sem dvida, a questo do

    complexo de dipo. Ele desempenha um papel fundamental na estruturao da

    personalidade e representa o complexo nuclear do desenvolvimento humano. O

    complexo de dipo funciona tambm como uma espcie de divisor de guas, pois

    separa dois nveis de trabalho analtico: o nvel edpico ou genital e o nvel pr-edpico,

    ou pr-genital ou pr-verbal. Para muitos pacientes, a questo analtica situa-se

    justamente no nvel pr-verbal. E para estes, em geral, a expresso deste material no

    pode ser feita por meio de palavras, muito menos por interpretaes, que se tornam

    muitas vezes ininteligveis ou inaceitveis.

    Por exemplo, aprendemos que h certos pacientes que tm grande dificuldade em aceitar qualquer coisa que aumente a presso sobre eles, enquanto que h outros que aceitam tudo, porque, aparentemente, seu self mais ntimo muito pouco influenciado. Como dissemos, esses dois tipos criam grandes dificuldades tcnicas e tericas, talvez porque sua relao com o analista seja muito diferente da que costumamos encontrar no nvel edpico. Os dois tipos que acabamos de mencionar constituem apenas uma pequena amostra dos muitos pacientes que geralmente so descritos como profundamente perturbados, seriamente esquizides, com um ego demasiado dbil ou imaturo, altamente narcisistas, ou com profunda ferida narcsica, etc., indicando, portanto, que a raiz de sua doena mais distante e profunda que o conflito edpico (Ibid., p. 11).

    Para Balint, da mesma forma que o nvel edpico foi nomeado a partir de

    caractersticas definidas por novas descobertas, este outro nvel deve tambm ter suas

    nuanas prprias, no devendo ser chamado de pr-alguma-coisa. Balint ainda reala

    o fato de que este outro nvel pode coexistir com o nvel edpico, da ser ainda mais

    inconveniente cham-lo de pr-edpico. Para tal, ele prope o nome de nvel da falha

    bsica e reala que ele deve ser descrito como uma falha e no como uma situao,

    posio, conflito ou complexo. Para ele, as quatro principais caractersticas deste nvel

    so: a) todos os eventos que nele ocorrem pertencem a uma relao exclusivamente

    didica (e no tridica, como no nvel edpico); b) esta relao, alm de didica, de

    natureza totalmente diversa das relaes do nvel edpico; c) a natureza da fora

    dinmica que opera nesse nvel no a de um conflito e d) a linguagem adulta, em

    muitos casos, pode ser intil ou enganadora para descrever acontecimentos desse nvel,

    11 Processo pelo qual a anlise integra uma interpretao e supera as resistncias que ela suscita (Laplanche e Pontalis, 1995, p. 339).

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  • 61

    pois geralmente as palavras no esto alinhadas com seu significado convencional. A

    natureza da relao didica pode ser considerada como uma instncia da relao

    objetal primria ou de amor primrio (...). Qualquer terceiro que interfira nessa relao

    sentido como um pesado encargo ou uma fora intolervel (Ibid., p. 15).

    Outra importante caracterstica que faz com que se possa perceber a semelhana

    entre o conceito de falha bsica e alguns conceitos propostos por Winnicott, diz respeito

    diferena de intensidade entre a satisfao e a frustrao neste nvel. Enquanto a

    satisfao (que Balint iguala adaptao do objeto ao sujeito) traz uma sensao de

    bem-estar, natural e suave (e, portanto, difcil de ser observada), a frustrao (falta de

    adaptao do objeto), ao contrrio, provoca sintomas intensos e desastrosos.

    Analogamente a Winnicott, esta caracterstica descrita por Balint adquire uma

    importncia fundamental, tanto no nvel do desenvolvimento infantil, como na clnica

    psicanaltica.

    Balint, tal como Winnicott, tambm no utiliza a idia de identificao projetiva

    para descrever os fenmenos da falha bsica. A identificao projetiva pressupe uma

    diferenciao entre o sujeito e o outro no incio da vida psquica, o que no o caso,

    tanto em Balint como em Winnicott. fcil perceber, entretanto, como algo muito

    prximo desta idia est presente no trecho a seguir:

    Ademais e isso no to fcil de admitir o paciente de alguma forma parece capaz de saber o que est se passando com o analista. Comea a saber cada vez mais a respeito dele. Esse aumento do conhecimento no tem sua origem numa fonte de informaes externa, mas aparentemente deriva de um talento misterioso, que permite ao paciente compreender os motivos do analista e interpretar a sua conduta. Algumas vezes, esse talento misterioso pode dar a impresso de telepatia ou clarividncia. O analista sente o fenmeno como se o paciente pudesse v-lo por dentro, retirando da coisas a seu respeito. O que assim encontrado sempre altamente pessoal, de algum modo sempre em relao ao paciente e, em geral, absolutamente correta e verdadeira e, ao mesmo tempo, totalmente desproporcionada e, por isso, falsa pelo menos assim que o analista a sente (Ibid., p. 17).

    Ao contrrio do nvel edpico, no qual existem conflitos e necessidades libidinais

    no resolvidas, a falha bsica ocorre num momento da vida em que no existe ainda um

    complexo, um conflito, ou mesmo uma situao. Segundo Balint, a palavra falha foi

    escolhida por ser a mais empregada por muitos de seus prprios pacientes para

    descrever o que sentiam. Uma caracterstica peculiar dessa rea que invariavelmente

    ela est cercada de intensa angstia e enorme dificuldade de ser expressa em palavras.

    H, entretanto, uma espcie de sentimento de que esta falha aconteceu porque algum

    falhou ou descuidou-se do paciente. A angstia expressa uma demanda desesperada de

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  • 62

    que esta falha no pode e de fato no deve ser repetida no tratamento clnico. Da

    tambm a dificuldade do analista, como descreve Balint:

    Uma necessidade pulsional pode ser satisfeita, um conflito pode ser resolvido, mas uma falha bsica talvez possa apenas ser preenchida, desde que os ingredientes que esto faltando possam ser encontrados e, mesmo assim, apenas em quantidade suficiente para preencher o defeito, como uma simples e indolor cicatriz (Ibid., p. 19).

    A questo das interpretaes analticas e da capacidade ou no do analisando de

    perlabor-las pode criar um abismo entre o paciente e o analista e j havia sido

    descrita por Sndor Ferenczi, inspirador (e analista) de Balint. Em seu texto de 1932,

    Confuso de lngua entre os adultos e a criana, partindo de sua constatao de casos

    clnicos de fracasso ou que tendem a se prolongar sem fim, Ferenczi chegou concluso

    de que existem nveis diferentes de linguagem entre analisando e analista, assim como

    existem entre os adultos e a criana. Para ele, havia um estgio anterior ao do amor

    objetal, denominado de estgio do amor objetal passivo, ou da ternura. Assim como

    Freud, Ferenczi acreditava que a capacidade de sentir um amor objetal era precedida de

    um estgio de identificao. Nesse estgio, uma intruso de um adulto, como nos casos

    de abuso sexual ou das punies passionais, pode deixar marcas significativas.

    A criana de quem se abusou converte-se num ser que obedece mecanicamente, ou que se fixa numa atitude obstinada; mas no pode mais explicar as razes dessa atitude. Sua vida sexual no se desenvolve ou assume formas perversas; no falarei aqui das neuroses e psicoses que podem resultar disso. O que importa, de um ponto de vista cientfico, nesta observao, a hiptese de que a personalidade ainda fracamente desenvolvida reage ao brusco desprazer, no pela defesa, mas pela identificao ansiosa e a introjeo daquele que a ameaa e a agride (Ferenczi, 1932, p. 103).

    Esta tese de Ferenczi foi formulada, em grande parte, atravs de concluses

    baseadas em sua prpria experincia clnica. Eis como ele reflete sobre esta questo:

    Cheguei pouco a pouco convico de que os pacientes percebem com muita sutileza os desejos, as tendncias, os humores, as simpatias e antipatias do analista, mesmo quando este est inteiramente inconsciente disso. Em vez de contradizer o analista, de acus-lo de fracasso ou de cometer erros, os pacientes identificam-se com ele. (...) Portanto, devemos no s aprender a adivinhar, a partir das associaes dos doentes, as coisas desagradveis do passado, mas tambm obrigar-nos muito mais a adivinhar as crticas recalcadas ou reprimidas que nos so endereadas. a que nos defrontamos com resistncias no desprezveis, no as do paciente, mas as nossas prprias resistncias (Ibid., pp. 98-99).

    Esta posio de Ferenczi reala, sobremaneira, as diferenas entre este e Freud,

    no tocante a certos aspectos da metapsicologia freudiana. Octavio Souza atenta para o

    exemplo do trauma:

    Vale destacar as diferenas entre a concepo freudiana original e a concepo ferencziana de trauma. Para Freud, o trauma era perfeitamente equacionvel em termos

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  • 63

    energticos: tudo girava em torno do estado de prontido do aparelho psquico para fazer frente aos afluxos externos e internos de energia, das peculiaridades da descarga afetiva dos processos de rememorao das cenas sexuais e dos mecanismos psquicos empregados para evitar o desprazer das memrias e descarregar a energia afetiva. Para Ferenczi, contudo, o essencial no acontecimento traumtico no era somente o aspecto energtico-representacional da rememorao da cena de seduo mas, principalmente, a qualidade das trocas interpessoais entre a criana e os adultos que formavam seu meio sociofamiliar. Para ele, o importante no era tanto o que acontece de modo episdico na vida da criana, mas sim o fato de a criana dispor ou no de algum em quem confiar para elaborar os episdios de seduo ou, dito de modo mais geral, a diferena de lnguas entre sua sexualidade terna e a sexualidade passional dos adultos. As coisas se tornam realmente difceis e traumticas apenas quando o recalque levado a cabo pelos adultos de sua prpria sexualidade os conduz a desmentir o que a criana lhes diz a respeito das situaes potencialmente traumticas para ela. Desse modo, o fator propriamente traumtico o desmentido, e no a cena de seduo e sua problemtica energtico-representacional (Souza, 2001, p. 290).

    Tanto Ferenczi como, posteriormente, Balint, fincam razes num psiquismo

    precoce como tendo influncia marcante no desenvolvimento humano. Outra autora,

    Margareth Mahler, assim como Ferenczi, hngara de nascimento, se inspirou

    inicialmente nas teorias deste, mas tambm nas de Winnicott e Spitz, para formular suas

    prprias teses a respeito do psiquismo precoce infantil. Diferentemente dos autores

    citados, Mahler enveredou pela psicologia do ego, fiel corrente annafreudiana, tendo

    criticado Klein por crer numa memria quase filogentica, num processo simblico

    inato (Mahler, 1982, p. 136), no aceitando alguns conceitos kleinianos voltados para a

    vida fantasstica do lactente. O trabalho de Mahler toma importante significado, pois

    sua teoria fundamentalmente calcada em suas experincias e pesquisas clnicas,

    principalmente com crianas psicticas. Para ela, o complexo de dipo, apesar de

    representar o pice, no somente do desenvolvimento psicossexual infantil, mas

    tambm das relaes de objeto, representa o quarto organizador psicolgico. Antes dele,

    Mahler descreve trs outras fases de desenvolvimento: a fase autista normal, a fase

    simbitica e a fase de separao-individuao. Alm de descrever cada fase com suas

    principais caractersticas, Mahler tambm se detm nas passagens de uma fase para a

    outra no desenvolvimento do beb. Essas passagens so causadas por crises que fazem

    romper a homeostase de cada fase, impelindo o beb a entrar na fase subseqente.

    Apesar de uma boa passagem por todas as fases ser de importncia fundamental ao bom

    desenvolvimento do beb, Mahler coloca uma nfase especial na fase de separao-

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  • 64

    individuao, na qual se processa, efetivamente, o nascimento psicolgico do

    indivduo12.

    Separao e individuao so concebidos como dois desenvolvimentos complementares: a separao consiste na sada da criana da fuso simbitica com a me, e a individuao consiste nas aquisies que marcam o momento em que a criana assume suas prprias caractersticas individuais (Id., 2002, p. 16). Para Mahler, a criana que passa por este processo com suavidade acaba

    encontrando no desenvolvimento rpido das funes do ego um consolo para esta

    separao. Ela passa a ter prazer em exercitar o domnio de suas prprias habilidades e

    capacidades autnomas. Por outro lado, a precoce luta defensiva da criana contra a

    interferncia em sua autonomia pode impedir o que Mahler denomina de um caso de

    amor com o mundo, ou rompimento da membrana simbitica, ou experincia do

    nascimento psicolgico. Ela cita o temor ao reengolfamento como uma das causas

    provveis para constelaes precoces de variveis que poderiam representar pontos de

    fixao para a regresso patolgica, tais como a precoce diferenciao de um falso self.

    (...) Todas estas constelaes de fatores so possveis contribuintes do aspecto

    borderline no desenvolvimento da personalidade (Id., 1982, p. 142).

    Os mecanismos borderline so produtos ou resduos de deficincia de integrao

    e internalizao, indicando o grau de insucesso na funo de sntese do ego. Tal fato

    pode ser observado na clnica.

    Para muitos fenmenos borderline, pode-se aplicar o que se tornou conhecido atravs da observao, no tanto do contedo quanto da conduta e das atitudes do paciente na situao psicanaltica, isto , para determinadas configuraes os padres persistentes de transferncia e acting-out parecem resultar de conflitos no resolvidos do processo de separao-individuao (Ibid., p. 144).

    Por outro lado, Mahler alerta para a dificuldade de vincular nitidamente os

    aspectos importantes descritos nas trs fases de desenvolvimento com aspectos

    especficos dos fenmenos borderline exibidos nos pacientes: (...) fui ficando cada vez

    mais convencida de que no h linha direta do emprego dedutivo de fenmenos

    borderline para uma ou outra descoberta importante da pesquisa observacional (Ibid.).

    Mahler traz algumas inovaes e contribuies importantes. Pesquisadora por

    excelncia, sua teoria baseada em observaes experimentais, trazendo um peso

    cientfico para a psicanlise, raramente visto em outros autores. Na descrio das trs

    fases iniciais do desenvolvimento psquico, embora realando a importncia das duas 12 Para Mahler, o nascimento biolgico do homem e o nascimento psicolgico do indivduo no coincidem no tempo. O primeiro um evento bem delimitado, dramtico e observvel; o ltimo, um processo intrapsquico, de lento desdobrar (Mahler, 2002, p. 15).

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    primeiras fases (autista normal e simbitica), coloca, como vimos, uma nfase especial

    na ltima (separao-individuao), da qual tira a maior parte de suas concluses. Ao

    privilegiar esta fase, que se inicia entre os cinco ou seis meses de vida do beb, Mahler

    parece ter atendido mais s exigncias cientficas de seus experimentos (nesta fase

    mais fcil realizar alguns testes), deixando em segundo plano uma fase mais precoce,

    mais exaltada por outros autores e, justamente, de mais difcil interpretao do ponto de

    vista da pesquisa cientfica. Os escritos de Mahler parecem confirmar este ponto.

    (...) a interpretao em termos psicolgicos dos fenmenos visveis dos estados mais precoces de pr-ego em nossos termos, os perodos autista e simbitico inicial sumamente difcil. As inferncias extradas dos dados da conduta pr-verbal so ainda mais precrias que a utilizao de hipteses deduzidas dos dados observacionais de perodos posteriores. (...) Estamos ainda subestimando a patogenicidade, assim como a estruturao do carter e o papel integrador da personalidade dos nveis pr-verbais do desenvolvimento; subestimamos particularmente a importncia dos precursores do ego e do superego, especialmente sua aptido para criar tendncias, difceis de decifrar, para conflitos intrapsquicos (Ibid., pp. 122 e 131).

    Portanto, cabe aqui uma observao quanto ao ttulo deste subitem: a falha

    bsica proposta por Balint pode impedir o nascimento psicolgico da criana, mas sem

    que uma analogia com os achados de Mahler (a quem cabe esta ltima expresso) possa

    ser feita diretamente, j que a falha bsica de Balint pressupe ocorrncias em nvel

    mais precoce do que os da fase de separao-individuao de Mahler.

    No estudo dos estados-limite existe uma variao relativamente grande entre as

    nfases dadas, pelos diversos autores, s gneses destas psicopatologias. H uma

    tendncia, talvez at exagerada, de se recuar cada vez mais no tempo, procurando

    formular teorias sobre perodos muito remotos da vida psquica. Desde pesquisas

    envolvendo comportamento fetal e meio ambiente do feto (Piontelli, 1995), a autores

    que advogam fases ainda mais precoces do que a posio esquizo-paranide de Klein13,

    at aqueles, como Margareth Mahler, que se baseiam num perodo mais tardio, todos

    possuem, no entanto, alguns pontos em comum: colocam grande nfase em perodos

    anteriores ao do complexo de dipo freudiano, principalmente no perodo pr-verbal, o

    que torna extremamente difcil no s uma validao mais cientfica de seus achados,

    como tambm a prpria explicao clnica para fatos que foram vividos numa poca

    no-verbal. No obstante, parece cada vez mais unnime, entre os autores que abordam

    13 Refere-se aqui especificamente a Thomas Ogden, com sua teoria sobre a posio autista-contgua, que ser examinada no item 4.3 desta dissertao.

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    o tema dos estados-limite, que a constituio do sujeito neste perodo pr-verbal

    grandemente responsvel pelos casos clnicos at ento surgidos.

    3.2 A ordem patolgica

    Conforme j foi referido no incio deste captulo, existem inmeras teorias

    psicanalticas que tentam explicar o funcionamento do aparelho psquico humano, assim

    como vrias formas de classificar essas teorias.

    A proposta de Octavio Souza14, de dividir as teorias psicanalticas em dois

    grandes grupos, o dos tericos intersubjetivos e o dos identificatrios, pode facilitar essa

    tarefa, pelo menos no que concerne questo de como visualizar o perodo pr-verbal.

    Souza reala que a grande importncia destas ticas diferentes est justamente na

    questo clnica. Enquanto os tericos intersubjetivos vo privilegiar a questo da

    demanda do paciente e, conseqentemente, da formao do inconsciente que se oferece

    interpretao, Winnicott e outros tericos da relao de objeto nos defrontam com

    falhas estruturais do ego e do self, que no se oferecem interpretao, pois fazem parte

    de um vazio, de uma despersonalizao ou desrealizao. a que se pensa em falhas na

    constituio do ser, falhas to primitivas que no teria sentido uma clnica da

    interpretao, principalmente baseada no modelo clssico tridico edipiano. As falhas

    so anteriores a esta fase, pertencendo ainda ao tempo no-verbal, tempo da

    indiferenciao ou da constituio do envelope psquico (Souza, 2002).

    Nos dois itens seguintes tenta-se mostrar o lado patolgico dos estados-limite

    sob prismas ou ngulos diferentes, que coincidem, pelo menos em sua essncia, com as

    classificaes propostas por Souza. Em primeiro lugar, as patologias vistas pelo ngulo

    de uma psicanlise que tem, por base, a questo identificatria. Em seguida, a viso de

    uma psicanlise com base intersubjetiva.

    Do lado identificatrio as patologias podem ser caracterizadas por falhas no que

    pode ser chamado de continuidade de ser. Isto ser explicado no prximo item deste

    captulo. Tomaram-se exemplos de trs grandes autores, expoentes dessa linha de

    14 Vide pg. 44.

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    pensamento: Winnicott, Balint e Fairbairn15. Do lado intersubjetivo, essas patologias

    so vistas por um ngulo onde predominam as questes narcsicas e a agressividade e os

    autores escolhidos para retratar alguns tipos de patologias abordadas atravs desse foco

    so Kernberg e Green.

    3.2.1 Falhas na continuidade de ser

    Souza, ao propor a classificao de dois grandes grupos psicanalticos, nos fala

    das grandes diferenas a respeito da constituio do sujeito em cada grupo:

    Se compararmos o que Winnicott e Lacan nos falam sobre identificao primria, veremos que para o primeiro no se pode falar em sujeito neste momento inicial, mas sim num campo experencial me-beb a que se poderia chamar de campo experencial pr-subjetivo. Winnicott se refere a isso como um momento puro feminino, condio bsica para a instalao de um ser que evolui continuamente no tempo. No existe ainda o sentido do eu sou, mas sim o de seguir sendo (Ibid).

    Adiante, no mesmo artigo, Souza, citando Anne lvares, fala de necessidades

    psquicas como coisas que tm que ser dadas sem serem pedidas, ou seja, que no so

    da ordem da demanda e, conseqentemente, da pulso. O sujeito da demanda j est

    desde sempre constitudo, ao passo que o sujeito que se est constituindo no demanda:

    ele simplesmente tem necessidades que sero atendidas, ou melhor, apresentadas a ele.

    A me no d o seio, mas o apresenta no mesmo momento em que o beb o alucina.

    No h dom, h apenas apresentao. Souza pega emprestado o termo bioniano de

    continentecontedo para dizer que os tericos intersubjetivos privilegiam uma anlise

    de contedos, enquanto os tericos da relao de objeto, da indiferenciao, como

    Winnicott e Balint, procuram analisar os continentes16. A indiferenciao me-beb nos

    remete continuidade psquica, como explica Souza:

    Parece til nestes casos pensar em termos de continuidade psquica, de necessidade psquica e da constituio de envelopes psquicos, que no querem dizer nada, mas que

    15 Alguns autores teriam restries quanto incluso de Fairbairn nesse grupo, por sua teoria dos objetos internos, aproximando-o dos conceitos kleinianos, que pressupem uma diferenciao entre sujeito e objeto. No obstante ser este um comentrio vlido, outros construtos tericos de Fairbairn o aproximam mais, em nossa opinio, dos tericos da indiferenciao. 16 H, com certeza, diferenas importantes entre Bion e Winnicott, como se apressa a esclarecer Souza. Embora a me possa ser vista como continente na teoria deste ltimo, no existe, numa fase inicial, um contedo, uma vez que no existe diferenciao entre esta e seu beb. J para Bion, o beb um beb pulsional, que se relaciona com a me em termos de identificao projetiva, ou seja, desde o incio a me o outro.

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    permitem que alguma coisa se diga. Winnicott vai dizer: a dimenso mais simples da experincia, mais simples por no ser analisvel, a dimenso da continuidade do ser, a dimenso pr-subjetiva na qual no existe diferena entre o sujeito e o objeto, dimenso esta que proporcionada pelo cuidado materno. a partir deste cuidado que se forma um campo na qual as pulses podem ser vividas como pertencendo e dizendo respeito ao sujeito. S depois da constituio desta dimenso do ser que o fazer pulsional se institui permitindo uma anlise edipiana do sujeito, uma anlise interpretativa (Ibid.).

    Para Winnicott, o termo self representa, em sua essncia, uma descrio

    psicolgica de como o indivduo se sente subjetivamente. Em termos de

    desenvolvimento, o self central (ou verdadeiro) se faz presente nos primrdios da vida;

    como se fosse um potencial herdado do recm-nascido. Se houver um ambiente

    suficientemente bom, atravs dos cuidados maternos primrios, este self incipiente se

    desenvolve gradativamente num self total.

    A continuidade psquica, ou continuidade de ser, tem seu lugar junto ao

    verdadeiro self e est relacionado possibilidade de no-integrao, que a precursora

    da habilidade de relaxar, criar e brincar. Esta continuidade de ser possibilitada no

    ambiente de holding e possibilita a habilidade de ser. Em 1949, em entrevista

    radiofnica (que s seria publicada em 1966), Winnicott fala de identificao primria e

    faz uma distino entre suas idias e o existencialismo:

    Do ponto de vista do beb, nada existe alm dele prprio, e, portanto, a me , inicialmente, parte dele. Em outras palavras, h algo, aqui, que as pessoas chamam de identificao primria. Isto o comeo de tudo, e confere significado a palavras muito simples, como ser. Poderamos usar o termo existir, em sua extrao francesa, e falar a respeito da existncia, transformar isso numa filosofia e cham-la de existencialismo, mas de qualquer forma preferimos comear pela palavra ser, e em seguida pela afirmao eu sou. O importante que o eu sou no significa nada, a no ser que eu, inicialmente, seja juntamente com outro ser humano que ainda no foi diferenciado. Por este motivo, mais verdadeiro falar a respeito de ser do que usar as palavras eu sou, que pertencem ao estgio seguinte. No exagero dizer que a condio de ser o incio de tudo, sem o qual o fazer e o deixar que lhe faam no tm significado (Winnicott, 1966, p. 9).

    A partir dessa experincia de ser possvel desenvolver a capacidade de viver de

    forma criativa e de brincar, que so atividades integradas que levam ao fazer. Esta

    experincia de ser que Winnicott localiza junto ao elemento feminino, enquanto o

    fazer fica no mbito do elemento masculino (Id., 1971, p. 115).

    O papel da me , portanto, prover o beb de um ego auxiliar que ter a funo

    de integrar, aos poucos, sua capacidade perceptiva e motora nascente com as sensaes

    corporais e os estmulos ambientais, protegendo, assim, o frgil ncleo do self do beb.

    Para Winnicott, esse ncleo, ou self central, verdadeiro, provm da vitalidade dos

    tecidos corporais e da atuao das funes do corpo, incluindo a ao do corao e a

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    respirao. Est intimamente ligado idia de processo primrio e , de incio,

    essencialmente no-reativo aos estmulos externos, mas primrio (Id., 1960, p. 136).

    Uma vez entendida a questo da continuidade de ser e do papel primordial da

    me nesse processo, resta a pergunta: o que sucede quando a me no fornece a

    proteo adequada ao frgil self do recm-nascido? Em outro artigo, datado tambm de

    1960, Winnicott no somente responde a esta pergunta, como d sua posio sobre a

    questo da pulso de morte:

    Neste lugar que caracterizado pela existncia essencial de um ambiente sustentador, o potencial herdado est se tornando uma continuidade de ser. A alternativa de ser reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila. Ser e aniquilamento so as duas alternativas. O ambiente tem por isso como principal funo a reduo ao mnimo de irritaes a que o lactente deva reagir com o conseqente aniquilamento do ser pessoal. Sob condies favorveis o lactente estabelece uma continuidade da existncia e assim comea a desenvolver a sofisticao que torna possvel estas irritaes serem absorvidas na rea da onipotncia. Neste estgio a palavra morte no tem aplicao possvel, e isso torna o termo pulso de morte inaceitvel na descrio da base da destrutividade. A morte no tem sentido at a chegada do dio e do conceito da pessoa humana completa (Id., 1960b, p. 47).

    A falha ambiental , portanto, percebida pela criana como uma ameaa sua

    continuidade existencial, provocando nela uma subjetividade de que todas as suas

    percepes e atividades motoras so apenas resposta ao perigo a que est exposta. Aos

    poucos, ela vai substituindo a proteo que lhe foi negada por uma outra que ela prpria

    passa a fabricar. Em 1955, num trabalho denominado Razes primitivas da

    agressividade, Winnicott mencionava trs padres de experincias do id de cada beb.

    O primeiro seria um padro esperado, no qual o ambiente constantemente descoberto e

    redescoberto a partir da motilidade do beb. Num segundo padro, o ambiente impe-se

    ao beb, provocando reaes intruso, e uma retirada em direo quietude, nica

    situao possvel de existncia. Num terceiro padro, este ltimo fenmeno levado ao

    extremo, no restando um lugar para onde o beb se possa refugiar. Eis o que diz

    Winnicott sobre este padro:

    O indivduo desenvolve-se ento mais como uma extenso da casca que como uma extenso do ncleo, ou seja, como uma extenso do ambiente invasor. O que resta do ncleo permanece oculto, por vezes a ponto de no ser encontrado nem mesmo atravs da mais profunda anlise. O indivduo, assim, existe por no ser encontrado. O verdadeiro eu est oculto, e aquilo com que temos de lidar clinicamente um complexo falso eu cuja funo manter o verdadeiro eu escondido. O falso eu pode estar convenientemente em sintonia com a sociedade, mas a falta de um eu verdadeiro acarreta uma instabilidade que se torna mais evidente quanto maior for o engano da sociedade em pensar que o falso eu verdadeiro. A queixa do paciente de um sentimento de inutilidade (Id., 1955, pp. 297-298).

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    Mais adiante, ao desenvolver em maiores detalhes a questo do falso eu,

    Winnicott passou a denomin-lo falso self. Em seu artigo de 1960, ele tambm se refere

    sensao do indivduo falso self de ser um impostor, apesar de, muitas vezes, ter

    grande sucesso social e profissional. Outra caracterstica a obedincia ou submisso.

    Para Winnicott, a submisso se vincula ao desespero, em lugar da esperana. A

    submisso traz recompensas imediatas e os adultos confundem, com excessiva

    facilidade, submisso com crescimento (Id., 1963, p. 96). Em outra ocasio, ele

    menciona: O falso self tem uma funo positiva muito importante: ocultar o self

    verdadeiro, o que faz pela submisso s exigncias do ambiente (Id., 1960, p. 134). Ele

    destaca a diferena entre submisso e compromisso: este ltimo representa uma

    caracterstica saudvel e adaptvel. Na sade, as condutas sociais, mais do que uma

    submisso, representam um compromisso. Dessa forma, na sade, o compromisso deixa

    de existir quando as questes envolvidas adquirem outra conotao; nesses casos, o

    verdadeiro self torna-se capaz de suprimir o self submisso. Do ponto de vista clnico,

    isso pode ser muitas vezes observado como um problema recorrente da adolescncia.

    Estou dizendo, de certa forma, que cada pessoa tem um self educado ou socializado, e tambm um self pessoal privado, que s aparece na intimidade. Isso comum e pode ser considerado normal. Se vocs observarem, podero ver que essa diviso do self uma aquisio saudvel do crescimento pessoal; na doena, a diviso uma questo de ciso na mente, que pode chegar a variar em profundidade; a mais profunda chamada de esquizofrenia (Id., 1964, pp. 54-55).

    Para Jan Abram, em seu livro A linguagem de Winnicott, a definio acima

    remete persona (ou mscara) descrita por Jung. Seria, portanto, a forma civilizada

    com que o self se apresenta socialmente, similar ao falso self sadio de Winnicott. No

    entanto, uma identificao muito intensa com a persona de algum entendida por Jung

    como uma identificao patolgica como o falso self patolgico presente no espectro

    proposto por Winnicott (Abram, 2000, p. 231).

    Uma questo importante relativamente ao falso self, diz respeito s implicaes

    tcnicas para a clnica psicanaltica. Winnicott menciona que um grande nmero de

    pacientes experimenta uma pseudo-anlise aps um prolongado tempo fazendo

    tratamento psicanaltico:

    No trabalho psicanaltico possvel se ver anlises continuar indefinidamente porque so feitas na base do trabalho com o falso self. Em um caso, com um paciente masculino que tinha tido uma anlise de durao considervel antes de vir a mim, meu trabalho com ele realmente comeou quando lhe tornei claro que reconhecia sua no-existncia. (...)

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    Um princpio pode ser enunciado, o de que na rea do falso self na prtica analtica verificamos fazer mais progresso ao reconhecer a no-existncia do paciente do que ao trabalhar longa e continuamente com o paciente na base de mecanismos de defesa do ego. O falso self do paciente pode colaborar indefinidamente com o analista na anlise das defesas, estando, por assim dizer, do lado do analista, neste jogo. Este trabalho infrutfero s encurtado com xito quando o analista pode apontar e especificar a ausncia de algum aspecto essencial: Voc no tem boca, Voc ainda no comeou a existir, Fisicamente voc um homem, mas voc no sabe por experincia nada sobre masculinidade, e assim por diante. Esses reconhecimentos de um fato importante, tornados claros no momento exato, abrem caminho para a comunicao com o self verdadeiro. Um paciente que teve muita anlise intil na base de um falso self, cooperando vigorosamente com um analista que pensava ser aquele seu self integral, me disse: A nica vez que senti esperana foi quando voc me disse no ver esperana, e continuou com a anlise (Winnicott, 1960, pp. 138-139).

    Os exemplos acima descritos por Winnicott se referem queles indivduos com

    falso self patolgico. Se, no incio de suas exposies tericas, Winnicott dividia o self

    em duas categorias, o verdadeiro e o falso, mais tarde e, principalmente no artigo de

    1960, ele atribui algumas gradaes ao falso self, variando desde o falso self social (e,

    portanto, da ordem da normalidade), passando pelo falso self construdo sobre

    identificaes, at chegar ao falso self patolgico, no qual o self verdadeiro nunca

    encontrado. Nestes casos, o indivduo poderia viver uma vida inteiramente na base do

    falso self, no fosse o fato de que esse falso self por vezes falha, deixando a pessoa com

    uma sensao de que vive uma vida ftil, irreal, impostora. essa sensao que vai aos

    poucos tomando mais espao na vida psquica do indivduo, e que acaba,

    eventualmente, levando-o anlise. No obstante, devido ordem patolgica do falso

    self (que no pode permitir aparecer o verdadeiro self), existe uma tendncia muito

    ntida do paciente a se submeter anlise e ao analista, de maneira a no comprometer

    sua estabilidade, garantida pelo falso self. Ao no atentar para esse fato, o analista pode

    incorrer em dois erros fundamentais. O primeiro diz respeito ao conluio entre analista e

    analisando, gerando uma procrastinao do trabalho analtico. O segundo se refere a

    intervenes do analista que podem assustar o paciente, comprometendo sua

    homeostase provida pelo falso self. Essas intervenes, muitas vezes provocadas por

    interpretaes fora de contexto ou do tempo adequado, so percebidas pelo analisando

    como ameaadoras ou como totalmente descabidas de nexo. Em todos esses casos, o

    resultado o fracasso do processo analtico.

    Outro analista e autor contemporneo de Winnicott, Michael Balint, j referido

    anteriormente17, desenvolveu grande parte de seu trabalho com pacientes com

    17 Vide 3.1.4.

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    perturbaes emocionais importantes. Para ele, esses pacientes podem ser mais bem

    compreendidos se se deixar de lado a etiologia do conflito e do recalque, aceitando o

    fato de que neles existe um vazio ou uma falta que deveria ter sido provida em tempos

    primrdios. A esta falta, Balint denominou de falha bsica, cujas caractersticas j

    foram tambm anteriormente citadas18. Alm de se situar num mbito pr-verbal ou pr-

    edpico, constitudo pelas relaes didicas entre a me e o beb, Balint atenta para o

    fato de que a linguagem no , nestes casos, o veculo de comunicao entre o sujeito e

    o objeto. Influenciado por Ferenczi, de quem foi analisando, Balint dizia que as palavras

    so utilizadas de forma vaga e imprecisa e que o tom de voz pode ser muito mais

    valioso do que aquilo que efetivamente dito.

    Alm das reas da falha bsica e edpica existe para Balint uma terceira rea

    mental, que ele denominou de rea da criao. Se nas duas primeiras as principais

    caractersticas so as relaes didicas e tridicas, respectivamente, a rea da criao se

    distingue pela ausncia de objeto externo. Apesar disso, ele reconhece que o sujeito

    nunca est totalmente sozinho e prope o termo pr-objeto para indicar os algos

    presentes. Ele se refere a Bion que, ao encontrar a mesma dificuldade, resolveu chamar

    os elementos de alfa e beta, e a funo de alfa. O mais importante, contudo, a respeito

    dessa rea da criao tem a ver com a clnica e com a interpretao geralmente atribuda

    pelos analistas ao silncio do paciente:

    O que temos em mente o paciente silencioso, um problema enigmtico para a nossa tcnica. A atitude analtica habitual considerar o silncio meramente um sintoma de resistncia a alguns materiais inconscientes, originados no passado do paciente ou de uma situao transferencial atual. Podemos acrescentar que tal interpretao quase sempre est correta; o paciente est fugindo de alguma coisa, geralmente de um conflito, mas tambm poder ser que ele esteja correndo para alguma coisa, isto , est num estado no qual se sente relativamente seguro, podendo fazer algo a respeito do problema que o est atormentando ou preocupando. O algo, que eventualmente ir produzir e depois apresentar, uma espcie de criao nem sempre honesta, sincera, profunda ou artstica mas no menos um produto de sua criatividade (Balint, 1993, p. 23).19

    O paciente que est na rea da falha bsica ou na rea da criao est tambm

    apresentando uma regresso a modalidades de relao pr-verbal. Balint distingue entre

    a regresso que faculta ao indivduo resolver sua falha e uma outra que resulta num

    processo de demandas de gratificaes ao analista. O primeiro tipo de regresso,

    classificado por Balint de benigna, abre caminho para um novo comeo que permite

    ao paciente construir, dentro de si, algo para fechar sua falha bsica. Para Balint, esse 18 Vide pgina 60. 19 importante observar como existem pontos em comum entre as idias de Balint sobre a rea da criao e os trabalhos de Winnicott que lidam com a questo do espao transicional.

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    novo comeo, que se d na transferncia, determina mudanas de carter e significa que

    o paciente conseguiu remontar a um ponto anterior ao do processo defeituoso que

    desenvolveu a falha bsica, podendo encontrar novos caminhos, mais adequados a uma

    vida saudvel e com uma diminuio considervel da angstia (Ibid., p. 122).

    Em contrapartida a esse tipo de regresso que ir depender de uma srie de

    fatores, inclusive da postura do analista, Balint descreve um outro tipo que congela a

    relao entre analista e paciente de tal forma que este ltimo passa a demandar

    gratificaes e satisfaes de suas necessidades. Em outras palavras, o analista sentido

    como poderoso e importante, mas valendo, quase que exclusivamente, como veculo de

    gratificao. Se essa gratificao no for outorgada pelo analista, o paciente no sentir

    raiva, mas uma intensa sensao de vazio e de frustrao. Essa regresso foi classificada

    por Balint como sendo do tipo maligna (Ibid., pp. 128-137). Evidentemente, esse tipo

    de regresso indica que a anlise entrou pelo caminho do fracasso. Esta descrio

    parecida, em alguns aspectos, com a que Winnicott (1960) faz do falso self, e a de que

    Melzer (1975) faz com alguns tipos de pacientes autistas, referindo-se a um tipo

    particular de identificao, que ele designa como identificao adesiva.

    A dificuldade est, justamente, em identificar o aparecimento de uma ou de

    outra regresso: a do tipo benigno ou a do tipo maligno. Evidentemente, o analista ter

    que correr riscos. Se for um analista da tcnica clssica, com a preservao do setting e

    a defesa da abstinncia na sesso, ele provavelmente ir oferecer poucas possibilidades

    para o tipo de regresso maligna. O problema que tambm, pouco provavelmente, a

    regresso benigna se apresentar, uma vez que essa tambm necessita da cooperao do

    analista, atravs da satisfao de algumas demandas do paciente. No h dvida de que

    alguma coisa precisa ser satisfeita, mas muito difcil identific-la como derivada de

    um determinado componente pulsional20 (Ibid., p. 125). Portanto, para Balint, sem a

    regresso benigna no h o novo comeo e com a regresso maligna a anlise tende a

    fracassar.

    Torna-se importante salientar que, embora com muitos pontos em comum no

    que diz respeito a seus fundamentos tericos, Balint no comunga das mesmas idias de

    Winnicott quanto pratica clnica. Winnicott fez da regresso a base de seu modelo

    20 Para Balint, a regresso, (...) pode ter pelo menos duas finalidades: gratificao de uma pulso e reconhecimento por um objeto; em outras palavras, um fenmeno intrapsquico e um fenmeno interpessoal. (...) Para a terapia analtica dos estados regressivos, os mais importantes so seus aspectos interpessoais (Balint, 1993, p. 147). Para Balint, Freud se ocupou basicamente com os aspectos intrapsquicos, no tendo dado nfase aos interpessoais.

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    teraputico, conduzindo suas sesses de maneira a se converter no objeto primrio do

    paciente, procurando restaurar os defeitos que este causou, nos primrdios da vida. A

    opinio de Balint que duvidoso que o analista possa agir como um objeto primrio, o

    que permitiria ao paciente repetir suas experincia