a concepcao materialista da historia

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A Concepção Materialista da História. Lisandro Braga Resumo: O presente artigo analisa a concepção materialista da história a partir dos primeiros escritos filosóficos de Marx e Engels presentes na obra A Ideologia Alemã. Nessa obra já é possível encontrar os principais elementos analíticos de sua concepção materialista, porém esses se encontram em um estágio embrionário e só foram desenvolvidos de forma aprofundada após a publicação do Prefácio à Crítica da Economia, onde Marx apresentará aquilo que ele denominou como sendo o “fio condutor” dos seus estudos. Palavras-chaves: Ser Social e Consciência, Materialismo Histórico-Dialético, Modo de Produção e Luta de Classes. A Consciência é o Ser Consciente. Inicialmente apresentaremos, de forma introdutória, uma discussão acerca dos conceitos Ser Social e Consciência na obra A Ideologia Alemã de Karl Marx e Friedrich Engels, e para isso buscaremos compreender a trajetória intelectual desses pensadores, os elementos formadores das suas idéias centrais e já contidas nessa obra de forma embrionária. Karl Marx nasceu no dia 05 de maio de 1818 na Alemanha, filho de uma família judia de classe média, iniciou seus estudos em direito na universidade de Berlim, mas logo depois se transfere para a filosofia onde será influenciado pelas idéias de Hegel e, posteriormente, dos “hegelianos de esquerda” (Bruno Bauer, Edgar Bauer, Arnold Ruge, Ludwig Feuerbach, Moses Hess etc). Conhecedor amplo da filosofia alemã, também estudou a filosofia antiga chegando a desenvolver como tese doutoral A filosofia da natureza em Demócrito e Epícuro (1838). Preparou-se para assumir uma cátedra na universidade de Bonn, mas tão logo assumiu foi expulso devido à produção Cientista político e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Marxista (NPM) da Universidade Estadual de Goiás.

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  • A Concepo Materialista da Histria.

    Lisandro Braga

    Resumo: O presente artigo analisa a concepo materialista da histria a partir dos

    primeiros escritos filosficos de Marx e Engels presentes na obra A Ideologia Alem.

    Nessa obra j possvel encontrar os principais elementos analticos de sua concepo

    materialista, porm esses se encontram em um estgio embrionrio e s foram

    desenvolvidos de forma aprofundada aps a publicao do Prefcio Crtica da

    Economia, onde Marx apresentar aquilo que ele denominou como sendo o fio

    condutor dos seus estudos.

    Palavras-chaves: Ser Social e Conscincia, Materialismo Histrico-Dialtico, Modo de

    Produo e Luta de Classes.

    A Conscincia o Ser Consciente.

    Inicialmente apresentaremos, de forma introdutria, uma discusso acerca dos

    conceitos Ser Social e Conscincia na obra A Ideologia Alem de Karl Marx e Friedrich

    Engels, e para isso buscaremos compreender a trajetria intelectual desses pensadores,

    os elementos formadores das suas idias centrais e j contidas nessa obra de forma

    embrionria.

    Karl Marx nasceu no dia 05 de maio de 1818 na Alemanha, filho de uma famlia

    judia de classe mdia, iniciou seus estudos em direito na universidade de Berlim, mas

    logo depois se transfere para a filosofia onde ser influenciado pelas idias de Hegel e,

    posteriormente, dos hegelianos de esquerda (Bruno Bauer, Edgar Bauer, Arnold

    Ruge, Ludwig Feuerbach, Moses Hess etc). Conhecedor amplo da filosofia alem,

    tambm estudou a filosofia antiga chegando a desenvolver como tese doutoral A

    filosofia da natureza em Demcrito e Epcuro (1838). Preparou-se para assumir uma

    ctedra na universidade de Bonn, mas to logo assumiu foi expulso devido produo

    Cientista poltico e pesquisador do Ncleo de Pesquisa Marxista (NPM) da Universidade Estadual de

    Gois.

  • de alguns panfletos de carter anticristo. A partir da optou por trabalhar como

    jornalista, uma vez que possuiria maior autonomia intelectual para produzir.

    Filho de uma rica famlia de fabricante de tecidos, Engels (1820-1895), ao

    contrrio de Marx, no possua uma formao acadmica, cursou apenas um ano na

    universidade de Berlim. Sua formao era essencialmente econmica e originada na

    experincia vivida. Quando jovem foi enviado pela famlia para Manchester, grande

    plo capitalista industrial, onde se familiarizou com o funcionamento do capitalismo ao

    relacionar-se com os dirigentes operrios britnicos e visualizar a explorao a que

    estavam submetidos o proletariado britnico na qual denunciou pela primeira vez em

    Cartas de Wuppertal, escrita aos dezenove anos (Fontana, 2004, p. 199).

    Sem dvida a mais forte influncia sobre o pensamento filosfico de Marx est em

    Hegel. Durante um bom tempo foi um hegeliano de esquerda e junto com tais

    hegelianos aprofundaram o estudo da dialtica de Hegel, mas tambm promoveram sua

    crtica. Esse foi o caso de Ludwig Feuerbach que efetivou a crtica dialtica idealista

    de Hegel atravs de uma tica materialista. Influenciado por Feuerbach, Marx

    aprofunda seus estudos a partir de uma perspectiva materialista e avana na crtica

    Hegel e tambm Feuerbach. Isso no quer dizer que ele no reconhecia a importncia

    desses dois filsofos na sua formao terica, apenas demonstrava os limites de ambos

    e apresentava uma perspectiva diferenciada.

    Para Hegel, a histria a histria da razo, ou seja, das idias, e a primeira tem o

    seu desenvolvimento garantido e determinado pela segunda. J para Feuerbach a

    histria o desenvolvimento do ser humano ontolgico, do ser genrico. Porm,

    Feuerbach no aprofunda sua anlise sobre esse ser, possibilitando brechas para

    interpretao de que tal ser abstrato, ou seja, a-histrico e a-transitrio. Nesse sentido,

    Marx avana ao reconhecer que Feuerbach tem razo, mas se esquece de apontar que tal

    ser fruto de um processo histrico, formado nas relaes sociais e pelas relaes

    sociais, historicamente determinadas. Percebe-se, ento que

    Hegel conseguia ver a historicidade do mundo atravs da sua dialtica

    do desenvolvimento da razo na histria, e Feuerbach conseguia

    perceber a materialidade da histria na essncia humana, mas Hegel

    perdia a materialidade de vista, e Feuerbach perdia a historicidade. A

    tarefa que props Marx foi reunir materialidade e historicidade,

    fundando o que posteriormente foi chamado de materialismo

    histrico. A histria no o desenvolvimento da razo, e sim das

    relaes sociais concretas (VIANA, 2006, p. 47-48).

  • Na sua obra A ideologia Alem, Marx realizar uma espcie de acerto de contas

    com os filsofos neo-hegelianos, principalmente Feuerbach, Bauer, Strauss e Stirner. A

    principal crtica endereada a tais filsofos consistia em denomin-los de pensadores

    anacrnicos, pois os mesmos buscavam desenvolver idias importadas de outros

    pases, mas que no possuam base concreta na Alemanha. Contentavam em criticar o

    mundo a partir do campo das idias sem, necessariamente, se preocuparem em

    confront-las com o mundo material que os circundava. Por isso Marx e Engels iro

    ironiz-los afirmando que

    para os Jovens-Hegelianos as representaes, idias, conceitos, em

    geral os produtos da conscincia, por eles autonomizada, valem como

    os grilhes autnticos dos homens, do mesmo modo que para os

    Velhos-Hegelianos significam os verdadeiros elos da sociedade

    humana, percebe-se que os jovens-Hegelianos tambm s tenham de

    lutar contra essas iluses da conscincia (...) Os idelogos Jovens-

    Hegelianos so, apesar das frases com que pretendem abalar o mundo,

    os maiores conservadores. Os mais novos dentre eles encontraram a

    expresso correta para a sua atividade quando afirma que lutam

    apenas contra frases. Esquecem, apenas, que a estas mesmas frases

    nada opem seno frases, e que de modo nenhum combatem o mundo

    real existente se combaterem apenas as frases deste mundo (1984, p.

    13).

    Uma vez que a relao intrnseca entre ser e conscincia social foi invertida pelos

    jovens hegelianos, a proposta materialista de Marx e Engels consistia em promover uma

    reinverso dessa relao, ao questionar a autonomia da conscincia em relao ao ser e

    defender a superioridade do ser sobre a conscincia. Ao contrrio desses que partiam de

    pressupostos definidos nica e exclusivamente por suas mentes e, dessa forma,

    consistiam em pressupostos dogmticos e arbitrrios, Marx e Engels partiam de

    pressupostos reais visto que partiam dos indivduos reais, em condies materiais e

    histricas concretas, promovendo aes, tambm, reais e concretas e que s podiam ser

    verificadas por via emprica, ou seja, na prtica. Constata-se ento que Marx e Engels

    propunham uma concepo materialista da histria humana. Aprofundaremos mais

    adiante a discusso sobre tal concepo.

    Os dois autores afirmavam (com certo grau de ironia que era prprio deles,

    principalmente de Marx) que o primeiro pressuposto da existncia humana a

    existncia de seres humanos vivos. O segundo pressuposto a necessidade de garantir a

    produo e reproduo das condies materiais de sua existncia. O modo de produo

    o modo como os homens produzem e reproduzem os meios necessrios para a

    reproduo da vida e faz isso desenvolvendo sua capacidade de trabalhar de forma

  • cooperada, logo o trabalho e a cooperao se tornam necessidades histricas. De acordo

    com Fontana,

    o estudo da histria mostra que os homens produzem os meios de

    subsistncia de acordo com certos modos de produo que so na

    realidade modos de vida uma forma determinada de manifestar a vida -, o que explica que o que os indivduos so depende das

    condies materiais de produo e das relaes que se estabelecem

    entre eles no processo (2004, 202).

    Em seguida anlise da produo e reproduo das condies materiais da

    existncia e sobrevivncia do homem, os autores de A Ideologia Alem desenvolveram

    a tese de que o trabalho e a cooperao nas sociedades de classes ocorrem segundo a

    diviso social do trabalho, ou seja, a diviso entre trabalho manual e trabalho

    intelectual, diviso entre campo e cidade, indstria e comrcio e a prpria diviso de

    classes. Para eles

    as diferentes fases de desenvolvimento da diviso do trabalho

    significam tantas outras formas diferentes de propriedade; quer dizer,

    cada nova fase da diviso do trabalho determina tambm as relaes

    dos indivduos uns com os outros no que diz respeito ao material, ao

    instrumento e ao produto do trabalho (2007, p. 89).

    Isso significa que a diviso social do trabalho produz as diferentes classes sociais

    e as diferentes e desiguais formas de apropriao do excedente do trabalho. A

    apropriao privada dos frutos do trabalho coletivo uma das principais caractersticas

    dos modos de produo das sociedades divididas em classes sociais. Dessa forma,

    percebe-se que tais sociedades so marcadas pela contradio entre o interesse

    individual e o interesse coletivo. exatamente por conta dessas contradies que o

    Estado surge e (a)parece ilusoriamente como sendo representante dos interesses

    coletivos, estando acima das classes sociais e dos seus interesses especficos. No

    toa que toda classe social que aspira se tornar uma nova classe dominante deve apresentar seus

    interesses particulares como sendo interesses gerais da sociedade. O conflito entre classes torna

    necessria a interveno do Estado (VIANA, 2007, p. 26).

    Partindo da anlise de que o homem se faz homem a partir do momento em que se

    v coagido pela natureza a produzir suas condies materiais de existncia e

    sobrevivncia que Marx concluir ento que a conscincia no pode ser outra coisa se

    no o ser consciente, ou seja, o ser humano o seu processo histrico de

    engendramento. O ser humano o produtor de suas idias, mas o ser humano concreto e

  • histrico que tal como se acham condicionados pelo modo de produo 1. Portanto,

    segundo Marx e Engels,

    a produo de idias, de representaes, da conscincia est, em

    princpio, imediatamente entrelaada com a atividade material e com o

    intercmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O

    representar, o pensar, o intercmbio espiritual dos homens ainda

    aparecem, aqui, como emanao direta de seu comportamento

    material [...] Os homens so os produtores de suas representaes, de

    suas idias e assim por diante, mas os homens reais ativos, tal como

    so condicionados por um determinado desenvolvimento das foras

    produtivas e pelo intercmbio que a ele corresponde, at chegar s

    suas formaes mais desenvolvidas. A conscincia no pode jamais

    ser outra coisa que no o ser consciente, e o ser dos homens o seu

    processo de vida real. Se em toda ideologia, os homens e suas relaes

    aparecem de cabea para baixo, como numa cmera escura, este

    fenmeno resulta do seu processo histrico de vida, da mesma forma

    como a inverso dos objetos na retina resulta de seu processo de vida

    imediatamente fsico (2007, 93-94).

    Somente com a diviso social do trabalho (trabalho material de um lado e trabalho

    intelectual do outro) que a conscincia pode ser apresentada como sendo autnoma e

    tal apresentao surge com a ideologia, ou melhor, com os idelogos. Sobre o conceito

    de ideologia Marx afirmar que se trata de uma falsa representao da realidade, uma

    falsa conscincia que est intimamente relacionada com os interesses das classes

    dominantes, visto que a existncia de tal classe subentende, tambm, a existncia de

    classes dominadas. Portanto, do interesse das classes dominantes manterem as

    relaes sociais que lhes possibilitam dominar e, conseqentemente, do interesse das

    mesmas falsear tal dominao uma vez que a revelao do processo de dominao e de

    suas bases de sustentao (a propriedade privada, o processo de extrao de mais-valor

    etc.) promoveria uma maior compreenso do mesmo e a reao das classes exploradas

    contra o processo de opresso. nesse sentido que Marx e Engels afirmaram,

    as idias da classe dominante so, em cada poca, as idias das classes

    dominantes, isto , a classe que a fora material dominante da

    sociedade , ao mesmo tempo, a sua fora espiritual, dominante. A

    classe que tem sua disposio os meios da produo material dispe

    tambm dos meios da produo espiritual, de modo que a ela esto

    submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos

    daqueles aos quais faltam os meios da produo espiritual (Ibid, 47).

    1 De acordo com Nildo Viana esse conceito deve ser entendido aqui, de forma simplicada, como o nvel

    de desenvolvimento das foras produtivas e formas de intercmbio conforme Marx e Engels descrevem na obra A ideologia Alem, visto que o conceito modo de produo ainda no estava elaborado de forma

    complexa como estar em obras posteriores.

  • Importante afirmar que a conscincia para Marx e Engels no se resume ao

    papel passivo contido no ato de conhecer e expressar o real, mas tambm possui um

    carter ativo, ou seja, a conscincia como projeo apresenta uma viso do real e tal

    viso, dependendo da perspectiva de classe, busca afirmar ou negar a realidade

    existente. Portanto, a conscincia tambm diz o que deve ser, ou seja, apresenta-se

    como uma tica, uma norma de conduta e, ao mesmo tempo, uma manifestao de

    desejos e significados produzidos no contexto da diviso social do trabalho, o que

    produz antagonismo e projetos diferentes no interior de uma mesma sociedade

    (VIANA, 2007, p. 29).

    O ser consciente deve buscar mecanismos intelectuais capazes de apreender,

    analisar e compreender a realidade social. Porm, devido aos interesses de classe da

    burguesia sua conscincia possui limites intransponveis, ela no avana para alm das

    fronteiras do capital visto que isso representaria sua abolio enquanto classe. J o

    proletariado se v coagido, devido explorao na qual ele est submetido na sociedade

    capitalista, a compreender corretamente a realidade social desenvolvendo a partir da luta

    sua conscincia de classe de forma dialtica: afirmando-se como proletariado e ao

    mesmo tempo negando-se como proletariado.

    Nesse sentido que Marx e Engels, buscando expressar teoricamente os interesses

    do proletariado, afirmaro que a conscincia nada mais que o ser consciente e tal ser

    se constitui na prxis, uma vez que essa expressa a liberdade humana. Dessa forma, o

    ser humano afirma sua liberdade produzindo sua vida de forma autnoma e

    ao realizar sua potencialidade especificamente humana, o ser humano

    abole a oposio entre necessidade e liberdade e instaura sua unidade.

    Portanto, a liberdade uma necessidade e a necessidade de liberdade

    tornando-se consciente um sinal de liberdade (Ibid, 2007a, p. 32).

    O Modo de Produo Capitalista

    A principal distino que podemos observar entre a concepo materialista da

    sociedade (capitalista) e as demais concepes ideolgicas e metafsicas que a

    primeira compreende a sociedade como uma totalidade formada por diversas partes na

    qual uma delas exerce determinao fundamental sobre o todo.

    De acordo com o materialismo histrico dialtico, a totalidade o que abarca o

    todo e esse a sociedade, porm a sociedade formada por diversas partes que,

    necessariamente, esto ligadas umas s outras exercendo mltiplas determinaes sobre

    elas, mas uma dessas exerce uma determinao fundamental, sobre as demais, ou seja,

  • sobre o todo (a sociedade) 2. Em todas as sociedades o modo de produo a

    determinao fundamental visto que os seres humanos so, para continuarem a existir,

    coagidos a produzirem e reproduzirem suas condies materiais de existncia.

    Percebe-se, ento, que o modo de produo condiciona as demais esferas da vida

    social uma vez que exerce uma determinao fundamental. No entanto, resta explicitar o

    que o modo de produo e qual a especificidade do modo de produo capitalista

    para, a partir da, compreendermos a concepo materialista de Karl Marx.

    No h nos escritos de Marx nenhuma referncia pormenorizada sobre o modo

    de produo nem to pouco ao que ele denominava de superestrutura. O segundo termo

    aparece pouqussimas vezes em suas obras e isso acabou por facilitar diversas

    interpretaes e deformaes do materialismo histrico dialtico. Vale ressaltar que,

    o termo superestrutura no um conceito (como modo de produo) e

    sim uma expresso metafrica, como observou Althusser. Segundo

    esse autor, este termo tem apenas a funo de ilustrar o pensamento de

    Marx a respeito da relao entre modo de produo e formas jurdicas,

    polticas, ideolgicas, ou seja, as formas de regularizao das relaes

    sociais, atravs da metfora do edifcio social, que possui base e uma superestrutura, sendo que esta s se sustenta graas quela (Viana, 2007, p. 38).

    Para que esse termo e sua utilizao, que preferimos descartar e adotar o termo

    formas de regularizao das relaes sociais 3, no continue gerando mal-entendidos

    procuraremos esclarec-lo luz da produo terica de Marx e de outros marxistas que

    procuraram facilitar essa compreenso.

    Aps a produo da obra A Ideologia Alem (1847), Marx desenvolveu diversos

    escritos que formariam a base do mtodo materialismo histrico-dialtico. Um desses

    textos consiste no Prefcio Crtica da Economia Poltica no qual apresenta uma

    espcie de resumo do materialismo histrico e que, segundo Marx, serviu de fio

    condutor para suas pesquisas. Karl Korsch, em sua obra Marxismo e Filosofia (2008),

    lembra que o prprio Marx costumava enfatizar que

    no se deve procurar nessas frases, tal como se apresentam, mais que

    um fio condutor para o estudo dos dados empricos (isto , histricos) da vida social do homem; posteriormente, Marx

    2 O materialismo histrico dialtico recebe vrias abordagens, sobre perspectivas diferentes. Sobre o

    conceito de totalidade pode-se consultar as contribuies de Karl Marx, Karl Korsch, Lukcs, Kosik etc.

    Sobre o conceito determinao fundamental, o mesmo foi desenvolvido por Hegel e em Marx aparece

    como essncia. 3 Sobre as formas de regularizao das relaes sociais ver: VIANA, Nildo. Para uma teoria das

    formas de regularizao das relaes sociais. In: VIANA, Nildo. A conscincia da histria Ensaios sobre o materialismo histrico-dialtico. Rio de Janeiro: Achiam, 2007.

  • manifestou-se mais de uma vez contra os que nelas procuraram ver

    algo mais que aquele fio condutor (2008, p. 135).

    Vejamos, ento, o que o prprio Marx dizia no prefcio:

    A concluso geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de

    fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente

    assim: na produo social da existncia, os homens estabelecem

    relaes determinadas, necessrias, independentes da sua vontade,

    relaes de produo que correspondem a um determinado grau de

    desenvolvimento das foras produtivas materiais. O conjunto destas

    relaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a

    base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e

    poltica e a qual correspondem determinadas formas de conscincia

    social. O modo de produo da vida material condiciona o

    desenvolvimento da vida social, poltica e intelectual em geral. No

    a conscincia dos homens que determina o seu ser; o seu ser social

    que, inversamente, determina a sua conscincia. Em certo estgio de

    desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade entram

    em contradio com as relaes de produo existentes ou, o que a

    sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade no seio das

    quais se tinham movido at ento. De formas de desenvolvimento das

    foras produtivas, estas relaes transformam-se no seu entrave. Surge

    ento uma poca de revoluo social. A transformao da base

    econmica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa

    superestrutura. Ao considerar tais alteraes necessrio sempre

    distinguir entre a alterao material que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa das condies econmicas de produo, e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou

    filosficas, em resumo, as formas ideolgicas pelas quais os homens

    tomam conscincia desse conflito, levando-o s suas ltimas

    conseqncias. Assim como no se julga um indivduo pela idia que

    ele tem de si prprio, no se poder julgar uma tal poca de

    transformao pela mesma conscincia de si; preciso, pelo contrrio,

    explicar esta conscincia pelas contradies da vida material, pelo

    conflito que existe entre as foras produtivas sociais e as relaes de

    produo (...) (1977, p. 23-24).

    Essas palavras mostram de forma resumida, mas com toda clareza e preciso, os

    principais elementos formadores do quadro geral daquilo que Marx, juntamente com

    Engels, convencionou denominar de concepo materialista da histria e da

    sociedade. No entanto, para um leitor que no conhece a profundidade e complexidade

    da obra de Karl Marx no fcil e, talvez, nem possvel, compreender a importncia

    terico-metodolgica dessas palavras, pois no h nelas nenhuma advertncia para evitar

    os mal-entendidos que, por seu contedo e sua forma, elas podem em alguma medida favorecer.

    Tais cuidados seriam suprfluos, dada a finalidade imediata dessas breves indicaes (Korsch,

    2008, p. 134). Concordamos com Korsch quando diz que Marx s possua uma forma de

    convencer seus leitores da eficcia do seu mtodo, ou seja, aplicando-o determinado

  • domnio da sua pesquisa: a economia poltica. Conforme disse Friedrich Engels, em

    contexto diferente, ao citar um provrbio ingls: a prova do pudim est em com-lo, ou

    seja, s a experincia comprova (Apud Korsch, 2008, p. 146).

    Apresentado esse resumo geral do materialismo histrico, tentaremos esclarecer

    alguns dos principais conceitos contidos nele, porm, devido aos limites desse artigo,

    faremos isso de forma bastante sinttica.

    Os modos de produo, tanto pr-capitalistas quanto capitalistas, so

    constitudos pelas foras produtivas (fora de trabalho, meios de produo e meios de

    distribuio) e pelas relaes de produo que consistem nas relaes estabelecidas

    entre os indivduos no trabalho de produo e distribuio dos bens produzidos. No

    entanto, se tratam de foras produtivas e relaes de produo determinadas em um

    contexto social determinado.

    Para os interesses desse texto, resumiremos nossa anlise ao contexto das foras

    produtivas e das relaes de produo, to somente, na sociedade capitalista produtora

    de mercadorias. Porm, tal escolha no deve levar a uma interpretao limitada que

    acredita que o materialismo histrico dialtico e a teoria marxista s se aplicam

    compreenso da sociedade capitalista, pois em diversos aspectos tal mtodo e tal teoria

    podem ser utilizados na compreenso, tambm, de relaes sociais existentes em

    sociedades pr-capitalistas.

    As relaes de produo na sociedade capitalista so marcadas por duas

    caractersticas centrais que consistem no fato do proletariado trabalhar sobre o controle

    da burguesia (trabalho heterogerido) que comprou sua fora de trabalho e o fato do

    produto do trabalho ser apropriado pela burguesia, via extrao de mais-valor. Percebe-

    se ento que o trabalho processo de valorizao (MARX, 1988).

    No processo de produo de mercadorias o capitalista utiliza fora de trabalho e

    meios de produo, porm somente a fora de trabalho pode acrescentar valor

    mercadoria, pois os meios de produo apenas repassam o seu valor s mercadorias. O

    valor adicionado mercadoria pela fora de trabalho superior ao valor gasto pelo

    capitalista na compra de tal fora e desta forma que se apropria do mais-valor gerado

    pelo proletariado.

    O fundamento da luta de classes no capitalismo, conforme j dizia Marx, est na

    disputa pelo controle do tempo de trabalho, pois, se, de um lado a burguesia visa

    ampliar a extrao de mais-valor sobre o tempo de trabalho do proletariado, este visa

    diminu-lo e, devido aos interesses antagnicos dessas classes, o processo de

  • valorizao acaba por ser marcado pelo conflito. Por conta do carter alienado do

    trabalho, o proletariado desenvolve vrias formas de resistncia na produo que vo

    desde as mais passivas (absentesmo, operao tartaruga, tempo morto etc.) s mais

    radicais (greve geral, ocupao da fbrica, autogesto da produo etc.). Nesse sentido

    que se pode compreender a necessidade que a burguesia tem de controlar, de forma cada

    vez mais minuciosa, o tempo de trabalho no processo de produo.

    A acumulao capitalista realizada atravs de uma relao entre classes

    (burguesia e proletariado) e essa relao fundamentalmente marcada pelo conflito

    entre as mesmas. A burguesia devido aos seus interesses de classe deve,

    necessariamente, desenvolver formas cada vez mais eficazes para a extrao de mais-

    valor, ou seja, para a explorao do trabalho. Por outro lado, o proletariado se v

    coagido a lutar contra o capital por ser quem ele nessa sociedade4. Nesse processo de

    luta de classes o proletariado acaba por criar dificuldades para a acumulao de capital e

    em determinados momentos sua luta radicaliza apontando para a superao da

    sociedade capitalista.

    Por mais que a ideologia burguesa e de suas classes auxiliares tente desacreditar

    essa possibilidade histrica, no h como negar essa tendncia da luta de classes. Tanto

    assim que a burguesia e o estado, principal forma de regularizao das relaes sociais e

    que possui um carter conservador, esto sempre procurando meios de atenuar os

    efeitos das crises que ameaam a continuidade do processo de produo do capital em

    escala ampliada.

    Dessa forma, podemos perceber que a luta de classes se apresenta como fruto da

    contradio entre classes antagnicas (produtores e apropriadores), revela a

    contradio/determinao fundamental mencionada por Marx no Prefcio Crtica da

    Economia Poltica e demonstra como se manifesta a dinmica histrica da sociedade de

    classes.

    Bibliografia consultada:

    FONTANA, Josep. Marx e o materialismo histrico dialtico. IN: FONTANA, Josep. A

    histria dos homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

    4 O ser do proletariado, como j dizia Marx, essencialmente aquele que quanto mais eficaz torna seu

    trabalho, quanto mais riqueza capaz de produzir mais miservel se encontra e, por conta disso, se v

    obrigado a desenvolver formas de lutas que se afirmem na busca pela destruio do capitalismo (MARX,

    2004).

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