a constitucionalização do princípio da intervenção mínima do estado nas relações

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  • Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

    A Constitucionalizao do Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares

    Pedro Henrique Vianna Barbosa

    Rio de Janeiro 2014

  • PEDRO HENRIQUE VIANNA BARBOSA

    A Constitucionalizao do Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares

    Artigo cientfico apresentado como exigncia de concluso de Curso de Ps-Graduao Lato Sensu da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professores Orientadores: Mnica Areal Nelson C. Tavares Jnior Nli Luiza C. Fetzner

    Rio de Janeiro 2014

  • 2

    CONSTITUCIONALIZAO DO PRINCPIO DA INTERVENO MNIMA DO ESTADO NAS RELAES FAMILIARES

    Pedro Henrique Vianna Barbosa

    Graduado pela Faculdade de Direito da Fundao Getulio Vargas - Rio de Janeiro. Ps-graduando pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. Scio-fundador do escritrio Barbosa e Biar Advogados Associados. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia - IBDFAM.

    Resumo: A recente identificao do afeto como requisito essencial para a constituio das relaes familiares configurou uma verdadeira revoluo no seio do Direito de Famlia brasileiro. Aliada extino do instituto da separao judicial promovida pela Emenda Constitucional n. 66 de 2010, esta mudana de paradigma trouxe a necessidade de reavaliao do papel do Estado na regulamentao das relaes familiares. O intervencionismo estatal nas relaes das famlias brasileiras vem se mostrando excessivo e prejudicial, pois presume a incapacidade dos cidados para tutelarem as suas prprias relaes, sacrificando a sua autonomia privada em prol de uma suposta proteo. A presente obra tem o objetivo de instaurar o debate acerca da constitucionalizao do chamado princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares, como forma de se garantir a autonomia dos membros dos ncleos familiares brasileiros.

    Palavras-chave: Direito Civil (Direito de Famlia). Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares. Autonomia da Vontade. Positivao. Constitucionalizao.

    Sumrio: Introduo. 1. Princpios Constitucionais Aplicveis ao Direito de Famlia. 1.1. Dos Princpios e Sua Importncia Para o Direito de Famlia. 1.2. Dos Princpios Constitucionais Aplicveis ao Direito de Famlia. 1.3. O Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares. 2. A Excessiva Interveno do Estado Brasileiro nas Relaes Familiares. 2.1. As Manifestaes da Interveno Estatal. 2.2. Requisitos Objetivos: como identificar uma medida interventiva? 3. A Constitucionalizao do Princpio da Interveno Mnima. 3.1. O Princpio da Interveno Mnima e a Legislao Vigente. 3.2. A Positivao do Princpio da Interveno Mnima. Concluso. Referncias.

  • 3

    INTRODUO: O PRINCPIO DA INTERVENO MNIMA DO ESTADO NAS RELAES FAMILIARES

    Considere a seguinte situao hipottica: Carlos um senhor de 71 anos de

    idade que viveu praticamente toda a sua vida ao lado de sua falecida esposa, Helena.

    Aps o trgico acidente que ceifou a vida de Helena, Carlos deixou-se cair em uma

    profunda depresso. Seus trs filhos, desesperados, faziam de tudo para anim-lo, mas

    nada parecia funcionar.

    Anos se passaram e Carlos parecia cada vez menos determinado a recuperar

    sua alegria de viver. At que em uma certa manh, enquanto comprava pes e

    biscoitos na padaria perto de sua casa, qual no foi a surpresa de Carlos quando topou

    com Jlia, sua amiga de infncia, por quem sempre teve muito carinho, mas de quem

    no ouvia notcias havia mais de vinte anos. Ambos retomam o contato, comeam a se

    encontrar todas as semanas e, apaixonados um pelo outro, resolvem comear a

    namorar.

    Alguns meses mais tarde e convictos de que sero felizes ficando juntos para

    o resto de suas vidas, Carlos e Jlia decidem se casar. Eles se casam e se tornam um

    casal extremamente unido e amado pelos seus amigos e familiares. Contudo, s

    vsperas de completar 75 anos de idade, Carlos recebe a notcia de que seu longo

    perodo de depresso o levou a desenvolver graves molstias, e que sua sade

    debilitada o levaria ao bito em no mais que seis meses a partir daquele diagnstico.

    Desesperado, Carlos decide procurar um advogado para descobrir como

    deixar sua esposa amparada aps a sua morte. Ele sabe que Jlia uma pessoa

    humilde e solitria, que nunca chegou a ter filhos e que no conseguiu, ao longo de

    sua vida, construir um patrimnio. Sabe tambm que os seus prprios filhos so

  • 4

    profissionais bem sucedidos, que nunca precisaram de sua ajuda financeira. Desse

    modo, pergunta ao causdico se poderia deixar todos os seus bens para a sua esposa.

    Infelizmente, a resposta negativa. O advogado explica a Carlos, com pesar,

    que este, por ter mais de 70 anos de idade na poca de seu casamento, teve que adotar

    o regime da separao obrigatria (ou legal) de bens, conforme o artigo 1.641, inciso

    II, do Cdigo Civil de 2002. Alm disso, como Carlos provavelmente deixar

    descendentes vivos no momento de sua morte, o artigo 1.829, inciso I, do mesmo

    diploma, excluir a sua cnjuge, porque casados em regime de separao obrigatria

    de bens, da sucesso legtima. Ademais, continua o patrono, apesar de o Cdigo Civil

    brasileiro permitir a alterao do regime de bens escolhido pelos cnjuges no

    momento do casamento, esta regra no vale para os casais que foram obrigados pela

    lei a adotar o regime da separao legal. Ainda que tal alterao fosse permitida, ela

    demandaria o ajuizamento de uma ao judicial para obteno de autorizao,

    conforme o artigo 1.639, 2, do CC, o que provavelmente demoraria mais de seis

    meses.

    Carlos, portanto, ser impedido de deixar todos os seus bens para sua esposa,

    independentemente de sua vontade. Demonstra-se, assim, uma das inmeras injustias

    perpetradas pela interveno excessiva do Estado brasileiro nas relaes familiares.

    Buscar-se-, ao longo do presente trabalho, comprovar que as medidas

    protetivas estatais, outrora tidas como essenciais na tutela das relaes familiares, vm

    perdendo a sua relevncia e devem, principalmente na seara das relaes conjugais,

    ser afastadas em prol do princpio constitucional da Interveno Mnima.

    A recente identificao do afeto como requisito essencial para a constituio

    das relaes de parentesco configurou uma verdadeira revoluo no seio do Direito de

  • 5

    Famlia brasileiro. Aliada extino da separao judicial ou da separao de fato

    como requisitos para a decretao judicial do divrcio, promovida pela Emenda

    Constitucional n. 66, de 2010, esta mudana de paradigma trouxe a necessidade de

    reavaliao do papel do Estado na regulamentao das relaes familiares.

    A interveno do Estado na autonomia dos entes familiares se manifesta

    principalmente atravs da criao de leis protetivas dos direitos dos indivduos

    considerados pelo legislador como hipossuficientes. Esta interveno, contudo, deve

    se ater aos casos em que se afigura verdadeiramente necessria, sob pena de se

    burocratizar a vida dos cidados, impondo-lhes prejuzos morais e materiais que

    podem vir a suplantar os benefcios almejados pelo Estado.

    Questiona-se, assim, se o legislador brasileiro teria, com a promulgao da

    Emenda Constitucional n. 66, iniciado o processo de elevao do chamado Princpio

    da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares ao status de princpio

    constitucional. At que ponto seria desejvel, no atual contexto scio-econmico

    brasileiro, a interveno do Estado nas relaes de famlia?

    1. PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS APLICVEIS AO DIREITO DE FAMLIA

    O fenmeno da "principiologizao" dos direitos ganha cada vez mais

    importncia no Direito de Famlia brasileiro. No obstante as regras jurdicas postas,

    os princpios vem sendo utilizados pelos operadores do Direito para embasar as mais

    diversas teses e decises judiciais. Procurar-se-, neste captulo, delimitar os

    princpios constitucionais aplicveis ao Direito de Famlia e esclarecer o significado

    do Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares.

  • 6

    1.1. DOS PRINCPIOS E SUA IMPORTNCIA PARA O DIREITO DE FAMLIA

    O Direito, como fenmeno social, foi naturalmente desenvolvido como uma

    ferramenta de pacificao e manuteno das relaes civilizadas. Pode se dizer que a

    criao de normas gerais de conduta foi a maneira encontrada pelas antigas

    civilizaes para perenizar suas conquistas sociais. No eplogo do chamado Cdigo de

    Hamurabi1, por exemplo, l-se que as leis ali entalhadas foram criadas para que o forte

    no prejudicasse o mais fraco, a fim de proteger as vivas e os rfos, e para resolver

    todas as disputas e sanar quaisquer ofensas.

    Conforme a lio de Robert Alexy2, as normas jurdicas que compem o

    Direito contemporneo podem se manifestar principalmente atravs de regras e de

    princpios jurdicos. Ronald Dworkin3, no mesmo sentido, compreende que as regras e

    os princpios so espcies do gnero norma jurdica, tratando-se a distino entre as

    regras e os princpios jurdicos do ponto nevrlgico de seus estudos sobre a teoria das

    normas jurdicas.

    As regras jurdicas so imperativos gerais, isto , comandos que devem ser

    obedecidos por todas as pessoas a eles submetidas. Possuem como caracterstica

    essencial a sua abstrao, prevendo um modelo de conduta genrico, aplicvel a todos

    os casos semelhantes, e no apenas a um determinado caso especfico. Diz-se que so,

    tambm, hipotticas e condicionais, eis que s devem ser aplicadas diante dos fatos

    especficos que elas descrevem. So, em geral, expressas em atos normativos oriundos

    dos poderes estatais.

    1 Um dos primeiros compilados de leis escritas de que se tem notcia. Trata-se de um monlito de rocha

    de diorito onde o rei do Imprio Babilnico Hamurabi teria entalhado as normas que regiam o seu reino. Supe-se que o cdigo foi escrito por volta de 1700 a.C., tendo sido encontrado no ano de 1901 na regio da antiga Mesopotmia, onde hoje se situa a cidade de Susa, no Ir. 2 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2012, p. 40.

    3 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 27.

  • 7

    Princpios jurdicos, por outro lado, so paradigmas, diretrizes que devem ser

    observadas pelo legislador, pelo operador do Direito e pelos jurisdicionados, na

    aplicao das regras jurdicas. So, portanto, parmetros bsicos segundos os quais as

    regras devem ser criadas e interpretadas. Como tais, podem ser expressos ou

    implcitos em meio s normas jurdicas postas.

    Na clssica definio de Celso Antnio Bandeira de Mello4, o princpio

    jurdico o mandamento nuclear de um sistema, uma disposio fundamental que se

    irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para

    sua exata compreenso e inteligncia. Os princpios, segundo o autor, definiriam a

    lgica e a racionalidade de um sistema normativo, conferindo-lhe a tnica e lhe

    oferecendo sentido harmnico. Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld5, " o

    conhecimento dos princpios, e a habilitao para manej-los, que distingue o jurista

    do mero conhecedor de textos legais".

    Apresentados os conceitos de regras e princpios jurdicos, faz-se necessria

    uma breve explanao acerca das diferenas fundamentais entre ambas as espcies

    normativas.

    Apesar da profunda divergncia doutrinria existente acerca do tema,

    Dworkin6 sustenta que os critrios para a distino entre as regras e os princpios

    jurdicos no devem repousar no grau de generalidade da norma analisada, mas sim

    em seus aspectos qualitativos. Neste sentido, uma regra especfica, quando vlida e

    legtima, ser, ou no, aplicada diante de um fato concreto. Caso ela descreva a

    conduta cuja legalidade se pretenda avaliar, ser inevitvel a sua aplicao, devendo

    as regras em sentido contrrio ser consideradas invlidas.

    4 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. So Paulo: Malheiros,

    2005, p. 63. 5 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Pblico. So Paulo: Malheiros, 1992, p. 93.

    6 DWORKIN, op. cit, p. 35.

  • 8

    Os princpios jurdicos, por sua vez, no excluiriam a validade de outros

    princpios, de modo que seria possvel a incidncia de mais de um deles sobre o

    mesmo fato ou conduta. Far-se-ia, neste caso, um sopesamento da relevncia de cada

    princpio aplicvel hiptese. De maneira oposta ao que ocorre com as regras

    jurdicas, a soluo do aparente conflito entre princpios dependeria, para Dworkin, da

    anlise da importncia de cada um deles diante de um caso concreto.

    Mas qual seria a relevncia dos princpios no atual contexto do Direito de

    Famlia brasileiro? Segundo Maria Berenice Dias7, no Direito das Famlias onde

    mais se sente o reflexo dos princpios eleitos pela Constituio Federal, que consagrou

    como fundamentais valores sociais dominantes. Para a autora, os princpios

    constitucionais adquiriram eficcia imediata e aderiram ao sistema positivo,

    compondo nova base axiolgica e abandonando o estado de virtualidade a que sempre

    foram relegados.

    Faz-se, assim, necessrio analisar quais princpios aplicveis ao Direito de

    Famlia brasileiro foram consagrados pela Constituio Federal de 1988.

    1.2. DOS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS APLICVEIS AO DIREITO DE FAMLIA

    Delimitar os princpios constitucionais do Direito de Famlia brasileiro uma

    tarefa rdua. Isto porque no h consenso na doutrina e na jurisprudncia ptrias

    acerca de quais seriam os princpios do Direito de Famlia previstos pela Constituio

    Federal de 1988.

    7 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famlias. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010,

    p. 38.

  • 9

    De acordo com o professor Guilherme Pea de Moraes8, a Constituio

    brasileira consagrou os seguintes princpios aplicveis ao Direito de Famlia: (i) o

    princpio da proibio da discriminao (artigo 3, inciso IV, da CF); (ii) o princpio

    da pluralidade das famlias (artigo 226, 1 a 6, da CF); (iii) o princpio da proteo

    integral da criana (artigo 227, 1 e 3, da CF); (iv) o princpio da paternidade

    responsvel (artigo 226, 7, da CF); (v) o princpio do reconhecimento da filiao

    socioafetiva (artigo 227, caput, da CF); (vi) o princpio da verdade da filiao (artigo

    227, 6, da CF); e (vii) o princpio da vedao ao retrocesso (artigo 226, 3, da

    CF).

    O professor Carlos Roberto Gonalves9, por sua vez, elenca princpios

    sensivelmente diferentes no rol dos princpios constitucionais do Direito de Famlia.

    So eles: (i) princpio do respeito dignidade da pessoa humana (artigo 1, inciso III,

    da CF); (ii) princpio da igualdade jurdica dos cnjuges e dos companheiros (artigo

    226, 5, da CF); (iii) princpio da igualdade jurdica de todos os filhos (artigo 227,

    6, da CF); (iv) princpio da paternidade responsvel e planejamento familiar (artigo

    226, 7, da CF); (v) princpio da comunho plena de vida baseada na afeio entre

    os cnjuges ou conviventes (artigo 1.511 do Cdigo Civil de 2002); e (vi) princpio da

    liberdade de constituir uma comunho de vida familiar (artigo 1.513 do Cdigo Civil

    de 2002).

    J a autora Maria Berenice Dias10 entende que, alm dos supracitados

    princpios jurdicos, a Constituio de 1988 tambm teria prestigiado os chamados

    princpios da solidariedade familiar - que englobaria os valores da fraternidade e da

    8 Conforme a exposio do professor na palestra de abertura do Curso de Extenso em Direito de

    Famlia da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, proferida em 03 de setembro de 2013. 9 GONALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 6. - Direito de Famlia. 10. ed. So Paulo:

    Saraiva, 2013, p. 68. 10

    DIAS, op. cit., p. 58-72.

  • 10

    reciprocidade - e da afetividade, isto , o compromisso assumido pelo Estado de

    assegurar a tutela do afeto.

    Por fim, sustenta o advogado e atual presidente do Instituto Brasileiro do

    Direito de Famlia - IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira, em sua obra intitulada

    "Princpios Fundamentais Norteadores do Direito de Famlia"11, que constam na

    Constituio brasileira de 1988 dois princpios no reconhecidos pelos supracitados

    juristas: o princpio da monogamia e o princpio da autonomia e da menor interveno

    estatal. Este, objeto da presente obra.

    Assim, verifica-se que no h, em absoluto, consenso entre os juristas acerca

    dos princpios aplicveis ao Direito de Famlia consagrados pela Constituio de

    1988. Percebe-se, ainda, que o chamado princpio da interveno mnima do estado

    nas relaes familiares no vem sendo reconhecido pela maior parte da doutrina

    especializada como um dos princpios tutelados pela Constituio.

    Demonstrar-se-, contudo, que a Constituio de 1988, mormente a partir da

    promulgao da Emenda Constitucional n. 66 de 2010, iniciou o processo de

    elevao do princpio da interveno mnima do estado nas relaes familiares ao

    status de princpio constitucional fundamental.

    1.3. O PRINCPIO DA INTERVENO MNIMA DO ESTADO NAS RELAES FAMILIARES

    Desde a consolidao do Estado e da sua tutela sobre a vida dos seus

    cidados, a interveno dos administradores pblicos nas relaes familiares se

    11 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princpios Fundamentais Norteadores do Direito de Famlia. 2. ed. So

    Paulo: Saraiva, 2012.

  • 11

    manifestou sob as mais variadas formas, pelos mais variados motivos. Tome-se como

    exemplo a proteo da figura do pater familias, o homem na posio de marido e pai,

    no Direito Romano. Segundo Fustel de Coulanges12, ao se estudar a famlia romana

    fica evidente que o afeto nunca foi uma de suas caractersticas, enquanto se observa

    que a autoridade do homem sobre a mulher e os filhos era o seu principal fundamento.

    O Estado, ento, tutelava o patrimnio da famlia como um todo, nico, administrado

    unilateralmente pelo pater. A mulher romana, que sequer possua capacidade jurdica,

    no detinha o direito de possuir bens.

    Atualmente, a interveno estatal sobre as relaes familiares se manifesta

    atravs de polticas pblicas governamentais, decises judiciais e, principalmente, por

    meio da promulgao de leis protetivas ou repressivas de comportamentos reputados

    indevidos pelo Estado. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira13, o Estado vem

    abandonando sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado

    protetor-provedor-assistencialista, cuja tnica no de uma total ingerncia, mas, em

    algumas vezes, at mesmo de substituio a eventual lacuna deixada pela prpria

    famlia, como, por exemplo, no que concerne educao e sade dos filhos (artigo

    227, caput, da CF).

    Para Rodrigo Pereira14, a interveno do Estado deve, apenas e to somente,

    ter o condo de tutelar a famlia e dar-lhe garantias, inclusive de ampla manifestao

    de vontade e de que seus membros vivam em condies propcias manuteno do

    ncleo afetivo. O limite para a interveno estatal, neste sentido, a garantia da

    autonomia privada dos membros da famlia. Violada a autonomia familiar, estar

    configurado o excesso do Estado em sua interveno.

    12 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

    13 PEREIRA, op. cit., p. 180.

    14 Ibid., p. 182.

  • 12

    O interesse da sociedade em tutelar os direitos das famlias no pode se

    sobrepor aos interesses particulares dos membros do ncleo familiar. O Estado, no

    seu intuito protetivo, no deve colocar os supostos interesses coletivos acima dos

    interesses privados constitucionais dos indivduos no mbito familiar. Como coloca o

    ilustre professor Caio Mrio da Silva Pereira15, "as normas do Direito de Famlia so

    normas de Direito Privado, na medida em que os interesses protegidos so

    predominantemente individuais, tratando-se de uma relao entre particulares, embora

    haja interesse coletivo".

    Portanto, o princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes

    Familiares determina que a interveno estatal somente se justifica como meio

    garantidor da realizao pessoal dos membros de uma famlia, devendo o Estado

    respeitar a autonomia privada e acat-la como princpio fundamental16.

    2. A EXCESSIVA INTERVENO DO ESTADO BRASILEIRO NAS RELAES FAMILIARES

    Compreendido o significado do Princpio da Interveno Mnima do Estado

    nas Relaes Familiares, passa-se avaliao da magnitude do problema que ele

    pretende resolver: a excessiva interveno do Estado brasileiro nas relaes entre

    familiares.

    15 PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de Direito Civil - volume 5. Atual. Maria Celina Bodin de

    Moraes. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 16

    PEREIRA, op. cit, p. 183-184.

  • 13

    2.1. AS MANIFESTAES DA INTERVENO ESTATAL

    O Estado brasileiro vem demonstrando a tendncia de presumir que os

    cidados no conseguem tomar as suas prprias decises de maneira refletida e

    consciente. O legislador ptrio entende que em determinadas situaes a sociedade

    no merece autonomia, presumindo que certas decises traro prejuzos aos quais os

    indivduos no devem ser expostos.

    Veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 1.707 do Cdigo Civil de 2002

    ("CC"): "Pode o credor no exercer, porm lhe vedado renunciar o direito a

    alimentos, sendo o respectivo crdito insuscetvel de cesso, compensao ou

    penhora". O referido dispositivo positivou a irrenunciabilidade do direito aos

    alimentos. Tese esta que j havia, como explica Rodrigo da Cunha Pereira17, sido

    afastada por notria construo doutrinria e jurisprudencial.

    O artigo 1.707 do CC permite que o credor da prestao alimentcia no

    exera o seu direito de receb-la, mas o probe de renunciar a este direito. Seu

    objetivo resguardar o direito aos alimentos para o caso de uma futura necessidade.

    Em outras palavras, probe-se que o titular do direito aos alimentos renuncie ao

    mesmo porque, apesar de no querer receber a prestao em um dado momento, ele

    pode vir a necessitar dela no futuro.

    O dispositivo corolrio de uma antiga posio do Supremo Tribunal

    Federal, manifestada em sua smula de n. 379, segundo a qual: "No acordo de

    desquite no se admite renncia aos alimentos, que podero ser pleiteados

    17 Ibid., p. 185.

  • 14

    ulteriormente, verificados os pressupostos legais". Sobre o assunto, dispe o professor

    Joo Baptista Villela18:

    Como tem observado a melhor doutrina, irrenunciveis so

    apenas os alimentos devidos jure sanguinis, j que se funda no parentesco, que igualmente no se renuncia. Mas os que

    tem carter indenizatrio, como so aqueles devidos pela extino do dever conjugal de mtua assistncia, no encontram motivo para se subtrarem ao imprio da

    autonomia da vontade. A orientao do Supremo Tribunal

    Federal infantiliza os cnjuges e lhes retira o poder de autodeterminao at mesmo quando, superados todos os

    desencontros de um casamento que se inviabilizou,

    identificam este magro e derradeiro consenso, que a separao por acordo.

    Percebe-se que a interveno excessiva do legislador, como no caso em

    apreo, pode vir a prejudicar o prprio sujeito que o Estado procurou proteger. A

    irrenunciabilidade do direito aos alimentos, por exemplo, pode inviabilizar um

    divrcio consensual, ao retirar a segurana do cnjuge de que o seu parceiro no

    pleitear alimentos no futuro.

    Ainda mais controvertida a imposio pelo legislador do regime da

    separao obrigatria de bens ao indivduo maior de 70 anos de idade. Segundo o

    artigo 1.641, inciso II, do CC, " obrigatrio o regime da separao de bens no

    casamento da pessoa maior de 70 anos". Esta se trata da nova redao do dispositivo,

    determinada pela Lei n. 12.344 de 2010. Em sua redao original, o regime da

    separao de bens era imposto ao casamento do maior de 60 anos de idade. Esta, por

    sua vez, nada mais que uma evoluo do disposto no pargrafo nico do artigo 258

    18 VILLELA, Joo Baptista. Liberdade e famlia. Movimento Editorial da Revista da Faculdade de

    Direito da UFMG, v. III, srie Monografias, n. 2. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1980, p. 36.

  • 15

    do Cdigo Civil de 1916: ", porm, obrigatrio o [regime] da separao de bens do

    casamento: II - do maior de 60 e da maior de 50 anos".

    Ao fazer tal imposio, presumiu o legislador que o futuro cnjuge de um

    indivduo acima de uma determinada idade somente se uniria a este com a inteno de

    receber parte do seu patrimnio ao fim da relao. Presumiu, assim, que o sujeito que

    ostenta idade avanada no teria condies de avaliar as reais intenes do seu

    pretendente. Trata-se, claro, de um conceito equivocado do legislador. Novamente

    foi retirada a autonomia do indivduo com o pretexto de proteg-lo, quando ele

    mesmo seria o melhor avaliador da sua necessidade de proteo. Acerca da referida

    imposio, defende a professora Maria Berenice Dias19:

    Trata-se de mera tentativa de limitar o desejo dos nubentes mediante verdadeira ameaa. A forma encontrada pelo

    legislador para evidenciar sua insatisfao frente teimosia

    de quem desobedece ao conselho legal e insiste em realizar o

    sonho de casar impor sanes patrimoniais.

    A promotora de justia rica Vercia de Oliveira Canuto20, por sua vez,

    entende que "a limitao da vontade, em razo da idade, longe de se constituir em

    uma precauo (norma protetiva), se constitui em uma verdadeira sano". No

    restam dvidas, portanto, de que o disposto no artigo 1.641, inciso II, do CC, constitui

    mais uma interveno excessiva do Estado brasileiro nas relaes familiares.

    A prpria exigncia legal do processo de habilitao prvia ao casamento se

    trata, ao nosso ver, de um excesso do legislador (artigos 1.525 a 1.532 do CC). O

    processo de habilitao para o casamento pode ser explicado como a submisso dos

    19 DIAS, op. cit., p. 246.

    20 CANUTO, rica Vercia de Oliveira. Liberdade de contratar o regime patrimonial de bens no

    casamento. Regimes mistos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Famlia. Famlia e dignidade humana. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006, p. 285-314.

  • 16

    nubentes fiscalizao estatal prvia, manifestada pela avaliao do Ministrio

    Pblico e do cartrio do registro civil acerca da existncia de impedimentos para o

    casamento e para a adoo de certos regimes de bens. A habilitao um dos

    requisitos para a celebrao do casamento, conforme a parte final do artigo 1.533 do

    CC.

    Atravs do processo de habilitao, o Estado verifica se os nubentes se

    adequam s normas protetivas do CC, como o artigo 1.521 do referido diploma, que

    impede o casamento em certas circunstncias; o seu artigo 1.523, que sugere que o

    casamento no se realize em determinadas hipteses; e o supracitado artigo 1.641, que

    impe o regime da separao de bens a determinadas classes de nubentes. Trata-se,

    portanto, de um processo burocrtico de avaliao do cumprimento dos comandos

    protetivos estatais.

    A interveno estatal nas relaes familiares, contudo, no se manifesta

    apenas atravs das leis. As decises das Cortes Superiores do pas constituem outra

    profusa fonte de interveno indevida.

    No dia 24 de abril de 2012, alterando o seu prvio entendimento sobre a

    responsabilidade civil no mbito familiar, decidiu o Superior Tribunal de Justia21

    pela condenao de um pai a indenizar sua filha em R$ 200.000,00 (duzentos mil

    reais) a ttulo de danos morais por "abandono afetivo". Entendeu o Tribunal que a

    paternidade traz vnculos objetivos para os quais h previses legais e constitucionais

    de obrigaes mnimas, como o dever de convvio, de cuidado, de criao e de

    educao dos filhos. Assim, no observados estes deveres, se tornaria possvel a

    responsabilizao civil.

    21 Brasil. Superior Tribunal de Justia. Terceira Turma. Recurso Especial n. 1.159.242/SP. Relatora

    Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 24 de abril de 2012. Acesso em 25 de maro de 2014.

  • 17

    O problema da referida deciso reside no fato de que os deveres de convvio,

    cuidado, criao e educao dos filhos so essencialmente deveres subjetivos. No se

    pode determinar com objetividade, por exemplo, se um pai cumpre o seu dever de

    convvio com o seu filho. Basta dizer que este pai pode ter se divorciado da genitora

    da criana, se mudado para outro pas e constitudo uma nova famlia. Caso ele venha

    a ligar para a criana todos os meses e a visitar uma vez ao ano estar cumprindo o

    seu dever? E quanto ao dever de criao, o que configuraria o cumprimento da

    obrigao?

    O afeto no pode ser imposto pelo Estado, simplesmente porque no decorre

    de obrigao legal ou de uma deciso judicial, mas sim do vnculo de afinidade entre

    as pessoas. A deciso do Superior Tribunal de Justia, portanto, parece ter como

    objetivo interferir nas relaes privadas familiares, impondo aos pais que criem um

    vnculo de afinidade com os seus filhos quando nem sempre este vnculo se mostra

    possvel.

    Em se tratando de decises judiciais interventivas, destaca-se tambm a

    recente medida liminar concedida pela juza Liniane Maria Mog da Silva, da comarca

    de Torres, no Rio Grande do Sul, para obrigar uma gestante a fazer uma operao

    cesariana de emergncia22.

    A gestante em questo, Adelir Lemos de Goes, esperava o seu terceiro filho e

    estava na 42 semana de gestao. No dia 31 de maro de 2014, sentindo fortes dores

    abdominais, Adelir se dirigiu ao Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, na cidade

    de Torres, Rio Grande do Sul. L, foi atendida pela mdica obstetra Andria Castro,

    que constatou se tratar de gravidez de risco e indicou a realizao de uma cesariana de

    emergncia.

    22 SARMENTO, Eduardo. Os limites da liberdade de escolha. Tribuna do Advogado, OAB/RJ, Rio de

    Janeiro, nmero 537, ano XLII, p. 17-19, maio de 2014.

  • 18

    Adelir, contudo, se negou a passar por uma cesariana, afirmando que, por

    convices pessoais, gostaria de ter o seu filho atravs de parto normal. A obstetra,

    inconformada, pediu que a gestante assinasse um termo de responsabilidade antes de

    liber-la, e logo em seguida acionou o Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul.

    Naquela mesma noite foi requerida e concedida uma liminar para obrigar a gestante a

    passar pela cesariana de emergncia, tendo a juza Liniane Maria Mog da Silva

    determinado que a gestante fosse imediatamente encaminhada para o hospital, se

    necessrio com o apoio da fora policial.

    Assim, Adelir foi buscada em sua casa por um oficial de justia

    acompanhado de policiais armados, levada para o hospital e obrigada a passar pela

    operao cesariana, contra a sua vontade. Para o presidente da Comisso de Biotica e

    Biodireito da OAB/RJ, Bernardo Campinho, a medida violou direitos fundamentais da

    gestante, devendo ser observada a necessidade primordial de preservao da escolha

    da paciente23.

    Por fim, devem ser citados como possibilidades de futuras intervenes

    extremadas o notrio projeto de lei n. 7672/2010, que visa a proibir o uso de castigos

    fsicos ou tratamentos cruis ou degradantes na educao de crianas e adolescentes, e

    o projeto de lei n. 817/2011, que altera o artigo 52 da Lei de Registros Pblicos (Lei n.

    6.015/73) para permitir que a me de uma criana a registre isoladamente, sem a

    anuncia do suposto pai.

    Tratam-se de dois projetos de lei controvertidos, justamente por apresentarem

    perspectivas de intervenes drsticas nas relaes familiares. Caso o primeiro seja

    aprovado, o Estado estar retirando dos pais o "direito palmada", isto , a

    possibilidade de aplicarem castigos fsicos nos seus filhos. J o segundo, na hiptese

    23 Ibid., p. 18.

  • 19

    de vir a se tornar uma lei, acabar permitindo que uma me registre qualquer homem

    como pai de seu filho, cabendo a ele comprovar em juzo a inexistncia da

    paternidade. Ambas as perspectivas parecem tenebrosas.

    Conclui-se, assim, que o Estado vem interferindo profundamente nas relaes

    familiares dos cidados brasileiros, em regra para retirar a autonomia privada dos

    indivduos, presumindo a sua falta de capacidade para tomar decises seguras e

    razoveis. Por isso entendemos que se faz necessria a constitucionalizao do

    princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares.

    2.2. REQUISITOS OBJETIVOS: COMO IDENTIFICAR UMA MEDIDA INTERVENTIVA?

    Percebe-se, assim, que as medidas interventivas estatais no mbito do Direito

    de Famlia so numerosas e potencialmente lesivas a quem elas pretendem proteger.

    Mas como identificar essas medidas? Como diferenci-las de medidas no

    interventivas? A efetiva oposio a tais medidas exige a sua correta identificao, o

    que pode ser feito atravs da anlise dos requisitos objetivos que sugerimos a seguir.

    Primeiramente, denota-se que todas as manifestaes de interveno estatal

    elencadas nesta obra possuem uma caracterstica comum: a restrio de direitos de

    uma determinada classe de pessoas. A interveno estatal nas relaes familiares

    sistematicamente se manifesta como a limitao de um direito ou de uma liberdade do

    indivduo tutelado. Atravs de suas medidas interventivas o Estado reduz a autonomia

    privada dos cidados.

    Em segundo lugar, as medidas em questo so atos emanados por autoridades

    pblicas competentes, sejam parlamentares, chefes do Poder Executivo ou membros

  • 20

    do Poder Judicirio. Tratam-se, portanto, de atos interventivos estatais com presuno

    de legalidade, no sendo possvel a sua imposio por particulares.

    Finalmente, observa-se que o objetivo do Estado ao emanar tais medidas a

    proteo de indivduos que presumidamente tomariam decises equivocadas e trariam

    prejuzos financeiros e psicolgicos para si e para terceiros. O Estado, entendendo que

    um determinado grupo de pessoas provavelmente far escolhas indevidas, que

    potencialmente a prejudicaro, tolhe a sua liberdade com o intuito de proteg-

    la.Verifica-se, aqui, o trao distintivo das medidas intervencionistas indevidas.

    A interveno do Estado nas relaes familiares, portanto, se revela atravs

    de medidas que: (i) mitigam direitos e liberdades de um determinado grupo de

    cidados; (ii) so emandas por autoridades pblicas competentes; e (iii) presumem

    que os cidados no conseguiro tutelar as suas prprias vidas de maneira eficiente,

    objetivando proteg-los de suas prprias decises potencialmente prejudiciais.

    3. A CONSTITUCIONALIZAO DO PRINCPIO DA INTERVENO MNIMA

    Apesar do reconhecimento do Princpio da Interveno Mnima do Estado

    nas Relaes Familiares por parte da doutrina brasileira como princpio jurdico

    vlido e aplicvel, fato que ele ainda no foi expressamente reconhecido pelo

    legislador. No h, na legislao ptria, meno expressa ao referido princpio. Desse

    modo, buscar-se-, no captulo final do presente artigo, avaliar a legalidade do

    Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares, bem como a sua

    compatibilidade com os ditames da Constituio brasileira de 1988.

  • 21

    3.1. O PRINCPIO DA INTERVENO MNIMA E A LEGISLAO VIGENTE

    O Princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares ainda

    no foi expressamente positivado no Direito brasileiro. Existem, contudo, diversos

    indcios na lei brasileira de que o prprio legislador procurou evitar a interveno

    excessiva do Estado nas clulas familiares.

    A Constituio Federal de 1988 dispe em seu artigo 226, caput, que "a

    famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado". O constituinte, assim,

    deixou clara a modificao do papel do Estado brasileiro de um "Estado-interventor"

    para um "Estado-protetor"24. Para Rodrigo Pereira ficou clara a inteno da

    Constituio de unir a liberdade do indivduo importncia que a famlia representa

    para a sociedade e para o Estado25:

    Ao garantir ao indivduo a liberdade por intermdio do rol de

    direitos e garantias contidos no art. 5, bem como de outros princpios, [a Constituio] conferiu-lhe a autonomia e o respeito dentro da famlia e, por conseguinte, assegurou a

    sua existncia como clula mantenedora de uma sociedade

    democrtica. Isto, sim, que deve interessar ao Estado.

    Faz-se necessrio citar, ainda, que a Emenda Constitucional n. 66, de 13 de

    julho de 2010, alterou a redao do 6 do artigo 226 da CF/88, para prever que "o

    casamento civil pode ser dissolvido pelo divrcio". A alterao em questo constituiu

    uma verdadeira revoluo no seio do Direito de Famlia brasileiro, pois excluiu os

    requisitos da prvia separao judicial por mais de um ano ou da separao de fato por

    mais de dois anos para a decretao do divrcio. Em outras palavras, a Emenda

    24 PEREIRA, op. cit, p. 183.

    25 Ibid., p. 183.

  • 22

    Constitucional 66/2010 tornou o divrcio um direito potestativo, que passou a poder

    ser exercido facultativamente por qualquer dos cnjuges, a qualquer momento.

    Com a EC 66/2010 o legislador brasileiro deu um grande passo em direo

    reduo do intervencionismo estatal. Os cnjuges que antes se viam obrigados a

    permanecerem casados, independentemente de suas vontades, por uma imposio

    Constitucional, passaram a ter ampla liberdade para o rompimento do matrimnio.

    De qualquer forma, antes mesmo da promulgao da referida Emenda

    Constitucional, o Cdigo Civil brasileiro j dispunha, em seu artigo 1.513, que "

    defeso a qualquer pessoa, de direito pblico ou privado, interferir na comunho de

    vida instituda pela famlia". Para o eminente professor Rodrigo da Cunha Pereira26,

    pode-se extrair da o fundamento legal para recepcionar a autonomia privada como

    princpio fundamental do Direito de Famlia.

    De fato, quando o CC/02 probe a interferncia de qualquer pessoa, seja de

    direito pblico ou de direito privado, na comunho de vida instituda pela famlia, ele

    no deixa dvidas acerca de sua inteno de proteger as famlias de intervenes

    indevidas, sejam aquelas perpetradas por particulares, sejam aquelas impostas pelo

    Estado.

    Logo se conclui que no h, na legislao vigente, qualquer bice

    positivao do princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares.

    Pelo contrrio, no somente a Constituio Federal, mas tambm o Cdigo Civil de

    2002, apresentam noes bsicas de autonomia privada nas relaes familiares que

    convergem com a ideia central do princpio em questo.

    26 Ibid., p. 183.

  • 23

    3.2. A POSITIVAO DO PRINCPIO DA INTERVENO MNIMA

    No obstante a concluso de que princpio da Interveno Mnima do Estado

    nas Relaes Familiares se coaduna com os valores insculpidos na Constituio

    Federal de 1988 e no Cdigo Civil de 2002, somente a sua positivao lhe garantir

    efetividade. Em outras palavras, apenas a insero do referido princpio nos diplomas

    legais permitir que os seus efeitos irradiem perante toda a sociedade.

    A positivao do princpio da Interveno Mnima significa a imposio de

    uma obrigao legal ao legislador e ao aplicador da lei no sentido da observncia da

    autonomia privada dos entes familiares. A positivao pode se dar em mbito

    constitucional ou infraconstitucional, configurando a primeira modalidade uma

    espcie de constitucionalizao do direito.

    De acordo com Virglio Afonso da Silva27, a constitucionalizao do direito

    pode ocorrer de cinco maneiras distintas, propostas por Schuppert e Bumke. So elas:

    (i) a reforma legislativa; (ii) o desenvolvimento jurdico por meio da criao de novos

    direitos individuais e de minorias; (iii) a mudana de paradigmas nos demais ramos do

    direito; (iv) a irradiao do Direito Constitucional com efeitos nas relaes privadas e

    nos deveres de proteo; e (v) a irradiao do Direito Constitucional com a

    constitucionalizao do direito por meio da jurisdio ordinria. Para o autor, as

    principais formas de constitucionalizao observadas no ordenamento jurdico

    brasileiro so a reforma legislativa, atravs da qual se operam reformas na

    Constituio, para nela incluir novos temas, ou na legislao infraconstitucional, com

    o objetivo de adapt-la Constituio, e a irradiao do Direito Constitucional aos

    27 SILVA, Virglio Afonso da. A constitucionalizao do direito: os direito fundamentais nas relaes

    entre particulares. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 71.

  • 24

    demais ramos do Direito, atravs da qual se solidifica a submisso desses ramos ao

    Direito Constitucional.

    Portanto, para se garantir a eficcia da constitucionalizao do princpio da

    Interveno Mnima, ela deve ser operacionalizada de duas maneiras distintas. A

    primeira a incluso do princpio no texto constitucional, a fim de positiv-lo e,

    assim, lhe institucionalizar. A segunda a irradiao do princpio sobre o Direito de

    Famlia infraconstitucional, por meio da qual devero ser extirpadas do ordenamento

    as normas interventivas ora vigentes.

    Assim, a presente obra visa a sugerir a constitucionalizao do princpio da

    Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares. Com a constitucionalizao

    deste princpio espera-se que o Estado brasileiro finalmente garanta a autonomia

    privada dos seus cidados, permitindo que as famlias tutelem as suas prprias

    relaes.

    CONCLUSO

    O intervencionismo do Estado nas relaes familiares dos brasileiros no

    possui, atualmente, qualquer parmetro efetivamente limitador. A supresso ou

    limitao da autonomia privada dos cidados, perpetrada principalmente pelos

    poderes Legislativo e Judicirio, alcanou nveis extremos, manifestando-se atravs

    de leis excessivamente protetivas, decises judiciais inconsistentes e polticas pblicas

    abusivas. Neste contexto, surge a necessidade de positivao de um princpio

    balizador, comumente chamado pela doutrina ptria de princpio da Interveno

    Mnima do Estado nas Relaes Familiares.

    Ao longo do presente artigo cientfico procurou-se verificar quais seriam os

    princpios constitucionais aplicveis ao Direito de Famlia brasileiro, bem como se o

  • 25

    princpio da Interveno Mnima do Estado nas Relaes Familiares encontraria

    bices na legislao constitucional e infraconstitucional.

    Procurou-se, tambm, fazer uma anlise das principais manifestaes da

    interveno estatal na autonomia privada dos cidados no mbito das relaes de

    famlia, a fim de se ilustrar e destacar o problema ora enfrentado.

    Por fim, defendeu-se a positivao do princpio da Interveno Mnima do

    Estado nas Relaes Familiares atravs da sua incluso no texto constitucional e

    infraconstitucional, de modo que se garanta a sua efetividade.

    A constitucionalizao do princpio da Interveno Mnima ser um grande

    passo em direo garantia da autonomia privada dos cidados brasileiros, livrando-

    os da presuno estatal de que eles no so capazes de tomar as suas prprias

    decises.

    REFERNCIAS

    ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2012. CANUTO, rica Vercia de Oliveira. Liberdade de contratar o regime patrimonial de bens no casamento. Regimes mistos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Famlia. Famlia e dignidade humana. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006. COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famlias. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. So Paulo: Martins Fontes, 2002. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O Novo Divrcio. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2012. GONALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 6. - Direito de Famlia. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2013. PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de Direito Civil - v. 5. Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

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    PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princpios Fundamentais Norteadores do Direito de Famlia. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2012. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divrcio: teoria e prtica. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2013. SARMENTO, Eduardo. Os limites da liberdade de escolha. Tribuna do Advogado, OAB/RJ, Rio de Janeiro, nmero 537, ano XLII, maio de 2014. SILVA, Virglio Afonso da. A constitucionalizao do direito: os direito fundamentais nas relaes entre particulares. So Paulo: Malheiros, 2011.