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1 A CONCESSÃO DA ATIVIDADE DE TRANSPORTE DUTOVIÁRIO DE GÁS NATURAL: NOTAS AO REGIME JURÍDICO BÁSICO DA LEI Nº 11.909/2009 1 Alex Vasconcellos Prisco Artigo publicado na Revista de Direito Público da Economia RDPE 31 (julho/setembro 2010) RESUMO: O presente trabalho fornece um panorama sobre os principais aspectos do regime jurídico da concessão da atividade de transporte dutoviário de gás natural, em conformidade com a Lei nº 11.909/2009 (Lei do Gás). São enfocadas questões como a classificação da atividade de transporte de gás natural; natureza do contrato e regime jurídico; conceito e principais elementos da concessão; panorama da legislação aplicável; pontos relevantes em matéria de licitação; anotações gerais sobre o papel dos agentes responsáveis pela regulação da concessão; riscos da gestão privada da atividade e responsabilidade civil do concessionário. O estudo, portanto, faz uma incursão pela moldura jurídica elementar da concessão de transporte de gás por meio de dutos, fornecendo uma visão geral da política regulatória e de seus instrumentos de execução. PALAVRAS-CHAVE: Concessão Transporte dutoviário de gás natural Regime jurídico básico - Lei nº 11.909/2009. ABSTRACT: This paper provides an overview of the main aspects of the legal activity of the concession of pipeline transportation of natural gas in accordance with Law No. 11.909/2009 (Gas Law). The study covers issues such as how to classify the activity of natural gas transmission, nature of contract and legal, concept and main elements of the concession; overview of applicable legislation; points relevant to the bidding process; general notes on the role of 1 Trabalho desenvolvido no âmbito do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes (PMD-UCAM) e apresentado como requisito parcial para aprovação na matéria Direito Constitucional Econômico, lecionada pelo Prof. Doutor Marcos Juruena Vilela Souto.

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1

A CONCESSÃO DA ATIVIDADE DE TRANSPORTE DUTOVIÁRIO DE GÁS

NATURAL: NOTAS AO REGIME JURÍDICO BÁSICO DA LEI Nº 11.909/20091

Alex Vasconcellos Prisco

Artigo publicado na Revista de Direito Público da Economia – RDPE 31

(julho/setembro 2010)

RESUMO: O presente trabalho fornece um panorama sobre os principais

aspectos do regime jurídico da concessão da atividade de transporte dutoviário

de gás natural, em conformidade com a Lei nº 11.909/2009 (Lei do Gás). São

enfocadas questões como a classificação da atividade de transporte de gás

natural; natureza do contrato e regime jurídico; conceito e principais elementos

da concessão; panorama da legislação aplicável; pontos relevantes em matéria

de licitação; anotações gerais sobre o papel dos agentes responsáveis pela

regulação da concessão; riscos da gestão privada da atividade e

responsabilidade civil do concessionário. O estudo, portanto, faz uma incursão

pela moldura jurídica elementar da concessão de transporte de gás por meio

de dutos, fornecendo uma visão geral da política regulatória e de seus

instrumentos de execução.

PALAVRAS-CHAVE: Concessão – Transporte dutoviário de gás natural –

Regime jurídico básico - Lei nº 11.909/2009.

ABSTRACT: This paper provides an overview of the main aspects of the legal

activity of the concession of pipeline transportation of natural gas in accordance

with Law No. 11.909/2009 (Gas Law). The study covers issues such as how to

classify the activity of natural gas transmission, nature of contract and legal,

concept and main elements of the concession; overview of applicable

legislation; points relevant to the bidding process; general notes on the role of

1 Trabalho desenvolvido no âmbito do Programa de Mestrado em Direito da Universidade

Cândido Mendes (PMD-UCAM) e apresentado como requisito parcial para aprovação na matéria Direito Constitucional Econômico, lecionada pelo Prof. Doutor Marcos Juruena Vilela Souto.

2

the agents responsible for regulating the concession, private risk management

activity and liability of the dealer. The main purpouse of this paper is therefore

make an excursion into the basic legal framework for granting gas transmission

through pipelines, providing an overview of the regulatory policy and its

implementation tools.

KEYWORDS: Concession contratact – Pipeline transportation of natural gas -

basic legal framework - Law No. 11.909/2009.

3

Introdução: abrangência e contextualização do tema

A Lei nº 11.909, de 4 de março de 2009, alcunhada de Lei do Gás, veio

ao mundo jurídico para disciplinar as atividades relativas ao transporte,

tratamento, processamento, estocagem e comercialização de gás natural.

No presente estudo, nos restringiremos à análise dos principais pontos

do regime jurídico da concessão de transporte de gás por meio de duto2

considerado de “interesse geral” (§ 1o, art. 3o) 3. No entanto, antes de se

adentrar ao tema propriamente dito, convém primeiro ressaltar alguns aspectos

gerais do contexto econômico-jurídico em que emerge a novel legislação, pois

são fundamentais à melhor compreensão do assunto.

Com efeito, o objetivo imediato da lei é fomentar os investimentos

privados imprescindíveis ao desenvolvimento da incipiente e promissora

indústria brasileira de gás, prejudicada por conta de deficiências existentes no

modelo de regulação que até então vinha sendo adotado. A primeira

dificuldade à implantação e operação do transporte dutoviário residia no

regramento genérico e lacunoso dado à atividade pela Lei no 9.478, de 6 de

agosto de 1997 (Lei do Petróleo), em que o gás é basicamente tratado como

simples derivado ou acessório do petróleo, com ênfase na regulação do

processo de exploração e produção desses hidrocarbonetos (upstream).

Ocorre que a atividade intermediária de transporte de gás - midstream -

tem uma lógica de funcionamento muito peculiar, completamente distinta

daquela do setor de pesquisa e prospecção, demandando um modelo

regulatório igualmente diferenciado. Como observam Diogo Pignataro de

2 Basicamente, essa infraestrutura responde pela movimentação de gás das unidades de

processamento e estocagem ou outros gasodutos de transporte, até as instalações de estocagem, outros gasodutos de transporte e pontos de entrega a concessionários estaduais de distribuição, a quem cabe explorar os serviços locais de gás canalizado (CF, art. 25, § 2º). Para uma definição mais precisa e detalhada dos Gasodutos de Transporte, consultar o texto do inciso XVIII, do art. 2

o, da Lei do Gás.

3 “Art. 3

o A atividade de transporte de gás natural será exercida por sociedade ou consórcio

cuja constituição seja regida pelas leis brasileiras, com sede e administração no País, por conta e risco do empreendedor, mediante os regimes de: I - concessão, precedida de licitação;(...) ou II - autorização. § 1

o O regime de autorização de que trata o inciso II do caput deste artigo

aplicar-se-á aos gasodutos de transporte que envolvam acordos internacionais, enquanto o regime de concessão aplicar-se-á a todos os gasodutos de transporte considerados de interesse geral.” (grifo nosso)

4

Oliveira, Camila Colares Bezerra e Otacílio dos Santos Silveira Neto4, “apesar

de nos segmentos de exploração, desenvolvimento e produção, o mercado de

gás se assemelhar ao do petróleo, em todos os outros segmentos da cadeia

produtiva o gás passa a operar segundo uma estrutura de rede, se

aproximando bem mais de outros setores da economia, como o de energia

elétrica, no que tange à sua regulação.”

Assim, tendo o modelo anterior se dedicado precipuamente ao

regramento da exploração e produção do gás natural, não havia por parte do

Poder Público o indispensável planejamento legal que indicasse ao setor

privado5 o caminho a ser seguido em matéria de transporte do energético.

Além disso, a normatização administrativa precária da regulação do

transporte de gás, materializada em autorizações, portarias e resoluções

expedidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustiveis –

ANP, induzia os agentes privados a seguirem uma estratégia empresarial de

contenção de recursos, voltada para o curto prazo6, já que não havia

dispositivos legais enunciando qualquer garantia de recuperação dos

investimentos, ainda que em prazos mais alongados 7.

Portanto, para que a implantação da infraestrutura de transporte de gás

fosse viável entre nós, caberia ao Poder Público criar uma estrutura jurídica

adequada à recepção dos vultosos capitais privados indispensáveis à

construção e operação das plantas de transporte de gás natural. Isso implica

regras orientadas às especificidades próprias da atividade, de maior

estabilidade, e que ofereçam possibilidade de retorno do investimento

4 OLIVEIRA, Diogo Pignataro de; BEZERRA, Camila Colares et al. A regulação do gás natural

no Direito Comunitário europeu e no Mercosul. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 584, 11 fev. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6303>. Acesso em: 22 jun. 2009. 5 CF, art. 174. “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado

exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (grifo nosso). 6 Ibidem.

7 Numa análise mais aprofundada do tema, escrevem Maria D'Assunção da Costa e Edmilson

Moutinho dos Santos: “A experiência do regime de autorizações exigia um sistema contratual complexo, envolvendo todos os agentes da cadeia produtiva (do produtor ao consumidor final). Através desses arranjos contratuais, procurava-se a melhor distribuição de rendas e riscos no sentido de viabilizar a construção de novos gasodutos e aumentar o acesso ao gás para os consumidores. Esse regime contratual e jurídico mostrou-se insuficiente para promover maiores investimentos, impondo riscos excessivos aos carregadores em um mercado ainda emergente.” (In: Nova Lei do Gás: algumas considerações.:http://www.energiahoje.com/brasilenergia/ideias/2009/04/01/380479/nova-lei-do-gas-natural-algumas-consideracoes.html. Acesso: 22/08/2009).

5

particular, mediante a distribuição razoável dos riscos do empreendimento.

Como anotam Gustavo Vilas Boas e Patrícia Crichigno Távora8, “na fase

infante do ciclo de vida das indústrias de rede” – como é o caso do transporte

de gás natural em âmbito nacional -, “o objetivo fundamental de uma política

regulatória setorial é o de promover prioritariamente os investimentos. Nesse

intuito, o arcabouço regulatório não pode ignorar as restrições objetivas de

incerteza e risco para a realização de investimentos.”

A novel Lei do Gás parece perseguir esse intento, ao ter optado por um

marco regulatório flexível, onde se permite que as áleas empresariais sejam

contratualmente alocadas de modo mais equilibrado entre os participantes do

setor.

É verdade, no entanto, que muitos aspectos do regime jurídico da

concessão do transporte de gás por meio de dutos de interesse geral ainda

dependem de regulamentação até então inexistente, sem contar que boa parte

do disciplinamento pormenorizado da matéria advirá dos contratos que serão

firmados entre Administração e particulares. Mesmo assim, é possível divisar

na Lei nº 11.909/2009 o delineamento básico da estrutura jurídico-econômica

desse ajuste e dos seus aparatos regulatórios.

Dentro desse quadro e observadas as limitações impostas pela

novidade do marco regulatório, discorreremos sobre a classificação da

atividade de transporte de gás natural e sua moldura jurídica elementar,

fornecendo uma visão geral da política regulatória e de seus instrumentos de

execução.

Num segundo momento, enfocaremos a questão da natureza do

contrato e do regime jurídico aplicável; conceito e principais elementos da

concessão; panorama da legislação aplicável; pontos relevantes em matéria de

licitação; anotações gerais sobre o papel dos atores responsáveis pela

regulação da concessão; riscos da gestão privada da atividade e

responsabilidade civil do concessionário.

Em termos metodológicos, o estudo contempla análises descritivas e

reflexivas dos institutos da Lei nº 11.909/2009, visualizando a relação

8 BÔAS, Gustavo Vilas; TÁVORA, Patrícia Crichigno. Definição de um novo marco regulatório

para a indústria de gás natural no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 930, 19 jan. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7860. Acesso em: 19/08/2009.

6

contratual entre Administração Pública e iniciativa privada sob os paradigmas

da “consensualidade” e “negociação”, “qualidades muito mais eficientes para a

satisfação dos interesses públicos.9”

1. Classificação da atividade de transporte de gás natural: modelagem

jurídica e visão geral da política regulatória e de seus instrumentos de

execução

Em sintonia com as normas constitucionais que regem a matéria (CF,

art. 177, IV), a Lei nº 11.909/2009 declara logo em seus primeiros dispositivos

que o transporte de gás natural se consubstancia em atividade econômica,

fazendo questão de alertar expressamente que sua exploração privada não se

constituirá, “em qualquer hipótese, prestação de serviço público” (art. 1o, § 2o,

última parte) 10.

Nada obstante, apesar de o transporte de gás natural ter sido definido

no texto legal como atividade econômica em sentido estrito, o sistema adotado

pela Lei para concessão11 da atividade de transporte de gás por dutos de

interesse geral em muito se aproxima daquele aplicável às delegações de

obras e serviços públicos. Prova disso é o disposto no art. 4o, § 2o, que faculta

9 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Futuro das Cláusulas Exorbitantes nos Contratos

Administrativos. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito Administrativo e seus Novos Paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 576. 10

Art. 1 o

, § 2o: “A exploração das atividades decorrentes das autorizações e concessões de

que trata esta Lei correrá por conta e risco do empreendedor, não se constituindo, em qualquer hipótese, prestação de serviço público” (grifo nosso). 11

Segundo Marco Aurélio de Barcelos Silva, “da análise do ordenamento jurídico pátrio não se extrai uma obrigação de se vincular o objeto de uma „concessão‟ a um „serviço público‟, necessariamente. Se é certo, por exemplo, que o art. 175 da Constituição da República estabelece que os serviços públicos devam ser transferidos [rectius: delegados] ao particular por meio de uma concessão (ou permissão), a recíproca não é verdadeira, isto é, uma concessão não tem sempre que se referir a um serviço público, podendo a lei incrementar-lhe o objeto”. (SILVA, Marco Aurélio de Barcelos. Aspectos Metodológicos e Conteúdo Jurídico das Parcerias Público-Privadas – PPP: Um aprimoramento do Modelo Contratual da Administração. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp Acesso em 13/08/2009). Alexandre Santos de Aragão, por sua vez, esclarece que, “tradicionalmente, os contratos pelos quais a Administração Pública assente o exercício de atividade econômica monopolizada a particulares são denominados de concessões – não de serviços públicos -, mas concessões industriais ou econômicas.” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Contrato de Concessão de Exploração de Petróleo e Gás. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador. Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, fev/mar/abril de 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em: 13/08/2009).

7

a construção e operação de gasodutos de transporte mediante celebração de

“instrumento de Parceria Público Privada12”, que é modalidade de concessão

de serviço público regrada pela Lei nº 11.079/2004. Existe ainda a imposição

textual ao concessionário de prestar o “serviço concedido” com “continuidade e

atualidade”, conforme previsto na parte final do § 2o, do art. 15 e no § 2o, do

art. 14, todos da Lei do Gás13. Também estão presentes na legislação

gaseífera outros institutos verificados em tema de serviço público, tais como a

reversão de bens14, regulação tarifária15 e o livre acesso às instalações

essenciais à prestação do serviço16.

Portanto, malgrado a Lei tenha dito que o transporte de gás natural seja

atividade econômica stricto sensu, e não serviço público, o regime jurídico por

ela adotado tem marcantes características ligadas à noção de serviço público.

O modelo parece se aproximar daquele que vem sendo adotado no

âmbito da União Européia que, por sua vez, é muito influenciado pelo conceito

das public utilities, de formulação anglo-saxônica.

12

Art. 4 o, § 2

o: “O Ministério de Minas e Energia poderá determinar a utilização do instrumento

de Parceria Público Privada, de que trata a Lei no 11.079, de 30 de dezembro de 2004, bem

como a utilização de recursos provenientes da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico - CIDE e da Conta de Desenvolvimento Energético, na forma do disposto no art. 13 da Lei n

o 10.438, de 26 de abril de 2002, para viabilizar a construção de gasoduto de transporte

proposto por sua própria iniciativa e considerado de relevante interesse público.” 13

Art. 15, § 2o: “Os recursos arrecadados com a licitação de que trata o caput deste artigo

poderão ser revertidos para a expansão da malha de transporte de gás natural e, quando for o caso, para a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens a serem incorporados ao patrimônio da União, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido” (grifo nosso). O art. 14, § 2

o, também enuncia, circunstancialmente, o princípio da atualidade: “O

concessionário cuja concessão tenha sido extinta fica obrigado a continuar prestando os serviços de transporte até que um novo concessionário seja designado ou o duto seja desativado” (grifo nosso). 14

Art. 14: “Extinta a concessão, os bens destinados à exploração da atividade de transporte e considerados vinculados serão incorporados ao patrimônio da União, mediante declaração de utilidade pública e justa e prévia indenização em dinheiro, ficando sob a administração do poder concedente, nos termos da específica regulamentação a ser editada”. 15

Art. 13, § 2o “As tarifas de transporte de gás natural a serem pagas pelos carregadores para

o caso dos gasodutos objeto de concessão serão estabelecidas pela ANP, aplicando à tarifa máxima fixada no processo de chamada pública o mesmo fator correspondente à razão entre a receita anual estabelecida no processo licitatório e a receita anual máxima definida no edital de licitação”. Cite-se ainda: o § 3

o, do art. 14: “As tarifas de operação para o período a que se

refere o § 2o deste artigo serão estabelecidas pela ANP de modo a cobrir os custos efetivos de

uma operação eficiente” e art. 5o, §2

o: “No decorrer do processo de chamada pública, de forma

iterativa, a ANP deverá fixar a tarifa máxima a ser aplicada aos carregadores interessados na contratação de capacidade de transporte.” 16

Art. 32: “Fica assegurado o acesso de terceiros aos gasodutos de transporte, nos termos da lei e de sua regulamentação, observado o disposto no § 2

o do art. 3

o e no § 3

o do art. 30 desta

Lei”.

8

Nessa conformação, préstimos essenciais à coletividade - muitas vezes

outrora legalmente caracterizados como serviço público - passaram a ser

titularizados e exercitados pela iniciativa privada, submetendo-se à regulação

estatal mais ou menos intensa.

No âmbito do Direito Comunitário europeu, essas empresas ganharam a

nomenclatura de “serviços econômicos de interesse geral17”, denotando assim

a intenção de se criar uma categoria diferenciada do tradicional “serviço

público”.

Basicamente, o objetivo final dessa modelagem é assegurar que a

liberalização e a introdução da concorrência em certas atividades econômicas

de relevante interesse coletivo não se constituam em óbice à satisfação

desses mesmos interesses.

Na busca desse desiderato, Helga Maria Sabóia Bezerra18 anota ser

“necessária a imposição de obrigações de serviço público aos operadores,

com o fim de garantir a todos os cidadãos um mínimo comum de serviços em

condições de igualdade e a um preço acessível.”

Esclareça-se, no entanto, que no caso da “gestão econômica” do

transporte de gás natural, não se toma em conta as necessidades dos

cidadãos vistos individualmente, tal como ocorre no serviço público clássico. O

que se tem em mira aqui é uma “finalidade de ordenação econômica, de

conformação social, de serviço nacional, isto é, de promoção econômico-social

da nação considerada em seu conjunto19.”

17

Cf. glossário de termos da União Europeia: “Os serviços de interesse económico geral designam as actividades de serviço comercial que preenchem missões de interesse geral, estando, por conseguinte, sujeitas a obrigações específicas de serviço público (artigo 86.º - ex-artigo 90.º - do Tratado CE). É o caso, em especial, dos serviços em rede de transportes, de energia e de comunicações. O artigo 16.º, inserido pelo Tratado de Amsterdão no Tratado CE, reconhece o lugar que os serviços de interesse económico geral ocupam no conjunto dos valores comuns da União Europeia, bem como o papel que desempenham na promoção da coesão social e territorial. Estes serviços devem funcionar com base em princípios e em condições que lhes permitam cumprir as suas missões. O artigo 36.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece que a União reconhece e respeita o acesso a serviços de interesse económico geral a fim de promover a coesão social e territorial da União.” (Disponível em: http://europa.eu/scadplus/glossary/services_general_economic_interest_pt.htm. Acesso em: 13/08/2009). 18

BEZERRA, Helga Maria Sabóia. As transformações da noção de serviço público na União Européia: o serviço de interesse geral do Tratado de Lisboa, in Direito, Estado e Sociedade, n. 32, jan/jun 2008, p. 122. 19

Assim, ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Concessões e Autorizações Petrolíferas e o Poder Normativo da ANP. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo: RT, p. 174-175 e 180-182, maio-junho 2002.

9

De fato, esse parece ser o caso da atividade econômica de transporte

de gás por dutos considerados de “interesse geral” que, como o próprio nome

indica, possui relevância para coletividade, imprescindível que é ao

desenvolvimento e à soberania nacionais.

Desse modo, torna-se impositivo que o Estado disponha de

mecanismos de regulação capazes de atender a missão de interesse geral da

atividade de transporte dutoviário, que exige a prestação de um serviço com

características de universalidade, regularidade, atualidade, qualidade e

segurança, valores que os entes privados não respeitariam satisfatoriamente

se perseguissem apenas aos seus interesses empresariais.

Outro a aspecto a ser considerado é o fato de que a atividade de

transporte de gás apresenta irresistível tendência ao monopólio natural, já que

é um serviço prestado mediante grandes redes dutoviárias de altíssimos

custos de implantação e operação, o que inibe ou impossibilita a entrada e

permanência de outros competidores nesse mercado, pois em regra mostra-se

economicamente ineficiente a duplicação da malha transportadora.20

De acordo com as idéias de Miguel Ángel Sendín García21, existem

certas atividades econômicas que, além de essenciais à coletividade, possuem

natural inclinação monopolística, característica típica dos serviços públicos.

Assim, para lograrem a satisfação coletiva, é recomendável que a exploração

privada de tais atividades sejam reguladas de forma a “mitigar os efeitos

deletérios do monopólio”, intento que pode ser alcançado pela promoção da

concorrência, a ser imposta mediante “obrigações de serviço público”.

20

De acordo com Diogo Pignataro de Oliveira, Camila Colares Bezerra e Otacílio dos Santos Silveira Neto, as atividades de transporte de gás mediante dutos “apresenta características de monopólio natural, o que obstaculiza a concorrência horizontal, ou seja, a presença de vários transportadores. Este segmento implica altos custos, se insere em um contexto de economia de escala e, por isso, acompanha sérios riscos de sub-utilização da rede, o que faz com a construção de diversos gasodutos paralelos mostre-se economicamente ineficiente Tudo isso acaba contribuindo para o monopólio de poucas empresas neste setor e, é claro, uma empresa monopolista goza de um poder de mercado que pode conduzi-la a práticas nocivas ao consumidor, já que não sofre as pressões competitivas do mercado, estando protegida por barreiras econômicas à entrada de outros agentes.” (OLIVEIRA, Diogo Pignataro de; BEZERRA, Camila Colares et al. A regulação do gás natural no Direito Comunitário europeu e no Mercosul. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 584, 11 fev. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6303. Acesso em: 22 jun. 2009). 21

Apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 259. Para o autor da obra, no entanto, inexiste no Direito brasileiro a possibilidade de o Estado impor às atividades econômicas privadas o cumprimento de obrigações de serviço público.

10

Daí porque a necessidade de se adotar uma regulação mais intensa

dessa atividade econômica, a estabelecer ao particular algumas sujeições

verificadas no serviço público, como o compartilhamento da infraestrutura22

(art. 9 o e arts. 32 a 35) e o controle de tarifas (art. 5o, §2o, art. 13, § 2o e art.

14, § 3o). Aquele funciona como mecanismo de abertura compulsória do

mercado a outros operadores, enquanto este procura zelar pela manutenção

de um ambiente concorrencial saudável, vedando a fixação de preços

discriminatórios. Visualizadas em seu conjunto e finalisticamente, a

intervenção tarifária e o livre-acesso representam instrumentos aptos a atenuar

os efeitos indesejáveis do monopólio natural, evitando abusos de posição

dominante por parte do titular dos direitos de exploração das instalações

essenciais (essential facilities).

Essas exigências, no entanto, podem ser contrabalançadas mediante

atribuição de direitos aos entes privados que se mostrem dispostos a investir

alto na construção e operação de dutos de gás natural, o que por vezes pode

tornar necessária a adoção de medidas derrogatórias das próprias regras

gerais da concorrência, como o fornecimento de subsídios estatais23 e a

atribuição aos agentes, por tempo determinado, de direitos de exclusividade no

uso dos novos gasodutos (art. 3o, §2o) 24. Segundo Maria D'Assunção da Costa

e Edmilson Moutinho dos Santos “os períodos de exclusividade para a

exploração da capacidade de transporte dos novos gasodutos” são uma

“questão chave” na definição dos riscos a serem absorvidos pelos

carregadores25.

22

Como escreve Marcos Juruena Vilela Souto, o livre acesso ou essential facility, é um instrumento de política regulatória aplicável à “prestação de serviço de interesse geral, como é o caso das redes físicas de dutos utilizados para prestação dos serviços de transporte de gás (...).” O autor aduz ainda que a noção de essential facility reside na “vinculação da propriedade a uma função social voltada para o atendimento de um interesse relevante da coletividade.” (SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Agências Reguladoras. In: Marilda Rosado (Coord.). Estudos e Pareceres – Direito do Petróleo e Gás. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 370). 23

Seria o caso, por exemplo, das PPP’s para construção e operação de dutos de transporte de gás natural, que poderão contar com a utilização de recursos provenientes da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE e da Conta de Desenvolvimento Energético (art. 4

o,

§ 2o e art. 7

o).

24 Art. 3

o, § 2

o: “Caberá ao Ministério de Minas e Energia, ouvida a ANP, fixar o período de

exclusividade que terão os carregadores iniciais para exploração da capacidade contratada dos novos gasodutos de transporte”. 25

COSTA, Maria D'Assunção. SANTOS, Edmilson Moutinho dos. Nova Lei do Gás: algumas considerações.Disponível em: http://www.energiahoje.com/brasilenergia/ideias/2009/04/01/380479/nova-lei-do-gas-natural-algumas-consideracoes.html. Acesso: 22/08/2009.

11

Num primeiro momento, esses são mecanismos próprios de uma

política regulatória estatal de planejamento e incentivo, que quer e precisa ter

no setor privado o principal agente condutor do desenvolvimento do incipiente

mercado brasileiro de transporte dutoviário de gás. Afinal, é por meio deles que

se tentará viabilizar os financiamentos privados destinados ao exercício da

atividade.

Posteriormente, entretanto, com a amortização dos investimentos

aplicados na infraestrutura, o incremento tecnológico e o estabelecimento da

concorrência intermodal no transporte de gás, o mercado se tornará maduro e

poderá desenvolver-se por si próprio, num processo de afrouxamento paulatino

da regulação econômica da atividade26.

Desse modo, nos parece que a adoção de um disciplinamento mais

afeiçoado ao serviço público para regular a atividade econômica de transporte

de gás por meio de dutos de interesse geral se mostra adequada ao caso do

mercado brasileiro, que por ora

necessita dessa política regulatória para seu desenvolvimento.

2. A questão da natureza jurídica do contrato e do regime jurídico

aplicável

Entre nós, a questão da natureza jurídica dos contratos que concedem

aos particulares o direito de explorar atividades econômicas monopolizadas -

como é o caso do transporte dutoviário de gás natural - suscita grandes

discussões. Pelo menos tem sido assim no que se refere à concessão para

exploração e produção de petróleo e gás.

Apesar de a pesquisa e prospecção ser um segmento da cadeia

econômica da indústria possuidor de uma lógica de funcionamento distinta da

do de transporte, existe entre eles um fator jurídico em comum. É que em

ambos os casos o particular explora, mediante concessão, atividade

26

Em termos gerais de política regulatória, Marcos Juruena escreve que “a primeira preocupação é criar um mercado e fazer com que ele se desenvolva. Isso se dá pela orientação regulatória. A partir do momento em que esteja maduro, vai-se reduzindo o conjunto de normas ate que o mercado opere por suas forças. Essa é a idéia de desregulação, que é uma maneira de fazer regulação, restringindo ou eliminando a norma onde ela não se faz mais necessária.” (SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Agências Reguladoras, Estudos e Pareceres – Direito do Petróleo e Gás. / Marilda Rosado (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 371).

12

econômica em sentido estrito monopolizada pelo Estado, e não serviço

público. E, considerando que toda celeuma doutrinária tem origem justamente

na classificação da atividade concedida (privada ou pública), mostra-se

importante trazer para análise da concessão de transporte de gás o debate

que se trava em nível de concessão para exploração e produção, para dele

tentar tirar importantes lições.

Vejamos então um breve panorama das principais posições a respeito

do tema.

Para alguns doutrinadores, como as concessões de pesquisa e

prospecção não visam à delegação de serviços públicos, mas sim de atividade

econômica cuja exploração é monopolizada pelo Estado, elas seriam: (i)

regidas integralmente pelo regime jurídico de direito privado, em que

concedente e concessionário devem estar em absoluto pé de igualdade27; (ii)

regidas predominantemente pelo regime jurídico direito privado, sob reserva

das infiltrações de direito público, sendo defeso à Administração invocar

prerrogativas e impor sujeições ao concessionário que não estejam previstas

no marco regulatório setorial28.

Por outro lado, para alguns autores, tendo em vista que a atividade

econômica em questão foi monopolizada pela Constituição brasileira por

razões estratégicas de relevante interesse público, essas concessões seriam

basicamente regidas pelo direito público, sendo autêntico contrato

administrativo, munido de cláusulas (implícitas e explicitas) exorbitantes do

direito privado, sem, contudo, excluir a aplicação complementar dos princípios

gerais de direito privado29.

27

Assim: MUKAI, Toshio. Responsabilidade Civil Objetiva – Previsão Legal – Parecer, Doutrina ADCOAS, n. 7, julho de 1999, Esplanada, pp. 406/ 407 e 409/412, apud LUGON, Cecília Viana. A Natureza Jurídica da Concessão Petrolífera. Disponível em: http://www.portalabpg.org.br/PDPetro/3/trabalhos/IBP0643_05.pdf. Acesso em 04/04/2009. 28

Assim: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Contrato de Concessão de Exploração de Petróleo e Gás. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador. Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, fev/mar/abril de 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em: 03/02/2009. O autor aqui endossa a doutrina francesa de André de Laubadère. 29

Assim: LUGON, Cecília Viana. A Natureza Jurídica da Concessão Petrolífera. Disponível em: http://www.portalabpg.org.br/PDPetro/3/trabalhos/IBP0643_05.pdf. Acesso em: 04/04/2009. Ver, também, MORAES, Alexandre de. Regime Jurídico da Concessão para Exploração de Petróleo e Gás natural. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2426. Acesso em: 30/06/2009.

13

Há, ainda, aqueles que propõem uma classificação sui generis, como é

o caso de Marcos Juruena Vilela Souto30, para quem a concessão petrolífera

não é contrato de direito privado, nem contrato administrativo, embora seja

espécie do gênero contrato da administração. Esse autor sustenta que tais

ajustes constituem contratos de intervenção do Estado no domínio econômico,

ou, simplesmente, “contrato de direito econômico”, sendo defeso ao poder

concedente interferir “discricionária ou imotivadamente, mas sempre orientado

por critérios técnicos justificados com base nas melhores práticas da indústria

do petróleo”.

Lançando um olhar crítico sobre essa discussão, Alexandre Santos de

Aragão31 põe em xeque a importância de se perquirir a natureza jurídica

pública ou privada da concessão petrolífera, para daí tentar extrair o regime

jurídico a ela aplicável. Propondo uma mudança de enfoque, observa o autor

que hoje o disciplinamento das atividades econômicas monopolizadas é ditado

mais pela respectiva lei setorial do que pela natureza jurídica dos contratos

firmados sob sua égide; e justifica o ponto aduzindo que, na atualidade, a

distinção entre aquilo que é de direito privado e o que é de direito público está

cada vez mais relativizada32, “havendo contratos tradicionalmente

considerados como sendo de direito público com um sem-número de

resguardos dos interesses das partes privadas, e contratos de direito privado

sujeitos a uma forte regulação estatal”. Afirma então que “o que importa são os

poderes concretamente conferidos pelo ordenamento jurídico à

Administração”, e “não uma classificação etérea da natureza do contrato.

Assim, por um lado, não há um poder exorbitante e genérico da Administração

sobre os contratos ditos de „direito público‟, e, por outro, os contratos de „direito

30

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Contrato de Concessão de Exploração de Petróleo e Gás Natural. In L & C Revista de Direito e Administração Pública. Maio de 2003. Vol. 06, nº 59, p. 19. 31

ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Contrato de Concessão de Exploração de Petróleo e Gás. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador. Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, fev/mar/abril de 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em: 03/02/2009. 32

No que se refere ao fenômeno da relativização, Ana Cláudia Finger adverte sobre a “necessidade de superação da clássica dicotomia entre Direito Público e Direito Privado.”, tendo em vista que com a nova concepção de Estado (e suas formas de atuação) e o aperfeiçoamento do conhecimento jurídico, houve uma “aproximação dos dois domínios, de modo que os critérios distintivos utilizados para desvendar a distinção público e privado não mais podem ser tidos como absolutos e auto-suficientes.”(FINGER, Ana Cláudia. O Princípio da Boa-Fé no Direito Administrativo. Dissertação de mestrado, UFPR, 2005. Disponível em: http://hdl.handle.net/1884/2618. Acesso: 21/08/2009.

14

privado‟ celebrados pelo Estado ficam embebidos das cláusulas exorbitantes

que a lei lhe atribuir.”

Essa metodologia, com a qual concordamos, também se aplica à

análise da concessão da atividade econômica de transporte de gás natural,

cujo estudo do respectivo regime jurídico não reside na comparação ou

contraposição com as contratações de direito privado, mas sim na análise dos

reflexos que o ordenamento setorial e a intensidade de sua regulação

introduzem no modelo contratual.

Nessa ordem de idéias, parece intuitivo que a importância da concessão

do transporte de gás natural para soberania e desenvolvimento nacionais -

fator que inclusive justifica a monopolização constitucional da atividade pela

União (CF, art. 177) - confere à Administração Pública uma posição contratual

de superioridade em relação ao particular. Essa prevalência se manifesta em

dois níveis distintos: (i) no plano do Direito Internacional Público, pela

aplicação do princípio da soberania permanente dos Estados sobre os

recursos naturais situados em seu território33 (que em ultima ratio justifica a

expropriação pelo Estado hospedeiro do direito do particular de explorar a

atividade concedida); e (ii) no âmbito do Direito interno (mais especificamente

no Direito Administrativo Econômico): aqui, essa prevalência é

instrumentalizada por cláusulas contratuais e regulamentares estabelecidas

pelo Poder Público, típicas dos contratos administrativos.

Isso não exclui, obviamente, a aplicação ao vínculo de princípios

civilísticos da teoria geral dos contratos e a inserção de dispositivos contratuais

comuns aos ajustes privados, os quais inclusive estão cada vez mais

presentes nas contratações tipicamente públicas.

Como analisado no item anterior, embora o transporte de gás seja uma

atividade econômica em sentido estrito, a Lei nº 11.909/2009 impôs

expressamente ao particular a observância de certas obrigações de serviço

público, justificadas à luz da importância coletiva da atividade e das falhas de

mercado que lhe são intrínsecas.

No caso, portanto, o concessionário manifesta livremente sua adesão a

um irresistível e dinâmico sistema de dirigismo regulatório, orientado

33

Vide Resolução 1.803 da Assembleia Geral da ONU, de 1962.

15

finalisticamente às complexas e cambiáveis necessidades coletivas (jus

variandi), cuja satisfação exige a prestação de um serviço com características

de universalidade, continuidade, atualidade, qualidade e segurança.

Essa abertura à mutabilidade, no entanto, não autoriza a Administração

intervir arbitrária e imotivadamente no contrato, retirando do concessionário

parcela fundamental da sua liberdade de gestão empresarial e impondo-lhe

prejuízos patrimoniais. Segundo Adilson Abreu Dallari34, “é preciso deixar bem

claro que qualquer alteração é uma exceção à regra geral”, de maneira que “o

contrato administrativo, em princípio, deve ser fielmente cumprido, tal como

celebrado: pacta sunt servanda.” Justamente por isso é que a aplicação dos

poderes administrativos extroversos na execução do contrato, como as

modificações unilaterais e o exercício de poder de polícia (fiscalização e

imposição de penalidades), devem ser obrigatória e adequadamente

justificados em concreto pelo interesse público, respeitar os princípios da

razoabilidade e proporcionalidade e estarem devidamente fundamentados no

bloco normativo setorial, composto basicamente pela Constituição, leis,

regulamentos, contrato e pelas “melhores práticas da indústria internacional do

gás natural” (Lei nº 11.909/2009, art. 21, VI - Lex Petrolea)35.

De todo modo, como forma de compensar ou atenuar o risco de

instabilidade ínsito às contratações administrativas, o sistema obrigacional

juspublicístico fornece ao particular uma série de “garantias econômicas36”,

procurando tutelar com especial rigor seus “interesses patrimoniais37” em face

da Administração, mediante a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro

do contrato.

34

DALLARI, Adilson Abreu. Alterações dos Contratos Administrativos – Economicidade, Razoabilidade e Eficiência, in Direito Administrativo Contemporâneo: Estudos em Memória do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. In Roberto Felipe Bacellar Filho (Coord.) Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 16. 35

Marilda Rosado de Sá Ribeiro anota que a Lex Petrolea, sintetizada na expressão “boas práticas da indústria do petróleo”, é uma verdadeira “lex mercatoria específica da área petrolífera”, sendo assim “autêntica fonte do Direito”. (RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo: As Joint Ventures da Indústria do Petróleo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 23). 36

DALLARI, Adilson Abreu. Alterações dos Contratos Administrativos – Economicidade, Razoabilidade e Eficiência. Direito Administrativo Contemporâneo: Estudos em Memória do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. In: Roberto Felipe Bacellar Filho (Coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 17. 37

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 573.

16

Como observa Alexandre Santos Aragão38, “essa combinação entre a

garantia dos interesses do contratado e a modificação exigida pelos interesses

do serviço é um dos principais fatores que dá a concessão a natureza de um

contrato administrativo”.

No item a seguir, veremos mais especificamente como esses institutos

se manifestam especificamente no regime jurídico do contrato de concessão

de transporte dutoviário de gás natural.

2.1 Conceito e principais elementos do contrato de concessão

A concessão da atividade de transporte de gás natural pode ser

conceituada da seguinte forma: trata-se de contrato administrativo,

remunerado mediante tarifa39, no qual a Administração Pública, após prévia

licitação40, concede à pessoa jurídica de direito privado a possibilidade de

explorar, por sua conta e risco41, atividade econômica monopolizada pela

União, respeitadas as cláusulas contratuais e as demais disposições

normativas pertinentes42. O ajuste opera com prazo determinado43, findo o qual

os bens afetados à prestação do serviço passam a integrar o patrimônio

38

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 567. 39

Art. 12, 2o: “As tarifas de transporte de gás natural a serem pagas pelos carregadores para o

caso dos gasodutos objeto de concessão serão estabelecidas pela ANP, aplicando à tarifa máxima fixada no processo de chamada pública o mesmo fator correspondente à razão entre a receita anual estabelecida no processo licitatório e a receita anual máxima definida no edital de licitação” (grifo nosso). 40

Inciso I, do art. 3o : “Concessão, precedida de licitação;”

41 Art. 3

o: “A atividade de transporte de gás natural será exercida por sociedade ou consórcio

cuja constituição seja regida pelas leis brasileiras, com sede e administração no País, por conta e risco do empreendedor (...) (grifo nosso). 42

Art. 1o: “Esta Lei institui normas para a exploração das atividades econômicas de transporte

de gás natural por meio de condutos e da importação e exportação de gás natural, de que tratam os incisos III e IV do caput do art. 177 da Constituição Federal, bem como para a exploração das atividades de tratamento, processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural. § 1

o

As atividades econômicas de que trata este artigo serão reguladas e fiscalizadas pela União, na qualidade de poder concedente (...)”. 43

Art. 10: “As concessões de transporte de gás natural contratadas a partir desta Lei deverão identificar os bens e instalações a serem considerados vinculados à sua exploração e terão prazo de duração de 30 (trinta) anos, contado da data de assinatura do imprescindível contrato, podendo ser prorrogado no máximo por igual período, nas condições estabelecidas no contrato de concessão” (grifo nosso).

17

público, assegurada ao concessionário a justa e prévia indenização, em

dinheiro, relativamente aos ativos específicos44 não amortizados ou

depreciados45.

Quanto ao objeto, a concessão de transporte de gás natural, embora

possa em alguns casos46 acarretar utilização privativa de bem público

(gasoduto), tal não é seu principal elemento. Sobreleva aqui o aspecto da

gestão em si da atividade econômica, a exigir, por exemplo, rígidos padrões de

qualidade e segurança quanto ao serviço concedido. Nesse contexto, portanto,

a construção e uso das instalações, conquanto sejam peças essenciais da

estrutura do vínculo, possuem papel secundário, prevalecendo o ato de

explorar ou administrar a atividade. Daí porque a própria Lei fala,

corretamente, em “concessão da atividade de transporte de Gás Natural”, e

não em “concessão de gasoduto de transporte.”

Por se tratar de um serviço de relevante interesse coletivo, ao qual são

outorgadas certas obrigações de serviço público, impõe-se seu controle pelo

agente regulador competente, que ficará responsável por estabelecer e

fiscalizar, com base em critérios técnicos e razoáveis, os níveis de qualidade e

eficiência a serem impostos ao longo das operações de transporte de gás

natural47.

44

Art. 15, § 3o: “Somente serão indenizados os investimentos que tenham sido expressamente

autorizados pela ANP”. 45

Art. 14: “Extinta a concessão, os bens destinados à exploração da atividade de transporte e considerados vinculados serão incorporados ao patrimônio da União, mediante declaração de utilidade pública e justa e prévia indenização em dinheiro, ficando sob a administração do poder concedente, nos termos da específica regulamentação a ser editada” (grifo nosso). 46

Trata-se da hipótese do concessionário que explora atividade de transporte em dutos já declarados de utilidade pública e incorporados ao patrimônio do Estado (art. 15). Na forma do art. 15, §3

o, em casos tais, a licitação prévia destinada ao exercício da atividade pode ter como

critério de julgamento o maior pagamento pelo “uso do bem público”. No entanto, até que os bens e instalações ingressem no domínio público - o que só pode ocorrer após o prévio pagamento, em dinheiro, da justa indenização, - a propriedade desses ativos fica com o particular que investiu na construção e operação da rede. Nesse último caso, portanto, a concessão é só da atividade e não envolve o uso de bem público, mas de patrimônio privado afetado ao serviço de relevante interesse coletivo. 47

A regulação da atividade de transporte de gás - como de resto todas as demais atividades econômicas reguladas-, deve ser implementada sob os auspícios do princípio constitucional da eficiência (CF, art. 37, caput), observando-se o “modelo gerencial, no qual são abrandados os controles de procedimentos e incrementados os controles de resultados. (...) Isso significa que é preciso superar concepções puramente burocráticas ou meramente formalísticas, dando-se maior ênfase ao exame da legitimidade, da economicidade e da razoabilidade, em benefício da eficiência.” (DALLARI, Adilson Abreu. Alterações dos Contratos Administrativos – Economicidade, Razoabilidade e Eficiência, Direito Administrativo Contemporâneo: Estudos em Memória do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. In: Roberto Felipe Bacellar Filho (Coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 25.

18

Assim, são asseguradas ao Poder Público algumas prerrogativas sobre

a atividade concedida, sendo que a principal delas reside na possibilidade de

alteração unilateral das condições da prestação do serviço, justificada,

sobretudo, em atendimento aos princípios da universalidade, continuidade,

atualidade e segurança.

Nesse sentido, por exemplo, a Lei do Gás faculta ao poder concedente

determinar que a capacidade de um gasoduto seja superior àquela

previamente estipulada (art. 7o) ou impor que o gás natural a ser movimentado

pelos dutos obedeça aos padrões determinados ou aprovados pelo ente

regulador (art. 8o). A Lei nº 11.909/2009 deu ainda poderes à União para

suspender a prestação do serviço de transporte em “situações caracterizadas

como de contingência no suprimento de gás natural” (art. 50) 48. Nesses casos,

o Poder Público deverá, dentre outras medidas, implementar ações

interventoras que “mitiguem a redução na oferta de gás” e estabelecer

“consumos prioritários” (art. 50, I e III), permanecendo “os transportadores, sob

a coordenação da ANP, responsáveis pela operação de seus gasodutos

componentes da rede de transporte” (art. 52, parágrafo único).

De qualquer forma, contrabalançando o peso dessas sujeições, fica

garantida ao concessionário a manutenção do equilíbrio econômico financeiro

do contrato (ex.: art. 53, § 1o e art. 7o ,segunda parte) 49. Ainda no terreno das

garantias, a Lei nº 11.909/2009 assegurou ao concessionário proteção

econômica obrigatória, como o direito à prévia e justa indenização, em dinheiro,

pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados, cujo pagamento

poderá ser garantido pelos recursos arrecadados com a licitação, na forma do

§ 2o, do art. 15.

48

“Art. 50. Em situações caracterizadas como de contingência no suprimento de gás natural, mediante proposição do Conselho Nacional de Política Energética - CNPE e decreto do Presidente da República, as obrigações de fornecimento de gás, em atividades da esfera de competência da União, e de prestação de serviço de transporte, objeto de contratos celebrados entre as partes, poderão ser suspensas, em conformidade com diretrizes e políticas contidas em Plano de Contingência, nos termos da regulamentação do Poder Executivo.” 49

“§ 1o Até o limite dos volumes contratados, os fornecedores e transportadores afetados pela

execução do Plano de Contingência, porém não envolvidos na situação de contingência, têm assegurada a manutenção dos preços contratados, ainda que venham a fornecer parte do volume ofertado a outros consumidores ou distribuidores.” “Art. 7

o O Ministério de Minas e

Energia poderá determinar que a capacidade de um gasoduto seja superior àquela identificada na chamada pública, definindo os mecanismos econômicos para a viabilização do projeto, que poderão prever a utilização do instrumento de Parceria Público Privada, de que trata a Lei n

o

11.079, de 30 de dezembro de 2004.” (grifo nosso)

19

A Lei do Gás também estabelece a necessidade de prévio

dimensionamento contratual da “receita anual” e dos “critérios de reajuste” das

tarifas (art. 21, V), as quais deverão ser adequadas50, de maneira a propiciar

ao concessionário o justo lucro pelo exercício eficiente de uma operação

universalizada, contínua, atual e segura.

2.2 Panorama da legislação aplicável

A concessão da atividade de transporte de gás natural por meio de dutos

de interesse geral tem na Lei nº 11.909/2009 seu principal diploma legal de

regência, mas não único.

A Lei no 9.478/1997, agora acrescida e alterada em alguns dispositivos

pela Lei nº 11.909/2009, também disciplina a atividade de transporte, só que o

faz de modo lacônico e generalista (arts. 56 a 59). Em suma, a Lei do

Petróleo,trata da indústria do gás sob uma perspectiva mais ampla, de matiz

principiológico, sendo assim aplicável ao transporte gaseífero em muitos

pontos, sobretudo no que tange à regulação do setor pela ANP (arts. 7o a 10) e

à submissão da atividade à política energética brasileira, cujos objetivos estão

enunciados, programaticamente, no art. 1 o 51. Ou seja, a Lei do Gás convive

em harmonia com a Lei do Petróleo. Mesmo porque, parece claro que aquela é

um subsistema desta.

Ademais, a Lei nº 11.909/2009, no seu art. art. 4o, § 2o, traz norma de

reenvio à legislação federal das Parcerias Público Privadas (Lei nº

11.079/2004), a qual, por sua vez, na forma do art. 3o, § 1o, admite aplicação

50

Diz a Lei do Petróleo, em seu art. 58, (com a redação dada pelo art. 58 da Lei do Gás): “Será facultado a qualquer interessado o uso dos dutos de transporte e dos terminais marítimos existentes ou a serem construídos, com exceção dos terminais de Gás Natural Liquefeito - GNL, mediante remuneração adequada ao titular das instalações ou da capacidade de movimentação de gás natural, nos termos da lei e da regulamentação aplicável” (grifo nosso). Reza ainda o § 1

o do mesmo artigo: “A ANP fixará o valor e a forma de pagamento da

remuneração adequada com base em critérios previamente estabelecidos, caso não haja acordo entre as partes, cabendo-lhe também verificar se o valor acordado é compatível com o mercado.” (grifo nosso) 51

Dentre esses objetivos, se destacam os seguintes: a) preservação dos interesses nacionais; b) promoção do desenvolvimento; c) implementação da livre-concorrência; f) valorização dos recursos energéticos e g) garantia de abastecimento do mercado nacional.

20

subsidiária da Lei Geral de Concessões (Lei nº 8.987/1995) e das “leis que lhe

são correlatas” 52.

Desse modo, a construção e operação de dutos mediante celebração de

Parceria Público Privada, em princípio, conduzirá a um complexo

entrelaçamento de normas de Direito Administrativo, algumas das quais nem

sempre apropriadas para disciplinar a atividade específica de transporte de gás

natural. Na prática, essa circunstância poderá criar alguns embaraços jurídicos

na concepção e execução do empreendimento, dada a quantidade e o

sincretismo dos dispositivos legais passíveis de incidir, em tese, sobre a

concessão.

No que se refere especificamente à Lei nº 8.987/1995, que institui

normas gerais sobre as concessões comuns, entendemos que alguns seus

dispositivos poderão ser de útil aplicação à atividade de transporte,

independentemente de a concessão ser formatada por PPP ou não. Os arts. 28

e 28-A, por exemplo, trazem valiosos instrumentos de viabilização de

financiamento de projetos estruturados para atender a indústria do gás (project

finance), permitindo que as concessionárias ofereçam em garantia aos

financiadores os direitos emergentes da concessão, bem como realizem em

benefício dos mutuantes a cessão fiduciária de parcela dos créditos

operacionais futuros. Além disso, na forma do art. 27, o poder concedente

poderá autorizar a assunção do controle societário da concessionária por seus

financiadores, a fim de promover sua reestruturação financeira e assegurar a

continuidade da prestação dos serviços (step-in rights).

Considerando ainda os vários pontos de contato entre a concessão de

transporte dutoviário de gás e a concessão comum de serviço público, é

possível que outras normas da Lei nº 8.987/1995 sejam subsidiariamente

aplicadas à atividade transportadora, caso em que deverão ser feitas as

adaptações necessárias.

52 Lei nº 11.079/2004, art. 3

o § 1

o: “As concessões patrocinadas regem-se por esta Lei,

aplicando-se-lhes subsidiariamente o disposto na Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e

nas leis que lhe são correlatas.”

21

2.3 Licitação: principais pontos

A Lei nº 11.909/2009 contém regras específicas a respeito da licitação

que deve preceder a concessão da atividade de transporte dutoviário de gás

natural.

Contudo, a Lei do Gás, ao contrário do que fez a Lei do Petróleo, não

enunciou de forma taxativa quais são as normas incidentes ao processo

licitatório, deixando espaço, no que couber, para aplicação subsidiária da Lei

nº 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações), Lei nº 8.987/1995 (Lei Geral das

Concessões) e Lei nº 11.079/2004 (Lei das PPP’s) 53, sem prejuízo das

legislações correlatas.

Não há também na Lei do Gás qualquer referência sobre a modalidade

de licitação cabível para concessão da atividade de transporte. Mesmo assim,

é perfeitamente possível que tais certames sejam realizados nas modalidades

concorrência (Lei nº 8.666/1993, art. 22, I e Lei nº 8.987/1995, art. 2o, II e III)

ou leilão (a exemplo do que vem ocorrendo nas concessões petrolíferas).

Nos termos dos arts. 13 e 15, § 1o, da Lei nº 11.909/2009, o critério de

julgamento para seleção da proposta vencedora poderá ser o de “menor receita

anual” e/ou de “maior pagamento pelo uso de bem público54, observados, em

qualquer caso, os “princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e igualdade entre os concorrentes” (art. 20).

53

O art. 36 da Lei nº 9.478/1997 é claro ao delimitar os dispositivos legais e as fontes normativas aplicáveis ao processo licitatório da concessão para exploração e produção de petróleo e gás natural. Prescreve o referido artigo: “A licitação para outorga dos contratos de concessão referidos no art. 23 obedecerá ao disposto nesta Lei, na regulamentação a ser expedida pela ANP e no respectivo edital”. Com isso, resulta inequívoca a vontade da lei de excluir da licitação o regime jurídico geral da Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993) e da Lei Geral de Concessões (Lei nº 8.987/1995). Nesse sentido, já decidiu o TCU: “A licitação para a concessão destas atividades segue o disposto na Lei n° 9.478/97, na regulamentação expedida pela ANP e no respectivo edital (arts. 2° e 36 da Lei 9.478/97). Da regulamentação expedida pela ANP, destaca-se a Portaria n° 6, de 12-1-1999, que aprovou os procedimentos a serem adotados nas licitações previstas na mencionada Lei. Deve ser ressaltado que não se aplicam a essas licitações nem a Lei n° 8.666/93 (a lei geral de licitações) nem a Lei n° 8.987/95 (lei de concessões), visto que o art. 23 da Lei n° 9.478/97, já mencionado, dispõe que a licitação para a concessão das atividades relativas a petróleo e gás natural devem obedecer ao disposto nesta lei” (Decisão nº 493/1999, Plenário, DC-0493-33/99, Processo 005.109/1999-0, DOU 13/8/1999). 54

O critério “maior pagamento pelo uso do bem público” só se aplica aos casos de concessão envolvendo gasodutos cuja propriedade tenha passado para as mãos do Poder Público, na forma do art. 14, da Lei do Gás.

22

Salvo as hipóteses de prorrogação contratual (art. 10, parágrafo único),

a Lei do Gás possibilita que o processo de nova licitação seja iniciado com 24

(vinte e quatro) meses de antecedência ao término da concessão anterior,

“visando garantir a continuidade dos serviços prestados.”

2.4 Anotações gerais sobre o papel do Ministério de Minas e Energia e da

ANP na regulação da concessão

Relativamente aos organismos responsáveis pela regulação da

concessão da atividade de transporte de gás natural, deve ser notado que a Lei

nº 11.909/2009 atribuiu um papel mais ativo ao Ministério de Minas e Energia

(MME) na implementação da Política Energética Nacional, tornando o órgão

titular das seguintes competências: (i) propor, por iniciativa própria ou por

provocação de terceiros, os gasodutos de transporte que deverão ser

construídos ou ampliados (art. 4o, I); (ii) estabelecer as diretrizes do processo

de contratação de capacidade de transporte e para promoção do procedimento

de chamada pública55 (art. 4o, II e art. 6o); (iii) fixar o período de exclusividade

que terão os carregadores iniciais para exploração da capacidade contratada

dos novos gasodutos de transporte (art. 3o, § 2o ); (iv) definir a modalidade de

concessão para exploração da atividade – PPP ou comum - (art. 4o, § 2o); (v)

desapropriar e instituir servidão administrativa nas áreas necessárias à

implantação dos gasodutos concedidos e de suas instalações acessórias (art.

3o, § 4o); e (vi) celebrar os contratos de concessão (art. 12, § 1o). Vale

observar, contudo, que o exercício das duas últimas competências citadas

(desapropriação e celebração de contratos) poderá ser outorgado à ANP.

Inobstante os poderes regulatórios atribuídos ao Ministério, é possível

perceber que a Lei teve a cautela de limitar a margem de sua atuação

discricionária, determinando que o órgão, nas suas tomadas de decisões,

considere os estudos realizados pela ANP e pelos agentes da indústria do

gás56.

55

Conforme definição do art. 2o, VII, a “Chamada Pública” é o “procedimento, com garantia de

acesso a todos os interessados, que tem por finalidade a contratação de capacidade de transporte em dutos existentes, a serem construídos ou ampliados”. 56

Exemplo: art. 3o, § 2

o : “Caberá ao Ministério de Minas e Energia, ouvida a ANP, fixar o

período de exclusividade que terão os carregadores iniciais para exploração da capacidade

23

Essa diretiva é providencial, pois democratiza e dá transparência ao

processo de regulação setorial. Com isso, a um só tempo atenuam-se os riscos

de interferência política do MME na gestão do setor e se facilita o controle de

razoabilidade e proporcionalidade da atuação ministerial no desempenho de

suas funções.

De resto, ficam sob a titularidade e exercício da ANP as competências

essenciais à regulação da atividade de transporte de gás, tais como fiscalizar e

aplicar sanções administrativas (art. 8o, VII, da Lei do Petróleo), elaborar

editais, minutas contratuais, promover o processo de licitação (arts. 11 e 12, da

Lei do Gás) e exercer o controle tarifário (art. 3o, § 2o , art. 14, § 3o e art. 5o, §2o

).

Conserva-se, assim, a liberdade da agência para definir os meios

técnicos de execução da política regulatória e o controle de qualidade e

resultados do serviço concedido; muito embora a Lei do Gás tenha outorgado

ao órgão ministerial certas funções decisórias em matérias eminentemente

técnicas, que melhor poderiam ser desempenhadas de forma exclusiva pela

ANP, à vista de sua vocação natural para esse fim.

2.5 Riscos da gestão privada da atividade

A Lei do gás é explícita ao dispor que a concessão da atividade de

transporte de gás natural deverá correr por conta e risco da sociedade ou

consórcio de sociedade (art. 3º).

Essa transferência de riscos encontra limites nas garantias econômicas

mínimas cogentemente asseguradas pela lei ao contratante privado, como, por

exemplo, a indenização pelos bens reversíveis e o suplemento tarifário arcado

pela União nas hipóteses de PPP e de contingência no abastecimento.

No entanto, apesar de essas e outras proteções, a lei fornece ampla

margem para que concedente e concessionário modulem, prévia e

consensualmente, a matriz de riscos aplicáveis ao contrato, definindo, com

maior segurança, a álea empresarial do empreendimento. Desse modo,

contratada dos novos gasodutos de transporte” (sublinhamos). Cite-se ainda o caso do art. 4

o,

§ 1o, em que o Ministério de Minas e Energia deverá considerar os estudos de expansão da

malha dutoviária do País para decidir sobre a construção e ampliação de gasodutos, bem como para estabelecer as diretrizes do processo de contratação de capacidade de transporte.

24

sempre que “atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu

equilíbrio econômico-financeiro”57, o que implica dizer que o particular, no

exercício da atividade econômica de transporte, pode ou não obter o retorno

esperado para os investimentos. Tudo dependerá dos riscos que esteja

disposto a administrar58. Ou seja, no atual marco regulatório, caberá ao

concessionário gerir as áleas postas a seu cargo, de acordo com as técnicas

empresariais por si escolhidas.

A propósito, em termos de gestão empresarial, o modelo concebido,

ainda que operando sob marcada influência do direito público, é bastante

receptivo à participação privada, a quem foi assegurada ampla liberdade para

dirigir o ciclo de vida clássico do empreendimento, o que abrange as fases de

projeto, construção, operação e manutenção dos Gasodutos de Transporte.

Assim, permite-se que o concessionário possa optar pelo meio gerencial

mais adequado para atingir as finalidades estipuladas pelo Poder Público.

Estabelecido o fim a ser alcançado, o ente privado pode inclusive “empregar,

na execução dos serviços, equipamentos que não lhe pertençam” ou ainda

“contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias

ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos

associados (art. 23, I e II).

2.6 Responsabilidade civil do concessionário

A Lei nº 11.909/2009 previu a responsabilidade civil do concessionário

em razão da construção e operação dos dutos de transporte de gás natural. O

disciplinamento básico da matéria está no art. 22, V, que prescreve que o

concessionário deve se responsabilizar exclusivamente59 pelos atos de seus

57

Não poderia ter dito melhor o art. 10 da Lei nº 8.987/1995, que tem perfeita incidência à espécie. 58

Na atual conjuntura, ficamos impossibilitados de nos aprofundar um pouco mais sobre o assunto. Isso porque a Lei do Gás, enquanto típica norma-quadro, não fornece regras pormenorizadas do balanceamento dos riscos, que assim deverão ser detalhados futuramente, caso a caso, mediante esquemas regulamentares e contratuais ainda inexistentes. Logo, pontos cruciais como a repartição das áleas provenientes das variações de demanda e custos dos insumos estão indefinidos. 59

A parte final do inciso V, do art. 22, impõe a obrigação de o concessionário ressarcir a União dos ônus que esta venha a suportar em conseqüência de possíveis demandas judiciais propostas por terceiros, motivadas por atos do contratante privado no exercício da empresa. Não se trata, contudo, de uma simples responsabilidade civil genérica e abstrata da

25

prepostos ou prestadores de serviços, indenizando “todos e quaisquer danos

decorrentes das atividades empreendidas.”

O referido dispositivo deve ser interpretado em consonância com § 2o,

do art. 23, o qual enuncia textualmente que as relações da concessionária com

terceiros serão regidas pelo “direito comum”, o que atrai a incidência da regra

geral do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, pelo qual “haverá obrigação

de reparar o dano, independentemente de culpa (...), quando a atividade

normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco

para os direitos de outrem.” Ou seja, a regra aqui é a da responsabilidade

objetiva, assentada no risco criado pelo empreendimento explorado pelo

concessionário. E diferente não poderia ser, já que o transporte dutoviário de

gás é uma atividade econômica potencialmente danosa, cuja amplitude pode

abarcar tanto vítimas individualizadas e individualizáveis, assim como

indeterminadas ou indetermináveis, este o caso típico dos danos ambientais60.

Aliás, no que se refere à proteção ao meio ambiente, o art. 22 da Lei do

Gás aduz que constitui “obrigação contratual do concessionário adotar, em

todas as suas operações, as medidas necessárias para a preservação das

instalações, das áreas ocupadas e dos recursos naturais potencialmente

afetados, garantindo a segurança das populações e a proteção do meio

ambiente”. Esse comando, conjugado com o art. 225, caput, da Constituição

Federal61 e com o art. 2º, inciso VIII, da Lei n.º 6.938/8162, impõe ao

concessionário o dever de reparação in natura do dano ambiental, adotando-a

concessionária em indenizar os eventuais prejuízos causados ao erário. Com efeito, a norma em exame estabelece uma garantia própria em proveito do Poder Público, tornando obrigatório que a União, em sendo judicialmente demandada por terceiros prejudicados, denuncie à lide ao concessionário, na forma do art. 70, III, do CPC. Assim, a recomposição patrimonial do Estado pode ser realizada de forma processual mais célere e econômica, nos mesmos autos da ação indenizatória, sem necessidade de ajuizamento de ação regressiva autônoma. 60

Nessa seara, no entanto, tem aplicação específica o disposto no § 1o, do art. 14, da Lei n.º

6.938/81, a determinar ao poluidor, “independentemente da existência de culpa”, a obrigação de indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade. 61

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.” 62

“Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: VIII - recuperação de áreas degradadas;” (grifo nosso)

26

como técnica preferencial à compensação pecuniária, quando isso se mostrar

viável no caso concreto.

Segundo Dahyana Siman Carvalho da Costa63, “a recuperação pode ser

feita por meio de imposição de obrigações de fazer, consistentes na realização

de obras e atividades de restauração, reconstrução ou reconstituição de bens,

habitats e ecossistemas, propiciando um novo estado de coisas que, na

medida do possível, seja assimilável com a situação anterior, já que a

degradação em si é irreversível.”

A “compensação ecológica” até está prevista expressamente na

segunda parte do §1º, do art. 14, da Lei do Gás, só que restrita aos casos de

extinção da concessão, quando então o concessionário ficará obrigado a

“praticar os atos de recuperação ambiental determinados pelos órgãos

competentes.”

Pensamos, no entanto, que a reparação in natura do dano ambiental

causado pela atividade transportadora não pode ficar confinada unicamente

aos casos de extinção do contrato (responsabilidade pós-contratual). Com

efeito, o instituto pode e deve ter aplicação também durante a execução do

vínculo, uma vez que por meio dele se assegura, com mais eficiência, a

conservação do meio ambiente e a busca pela manutenção do equilíbrio

ecológico64.

O exercício da atividade também obriga a concessionária a arcar com o

pagamento integral das indenizações devidas pelas desapropriações e

servidões necessárias à execução do contrato (Lei nº 11.909/2009, art. 17, V,

primeira parte) 65.

63

COSTA, Dahyana Siman Carvalho da. Reparação do Dano Ambiental. Disponível em: http://www.amigosdanatureza.org.br/noticias/358/trabalhos/198.reparacaodano.pdf. Acesso em: 17/08/2009. 64

Ibidem. 65

“Art. 17. O edital de licitação será acompanhado da minuta básica do contrato de concessão, devendo indicar, obrigatoriamente: V - a expressa indicação de que caberá ao concessionário o pagamento das indenizações devidas por desapropriações ou servidões necessárias ao cumprimento do contrato, (...)” (grifo nosso).

27

Conclusão

A Lei nº 11.909/2009 representa um passo importante em direção ao

desenvolvimento da emergente e promissora indústria brasileira do gás

natural, sobretudo para o setor de transporte dutoviário, que agora conta com

regras orientadas às especificidades da atividade, de maior estabilidade

normativa, e promotoras de um ambiente afeto à concorrência.

Ademais, ao ter optado por um disciplinamento flexível, a legislação

permite que as áleas empresariais sejam contratualmente alocadas de modo

mais equilibrado entre o Poder Público e a iniciativa privada, oferecendo boas

possibilidades de retorno do investimento particular e o atendimento eficiente

dos interesses públicos imbricados com a relevante atividade econômica de

transporte de gás natural.

A Lei do Gás também introduz entre nós o conceito de “serviços

econômicos de interesse geral”, o que atrai a incidência de um regime jurídico

misto à concessão de transporte dutoviário de gás, onde se procura conciliar

ampla autonomia privada na gestão econômica da empresa com a imposição

de determinadas obrigações de serviço público, estas justificadas à luz da

importância coletiva da atividade e das falhas de mercado que lhe são

intrínsecas66.

A concessão, portanto, tal como formatada em linhas gerais pela Lei do

Gás, fornece a estrutura jurídico-econômica adequada à recepção dos vultosos

capitais privados indispensáveis à construção e operação das plantas de

transporte de gás natural, consubstanciando-se em importante instrumento

para concretização dos objetivos da Política Energética Nacional (Lei no

9.478/1997, art. 1º).

66

Para aqueles que enxerguem nisso uma anomalia - já que entre nós ainda grassa ferrenho antagonismo entre os conceitos de “atividade econômica” e “serviço público” –, recomendamos especial atenção às palavras de Carlos Ari Sundfeld, para quem é preciso acabar com a “operação simplista” de se tentar “identificar o caráter público ou privado do serviço em causa”, como se isso fosse um método infalível para “determinar a aplicabilidade de um regime jurídico geral.” Preconizando uma mudança de enfoque, o autor conclui que “não se cuida mais de discutir o caráter público ou privado de certo serviço, mas sim de identificar como ele é regulado pelo Estado no tocante ao aspecto tal ou qual.” (SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às agências reguladoras. In: Carlos Ari Sundfeld (Coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 3).